Sobre
PT
Coreia é uma publicação fundada em 2019 de carácter experimental, crítico e discursivo a propósito das artes em geral, firmada numa relação umbilical com a dança. De tiragem semestral, o jornal pretende ser um forum independente e internacionalista focado no discurso produzido pelas obras e pelos artistas, preocupado em divulgar formatos vários como partituras, manifestos, entrevistas, crónicas, ensaios, críticas e reflexões em língua portuguesa.
Coreia é impresso em papel e distribuído gratuitamente em Portugal e na CPLP em colaboração com o Camões — Instituto da Cooperação e da Língua. A cada nova edição, é disponibilizada online a edição anterior.
EN
Coreia is a publication of experimental, critical and discursive nature about the arts in general, with special affiliation to the medium of dance. Published twice a year in Portuguese, Coreia intends to be an independent and internationalist forum focused on the discourse produced by the works and artists, while it is concerned with disseminating various formats such as scores, manifestos, interviews, chronicles, essays, reviews and reflections. Coreia is printed on paper and distributed for free in Portugal. With each new edition, the previous edition is made available online.
Estatuto Editorial
COREIA é um projeto independente feito de afinidades várias, autores, géneros, gerações e cosmovisões, tendencialmente inclusivas e democráticas, em sintonia com uma perspetiva plural e multivocal, de abrangência local, mas global.
COREIA é um jornal semestral de carácter crítico e experimental que produz conteúdos a partir e a propósito das artes em geral, com especial incidência numa reflexão sobre as performativas e, particularmente, as coreográficas, numa relação umbilical com a dança.
COREIA tenta participar na construção de um espaço comum no meio das artes em geral e da dança em particular, e contribuir para uma permanente reactualização dos discursos que possam estimular esse espaço.
COREIA está focado em divulgar formatos vários como partituras, manifestos, entrevistas, crónicas, ensaios, críticas e reflexões, assim como na tradução e publicação de textos seminais de artistas de dança nunca publicados em língua portuguesa.
COREIA é uma contribuição para uma partilha crítica dos modos de ver e fazer dança em Portugal, que se querem expandidos.
Lançamento
#9
Lançamentos + Performance de Claralinda, Juliana, Inês, Irene, Isabel por Luísa Saraiva
26 set 18h30 Coimbra
Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha/Linha de Fuga
28 set 19h Setúbal
A Gráfica – Centro de Criação Artística, Setúbal
29 set 19h Almada
30 set 18h Vila do Conde
Capela da Nossa Senhora do Socorro/Circular Festival de Artes Performativas, Vila do Conde
4 out 18h30 Beja
Festival das Marias/CADAC – Companhia Alentejana de Dança Contemporânea, Beja
#8
23 mar 20:30 Lisboa
Culturgest — Maratona para o Gil — com João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda e Pedro Pinto4 abr 18:30 Coimbra
Salão Brazil/Linha de Fuga — com João dos Santos Martins e João Polido7 abr 16:30 Lagos
Festival Verão Azul (Clube Artístico Lacobrigense) — com João dos Santos Martins e João Polido16 abr 16:30 Loulé
Festival Verão Azul (Sul, Sol e Sal) — com João dos Santos Martins e João Polido18 abr 18:30 Vila do Conde
Conservatório de Música, Teatro e Dança de Vila do Conde/Circular Associação Cultural — com João dos Santos Martins e João Polido24 abr 18:30 Braga
Livraria Centésima Página — com João dos Santos Martins#7
Lançamentos + Performance de Submission Submission (unplugged) de Bryana Fritz
21 set 19:00 Coimbra
A Fábrica/Linha de Fuga22 set 19:00 Lisboa
Espaço Alkantara23 set 22:30 Vila do Conde
Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas24 set 18:30 Faro
DeVIR CAPa#6
A Parasita e a Circular disponibilizarão esta edição do Coreia para envio ao domicílio após os eventos de lançamento. O jornal é gratuito. Os portes de envio ficam a cargo do requerente. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.
Lançamentos + Performance de um capítulo de She gave it to me I got it from her de Clara Amaral
08 mar 18:00 Lisboa
Galeria Zé dos Bois09 mar 14:00 Porto
ESMAE09 mar 19:00 Vila do Conde
Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude10 mar 17:00 Coimbra
Laboratório Chimico/Linha de Fuga11 mar 19:00 Ponta Delgada
vaga#5
A Parasita e a Circular disponibilizam esta edição do Coreia para envio ao domicílio. O jornal é gratuito. Os portes de envio ficam a cargo do requerente. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.
Lançamentos + Performance Ehera Noara de Hwayeon Nam com Ji-hye Chung
22 set 18:00 Lisboa
Atelier Museu Júlio Pomar23 set 18:00 Coimbra
Museu Nacional Machado de Castro/Linha de Fuga24 set 19:00 Faro
DeVIR CAPa25 set 17:30 Vila do Conde
Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas#4
Dadas as extraordinárias circunstâncias actuais, a Parasita e a Circular disponibilizam agora esta edição do Coreia para envio gratuito ao domicílio. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.
18 fev 15:00 Santarém — Cancelado
Teatro Sá da Bandeira20 fev 11:45 Vila do Conde — Cancelado
Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde22 fev 18h30 Lisboa — Cancelado
ZDB#3
Lançamentos + Performance de Preste atenção a tudo a partir de agora de Daniel Pizamiglio
11 nov 18:00 Gafanha da Nazaré
Fábrica Ideias – 23 Milhas19 set 18:00 Vila do Conde — Com Melissa Rodrigues
Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas27 set 18:00 Lisboa
Espaço Alkantara#2
Dadas as extraordinárias circunstâncias actuais, a Parasita e a Circular disponibilizam agora esta edição do Coreia para envio gratuito ao domicílio. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.
13 Mar 18:45 Vila do Conde — Cancelado 🦠
Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde13 Mar 21:30 Porto — Cancelado 🦠
Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural
14 Mar 18:00 Lisboa — Cancelado 🦠
Estúdios Victor Córdon no âmbito do evento Navegar é preciso? Sentidos para a internacionalização da dança#1
Lançamentos + Performance
21 set 18:00 Vila do Conde — Com Luísa Saraiva
Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas26 set Lisboa — Com Joana Sá e Sorour Darabi
Estúdios Victor Córdon4 out Cartaxo — Com Marta Cerqueira
Ponto de encontro do Festival Materiais Diversos#0
Lançamentos + Performance de Orifice Paradis de Ana Rita Teodoro
21 Fev 17:00 Porto
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto22 Fev 17:00 Coimbra
Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (Auditório do Círculo Sereia)23 Fev 16:00 Vila do Conde
Vila do Conde – Biblioteca Municipal José Régio23 Fev 18:30 Braga
Livraria Centésima Página24 Fev 18:00 Lisboa
Rua das Gaivotas 6Ficha Técnica
#9
CONTRIBUIÇÃO #9 Alaa Abu Asad, Daniel Lühmann, Dori Nigro & Paulo Pinto com Georgia Quintas, Giulia Damiani, Janeth Mulapha, João Bento, Katarina Lanier, Lior Zisman Zalis, Luísa Saraiva, Projecto Decorporeidades (Daniel Moraes & Filipa Cordeiro com Gio Lourenço & Angelo Custódio), Projecto Indíralo (Andreia Neves Marinho, o Centro Ciência Viva de Alviela, Andreia Sofia Cardoso Lima, a floresta, Patricia Conde, Fernando Pedro dos Santos, João Henriques, a gruta, Valentina Parravicini, Cristina Fuentes Ávila, o rio Alviela, Francisco Weber Ruiz, Gustavo Vicente, María Jerez, Quim Pujol e os espíritos), Teresa Fabião, Tiran Willemse, Vicente Escudero, Zia Soares TRADUÇÃO Patrícia da Silva, Pedro Cerejo REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Fátima Ribeiro, Mariana Rezende DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena COLABORAÇÃO DESIGN GRÁFICO Joana Lourencinho Carneiro APOIOS NO LANÇAMENTO Casa da Dança (Almada), CADAC – Companhia Alentejana de Dança Contemporânea (Beja), A Gráfica (Setúbal), Linha de Fuga (Coimbra) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Maria Ángeles e Julio César Fraile Sandonis, sobrinhos-netos de Vicente Escudero, Arquivo fotográfico Museo Reina Sofia, Pedro G. Romero
#8
CONTRIBUIÇÃO #8 Ahn Vo, Ana Rita Teodoro & Valérie Castan, Chloe Chignell, Davi Pontes, Diana Niepce, Estelle Nabeyrat, Gil Mendo, Guilherme Valente, Inês Zinho Pinheiro, João Polido, Myriam Goufrink & Wilson Le Personnic, Pope.L, Rogério Nuno Costa, setareh fatehi, Silvia Federici, Tiago Amate TRADUÇÃO Joana Frazão, Marinho Pina, Patrícia da Silva, Pedro Morais REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral EDITORES COREIA GIL João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda, Pedro Pinto DESIGN GRÁFICO #8 Isabel Lucena DESIGN GRÁFICO COREIA GIL Nuno Beijinho APOIOS NO LANÇAMENTO Culturgest (Lisboa), Escola de Dança do Centro municipal de Juventude de Vila do Conde, Festival Verão Azul (Lagos, Loulé), Linha de Fuga (Coimbra), Livraria Centésima Página (Braga) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Galeria Mitchell-Innes & Nash, Pope.L, Myriam Gourfink, Thomas J. Lax, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Albert E. Dean, Gisela Casimiro, Ariana Furtado, Journal ADC, Anne Davier, Michèle Pralong, Dançando com a Diferença AGRADECIMENTOS COREIA GIL Ana Bigotte Vieira, Cristina Peres, Cláudia Galhós, Dora Fonseca, Duarte Bénard da Costa, Francisco Camacho, João Fiadeiro.
#7
CONTRIBUIÇÃO #7 Amit Noy, Beverly Emmons, Bryana Fritz, Clarissa Sacchelli, Edna Jaime, Eduardo Batata, Leonor Lopes, Ves Liberta & Vitor Grilo Silva, Germaine Acogny, Joana Levi, Janaína Moraes, Nikita Kadan, Paula Rosa Pinto, Renan Marcondes, Romain Beltrão, Sabine Macher, Viktor Ruban TRADUÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários), Joana Frazão, Patrícia da Silva REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Fátima Ribeiro TRANSCRIÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários) PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena APOIOS NO LANÇAMENTO Alkantara (Lisboa), Linha de Fuga (Coimbra), Devir-Capa (Faro) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua AGRADECIMENTOS Archivio Carol Rama, Helmut Vogt, Marcela Levi e Lucia Russo, Peter Angelo Simon.
#6
DIRECÇÃO EDITORIAL E EDIÇÃO João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ángela Millano & Julián Pacomio, André Lepecki, Andrei Bessa, Giovanna Monteiro, Leonor Mendes, Roberto Dagô & Vicente Ramos, Carla Fernandes, Chiara Bersani & Diana Niepce, Clara Amaral, Emiliano Aversa, Guilherme Figueiredo, Isabel Cordovil, Jan Ritsema & Jonathan Burrows, Miguel Pipa, Miguel Teles, Piny, Renan Marcondes, Vânia Gala TRADUÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários), Joana Frazão, Pedro Cerejo, Paula Caspão, Sara Santos REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann TRANSCRIÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários) PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde, ESMAE (Porto), Galeria Zé dos Bois (Lisboa), Linha de Fuga (Coimbra), Vaga (Ponta Delgada) AGRADECIMENTOS Alkantara, Eleonora Fabião, Maus Hábitos
#5
DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Alice Dusapin & Christophe Wavelet, Anna Halprin, Bruno Zhu, Dani Issler & Frédéric Sayer, Gaya Medeiros, Henrique Neves, Hwayeon Nam 남화연, Leandro Souza, Leticia Skrycky, Min Kyoung Lee 이민경, Paula Caspão, Raimund Hoghe, Sara Graça, Sara Wookey TRADUÇÃO Joana Frazão, José Maria Vieira Mendes, Patrícia Silva, Sara Godinho REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Mariana Monne, Leonor Courtoisie TRANSCRIÇÃO Cyriaque Villemaux EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Atelier-Museu Júlio Pomar, Devir Capa, Linha de Fuga, Residências Artísticas Polo Cultural das Gaivotas Boavista AGRADECIMENTOS Heaju Kim, Ji-hye Chung, Luca Giacomo Schulte, Ricardo Valentim, Stephanie Earle
#4
DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Bhenji Ra, Bruno Levorin & Ignacio de Antonio, Carmen de Brito, Calixto Neto & Luiz de Abreu, Jean Capeille, José Maria Vieira Mendes, Micael Ferreira, Miguel Teles & Daniel Pizamiglio, Pedro Marum, Rita Natálio & Vânia Doutel Vaz, Tânia Carvalho TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Suiá Ferlauto EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Teatro Sá da Bandeira — Santarém, ZDB, APOIOS Teatro Sá da Bandeira — Santarém, ZDB, Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, Carlos Manuel Oliveira, Daniel Tércio, Filipe Viegas, Luísa Carles, José Carlos Duarte, Maus Hábitos, Pedro Antunes, pepe cobo y cía, Sara Ramos, Vicente Trindade, Vítor Brotas, Vanessa Carvalho#3
DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ação Cooperativista, Christophe Wavelet, Diana Niepce, Elisabeth Lebovici, Francisco Camacho, Henrique Furtado, João Fiadeiro, Liliana Coutinho, Lula Pena, Melissa Rodrigues, Mierle Laderman Ukeles, Miguel Teles, Miguel Wandschneider, Min Kyoung Lee, Vera Mantero, Volmir Cordeiro TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Patrícia da Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Duarte Bénard da Costa EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Alkantara AGRADECIMENTOS Duarte Amado, José Carlos Duarte, Matheus Martins, Mierle Laderman Ukeles, Ronald Feldman Gallery (Nova Iorque)#2
DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Pi, Clara Amaral, Diego Bagagal, Filipe Pereira, Hélio Oiticica, Miguel Castro Caldas, Rita Natálio, Teresa Castro, Tom Engels, Vânia Doutel Vaz, Vânia Rovisco, Zeina Hanna TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Patrícia da Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Sónia Baptista, Pedro Cerejo EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Centro Municipal da Juventude de Vila do Conde, Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural, Opart/Companhia Nacional de Bailado/Estúdios Victor Córdon AGRADECIMENTOS André e. Teodósio, Ariane Figueiredo e César Oiticica do Projecto H.O., Claraluz Keiser, Daniel Pizamiglio, Donatella Cacciola, Duarte Amado, ESMAE, Frank-Manuel Peter, Sebastian Bardin-Greenberg, Sergio Zalis, Vânia Rodrigues#1
DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Jotta, Carlos Manuel Oliveira, Carlos Azeredo Mesquita, Christophe Wavelet, Dasha Birukova, Duarte Nuno Amado, Joana Sá, Luísa Saraiva, Poorna Swami, Rita Natálio, Valeska Gert, Sergei Eisenstein, Sílvia Pinto Coelho, Sorour Darabi TRADUÇÃO Ana Matoso, Joana Frazão, José Maria Vieira Mendes, Larysa Shotropa, Patrícia da Silva REVISÃO Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Duarte Bénard da Costa, Cyriaque Villemaux EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Circular Associação Cultural WEBSITE Sara Orsi APOIOS Associação Parasita, Opart/Companhia Nacional de Bailado/Estúdios Victor Córdon, Festival Materiais Diversos#0
DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Rita Teodoro, Christophe Wavelet, Cyriaque Vilemaux, Carlos M. Oliveira, Duarte Amado, Eros404, Felipe Ribeiro, Marcelo Evelin, Moriah Evans, Takashi Morishita, Tatsumi Hijikata, Rita Natálio TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Daniel Lühmann, Marta Morais, Patrícia Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Carlos M. Oliveira EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Circular Associação Cultural CO-PRODUÇÃO Associação Parasita WEBSITE Sara Orsi APOIOS Biblioteca Municipal José Régio – Vila do Conde, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Livraria Centésima Página, Rua das Gaivotas 6 AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, André e. Teodósio, Christine Greiner, Cyriaque Villemaux, David Cabecinha, Hugo Dunkel, José Carlos Duarte, Kazuki Fujita, Patrick De Vos, Pierre-Louis Denis (William Klein Studios), Sabine Macher, Takashi Morishita (Centro de Arte da Universidade de Keio, Japão), Tomo Kosuga (Masayuki Fukase Archives)ISSN 2184-4461
Direção: João dos Santos Martins
Periodicidade: semestral
Distribuição gratuita
Depósito legal: 452179/19
ERC: 127238
Impressão: FIG — Indústrias Gráficas, SA — Coimbra
Tiragem: 3000 exemplares
Fontes: Glossy Display, F GroteskProprietário: Circular — Associação Cultural. Sede da redação/Sede do editor: Praça Luís de Camões, 9 – 1.º, 4480-719 Vila do Conde. NIF 507590767
A Circular Associação Cultural conta com o Alto Patrocínio da Câmara Municipal de Vila do Conde e é uma estrutura financiada pela República Portuguesa/Cultura, Direcção-Geral das Artes.
Edições
8
Tiago Amate Uma carta que dança ao Sul
Pope.L Notas sobre Crawling Piece/Diário de Performance/ Manifesto de Performance #78
Anh Vo A força aparicional da dança
Diana Niepce Crítica para a dança
Estelle Nabeyrat Love Song, uma canção na cabeça
Ana Rita Teodoro Valérie Castan Audiodescrição (AD) em dança
Inês Zinho Pinheiro Maneiras de ‘cher’
Rogério Nuno Costa Multiversidade
Silvia Federici Elogio do corpo que dança
João Polido Sombra de vento
setareh fatehi Paralaxando (eu): a história de uma prática
Wilson Le Personnic Myriam Gourfink O infra, o sensível, o pré-movimento, a respiração, a vibração…
Chloe Chignell Baladas em jargão VII — Um autorretrato
Davi Pontes Racial ↔ Não-local
Guilherme Valente Marques Como comprar um jornal de dança
Gil Mendo Caderno Para o Gil
7
- Jack Halberstam, Wild things: the disorder of desire. Durham e Londres: Duke University Press, 2020. [Tradução livre da autora].
- Ibid.
- Ver Kemi Adeyemi, “Beyond 90°: The Angularities of Black/Queer/Women/Lean”. Women & Performance: A Journal of Feminist Theory, vol. 29, no. 1, 2019, pp. 9-24.
Nikita Kadan Cheap Gas Cheap Blood
Viktor Ruban 10 de agosto de 2022
Não me lembrei de nada além da data como forma mais performativa de começar. Documentar ou relatar descreve o processo artístico mais comum hoje em dia. Números, factos, correlações, acontecimentos históricos, causas e consequências de um ser humano e escolhas, coisas feitas ou não, acções realizadas ou não, responsabilidade assumida ou não.
Em 2014, quando a Rússia começou a guerra anexando a Crimeia e ocupando partes das regiões de Donetsk e Lugansk, artistas e trabalhadores culturais da Ucrânia envolveram-se maciçamente no activismo cultural. Desde bloquear o Ministério da Cultura ucraniano com a Assembleia de Actores Culturais, exigindo reformas, purga e responsabilização legal dos dirigentes anteriores, ou lançar o Congresso de Activistas Culturais para fortalecer a solidariedade e estruturar iniciativas de diferentes regiões da Ucrânia, até iniciar o grupo de trabalho Cultura com base no Pacote de Reformas de Recuperação. Surgiram novos festivais e instituições para ajudar os refugiados das regiões ocupadas, documentando crimes de guerra e violações dos direitos humanos, e também centros que resultaram de iniciativas de voluntariado em colaboração com militares ou deslocados, etc. Apareceram muitos novos espaços de apresentação, projectos artísticos e plataformas, reflectindo sobre a responsabilidade da cultura durante guerras e crises, dando resposta a necessidades, partilhando práticas de descolonização e formas de resistência à desinformação.
Em 2022, após o início da invasão em grande escala, percebemos que os nossos esforços anteriores estavam longe de serem suficientes. Desenvolver discursos e trabalhar sentidos não nos defende do terrorismo nem do desejo de “des-ucranizar a Ucrânia”[1]. A defesa e o empenho em iniciativas de ajuda às nossas forças armadas tornaram-se cruciais para todos. A maioria dos teatros, estúdios, galerias, clubes e outros espaços artísticos transformaram-se muito rapidamente em centros logísticos, bunkers ou lugares seguros para refugiados. Muitos coreógrafos, intérpretes, grupos de teatro, encenadores ou cenógrafos tornaram-se voluntários, ajudando a encontrar ou entregar comida, medicamentos, equipamento táctico, munições defensivas, drones, veículos ou até mesmo balas. Grande parte também decidiu ir para a linha da frente com armas e aprender a combater. Muitos artistas, com as suas redes profissionais, começaram a coordenar actividades para ajudar refugiados e angariar fundos para as diferentes necessidades urgentes.
Também nos apercebemos de que, ao estarmos sobretudo concentrados nos desafios internos no período de 2014-22, comunicámos muito pouco sobre a identidade e a cena contemporânea ucranianas nos circuitos internacionais, o que foi bastante prejudicial quando tentámos angariar solidariedade a nível político, mesmo dentro da UE. A Ucrânia era uma “zona cinzenta”, e foi preciso que ocorressem acontecimentos dramáticos, que milhares de civis morressem, milhões abandonassem as suas casas e que infra-estruturas fossem destruídas para as pessoas começarem a olhar realmente para a Ucrânia. A Rússia, tradicionalmente, desde os tempos soviéticos, tem usado a desinformação e a propaganda através da cultura. Em resposta a isso, muitos artistas tornaram-se canais de informação rigorosa, começaram a explicar o contexto histórico de acontecimentos actuais, a preencher lacunas históricas e a mapear casos de apropriação cultural massiva da nossa história, cultura e arte,[2] confrontando westplainings, sensibilizando para as nossas necessidades actuais, enfrentando os desafios, revelando perversões.
A esfera cultural na Ucrânia tem sobrevivido sobretudo graças à solidariedade dentro de redes independentes de artistas, instituições e seus públicos, que se apoiam mutuamente em termos físicos, emocionais, mentais e financeiros. Também ajudam a evacuar obras de arte ou arquivos de zonas de risco, porque o Estado mal dá conta dessa missão. Todos os ucranianos estão concentrados em coisas urgentes e na sobrevivência, o que torna extremamente difícil o trabalho artístico. Como coreógrafo, sinto-me bastante limitado para entrar profundamente num processo de criação, à procura do movimento ou da linguagem da dança, porque tudo é tão carregado. Posso começar a trabalhar com os “alertas fantasmas” que “oiço” ultimamente, mas mal comece a trabalhar vou mergulhar no trauma, e não no trabalho artístico. Para alguns artistas ou colectivos a situação é proveitosa – as iniciativas artísticas canalizam as suas preocupações, ansiedades, reflexões, etc., como resposta à situação.
As coisas vitais, as necessidades básicas, são as mais desafiadoras, e é por isso que a recuperação física, emocional e mental é crucial. As práticas somáticas, de corporalização e de dança são muito úteis para isso. Artistas de dança em territórios mais seguros estão a dar aulas gratuitas a crianças e adultos, ajudando-os a lidar com o stress, a reactivar processos de recuperação e a “voltar aos seus sentidos” (por exemplo, Nikita e Alla Kravchenko no espaço Soma majsternya, em Lviv, com aulas de Movimento Estático e Locomoção; a Apache CREW, com a caravana de acampamentos de dança Círculo de Dança em diferentes regiões; ou as sessões regulares de Terapia de Movimento de Dança no espaço LMaluma, em Kiev). Algumas pessoas reúnem-se irregularmente para treinos e alongamentos, partilhando práticas corporais ou até fazendo sessões de improvisação (como a Totem Dance School com os Fins-de-Semana de Dança Contemporânea de Kiev ou o minifestival de Contacto-improvisação Dança da Paz 2022, ou a formação integrada regular para bailarinos no LMaluma, em Kiev).
A maior parte das iniciativas de voluntariado está envolvida com a defesa e o pessoal militar. A partilha não só de experiências mas também de conhecimento leva a novas iniciativas. Coreografia Táctica (leccionada por Kristina Shyshkareva no Totem Dance Theatre) e Biomecânica (leccionada por mim para várias ONG) são oficinas em que novos soldados aprendem a lidar com as suas munições (que acrescentam 20/25 kg ao seu peso corporal), a respeitar sua estrutura corporal de modo a evitar traumas físicos, o modo como funcionam a respiração e a atenção e a importância de se sintonizarem com os próprios processos corporais para garantir a sustentabilidade física, emocional e mental.
O treino para civis também é oferecido em campos de três semanas que promovem o diálogo entre a sociedade civil e militar, sensibilizando para as práticas militares e, ao mesmo tempo, ajudando na integração social da população militar. Esta iniciativa privada de “Oficialato civil” inclui sessões de trabalho corporal, elementos de biomecânica e consciência somática, formação integrada, aulas de improvisação e composição em dança, com elementos do sistema de Análise de Movimento de Laban e informações sobre diversos conceitos corporais.
Fui recentemente convidado a participar como formador no Curso de treino para instrutores das Forças Armadas da Ucrânia sobre recuperação e primeiros-socorros psicológicos. Começou em Junho em modo experimental e está agora acreditado pelas Associações Nacionais de Psicoterapeutas e de Arte-Terapia. Neste curso prático, os instrutores aprendem o básico para manter o equilíbrio físico, emocional e mental num contexto de batalha; técnicas que ajudam a lidar com situações críticas (incluindo distúrbios, ataques de pânico, etc.); conhecimentos sobre como resistir ao stress e prevenir a PSPT (Perturbação de Stress Pós-Traumático), de modo a que soldados e oficiais se possam ajudar mutuamente, prevenindo comportamentos autolesivos ou suicídios. Doze das 40 horas são dedicadas a trabalhar noções básicas de dança contemporânea e de Terapia de Movimento de Dança (respiração, enraizamento, postura, consciência corporal e espacial, etc.).
A solidariedade internacional é crucial para ajudar os refugiados, conseguir ajuda humanitária, prevenir o tráfico de pessoas, ajudar com questões de saúde e necessidades especiais. Muitas instituições parceiras tornaram-se centros ou abrigos para refugiados. Algumas acolheram eventos e manifestações de solidariedade nas suas cidades, indicando o seu apoio e pressionando os governos locais a agilizarem a tomada de decisões. E também mapeando recursos que serão necessários para os desafios futuros, que ainda não são visíveis, mas já se tornam palpáveis: desde lidar com questões conceptuais (por exemplo, a crise em grande escala do humanismo) até ao potencial da política global (consequência do mau funcionamento de organizações internacionais como a ONU, a OSCE, a Cruz Vermelha ou a Amnistia Internacional).
Há um ano, eu não me imaginava a trabalhar com militares. Mas, desde Fevereiro, percebi que a humanidade “criou” um mundo onde a liberdade tem de ser defendida pela força, onde a soberania é uma questão de mercado e o humanismo é constantemente posto em causa. A questão é se estamos preparados para admitir que fechar os olhos e “ficarmos preocupados” não vai resolver a situação – que teremos de lidar com ela. Devolvendo a responsabilidade àqueles que cometeram os crimes, admitindo os erros e aprendendo com eles, fazendo o luto das nossas perdas e recordando aqueles que deram as suas vidas em defesa dos nossos direitos e liberdades, reconstruindo o que foi destruído e sarando as nossas feridas, fomentando a solidariedade e a partilha, questionando o nosso modo de vida e as nossas zonas de conforto, estando atentos ao pensamento e discursos que estamos a desenvolver e a difundir, repensando a arte que criamos e apoiamos, perguntando que sociedade estamos a construir ou a manter e se a vida humana, a liberdade, a dignidade, o cuidado, o intelecto, a gratidão e a ludicidade têm importância nessa sociedade.
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[1] Formulação de Timofey Sergeitsev, tecnólogo político russo, no seu artigo “O que a Rússia deve fazer com a Ucrânia”, 05.04.2022, https://ria.ru/20220403/ukraina-1781469605.html.
[2] Estes casos estão descritos em “The fallacy of ‘Russian Culture’ in Ukraine”, de Hiroaki Kuromiya, em https://ukrainian-studies.ca/2022/05/16/the-fallacy-of-russian-culture-in-ukraine ou em “Appropriated by Russia”, de Валерія Степаненко, em https://ukrainer.net/appropriated-by-russia.
Edna Jaime Entre as Fronteiras da Expressão
Ponto de partida
16 de Junho não é tão somente uma data, não o poderia ser, pelo menos para mim, cujos progenitores, neste dia, no centro de Moçambique, cidade da Beira, entrelaçavam suas vidas a escassos três meses da chegada da menina que já bailava no ventre, mas também o nome da escola que, em 1996, foi o berço para resvalar a sua paixão pela dança. Na arquitetura do corpo, no panorama de topo, subir e descer ladeira abaixo na perseguição de um sonho arrebatador: viver a Dança! Farda colegial embutida, paixão em riste, buscando desde tenra idade manter a bandeira em haste através da arte do movimento, do canto e da reconstrução dos contos que outrora ouvia, para recontar de outro modo a minha história, uma nova história.
Acostumei-me a ser ensaísta nos contratempos da dança e da vida, onde ecoavam as xipalapalas[1], e a maternidade chegou trazendo consigo outro corpo, outra mente, outras necessidades, toda uma nova realidade de mim mesma: eu me (re)conhecendo! Houve momentos de instabilidade em demasia. Nessa inconstância em que divaga meu pensamento, anos passando fazendo surtir vários cenários mutáveis, a bailarina-camaleoa assim (re)nascia, uma verdadeira hustler, dois meninos ao colo, uma enorme paixão em movimento no novo corpo, alma e caminhada: a Dança, sempre a Dança!
Na inércia do movimento de uma quase aprendiz da presença em palco, para se tornar parte do mundo que se deixa energizar pelo toque de pele da ponta dos pés aos diversos soalhos, intimíssimos, corpo e musicalidade são como o que aterra e o que acolhe, em movimentos ora voluptuosos e improvisados, ora meticulosamente planeados. Vesti esses mantos de suor enquanto bailava o mundo. Embebedada desses tantos sentimentos enviesados que não consubstanciam a verdade e a realidade. Tão peremptória para mudança de mim mesma, violentamente aprendi a ler os meus próprios sinais e os sinais à volta de mim. Corpo celeste exposto a gentrificação em meio a azáfama que vai se aglutinando e chega ao extremo. Já referia minha mãe Maria: “Enquanto danças, se eleva o monstro em ti”. Uma nova dimensão dos movimentos vai-se exacerbando, até ganhar volume, como o estrume de uma planta que, quando colocada nessa terra, floresce, desde a terra batida até a cidade de betão.
A dança sempre foi tida como parte importante de uma base elementar a nível familiar em África, dançar é espantar e alegrar, é o nosso lugar de aterro. Cultuar os deuses da água, dos montes, das madrugadas, permitir que eles habitem em nós. O corpo é o portal que permite o acesso a dimensão futura, o próximo domínio. Em brutos movimentos, de tambores ao vento, do fogo em meio ao infinito escuro, trazendo vozes adormecidas. Siyavuma [2]!!!
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[1] Chifre anelado do grande antílope africano pala-pala (Hippotragus niger), que é usado como instrumento musical ou meio de chamamento.
[2] Termo do Zulu, língua falada na África do Sul, que significa “aceito”/”aceitamos”.
ENTRE AS FRONTEIRAS DA EXPRESSÃO
A província de Cabo Delgado é rica em gás natural e vive aterrorizada, desde 2017, por rebeldes armados… Há 784 mil deslocados internos devido ao conflito, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), e cerca de 4.000 mortes, segundo o projecto de registo de conflitos ACLED.
Expressando lá no fundo da complexa alma, o corpo, que é a boca da alma, dá o seu máximo para, de forma exímia, trazer à vida a expressão de uma forma de desentupimento do estresse social que se pretende alcançar. Entre avanços e recuos, entre a missão do dever de expressar e o temer as incontornáveis consequências, como que numa corda bamba se ver dançar sobre uma linha ténue, íngreme, que se vai acentuando e aglutinando em questionamentos que com o passar dos anos ganham volume e ficam como uma crosta de ferida que não sara, é muitas vezes um pensamento desconexo, mas ininterrupto. O receio está aí, presente, premente e existente, e, enquanto pensamos, imediatamente abortamos o pensamento.
Assim é ser moçambicano pertencendo somente à minúscula capital, mas sentindo nas entranhas da alma o ecoar dos tambores de Cabo Delgado gritando: “Eu também sou Moçambique!” Difícil é ser surdo diante deste ensurdecedor ressoar de engasgos e choros sem voz amordaçados nos nós da garganta colectiva do povo e não dançar a dor dos meus…
Combater O Bom Combate² foi necessário para exorcizar as vozes que em 2016 me cantavam ao ouvido em uníssono de dia e de noite: “Mulher, você tem de dançar a dor do teu povo e elogiar, mesmo em meio ao caos, esta resiliência toda da qual tu também bebes e te manténs vertical e quase inabalável! Que o teu corpo fale!!!” Um loop em cadência de pele de cobra da dança Mapiko[3] repetia de forma infinita aquela imagem do Bispo beirense Dom Jaime Pedro Gonçalves, em um dos canais nacionais de TV: “Ainda que se juntem e ecoem todos os tambores de Moçambique, existem os que não percebem e se negam a perceber a necessidade e o valor da paz”.
Quando os ouvidos não ouvem, o corpo tem de falar, e é aí que misteriosamente a missão e o propósito se encontram uma vez mais para romper com a fronteiras da expressão. É uma espécie de casamento em um regimento que permite cortinas de impedimento, este assombramento diário dessas cortinas ásperas, pesarosas e difíceis de afastar para permitir a entrada do sol, num interior de clima abafado que não permite desabafo, um trato em que ninguém interfere em coisa alguma.
Não mais aí jazem espíritos obstinados e destemidos, nem as promessas revolucionárias dos de esquerda, nem os multipartidários; foi-se o herói Samurai – ficou a história –, e com ele foram também os verdadeiros ideais. Rompe-se assim o cordão umbilical entre as potencialidades e possibilidades. Restam-nos estas mentes timoratas dos que nutrem simpatia febril pelos regimes ditatoriais.
Não podendo voar mais alto, as aves assombram o céu em rodopios de socorro.
Expressar dando mão à palmatória, ao que se sente, sabendo que é importantíssimo não sermos corpos blindados em suas próprias paredes, nas fronteiras do interdito, mas arrasar emoções, destrinchar sermões, aclarar confusões e propositados equívocos.
Para expressar qualquer tipo de liberdade, de forma inequívoca, é importante primeiro dar vazão à interior rebelião. Eu, ferozmente, fui-me açoitando, nesse contencioso de conceito “liberdade de expressão”. Vários questionamentos surtiram em mim, através de murmúrios e indagando sobre até onde vão os limites da expressão ou da liberdade de expressão. Até onde vão os extremos da tolerância à liberdade de expressão.
Que eu me recorde, depois da rejeição dos fregueses em relação à subida de preço dos chapas[4], a tolerância ao manifesto foi zero, em meio ao gás butano e enxofre viam-se corpos pintados de vermelho. Falarei também dos discursos em assembleias que calam jornalistas em reportagens, mas não calam o barulho das armas. Da violência que (in)surge desses recursos. Da intolerância à liberdade religiosa, do extremismo e do ódio nutrido diariamente. Esse sim, é o caos ao rubro, na ribalta, mas mais do que aterrorizadora é a violência existente, e a maior das violências é, sem sombra de dúvidas alguma, a violência cometida entre irmãos.
Enfim, dúvidas geram respostas, mas também há perguntas sem respostas.
Continuarei a buscar os frutos da liberdade em perfeita imperfeição. Ser e permitir ser algo mais. Força motivadora esta que fez surtir esta vontade indómita, para dilacerar os regimes ditatoriais e combater o bom combate. É preciso criar tentáculos de sobrevivência, para produzir a seiva da nação, rumar voluntariamente de forma atroz para o derrube da escumalha existente.
Podendo assim estufar o tórax, embutindo-o de coragem, é preciso coragem para experimentar qualquer tipo de liberdade que seja.
Ter liberdade para expressar é um pressuposto em construção!
O MISTO DE PERSPECTIVAS E SONHOS
É em meio à cacimba que gera cegueira de percepção do meio envolvente, deste dogma imperativo do corpo na mística do sonho, que se formam núcleos desejosos de obter maior rigidez, que se esperam, acima de tudo, uma nova realidade de maior e melhor acesso a educação de base, formação profissional, oportunidades que movem fundos e mundos para todos.
Que haja uma incubadora atemporal. Que não se perca o trajecto entre os vários itinerários. Preocupa-me o legado em ruínas que ruma à decadência. Talvez, acrescentar outro tópico: o despertar social para observância da opinião do artista. Uma observância não premonitória, mas capaz, acima de tudo, de prever o rumo dos acontecimentos.
Que haja, em suma, a difusão, de forma globalizada, do trabalho artístico local, de onde quer que seja para o Mundo! Afinal de contas, somos todos de lugar nenhum senão desta terra, o único lugar que conhecemos e no qual pretendemos ser reconhecidos.
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¹ Novo ataque no sul de Cabo Delgado causa três mortos, Observador, 27 jun 2022. https://observador.pt/2022/06/27/novo-ataque-no-sul-de-cabo-delgado-causa-tres-mortos/
² O Bom Combate (2016) é uma criação minha que retrata a ressonância da luta diária que a maioria das pessoas comuns leva a cabo, com tenacidade e fé, preservando corajosamente a sua dignidade, valores e princípios morais e éticos que estão cada vez mais degradados na sociedade moçambicana, em tempo de crise económica e de alguns escândalos políticos e económicos marcantes. Na verdade, esta é uma situação que se vive actualmente em várias sociedades do mundo.
³ Dança tradicional moçambicana praticada pela comunidade Makonde, na província de Cabo Delgado.
[4] Diz-se dos transportadores semi-colectivos de passageiros em cidades de Moçambique, vulgo “chapa 100”.
Renan Marcondes brasabrasil
(a partir da peça c h ãO, de Marcela Levi e Lucía Russo)
Minhas asas estão prontas para o voo,
Se pudesse, eu retrocederia.Gerhard Scholem, Saudação do anjo
Antes de existir o Brasil, esse de hoje, construído a pauladas, havia outro Brasil. Antes desse Brasil supostamente nomeado pela madeira pau-brasil, houve outro que nomeou esse pedaço de coisa com essas seis letras. Brasil, Brazi, Brazir, Breasail, Bracir, O’Brazil: uma palavra que se balbucia e se transforma, uma linha circular ou um anel de ilhas, uma terra maravilhosa e assombrada da mitologia irlandesa, com magos, coelhos coloridos – e comigo que agora escrevo, num futuro distante. A ilha Brasil, desenhada em tantos mapas, geralmente no meio do oceano Atlântico, Eldorado às avessas, prima da Lua e de Marte e dos buracos negros, terreno de uma outridade absoluta, terra da brasa, dos vermelhos, em formas diversas e ensaiadas do que poderia ser aquele encantador e assustador lugar que sempre habitará nossas mentes. Anteontem Brasil, ontem Lua, amanhã Marte. Para sempre outro lugar.
Nós, daquilo que hoje segue sendo chamado de Bras(z)il, não podemos nunca nos esquecer de que antes desse Brasil, criado a ferro e fogo, houve e haverá sempre um Brasil imaginado por outros povos agarrando-o pelo pé, transando à força com seu duplo e não o deixando nunca em paz. Queimando-o por dentro e fazendo nascer dentro dele todos aqueles bebês monstruosos e alienígenas que aparecem a rodo nos filmes de terror.
Querido fantasma do Brasil. Toda exportação do Brasil levará, em alguma mala de pertences, um ou outro dos seus. Vocês pesam pouco, é verdade, então conseguem se encaixar confortavelmente no limite reduzido de uma mala de mão. A grande questão, portanto, não é seu transporte, mas sim o que fazer com vocês depois que eventualmente saem das malas.
Quando um fantasma brasileiro sai da mala e se vê na Europa, alguns caminhos são possíveis. Um deles é vesti-lo do misticismo daquela ilha Brasil antes do Brasil, envolver sua pele invisível de tudo aquilo que se projeta sobre essa terra quando se está fora dela e só é possível imaginá-la como um pedaço de mapa. Mas esse misticismo não é uma questão de elementos, de como adornar um fantasma ou o quanto de suor se respinga sobre os corpos. Não é (só) a nudez, não é (só) o cocar, não é (só) a cor da pele. É uma questão de como se adere, sobre esses elementos todos, aquela outra nuvem densa que é a imagem que se tem daqui quando se está fora. Quando hoje se reconhece, fora do Brasil, o Bras(z)il (em, por exemplo, uma peça de dança), fica claro para um brasileiro que nada é dito sobre o Brasil senão sobre o claro desejo de, criando uma imagem brasileira, pular para fora dessa terra sem saída e encontrar aquele oásis no deserto da Europa chamado: estrutura de trabalho.
Quanto mais cresce a fenda nessa nossa terra arrasada, quanto mais correm os anos a nos provar que nosso projeto democrático falhou e que aquilo que achávamos que era progresso era só um pano quente, mais corre nas nossas bocas de artistas de classes média e alta a doce palavra internacionalização. Já que não dá mais aqui, que tal lá fora? Já que há 908 projetos de teatro enviados no último ano só no estado de São Paulo para que apenas vinte deles vejam algum centavo, que tal mostrar para outros nossa “verdadeira” cara? Já que parece ter tanto dinheiro e culpa lá fora, afinal de contas… Já que “eles” nos devem…
Quanto mais cresce essa palavra, mais deixamos nosso público no chão para acomodar nas cadeiras os curadores internacionais; mais os levamos de Uber – já altos de caipirinha – para aquele teatro (que revitaliza enquanto gentrifica) a fim de escolher aqueles que enfim poderão sair; mais volta só quem saiu com sucesso; mais conquista temporada quem tem a dupla nacionalidade no currículo, quem dançou com as grandes, quem conseguiu se segurar antes de cair, quem produziu aquilo que parece ser igualzinho ao Brasil quando fora do Brasil e volta para, tendo em mãos os palcos, nos contar sobre como lá vestiu nossos fantasmas.
(Essa cena acima é muito contraditória e nela não há mocinhos ou vilões. Não é uma narrativa, é um quadro caótico do momento em que a fenda se abre demais e cada um se organiza como pode. É uma cena de náufrago. Nela, há ajuda, tentativas, desejo aos montes, mudanças de rota, sabedorias, lições de velhos sábios sobre como sobreviver e memórias saudosistas das viagens para Europa que formaram nossa elite modernista. Essa cena não tem protagonista, por mais difícil que seja imaginar uma cena sem protagonista hoje em dia.)
Quando estive, eu e meus fantasmas, por um breve tempo no doce e calmo espaço público europeu, sem medo de andar nas ruas e com tempo para pensar no que há antes e depois do meu corpo – porque aqui é corpo o tempo inteiro, que olha para trás desvia anda apressado e põe a mão no bolso porque os fantasmas marcam a dúvida –, só quando lá estive, pude notar como é difícil pedir que vejam, nos nossos fantasmas, qualquer outra coisa para além das imagens que colocaram sobre nós. Querem nossas penas, nosso suor, nosso calor, nosso sol, nossa floresta, nosso café, nossa terra a qualquer custo. Dentro e fora da dança. Sempre quiseram. Afinal, por que outro motivo estaríamos lá? Precisamos marcar nossa diferença e propriedade, pois o resto todo já tem lá. Não é possível escapar desse olhar e, se dependemos do seu reconhecimento para continuar a produzir, como responder a ele? Como vestir os fantasmas para um bom chá ou cerveja na Europa?
Há um caminho, assumido apenas por algumas poucas peças de dança, que parece possível e que passa por compreender a impossibilidade de criar uma imagem autenticamente brasileira quando fora do Brasil, dado que qualquer processo de reconhecimento dessas imagens por parte do público dependerá de uma aproximação com aquela ilha Brasil prévia ao Brasil. O que quer dizer: qualquer imagem brasileira só se constitui a partir de um duplo monstruoso de si mesmo, sendo como um negativo fotográfico. Nesse sentido, parece ser um caminho apresentar, ao mesmo tempo, a imagem reconhecida e seu duplo negativo. Algo nesse sentido se desenhava fortemente, por exemplo, em Fúria, criação de 2018 de Lia Rodrigues, onde toda imagem construída em cena parecia, logo que produzida, passar do ponto em relação a seus próprios contornos, tornando-se logo outra e outra e outra.
O que importa é que em c h ãO, peça de Marcela Levi e Lucía Russo, é possível ver outro desdobramento maduro desse caminho a se tomar em relação ao que parece ser o Brasil. Também produzida em coprodução com diversas instituições europeias e tendo aí sua estreia, a peça parece muito ciente dos impasses e limites desse contexto, e não apenas de suas possibilidades. Há, como em trabalhos anteriores da dupla (como Mordedores e Deixa arder), a abertura de um espaço violento semelhante a um pesadelo: não há propósito ou justificativa de sua presença em cena, de forma que ela não se direciona a ninguém a não ser para o próprio chão do teatro (algo evidente com o performer que fala o tempo todo andando em quatro apoios e olhando para o chão). A violência aqui é jogada para baixo, para os pés, ela é a abertura de um campo entre amor e dor (endurecer sem perder a ternura), entre o clichê de um cocar e o mistério de performers cujo rosto nunca vemos, entre o potencial alienante de uma peça da Broadway e o potencial revolucionário do carnaval, entre nós e o Zé Carioca, entre um som que não se sabe se vem de fogos de artifício ou tiros. É aquela violência que Walter Benjamin chamou de divina,[1] violência que é fim em si, que não repõe algo após ela. Violência das marés, das ondas, que apenas arrasta a todos. Sabe-se lá para onde.
Quando estive, eu e meus fantasmas, por um breve tempo no doce e calmo espaço público europeu, me dei conta de um dado corporal central. Lá, eram poucos os que olhavam para trás na rua para ver quem estava andando fora do seu campo de visão (e se essa pessoa constituía alguma ameaça). Essa virada de cabeça não era inexistente, claro: havia, nesses corpos europeus, a virada xenofóbica, mas também havia a parcela de corpos queer, mulheres, imigrantes e sujeitos racializados que, sem virar suas cabeças, não sobreviveriam naquele espaço público que nunca foi feito para eles.
Mas, como sempre, a escala do Brasil é outra. Aqui, em bom português, o bicho pega. Aqui, olho para trás o tempo todo, e me impressiono com o que significa ser um povo que se habitua a apenas olhar para frente no espaço público e outro povo que é obrigado e condicionado a olhar para trás. Penso que esse é o gesto fundamental de c h ãO, mesmo que ele não se configure como elemento coreográfico central. Se o público é convidado o tempo todo a se virar, deixando de olhar para o palco e buscando reconhecer de onde vêm os assovios e sapateados que invadem o espaço, é porque é preciso procurar em outros tempos e espaços, uma vez que os fantasmas se movem em uma temporalidade muito distinta da nossa. Também o anjo da história benjaminiano e “seu rosto dirigido ao passado” não olharia para trás? Tal qual o anjo, há esse pianista-performer em cena de quem mal vemos o rosto, de costas para nós e em meio ao chão com um acúmulo de material preto. Anjo que “acumula ruína e as dispersa sobre nossos pés”, pianista-anjo que “vira as costas” para o “futuro […] enquanto o amontoado de ruínas cresce aos céus”.[2]
E, no chão, algo que poderia ser brasa. Poderia ser Brasil, mas não é. É seu negativo. São penas, e se movem com o impacto de uma placa ou dos pés dos performers. Elas, como as imagens sobre os fantasmas, devem ser sempre móveis e se mover no espaço sem rumo definido, apesar de sempre voltarem ao chão. Ou até virar asas, grudadas na pele de um pianista suado que voou perto demais do chão.
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[1] BENJAMIN, Walter. “Crítica da violência: crítica do poder”, em Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986, pp. 160-175.
[2] BENJAMIN, Walter apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
Germaine Acogny Dança Africana
Ao longo de mais de cinco décadas de trabalho contínuo de transmissão de dança, primeiro com a Mudra Afrique, e depois com a École des Sables, em Dakar, Germaine Acogny tornou-se uma figura central para a dança contemporânea em África. O seu percurso de renovação estética da dança africana ficou marcado pela utopia do pan-africanismo dos anos setenta, em que a dança participava no movimento cultural de reimaginação política pós-colonial do continente comprometido com a sua história ancestral. Publicado originalmente em 1980 em francês, inglês e alemão, Dança Africana é um dos raros manuais de dança escritos na região, do qual publicamos a sua introdução. A partir deste texto pode-se não apenas aceder a uma história de vida pessoal que se cruza com tradições de dança do centro-oeste africano, mas também a um programa estético e político que inevitavelmente dialoga com as culturas de dança afro-diaspóricas no continente americano.
Dança Africana
Germaine Acogny
Dança tradicional africana
O ser humano usa o corpo para se exprimir desde o dia em que nasce. A dança é, para mim, um prolongamento natural da vida e dos gestos do dia a dia. A dança agrega ideia e sentimentos. É isso que ela é ainda hoje na África Subsariana. É por isso que as danças tradicionais são feitas pelos mais velhos, mais do que pelos jovens. Os mais velhos são os que têm mais a dizer, a comunicar, a transmitir, para que o seu conhecimento possa pendurar e eternizar-se pelas gerações futuras. É a sua forma de escrever, de marcar no tempo e no espaço as coisas criadas e não criadas.
Desde que o ser humano surgiu na Terra, a dança é usada para honrar o seu criador ou múltiplas divindades. Isto explica que, na génese, toda a dança era ritual, era sagrada. Os nossos antepassados dançaram todos os acontecimentos importantes da sua vida. Longe de ser um mero entretenimento, a dança era uma forma de prece: “Mais do que expressões puramente instintivas ou espontâneas, essas bamboulas com que a literatura colonial fazia sonhar os seus leitores, as danças, as cerimónias […] não são certamente destinadas a atingir um estado de desinibição coletiva, como alguns terão tido a infelicidade de dizer: pelo contrário, obedecem a um conjunto estrito de códigos que, sendo distintos dos da coreografia ocidental, não são menos rigorosos e imperativos, estando institucionalizados e ocorrendo exclusivamente em certas ocasiões — em alturas específicas — e para propósitos claramente definidos” (J. Laude, in Michel Huet, Danses d’Afrique).
Danças para fazer a chuva cair ou danças da colheita são manifestações de alegria coletiva, danças da água, danças do fogo, danças de iniciação… A dança, em África, mais do que em qualquer outro lugar, é ainda hoje expressão da vida. A humanidade colocou Deus acima de tudo; inacessível para o ser humano. Para se dirigir a Deus, o ser humano usa gestos, a dança e o canto.
Para os iorubá, antes de se começar qualquer cerimónia é necessário primeiro acalmar a divindade LEGBA, deus do sexo e da desordem. Com a aparência de um homem flanqueado por um grande pénis em madeira, divindade protetora do país, da aldeia e da casa, é-lhe oferecido o sacrifício de um galo, que simboliza a potência do macho responsável pela procriação. A seguir é invocada FA, divindade da paz. Os instrumentos de percussão utilizados são um grande e um pequeno. O primeiro tem um som agudo, o segundo grave. As assans, cabaças ocas com grãos lá dentro que se agitam, juntamente com os tambores e os cânticos, formam uma sinfonia. Os ritmos e os cânticos são conhecidos dos percussionistas e dos bailarinos iniciados. Cada divindade possui um ritmo diferente e é a divindade que conduz a dança. É durante o período de iniciação que se dá a conhecer aos principiantes regras que lhes permitem adquirir conhecimento dos seus corpos, autocontrolo, força e determinação para superar obstáculos e a si próprios.
Aloopho ou a herança da minha avó
Aloopho era uma sacerdotisa do reino do Daomé, da comunidade religiosa dos ORIXÁS YAO, que na língua iorubá da Nigéria e do Daomé significa “esposas do poderoso, do sagrado, do divino”. Os homens e as mulheres devotos às divindades iorubá recebem o nome de YAO ORISA. Aloopho foi escolhida pela comunidade e consagrada IYA, que significa mãe, dando-lhe o nome de IYA ORISA, mãe do sagrado e do poderoso. Aloopho foi o nome que lhe deram na sua iniciação.
De acordo com a tradição iorubá, nem toda a gente se consagra aos espíritos e às divindades. Somos escolhidos para sempre como emissários das divindades, dos ORIXÁS ou dos VODUN como se diz na língua fom, do Daomé. Essa escolha é confirmada à nascença ou durante uma cerimónia que determina o prenúncio do devoto, cerimónia esta que ocorre no seio das famílias fom e iorubá para identificar a alma ou o espírito do antepassado que reencarnou naquele indivíduo, e quais as vicissitudes que irão acompanhar a sua vida do nascimento até à morte. (Os fom e os nagôs de Daomé acreditam na metempsicose, em particular na reencarnação dos defuntos no corpo dos seus descendentes.)
Aloopho foi, portanto, escolhida e consagrada aos ORIXÁS pela sua comunidade que passou a respeitá-la e a amá-la incondicionalmente até morte. Além de sacerdotisa, Aloopho era também mãe de família. Só teve um filho, mas adotou e criou os filhos do seu marido polígamo. A divindade patrona de Aloopho era YEWA, deusa da água doce representada por uma pomba. As danças acontecem num APATAM, um refúgio com telhado de folhas de palmeira. Aloopho, a sacerdotisa, líder da cerimónia, conduzia a dança ritual segurando a faca sagrada na mão direita. Ao abanar os ombros, uma onda percorria todo o seu corpo. Os braços em forma de pegas de cesto eram movidos da frente para trás com uma ligeira flexão dos joelhos enquanto girava e pousava a mão sobre a cabeça dos espetadores. A música e a dança tomavam os iniciados que entravam em transe, possuídos por uma divindade. A divindade era reconhecida pelos gestos e sinais que a caracterizam. Se fosse a divindade da caça, o homem tornava-se caçador batendo com os pés no chão a evocar as entidades da terra. Aloopho conta como um rapaz de oito anos, possuído pelo deus da caça, saiu da área da dança e foi para a floresta, regressando com um esquilo entre os dentes. No caso de LEGBA, o deus do sexo e guardião da vila ou aldeia, semeia a desordem e impõe movimentos de acasalamento, rotação da pélvis com contrações de trás para a frente. Os iniciados possuídos pela entidade são depois levados para o convento e são cuidados, regressando logo a seguir para a dança. Em regra, a dança começa à tarde e pode continuar até ao fim da noite, à luz de tochas ou lamparinas a óleo.
Para os bailarinos que representam certas divindades, o uso de máscaras era obrigatório. Para os GUELEDES, em Quetu, a máscara representava um rosto iorubá com cicatrizes. A posição e a forma indicavam a pertença a uma ou outra família. Os gémeos eram representados por duas estatuetas. O deus do relâmpago, SHANGÔ, era representado por um homem com um machado de forma curvada por cima da cabeça. LISSA, a divindade feminina, era representada por um colar branco. O branco é o símbolo da deusa. Os primeiros brancos a chegarem à terra dos fom foram bem recebidos e nem sempre compreenderam o sentido desse acolhimento. Entre a comunidade iorubá, as divindades são também simbolizadas por pedras preciosas, por metais como o ouro, a prata e o cobre. As divindades fom são representadas por pequenos montes de terra e troncos de árvore, sobre os quais são sacrificadas ovelhas, vacas e galinhas salpicadas com óleo de palma. De vez em quando Aloopho brincava com a forma como eram representadas as divindades do seu marido, que era da etnia fom.
Tanto na cultura iorubá como na fom, dança-se balançando o tronco e o rabo; a energia e o impulso são dados pela música. Se a música é desencadeada por eventos felizes, a dança é rápida. Em momentos de luto, os mahi, para terem um som melancólico, colocam uma cabaça virada para baixo numa bacia cheia de água e tocam com a base da palma da mão: é o SINHOUN, o tambor de água.
Como sacerdotisa responsável pela iniciação de novos praticantes, Aloopho levava uma vida simples. Tinha o poder de fazer tanto o bem como o mal. Esperava-se que fosse totalmente honesta e disponível. A religião animista baseia-se na lei do equilíbrio (a maldade é punida e a bondade é recompensada). O cristianismo não nos trouxe nada de novo em termos de rituais. Entre a comunidade iorubá, o batismo realizava-se ao oitavo dia após o nascimento. A mãe e a criança tinham de sair de casa enquanto era lançada água pelo telhado. Ao bebé batizado era dado a provar sal e peixe fumado. Até à sua morte, Aloopho recusou converter-se ao catolicismo, já que considerava o batismo animista tão válido quanto o cristão.
Era esposa de um homem que tinha o dever de respeitar. Todas as manhãs levantava-se, varria o quintal e ia buscar água ao rio. Ela tingia com índigo – uma atividade considerada sagrada. Ela ia ao mercado com tabaco, fósforos, e preparava pastéis de milho e feijão para vender. O seu marido trabalhava no campo. Mas era Aloopho quem administrava os bens da família. De tempos a tempos, em datas precisas, Aloopho retirava-se durante três meses para o convento, a fim de preparar a iniciação: Aloopho costumava dizer que a boca que reza pelo bem não pode rezar pelo mal. Mas quando alguém na comunidade arriscava pôr em perigo o equilíbrio das pessoas, cabia a Aloopho castigar o culpado. Ela exclamava “heelou” para invocar o mal em alguém que profanava. Em momentos de perigo, as pessoas da aldeia procuravam-na. Uma noite, os pais de uma criança doente procuraram a sua ajuda e quando ela a borrifou com água benta a criança levantou-se.
A mulher, guardiã da tradição
Aloopho conta: um dia, um caçador encontrou um antílope às riscas no topo de um pequeno monte. Para nós, os termiteiros são sagrados. É, portanto, proibido matar um animal que se encontre aí. Sem ter em conta a proibição e confiando no poder do seu grigri, o caçador mata o bicho e manda o cão buscá-lo: eis que tanto o bicho como o cão desaparecem pelo termiteiro abaixo. Mesmo com a ajuda dos seus companheiros, dos seus machados e da sua força física, o nosso caçador não conseguiu recuperar o fruto da caça. Mortificado, conta à sua mulher a desventura e ela faz pouco dele, chamando-lhe cobarde e inútil. A esposa vai então chamar amigos e, com os seus utensílios de cozinha (cabaças, potes e caldeirões), saem a dançar, a cantar e a tocar em direção ao termiteiro sagrado, e lançam tudo sobre o termiteiro, que se abre e deixa emergir o antílope.
As mulheres possuem uma certa força e primazia na sociedade africana tradicional (fom, iorubá). Penso que é através dos seus cânticos e das suas danças que entram em contacto direto com as divindades da terra, do ar e do fogo. Tudo isto forma um conjunto cósmico. Elas atingem um grau de poder espiritual que o racionalismo moderno não consegue explicar. Quando dançamos, podemos coordenar a respiração, o batimento cardíaco e o bater dos braços e pernas para chegarmos a um desdobramento de nós mesmos, a um segundo estado. Uma investigação séria poderia encontrar uma explicação científica para este fenómeno. Isto requer uma estreita cooperação entre as gerações mais velhas, imersas na tradição, e a geração mais jovem, formada nas escolas racionalistas ocidentais. É todo um programa de investigação que se poderia esboçar, e que deveria importar a todos aqueles que se interessam pela relação entre tradição e modernismo na África Subsaariana, especialmente na esfera do canto e da dança.
A minha história
Quando nasci, contou-me o meu pai, no dia de Pentecostes de 1944, uma pomba branca pousou na janela do meu quarto e todos os dias lá voltava até eu completar um ano, desaparecendo depois. Chamaram-me IYA TOUNDE: a mãe regressada, em língua iorubá. A minha avó Aloopho tinha morrido quatro anos antes. A sua divindade protetora era simbolizada por uma pomba. Por outras palavras, eu sou a sua reencarnação, pelo que se esperava que eu tivesse pelo menos alguns dos seus atributos.
Quando, aos dez anos de idade, fui colocada aos cuidados das Irmãs de São José de Cluny na Medina de Dakar, as minhas colegas começaram a chamar-me DOFF BI (a louca) porque eu estava sempre a fazer palhaçadas e a dançar. Mais tarde, no liceu feminino, não me interessei por nenhuma das disciplinas, para grande desespero dos meus pais. Contudo, a diretora da escola tinha reparado na minha aptidão para a educação física e trouxe isso à atenção do meu pai, em março de 1961, depois de me excluir do regime de meia-pensão: “Devo informá-lo de pelo menos um aspeto que lhe poderá agradar. A professora de educação física chamou-me a atenção para o facto de a Germaine ser excecionalmente dotada na disciplina. Além disso, é dócil e disciplinada durante essas aulas. Se Germaine tiver em mente que um diploma em educação física inclui uma parte considerável do ensino geral (Secundário ou equivalente) e, se se aplicar, poderia considerar tornar-se professora de educação física no liceu e Secundário.”
Em 1962, na Escola Simon Siegel, em Paris, descobri a dança rítmica durante a minha formação para me tornar professora de educação física. Três anos de estudo sob a orientação da Mademoiselle Marguerite Lamotte, que nos ensinou disciplina, amor pelo trabalho bem feito e pedagogia. Quando entrei para a escola, Mademoiselle Lamotte comentou que os meus pés eram achatados. Sendo a única africana, observei os pés arqueados dos meus colegas. Precisava de trabalhar os pés e imitar os outros. Rapidamente percebi que era incapaz de os imitar e, por isso, tinha de inventar movimentos que correspondessem à minha natureza.
Quando regressei ao Senegal, em 1965, com o meu diploma em ginástica rítmica, estava pronta para mover montanhas. Conheci uma grande bailarina norte-americana, Katherine Dunham, que estava a tentar criar uma escola no Senegal. Além disso, havia uma série de cursos amadores de danças clássicas dirigidos por europeias em Dakar. À nossa chegada, o meu marido foi colocado em Casamansa e eu fui com ele. Descobri aí a dança africana, assistia a todas as festividades da aldeia e dançava com os locais. Foi uma verdadeira revelação para mim.
Entre as danças que mais me encantaram desde que cheguei a Casamansa e que estudei especialmente está a KOSONDE. Os bailarinos começam por andar em cadência, seguindo o ritmo do cântico. A seguir, aceleram os movimentos, o que os leva a fazerem ritmos com os pés, criando padrões geométricos e torcendo o tronco para a direita e para a esquerda. Segunda posição en dedans, braços ao longo do corpo. Os braços seguem o movimento do tronco, o bailarino pode saltar de um pé para o outro fazendo um contratempo em cada pé. Podem ainda ser executados movimentos acrobáticos ao nível do chão.
Devo a seguinte descrição desta dança, assim como as citadas mais adiante, aos Arquivos Culturais: “A dança conhecida como KOSONDE pertence aos balantas, um dos muitos grupos étnicos da região de Casamansa. Pouco conhecido no resto do Senegal, este grupo étnico mantém no seu repertório esta dança particularmente rica em ritmos e gestos. É uma dança pré-iniciática que tem lugar após a colheita, para permitir aos jovens prestes a serem iniciados exercitarem as suas capacidades como bailarinos antes de entrarem na floresta sagrada. A dança é organizada pelos adultos mas também podem participar raparigas jovens e virgens; os homens e mulheres adultos limitam-se a ativar os procedimentos. De tronco nu, com uma espécie de minissaia de fibra vegetal e pés descalços adornados com guizos, os bailarinos movem-se uniformemente em círculo, girando à volta, produzindo um ruído estridente e pesado que dá ritmo ao cânticos, tudo acompanhado pelo som de tambores e cornetas.”
Ao regressar a Dakar, fui nomeada professora de educação física no Liceu Kennedy e continuei a minha investigação sobre dança africana. Aí havia sobretudo danças ouolof como a CEEBU JEEN e a JAXAAY MA LAAN. A CEEBU JEEN (que significa “arroz de peixe”, o prato nacional) “começa com uma introdução ou aquecimento: uma pequena corrida saltitante de uma perna para a outra com o tronco inclinado para a frente. Um dos braços roda em moinho, e o outro pousa no umbigo ou agarra a capulana. As pernas retomam pedalando e fazem ronds de jambes no ar para dentro e para fora, com o pé ao nível do tornozelo. Uma mão na cintura e outra na nuca. Segundo algumas fontes, a CEEBU JEEN já estava na moda em 1928. Era dançada por mulheres e deve ter surgido em centros urbanos. Era dançada para celebrar casamentos e batismos. Crianças, jovens raparigas e homens entre os vinte e os trinta anos vinham assistir, ao lado das mulheres, à execução da CEEBU JEEN. As crianças sentavam-se no chão ao lado dos griôs, em geral em frente às mulheres, algumas das quais podiam estar de pé. As raparigas jovens ficavam atrás das mulheres e os homens por trás das jovens. A maior parte da audiência era composta por mulheres de meia-idade, geralmente donas de casa, esposas de camponeses ou de operários e mulheres de casta. Normalmente, o evento começava por volta das cinco da tarde e terminava no crepúsculo. Deve dizer-se que esta dança não estava ligada a nenhuma época do ano. Ainda assim, era mais propício acontecer na estação seca. A CEEBU JEEN também podia ser dançada durante certas cerimónias rituais como a LAABAAN (uma cerimónia de dança e canto no dia seguinte à noite de núpcias) ou a tatuagem de lábios que se fazia nas primeiras horas da manhã. O ritmo da dança CEEBU JEEN era produzido por um conjunto de membranofones (de três a cinco) e acompanhado por palmas. É uma dança que continua a ser muito popular.”
Em 1968, divorciada e com duas crianças, abri a minha escola de dança africana no pátio da minha casa na rua Raffenel, número 58, em Dakar: “Dança africana acompanhada por atabaque, corá e balafom.” A minha primeira experiência coreográfica teve como tema a “Mulher Negra”, um poema de Léopold Sédar Senghor [1945]. As estrofes, recitadas e acompanhadas pelo corá (djimbassin), eram mimadas pela bailarina. Os movimentos das mãos e dos dedos acentuavam a sensibilidade da melodia. A transição entre estrofes era feita com uma dança jola, a BUGEREB. É dançada batendo os pés no chão alternadamente; ao terceiro tempo, pés juntos (sexta posição clássica) empurram o chão em três impulsos. Os braços podem ficar inclinados para a frente ou para trás seguindo os movimentos dos pés. Esta experiência foi decisiva, a julgar pela reação do público no Teatro Nacional Daniel Sorano, em junho de 1972. No mesmo ano, fui nomeada chefe do departamento de dança do Instituto Nacional das Artes, o que me permitiu dedicar-me mais à pesquisa sobre danças africanas. Aqui ficam algumas das mais importantes:
BUGEREB ou JIBOMAJ JATI FONI: é a dança mais popular entre os jola. Como o nome indica, tem origem fonyi, mas ao longo dos tempos tem sido integrada em todos os subgrupos jola. É muito difícil datar a primeira aparição desta dança, mas pode-se dizer com certeza que é a dança mais importante da etnia fonyi. A música é produzida por um conjunto de membranofones (até seis) de forma cilíndrica com 50 a 60 cm de altura chamados UGER, tocados com as mãos por um único percussionista que usa chocalhos nos pulsos. A este junta-se o ritmo dos passos, cânticos e palmas, estas últimas cada vez mais substituídas pelo bater com força de dois pés de folha de palmeira-de-leque secos. Participam nesta dança todos aqueles que sejam capazes da força física, habilidade e elegância para a sua execução nas diferentes fases. A BUGEREB faz-se em festas, mas também em grandes eventos religiosos. É simultaneamente uma dança de entretenimento e um ritual. Pode ser realizada no dia da morte de uma pessoa idosa para fazer reviver, através dos cânticos, a sua vida, as suas qualidades, etc… Normalmente, a BUGEREB realiza-se durante a estação seca, mas pode ser realizada na época das chuvas quando morre uma pessoa idosa. Os participantes formam um círculo a partir do músico de UGER, que terá à sua direita ou à sua esquerda homens ou mulheres, e por entre os adultos estarão jovens que vão aprendendo. Os versos e o refrão são cantados alternadamente por homens e mulheres. É uma ocasião para todos mostrarem o seu talento como bailarinos.
BARA, dança dos boubous, dança mandinga: escolhi esta dança de entre uma série de variantes porque me parece incorporar as características e movimentos básicos da dança mandinga: movimentos súbitos ou lentos da cabeça da frente para trás ou de um lado para o outro, movimentos bruscos ou ondulados da coluna vertebral que fazem lembrar um gato a arredondar ou a arquear as costas. Pés em sexta posição, virados para dentro e planos, depois em meia-ponta com torção do tronco à direita ou à esquerda, mãos e pulsos em rotação, pousa em meia-ponta e planta do pé no chão. Esta dança é executada lentamente com muita elegância e subtileza.
PITAM, uma dança sererê semelhante à BUGEREB: o pé, a perna e o braço de um lado movem-se de cada vez em conjunto, alternando para o outro lado entre tempos. O tronco pode ser mantido direito ou ligeiramente inclinado para a frente. “Notámos a influência das danças mandingas nas danças sererê. Em mandingue, ‘sererê’ diz-se ‘Cacin cô’, que significa “habitante de Cacine”. Segundo a lenda, um grupo de mandingues deixou a cidade de Cacine, na Guiné-Bissau, para se instalar na região de Sine-Saloum [Senegal], onde se teriam tornado os sererê de hoje.”
WANNGO: é dançada de perna esticada com o pé fletido, batendo-se as palmas e com o pé no chão, mesmo braço, mesma perna, alternados. É uma nova dança popular. De acordo com certas tradições, foi inventada por um mauritano chamado Sidi Koyel, que foi integrado na comunidade haalpulaar. Dizem que era louco e vivia em Boghé, na República Islâmica da Mauritânia. WANNGO é uma dança de entretenimento que reúne toda a comunidade, sem distinção, na praça da aldeia ou do bairro, depois do jantar, até durante a época da chuva. Jovens rapazes e raparigas entram no círculo um a um, ou em pares, e dançam ao som do TAMA (o tambor falante de axila), acompanhados por palmas e canções. Algumas destas danças feitas por jovens raparigas são dedicadas aos seus amados, a quem louvam. Os mais velhos – sejam homens ou mulheres – não dançam a WANNGO, que é sobretudo uma dança para jovens.
Em 1974, um encontro com outro país do Sahel: fui ao Alto Volta [hoje Burkina Faso]. A nova dança africana começava a ganhar forma já que os voltaicos a apreciaram enquanto tal. Em 1975, em Nova Iorque, cruzei-me com a dança jazz e a dança moderna. Depois de ver o trabalho de Alvin Ailey, que se inspira nas danças negras africanas, fiquei mais convencida de que estava no bom caminho.
Sendo eu própria de origem iorubá e fom, conheço a essência das danças das regiões de floresta. Tendo vivido num país do Sahel e num país de floresta (região do cabo Verde e de Casamansa), senti que ao fazer uma síntese das danças do Sahel (ênfase nas pernas) e da floresta (ênfase nos ombros e no rabo) poderia concretizar uma “dança africana”. Naturalmente, cada país africano orgulha-se da especificidade das suas danças, dos seus costumes; mas podemos procurar o que as une: danças para todas as circunstâncias da vida.
Todas as descrições de dança neste livro dão os movimentos típicos de base; a seguir, são estabelecidas variantes e sequências. Os bailarinos são livres de improvisar a partir destes movimentos de base, de acordo com a sua agilidade e talento. Todas as danças incluem uma introdução, movimento lento, seguindo de movimento rápido e imobilidade que retoma novamente a dança.
A evolução é um fenómeno natural
“Quando submetemos a natureza ou a história humana, ou [a] nossa própria atividade intelectual, à análise pensante, o que nos salta à vista, em primeiro lugar, é a imagem de um entrelaçamento infinito de interconexões e interações, no qual nada permanece o que e como era nem onde estava, mas tudo se move, se modifica, devém e fenece” (Friedrich Engels, Anti-Dühring [1878], Introdução[1]). A dança africana também evolui. Numa altura em que se fala de um regresso às raízes, alguns consideram isto um ultraje e acusam-me de querer introduzir elementos estrangeiros na dança africana. O inquérito sociológico de Christian Volbert sob o título “O futuro das danças tradicionais na Costa do Marfim”[2] (Arts d’Afrique Noire, n.º 29) parece importante neste contexto, uma vez que ilustra a desintegração da cultura tradicional sob o impacto da cultura ocidental, que afeta as sociedades africanas. A influência é um facto; elementos estrangeiros introduzem-se quer queiramos ou não. Em vez de deixarmos tudo ao acaso, nós, africanos, deveríamos tomar essa evolução pelas nossas mãos, para a colocarmos num nível superior escolhendo, dentro do conjunto de influências, as melhores e mais enriquecedoras. O desenvolvimento da dança moderna nas cidades deveria levar-nos a reconsiderar a dança tradicional africana.
A tendência atual de encenar bailados que consistem em transpor “o mato” para cena deve ser revertida, porque a dança tradicional só tem sentido dentro do seu contexto sociocultural. Diz-se, frequentemente, que os africanos são natural e espontaneamente dotados para a dança, que lhes basta seguirem o instinto. No entanto, passam toda a sua iniciação na floresta sagrada precisamente para aprender as danças. Afinal, é necessário cultivar os dons naturais através do trabalho.
A partir da síntese das danças africanas (dança do Sahel-dança da floresta), prosseguimos para uma abertura às danças do mundo: a dança afro-americana, a dança europeia dita clássica, a dança hindu. Esta síntese tem lugar numa escola de dança de vocação internacional que dirijo desde a sua criação, em 1977: Mudra Afrique – a Floresta Sagrada dos tempos modernos.
A dança clássica europeia tem uma dupla finalidade: uma formação física abrangente, impulso para depois criar estilos diferentes. “A dança clássica consiste em cerca de quarenta passos e o mais importante numa técnica, ou seja, um conjunto de exercícios cujo objectivo é colocar o bailarino no controlo de todo o seu corpo, tal como um pianista ou um organista controla as suas mãos e os seus pés” (L. S. Senghor na brochura Mudra-Afrique).
Outra fonte de inspiração – a dança hindu: os africanos conhecem-na por intermédio do cinema indiano. Esses filmes que contam histórias de amor e aventura estão repletos de cenas de dança tradicional. Jovens senegaleses decoram os passos, lembram-se das melodias e das letras, compram os discos das bandas sonoras. Só na região do cabo Verde senegalês existem três clubes dedicados à prática destas danças e é possível ver jovens senegalesas vestidas à indiana adotando a aparência das bailarinas de cinema. O que fascina os africanos na dança indiana são os gestos sempre ondulantes, sejam rápidos ou lentos, assim como a ênfase na beleza das mãos e dos pés, os movimentos graciosos da cabeça e do pescoço. Adoram a música dominada por flautas e violinos, os seus sons melodiosos e rítmicos, que são simultaneamente lânguidos e vigorosos, eróticos e artificiais. Não é apenas para imitar que os bailarinos e as bailarinas de Dakar e Pikine aprendem o estilo indiano. Eles vislumbram um modo de dançar que é ao mesmo tempo exótico e familiar. Enquanto os gestos, a sua música e as vestes são distintos, o impulso, o vigor e a alegria sensual são africanos.
Dança africana
O movimento artístico em que insiro o meu próprio trabalho, embora enraizado nas tradições populares, não é um regresso às raízes. Pelo contrário, é um caminho totalmente diferente e resolutamente urbano e moderno, refletindo o contexto em que vive a África de hoje, a África do betão, a África das grandes contradições internacionais. Não queremos sujeitar ou subjugar a dança negra. Desejamos apenas que floresça livremente pelo seu próprio carácter na civilização moderna e tome o lugar que lhe é de direito. Assim, desempenhará o seu papel de vivificação e de reação.
Traduzido do original em francês por João dos Santos Martins em diálogo com Inês Ramos e José Gil (estagiários).
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[1] Tradução de Nélio Schneider, Editorial Boitempo, São Paulo, 2015.
[2] “L’avenir des danses traditionnelles en Côte d’Ivoire”.
Sabine Macher a velha bailarina
o tricot
ao procurar uma agulha de crochet para apanhar o oitavo de limão entalado na garrafa de vidro que ponho no frigorífico para ter água fresca e com sabor a limão (mas passado um tempo o limão fica demasiado velho e aromatiza a água com limão podre), visualizo esta ferramenta longa e fina com um pequeno gancho na ponta. talvez esteja numa caixa num armário escuro, uma caixa azul de ténis adidas que deve ser muito antiga, a caixa, ainda tem o preço na lateral em francos franceses e tenho-a comigo desde sei lá quando, mas há mais tempo do que o início do euro em 2002. devo tê-la herdado de alguém que usou esses ténis porque nunca comprei uns ténis nem seja o que for dessa marca de origem alemã que me repugna como todas as marcas de desporto e até a palavra desporto. ao abrir a caixa vejo o tricot preto de algodão que parei de tricotar em 1980 em Baumetane na estrada para Istres e que desde então sempre transportei nas mudanças de casa, e ao lado do tricot inacabado estão duas agulhas de crochet. o meu cérebro tinha razão ao guiar a minha mão para a caixa. ou foi provavelmente a minha mão que disse ao cérebro para dirigir o meu corpo ao armário. quase nunca faço crochet, mas para isto é o instrumento perfeito. entra no pescoço comprido da garrafa e prende-se na pele inchada do limão, tenho a sensação de tentar alcançar um DIU através do colo do útero, talvez porque sempre me disseram que os abortos caseiros se fazem com agulhas de tricot – mas o crochet parece-me de repente mais apropriado e talvez não se distinga o tricot do crochet, ambos pertencendo ao mundo das mãos de mulheres que fazem lavores – e ao puxar lentamente, com a cabeça apoiada no gargalo da garrafa, o pedaço de limão em forma de lua crescente sai.
quando te escrevo coreia quero sempre escrever com ch como choreia [a dança] ou la chorée [a doença nervosa].
ao voltar a guardar a agulha na caixa, olho para o tricot pela primeira vez há muito tempo; é isso que farei durante a próxima eternidade da minha vida de velha bailarina: reaprender a tricotar.
a velha bailarina são vocês, sou eu, é a água que corre,
um espectro no tempo que mexe as mãos,
Higaki, ao lado de uma barca vermelha que se enraíza;
ela vai buscar água nos braços do Sena.
se passarem por lá, perguntem-lhe o nome.
a aranha preta
é a minha mãe. morava na casa de
banho ou lá em cima, com as plantas
da janela,
mas caiu na banheira e não consegue subir a parede lisa e branca.
no décimo aniversário da
morte da minha mãe, foi toda de
patas fechadas para o filtro do ralo
da banheira. eu voltei a pô-la no vaso
da janela, mas ela tentou
imediatamente voltar para o interior
da casa de banho.
depois de alguns dias, quando abri a
porta da casa do banho numa noite
de grande calor, ela viu-me a vê-la.
desta vez (desculpa) lancei-te ao ar e
espero que tenhas partido para os
açores, pois um dia um cientista
explicou-me que as aranhas podem
voar num sopro de vento até ilhas
distantes como, por exemplo,
os açores.perguntas e respostas:
quem é a velha que dança?
qualquer pessoa
ninguém
tu
euquando é que a podes encontrar?
em qualquer altura, excepto no dia de ano novo.
o resto do ano ela anda por aí e está à tua espera.o que é que ela faz para ganhar a vida?
nada de nada, está mortao que é que ela gostaria de fazer?
nada,
mas é muito difícilo que é que ela faz para si própria?
escrever para o coreia
beber chá verde
roubar floresela é uma ela?
sim
uma ela/escudo
uma ela/futuro
uma ela /não/eucaramba
enquanto trabalhava num projecto sobre dinheiro
(não resolvido) o meu pai morreu
(resolvido) e, para o ter connosco no
grupo, decidi estudar teatro No, porque o
meu pai se chamava No.aí conheci Higaki, um fantasma
e uma mulher que dançava antes
de a guerra destruir
tudo e a obrigar a
reformar-se junto a um rio chamado Tejo.
será que dançamos em tempos de guerra?mas qualquer tentativa de contar a história tinha de falhar.
não há história, só eu a dizer que Higaki
quer estar perto de um teatro e de água
corrente.acho que é agradável estar ao ar livre a fazer o que se gosta e até um pouco mais.
a velha bailarina é um abrigo
ela me mostra e me escondea velha bailarina é o outro lado do que vocês
pensam e do que eu digo. não sou um fantasma e não
sou
uma shirabyôshi, mas tenho idade suficiente para vos
tornar meus. com o tempo alcançarei a honestidade e
usarei os seus quimonos poeirentos.a velha que dança acolhe tudo
o que acontece na sua presença.tentei distrair-me e
aos outros pedindo a amigos
para estarem comigo e serem ela
neste projeto abusivo para que
eu possa ver
e não ser vista.a velha que dança é um ataque desastrado,
vazio, como uma soneca de verão e eu estou a
adormecer tentando dizer que aquilo (x=culto)
não é nada. como o dinheiro, o nada é algo, oco
e poderoso quando aceitamos as condições.hoje de manhã, por volta das seis horas, oiço um homem a gritar mas não me lembro das palavras (provavelmente francês, mas agora parecem alemão, alguma coisa do tipo: por favor não, – socorro), depois desaparecem e voltam mais como uma oração ou uma canção de amor, levanto-me e olho para a rua bela e vazia com um grupo de quatro pessoas, dois homens de tronco nu, um de calças, o outro de calções e um corpo lindíssimo emergindo dos calções, um terceiro homem com uma barriga, um saco ao ombro e uma t-shirt e uma mulher na periferia da cena. ela parece estar à espera de que o homem do saco venha ter com ela para retomarem o caminho que faziam antes de chegarem a esta cena – o homem do saco tem a mão no peito do homem de calções, fala e mexe-se, tenta impedi-lo de encostar um dos seus enormes punhos no outro homem. o homem zangado vira-se e senta-se e levanta-se de novo e o homem do saco está entre ele e o homem mais magro no limite do círculo, quando de repente o homem zangado sai disparado do centro e alcança o homem magro por trás e prende o braço em chave à volta do pescoço dele, pronto a estrangulá-lo. eu vou lá para dentro chamar a polícia, mas não me lembro do número e carrego nos botões errados e quando volto à varanda para olhar lá para baixo, os dois homens de tronco nu estão a afastar-se mais carinhosamente e a equipa de paz segue em sentido contrário em direcção ao metro. na cozinha o sol nasce como uma bola de fogo e começo a regar as plantas e os lençóis que pendurei em frente às janelas para refrescar os vidros.
ontem fui passar um longo dia no lugar da velha bailarina na margem do rio Sena, ela ficou feliz por me ver e eu também. mas ela disse-me que eu devia contar a sua história.
em tempos, um monge (o waki) vivia num retiro perto de um rio.
todos os dias via uma mulher muito velha (a shite) que vinha buscar água.
um dia, quis saber o nome dela. ela primeiro recusou e depois respondeu com um poema.
noutro dia, um homem da aldeia (o kyogen) encontrou o monge waki e o monge perguntou-lhe o que ele sabia da velha shite.
“oh” disse o kyogen, “não sei nada, mas há cerca de 200 anos houve uma bailarina que vivia perto do rio por trás de uma sebe de ciprestes, porque tinha vindo a guerra e ela já não podia dançar. anos mais tarde, chegou um chefe militar ao seu modesto abrigo e pediu-lhe água. enquanto ela lha dava, ele perguntou se ela era Higaki, a bailarina outrora famosa, e além disso, ordenou-lhe que dançasse.
ela ficou muito envergonhada porque as mangas do seu quimono estavam em farrapos e eram curtas demais. em vez de dizer o seu nome, recitou um poema.”
provavelmente perceberam que é o mesmo poema que a velha disse ao monge. por isso já sabemos: a velha é o fantasma de Higaki, não consegue encontrar repouso e espera que o monge a possa ajudar com a sua prática de oração.
ela vai buscar a sua máscara assustadora de fantasma shite por trás dos ciprestes entrelaçados, o monge reza, ela recita mais versos do poema e depois executa uma dança sofisticada.
estou a chegar ao limite de 8000 caracteres para uma página no coreia – mas vem até ao rio e poderemos falar mais.
Traduzido do original em inglês, francês e português por Joana Frazão.
Bryana Fritz línguacortada
Nota: este texto foi enviado no dia 24 de julho, o dia de Santa Cristina de Bolsena.
Quero começar por dizer que existem poucas provas da existência de Santa Cristina de Bolsena. Não se sabe muito sobre o início da sua vida. Uma tradição local professa que tenha nascido em Bolsena, outra aponta-lhe o nascimento na cidade costeira de Tiro, no atual Líbano. Contudo, a mim não me interessam as suas origens, interessa-me a sua língua…
Ao reter esse órgão muscular na minha boca, movendo-o na sua caverna ladeada por caninos, a saliva começa a acumular. Estudo o espectro inteiro de movimentos que posso executar com este animal estranho: bater no céu da boca, enrolá-lo na direção da úvula, passá-lo depressa por entre os dentes. Preparo-me para receber mais que um na boca enquanto produzo um lote fresco de sumo de beijo.
Então, posso receber a tua língua? Vamos beijar-nos? E se as nossas línguas forem treinadas em línguas diferentes, será que podemos linguajar o nosso beijo? E se eu tocar com a língua na ponta dos meus incisivos para fazer o som do inglês “th” talvez também toque os teus incisivos, talvez façamos esse som “th”.
Mas sei que sabes que os nossos lábios não se estão realmente a tocar. A minha língua já está cortada, cuspida e morta. Agora tenho de continuar sem ela.
Parece-me que perdi a minha língua-mãe e a língua-mãe da minha mãe. Por ter crescido nos subúrbios de Chicago, demorei muito tempo a perceber que a língua inglesa era um presente envenenado dos privilegiados. A cidade onde cresci, Mundelein, em Ilinois, tinha 40% de habitantes cuja língua materna era o espanhol e a família na qual nasci falava uma mistura de polaco, húngaro, alemão e sérvio. A minha mãe era polaca e a minha avó húngara.
A forma como a minha mãe fala inglês tornou-se um fascínio para mim. Não há nenhum vestígio estrangeiro na sua língua. Os seus “r” são perfeitos, os seus “th” são sem mácula e cada sílaba é pronunciada com a inflexão típica de uma tipa da cidade de Chicago. Ainda assim, tenho um fetiche com o momento em que ligo à minha avó no meu aniversário e a oiço dizer: “hapy birrsday sveety!”, de uma maneira que só posso sonhar em reproduzir.
Acho estranho, mas compreensível nunca ter aprendido polaco. Para a minha mãe, em Chicago o polaco representa a classe mais baixa. Os seus pais trabalhavam numa fábrica, um dos seus irmãos mais velhos era um DJ alemão/motorista de limusine/fazedor de dentes de ouro e o seu irmão mais velho trabalhou como canalizador. A minha mãe aperfeiçoou o seu inglês, ganhou uma bolsa universitária, tornou-se contabilista e integrou-se na sociedade americana.
Quando me esforço ainda consigo cantar os parabéns em polaco, consigo dizer “boa noite”, “anda cá”, consigo dizer “beija-me” e “amo-te”. Consigo dizer ainda algumas palavras soltas, mas não muito mais. A língua materna da minha mãe foi cortada da nossa vida e, ainda assim, quando precisei dela, paguei 2000 euros a um advogado para ter um passaporte polaco com o qual me mudei para a Europa.
O inglês da minha língua materna tornou-se uma ferramenta privilegiada desde que morei na Alemanha, na Bélgica e agora em França, mas ao mesmo tempo esse inglês começou a misturar-se com um inglês internacional.O meu sotaque mudou completamente. Quando regresso a Chicago, as pessoas perguntam-me de onde sou. No casamento da minha irmã, pediram-me que discursasse e os convidados do noivo pensaram que eu era uma estudante estrangeira acolhida pela família. Para os ouvidos da minha infância, o inglês não é a minha língua materna. Por vezes brinco comigo mesma e digo que o inglês é simultaneamente a minha primeira e segunda língua – compreendo perfeitamente que só eu ache graça a esta piada.
Não se sabe muita coisa acerca da mãe ou dos irmãos de Cristina. A sua história centra-se na figura do seu pai, Urbano. Da sua família apenas se diz que eram adoradores de ídolos pagãos. Provavelmente eram também abastados, o que permitiu o acesso de Cristina a uma boa educação e a luxos materiais.
Ao longo do tempo, Cristina foi ganhando cada vez mais repulsa pelo luxo a que tinha acesso a sua família e ficou cada vez mais comovida com o sofrimento dos outros, o que a fez decidir partir todos os ídolos de ouro pagãos do seu pai e distribuir os pedaços pelos mais pobres e necessitados. Quando descobriu este acto de generosidade da sua filha, Urbano açoitou-a com uma vara e trancou-a numa torre muito alta com algumas amigas pagãs.
Ao reter esse órgão muscular na sua mão, o Dr. Julian diz: “Parece-me que a sua língua está doente. Deixe-me observar mais de perto…”
Na minha língua, quando um médico recolhe uma amostra para fazer uma cultura da tua língua, isso significa que o médico irá raspar uma parte da superfície da língua para guardar e testar. O exame continua…
“Pode sentar-se mais direita? Assim está melhor. Ok, quero que toque com a ponta da língua no céu da boca para que eu consiga ver a superfície ventral. Mhmmmm… agora deite a língua de fora a direito e o mais esticada que conseguir para que eu possa procurar alguma irregularidade, ver a cor, a textura e a massa. Ok, muito bem… fique assim. Agora vou pegar neste pedaço de gaze, enrolá-lo à volta da sua língua e fazer uma palpação utilizando os meus dedos: polegar e indicador. Vou procurar a presença de massas e partes moles. Tem alguma sensibilidade aqui? Ah sim… vejo que aqui tem alguma. Ok, agora vou fazer uma cultura da sua língua para mais testes. Pronta? 1…2…3…”
“Disse textos?”
“Testes, testes, não textos. Haha. Se calhar também devíamos ver esses ouvidos!”
“Mas o que é que acha que é? Nem me passou pela cabeça alguma coisa estar mal…”
“Eu diria tratar-se de um caso de cândida.”
“Mas, papá, cândida não é um organismo normal? Não é suposto existir na minha boca?”
“Não me chame papá.”
“Porquê… doutor? Tudo o que o doutor está a fazer lembra-me o meu pai.”
“Mas eu não sou o seu pai, só estou a raspar-lhe a língua.”
“Tem razão, peço desculpa pela minha linguagem tão descuidada. A minha língua não está nada bem, sabe. É por isso mesmo que estou aqui para lhe dar a minha cultura.”
“Obrigado por isso. De facto, a sua língua não está normal.”
“E então o que lhe vai fazer, doutor papá?
“Vou cortá-la!”
Entretanto, Cristina tinha conseguido converter muitos dos pagãos da sua casa ao cristianismo. Quando Urbano soube do sucedido, decidiu trespassar o corpo da sua filha com ganchos de ferro e atá-la a um suporte debaixo do qual acenderam uma fogueira. Foi Deus que a salvou destas crueldades e a poupou do fogo, ateando-o sobre os seus agressores. Em seguida, ataram-lhe uma pedra ao pescoço e atiraram-na ao lago de Bolsena. Deus salvou-a mais uma vez e o seu pai finalmente morreu.
Bom… perguntam-me frequentemente porque me interessam as santas. Parece-me uma pergunta justa. A nível pessoal não é nada de extraordinário, cresci numa família cristã e a religião sempre foi um assunto fraturante. Eu e uma das minhas irmãs não somos religiosas, a minha outra irmã é. Eu e a minha tia namoramos mulheres e uma parte da minha família é Testemunha de Jeová. Etimologicamente, religar significa ligar/vincular, mas a força da religião já não se sente.
Os meus pais pertencem a uma igreja não denominacional. Sempre rezámos juntos antes de comer e de dormir. Eu fui batizada, fiz a primeira comunhão e fui à missa todos os domingos. Cada vez que vejo o meu pai no Aeroporto Internacional de O’Hare, em Chicago, ele pergunta-me: “Então, querida, queria saber como estás no que diz respeito à tua fé.”
Uma vez, quando voltei para passar as férias, frequentei as celebrações de Natal na igreja dos meus pais. O meu pai era uma pessoa importante naquele grupo de homens. Um dos membros do grupo, que tinha a alcunha de Cowboy, abordou-me depois da missa. Cowboy é uma alcunha estranha para alguém que vive na região Centro-Oeste dos Estados Unidos. Quando estava a caminhar sozinha no parque de estacionamento, ele aproximou-se de mim, colocou o seu gigante braço à minha volta e deixou-me num aperto. Disse-me: “Sabes que o maior medo do teu pai é morrer sem ter a certeza de que aceitaste Cristo na tua vida.”
Eu amo o meu pai e não quero que ele morra com medo.
A história morreria ali, mas Urbano morto tinha dois sucessores chamados Dion e Julian. Dion morreu depois de ter atirado Cristina para uma fornalha em chamas. Cristina emergiu desse fogo cinco dias mais tarde sem ferimento algum. Contudo, Julian decidiu cortar-lhe a língua.
Ao reter esse órgão muscular entre os dedos, ris-te porque é falso. É um daqueles objetos merdosos de Halloween que comprei on-line para uma performance. Usámo-la uma noite quando estávamos a fazer sexo e enchemo-la com os pingos da nossa seiva. Língua bífida, a serpente deixou a tua culta carcaça usada no meu peito.
Tenho de confessar, só usei esta língua como adereço em Submissão Submissão, o retrato de Cristina de Bolsena. Costumo segurá-la entre os dentes, tirá-la ou bater com ela na minha cara enquanto estou a gritar. E agora enchi este objeto de ti e sei que esta memória irá ressurgir na minha cabeça da próxima vez que o usar.
Vejo tudo de novo, estávamos nuas na cama e pediste-me a minha língua falsa. Já ta tinha mostrado algumas vezes antes. Tu pegaste naquele pedaço carnudo inerte e começaste a encostá-lo lentamente ao meu sexo. Apertava-lo entre os teus dedos tensos, cobria-lo com a tua saliva e o meu corpo estava suspenso em prazer. Começaste a passá-lo pelo meu clitóris. O truque de magia, o horror físico torna-se no meu brinquedo sexual. Duas línguas para o meu sexo, uma a olhar-me nos olhos. Venho-me.
Mas como podem conviver na minha cabeça este ato sexual e este adereço performativo, tanto no sexo como no palco?
Quando Cristina estava em frente a Julian com a sua língua cortada dentro da boca, olhou-o nos olhos, fez pontaria e cuspiu-lhe a língua para a cara. Acertou-lhe no olho com tamanha precisão e força que, quando a língua solta caiu ensanguentada no chão, ele apercebeu-se de que estava cego. Cristina, mesmo sem língua na boca, começou a sentir dentro dela uma agitação provocada por coisas que queria dizer. Projetou-se para a língua falada e assim aconteceu o milagre. Cristina não tinha língua e ainda assim conseguia falar.
Rosa Paula Rocha Pinto “Pela dança Portuguesa” na Ilustração Portuguesa (1921 e 1922)
Os Bailados Portugueses “Verde-Gaio” (BPVG), criados em 1940 no contexto da Exposição do Mundo Português, com a figura de António Ferro como seu principal mentor, em estreita proximidade com o bailarino e coreógrafo Francis Graça, e com a colaboração de artistas plásticos como José Barbosa, Maria Keil, Mily Possoz ou Paulo Ferreira, e compositores como Frederico de Freitas, Ruy Coelho, Armando José Fernandes e Jorge Croner de Vasconcelos, são um projecto antigo destes protagonistas.
António Ferro que, nas décadas de 1910 e 1920, teve um percurso de profundo interesse e fascínio pela companhia de Diaghilev (cujas apresentações lisboetas de 1917 marcaram toda uma geração de intelectuais); pelo modernismo literário (tendo chegado inclusivamente a ser director da revista Orpheu); pela sua própria observação da contemporaneidade que metaforizou em textos como Madame Ballet Russe ou A Idade do Jazz Band, ao mesmo tempo que começava a direccionar o seu trabalho jornalístico para entrevistas a personalidades políticas e artísticas da época que viria a publicar nas suas obras Viagem à Volta das Ditaduras, Gabrielle d’Annunzio e Eu, ou o lapidar Salazar, o Homem e a Sua Obra, colherá, na celebração dos Centenários da Fundação e Restauração da Independência de Portugal (1940), a oportunidade para dar início à criação de uma companhia de bailado, no culminar de um projecto que se tinha vindo a desenhar ao longo das duas décadas anteriores. Apresentada sob a égide da “Política do Espírito” do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), no seu plano de “reaportuguesamento” da nação, do vocabulário do projecto da companhia de Bailados Portugueses “Verde-Gaio” fazem parte termos como “nacionalismo”, “raça”, “regionalismo” e “folclore”, mas também “modernismo” e “internacionalismo”.
No domínio musicológico, a importância dos Bailados Portugueses “Verde-Gaio” revela-se, de facto, marcante pela relação que estabeleceu com alguns dos mais relevantes compositores portugueses das décadas de 1940 e 1950, nomeadamente através das encomendas efectuadas a partir do Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional de Radiodifusão e pela preocupação por criar um repertório nacional no domínio do bailado. A grande virtude dos BPVG, de certa forma na linhagem wagneriana da Gesamtkunsterk, e dos Ballets Russes, foi procurar criar um objecto uno, que ligasse a dança, a música, a narrativa, os cenários e os figurinos. Nesse aspecto, os BPVG são pioneiros e mesmo únicos na criação de um repertório balético em Portugal, a partir de uma tutela estatal, com a criação articulada das várias componentes do espectáculo, e um investimento na profissionalização de músicos e bailarinos. Se é verdade que o turismo, a diplomacia e a propaganda foram motores da companhia, condicionando a sua estética e o seu propósito, seriam também a forma encontrada para a manter a funcionar, como um “tableau vivant” de Portugal, uma dança pitoresca, de representação, de projecção de uma imagem, de uma ordem, de um regime.
Os Bailados Portugueses “Verde-Gaio” têm sido recorrentemente abordados na literatura dedicada à música, à dança, à cultura popular e ao Estado Novo[1], numa narrativa que se estabilizou e que envolve invariavelmente a influência dos Ballets Russes de Diaghilev; as experiências modernistas de Ruy Coelho, Almada Negreiros[2], e a influência dos Delaunay[3] na segunda década do século XX, como antecedentes coreográficos; o modernismo discutível e discutido de António Ferro e o projecto do Teatro Novo (1925) como precursores da relação entre os protagonistas da companhia; a decadência dos BPVG após o afastamento de Ferro do SPN; o suposto desastre da apresentação perante Isabel II de Inglaterra, em 1957; a longa agonia de uma companhia que teria funcionado como um entrave a outras iniciativas de carácter coreográfico em Portugal.
Mas a leitura “a contrapelo” das fontes permite-nos compreender com subtileza o percurso, as dinâmicas e o funcionamento dos BPVG enquanto instituição, tanto no domínio da produção como da recepção, e, sobretudo, as complexidades subjacentes à sua criação e às suas criações. Importa ainda perscrutar os paradoxos que enformam os BPVG e, depois da fase inicial da companhia, os mais de 30 anos de apagamento historiográfico que importa conhecer melhor até porque acompanham as transformações fundamentais do Portugal do século XX, uma vez que os BPVG estiveram no activo até depois do 25 de Abril. É, assim, num território entre o erudito e o popular ou o “popularucho”, a encenação do requinte e a emanação da decadência, entre o que podia ter sido e o que acabou por ser, que me interessa trabalhar. Interessa-me também o que permaneceu, dos discursos às práticas e aos modos de actuação, bem como as dinâmicas de transformação e as continuidades entre as instituições que abrem o cenário para a dança nos séculos XX e XXI em Portugal. De que modo o ímpeto modernista, a contemporaneidade no domínio criativo, e a concepção dos BPVG como uma manifestação de cultura erudita se cruzam com as ideias de representação de “regionalismo”, “tradição” ou “nacionalismo” são algumas das preocupações do meu trabalho. Proponho ainda que o modernismo dos BPVG não é experimental, mas de filão neoclássico, sendo os folclorismos que lhe assistem de carácter temático, e em linha com a estética de muitas outras companhias estatais e projectos musicais e coreográficos na mesma época[4].
Neste texto colocarei o foco sobre os diálogos que, no início dos anos 20, se estabeleceram na revista Ilustração Portuguesa em torno da ideia da criação de uma companhia de dança.
***
Ainda que esta história tivesse começado antes, António Ferro assumia a direcção da Ilustração Portuguesa, a revista semanal do jornal O Século, em Outubro de 1921. Sob o pseudónimo “O Homem que Passa”, na rubrica “A Entrevista da Semana”, encenava um questionário a si próprio em que colhia da oportunidade para expor o seu projecto para o periódico:
Antes de mais nada, eu pretendo modernizar a “Ilustração Portuguesa” […] Integrar Portugal na Hora que passa, é uma obra nacional, uma linda obra a tentar. Lisboa é uma grande cidade que só existe quando há revoluções. Eu vou tornar Lisboa semanal. […] Procurará fazer-se uma revista Europeia mas integrando-se na vida portuguesa. Procurará mostrar Portugal aos Portugueses, procurará, com o auxílio de todos, estilizar a raça[5].
Seria, justamente, nesta primeira declaração de intenções editoriais que Ferro esboçaria, com particular clareza, a ideia da criação de uma companhia de bailados em Portugal. Consciente da vastidão do seu programa e das muitas indefinições que teria que superar, António Ferro avançava o seu plano, com um largo “hálito de novidade e modernismo”:
A linha do bailado português, por exemplo, está por descobrir. Encontrada essa linha, Portugal pode ter a sua companhia de bailados, como os russos, bailados modernos, arco-irisados, bailados de cores bobescas… nas nossas danças populares, nos nossos trajes regionais, nos nossos costumes, temos matéria-prima para estilizações admiráveis, temos tintas de sobra para um grande cartaz a pôr na Europa, a pôr no mundo. […] Manuel de Sousa Pinto, bacharel formado na Faculdade do Ritmo, iniciará no próximo número da “Ilustração Portuguesa”, uma série de artigos sobre este projecto que, dentro de mim é já uma certeza[6].
Manuel de Sousa Pinto era, assim, destacado para definir teoricamente, numa série de artigos, a ideia da criação de uma companhia de dança portuguesa. Autor prolífero, Sousa Pinto dedicava-se, no início dos anos 1920, à crítica de dança, trabalho este que compilaria em 1924 no volume Danças e Bailados, em que constavam uma série de pequenas narrativas em prosa poética de carácter biográfico e descritivo sobre bailarinos e bailarinas a cujos espectáculos assistira, enredos e críticas de bailados, ou dissertações sobre géneros coreográficos. Esta colectânea integrava ainda os artigos publicados na Ilustração Portuguesa, com o título “Pela Dança Portuguesa”.
Num número em que figurava na capa uma fotografia da poetisa Fernanda de Castro, que viria a casar com António Ferro no ano seguinte, e num artigo com ilustrações de Bernardo Marques (todos futuros colaboradores dos BPVG), Manuel de Sousa Pinto afirmava:
A dança portuguesa, bailados portugueses: porque não?
O difícil é lançar a semente.
Depois as flores nascem. […]
É preciso criar em Portugal, artisticamente, o gosto pela dança. Cuidar da educação rítmica da mulher. Apontar bailarinas.
Obter-se-iam assim os instrumentos, que, manejados por decoradores de fantasia, por músicos inteligentes, por argumentistas de inspiração e coreógrafos de pulso, permitiriam tentar, ainda que com cautelosa modéstia, o bailado português, pensado em português, musicado em português, dançado em português, vestido à portuguesa e enriquecido com a valiosíssima série de coisas a bem dizer inéditas, e lindas, que Portugal, tesouro farto, ainda tem ou já teve.
Pensemos no caso[7].
Adivinhava, contudo, o autor algumas das possíveis dificuldades, nomeadamente a lentidão da formação balética, defendendo, contudo, que as danças populares tinham a virtude de serem suficientemente simples para permitirem iniciar este projecto:
“Toca, portanto, a dançar, minhas meninas! não se arrependerão. Quase se pede garantir, à que mais se salientar como artista, além de glória florida e muita saúde, uns fartos cobres para o enxoval!”
A 31 de Dezembro, ainda em 1921, Manuel de Sousa Pinto assinava o segundo destes artigos tão definidores daquilo que, vinte anos mais tarde, seria a estética que António Ferro associaria aos Verde-Gaio, estabelecendo, uma vez mais, um paralelo com os Ballets Russes e fazendo, desde já, propostas práticas para a concepção coreográfica:
Não temos danças suficientemente ricas para palco — há quem diga. Puro engano.
Toda a dança, afinal, se resume a bem pouco: a um ou dois movimentos básicos. O resto é papel da instrumentação, ou seja da técnica coreográfica, que, precisamente, falta criar e desenvolver.
Os que viram, pela companhia de Diaghilev, as Danças do Principe Igor puderam verificar que o seu fogoso ímpeto obedecia, muito simplesmente, à repetição dum mesmo tema motor, comum a muitas danças russas, em que a posição agachada é ritual.
Com um maestro meridional e dançarinos ocidentais, podia bem obter-se quadro idêntico, substituindo à ferocia do norte as voluptuosidades do sul. […]
Um quadro de romaria minhota, com Zés-Pereiras rodopiantes, pandeiros risonhos, resfolegar de harmónios e bonecos de cavalinho ao alto de uma cana, o homem dos foguetes, o gaiteiro, um rufador, cachopas luzentas de oiro e valentões de varapau, o repique dos sinos e o resfregar das violas, que mais rico bailado se pode apetecer?[8]
As ilustrações de Alice Rey Colaço para este artigo mostram uma cortina de cena com uma fonte central e a inscrição “Bailados Portugueses”, bem como figuras femininas com cestas de fruta e cântaros à cabeça, num imaginário que abria também portas temáticas para os BPVG.
Ao longo do tempo em que António Ferro dirigiu a revista, seriam vários os artigos sobre dança, nacional e estrangeira, e que reflectiam, por um lado, o fascínio com a modernidade e a “indiscutível influência dos Bailados Russos na Arte moderna”[9] e, por outro, a busca pela construção de uma companhia de carácter nacional e nacionalista.
Sempre na Ilustração Portuguesa, e com a data 21 de Janeiro de 1922, surgia um curioso artigo intitulado “Um Teatro de Arte” que alargava o projecto de Ferro ao domínio da arquitectura. Secundado por José Pacheko, um dos seus parceiros dos tempos de Orpheu, que havia assinado com Almada Negreiros e Ruy Coelho a folha volante, anexa ao número único da Portugal Futurista, dedicada aos “Bailados Russos em Lisboa”, António Ferro requeria, com carácter “urgente”, e já com uma planta e um projecto arquitectónico, a criação de um moderno Teatro no Parque Eduardo VII que deveria servir, justamente, para receber projectos coreográficos visitantes, bem como albergar uma companhia residente.
Não há em Portugal os teatros para raros apenas, onde a Arte a grande Arte tenha um ritual. Não há um Teatro-Arte, onde não vá o público, onde vá apenas uma elite, trezentos, quatrocentos, quinhentos devotos… E não é porque entre nós não haja artistas, não haja actores que tenham um sonho de arte… Actores, poetas, cenógrafos — há… O que não há são empresários, o que não há é um Astruc, o animador do Teatro dos Campos Elíseos. Os nossos olhos estão impossibilitados de tornar a ter a felicidade dos bailados Russos porque da sua primeira vinda a Portugal eles não encontraram aquela atmosfera de carinho que teriam tido se houvesse um Teatro-Arte, um Teatro-Ballet Russe. E quem nos fala dos bailados Russos, fala de todas as novidades, de todas as grande horas da Europa que não batem para nós por falta de um ambiente, por falta dum cenário… […]
Além duma companhia portuguesa que funcionará, todos os anos, contam os autores do projecto trazer a Lisboa, em saison a companhia dos Bailados Russos de Diaghilev, o teatro de Chauve-Souris, os Bailados Russos de Boerlein[10], Ana Pavlowa, etc. etc… […][11].
No início de Maio de 1922, um banquete de despedida que contava mais de oito dezenas de convidados marcava o fim da direcção da revista Ilustração Portuguesa por António Ferro, que partia para uma temporada brasileira. Então com 27 anos, Ferro apresentava no Brasil a sua peça Mar Alto (que em Portugal viria a ser proibida no dia seguinte à sua estreia, a 10 de Julho de 1923, no Teatro de São Carlos). Em São Paulo, Ferro proferiria ainda uma série de conferências entre as quais se destacou A Idade do Jazz Band, mais tarde publicada, e que colheu imenso sucesso entre os modernistas brasileiros também pela encenação e componente musical, onde acordes de jazz acompanhavam as suas apresentações na Semana de Arte Moderna de 1922, ano da travessia aérea do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, por ocasião do primeiro centenário da Independência do Brasil. Consolidando a ponte que traça entre modernidade e dança, em A Idade do Jazz Band Ferro afirmava:
Toda a nossa Época baila russo!
Não triunfou o bolchevismo das ideias, mas triunfou o bolchevismo das formas… Diaghilev, Nijinski, Massine são os Lenines do Ritmo. O que é a Rússia senão um grande bailado, um bailado sinistro, um bailado vermelho? Benditos sejam os Bailados Russos que nos libertaram de nós próprios, que puseram o mundo em cada um de nós, que unificaram a Arte, que deram, à minha pena, movimentos de Karsavinà. A maior vitória dos Bailados Russos foi a de transformar os estados desunidos da Arte num grande Império, um império maior do que a terra porque é do tamanho do Sonho… Nos Bailados Russos, a Cor é gémea da Dança, da Música, da Atitude… É impossível separar essas irmãs gémeas, como é impossível separar as cores de uma bandeira, os versos de um soneto, os compassos de uma melodia, as imagens dos olhos… Para que a arte fizesse frente à vida era necessário que ela estivesse unificada como ávida está. Os Bailados Russos são a constituição política da Arte, constituição em que o primeiro artigo proíbe a estabilidade e ordena a evolução contínua… O jazz-band, essa Dança de S. Vito, é, portanto, uma das muitas consequências dos Bailados Russos.
O jazz-band é o Bailado Russo da Música.
***
Se o interesse pela criação de um estética coreográfica e musical tinha antecedentes significativos em António Ferro, seria, no entanto, Francisco Florêncio Graça quem viria a desenvolver todo um trabalho que o colocava em primeiro lugar no que dizia respeito à direcção de uma futura companhia de bailado. Francisco Florêncio Graça (1902-1980), que optaria pelo nome artístico de Francis Graça, tinha tido uma formação inicial essencialmente marcada pelo curso de Música do Conservatório Nacional, onde havia sido colega do compositor Frederico de Freitas, com quem viria a estabelecer laços profissionais e de amizade determinantes. No domínio da dança, após uma formação muito rudimentar em Lisboa, rumou a Paris no início dos anos 1920, onde terá estudado durante um período que lhe permitiu sobretudo estar próximo do moderno universo artístico parisiense. De regresso a Portugal, no contexto do Teatro Novo, um projecto experimental criado sob a direcção de António Ferro, em 1925, Francis Graça teve como marco inicial da sua carreira uma performance que, pelo arrojo da nudez que explorava, e pela abordagem surpreendente e “vanguardista” para o meio lisboeta, lhe daria uma enorme notoriedade garantida pelas polémicas e pelas críticas mordazes que, durante algum tempo, lhe teriam criado inúmeros constrangimentos, um succès de scandale.
À falta de instituições e estruturas para o desenvolvimento de espectáculos coreográficos e músico-teatrais, seria, na verdade, no teatro de revista que Francis Graça iria experimentar uma primeira síntese dos ideários propostos por Ferro e Sousa Pinto. Trazendo “um pouco de Paris em Lisboa e um pouco de Lisboa em Paris”[12], e panfletariamente influenciado pelo “music-hall”, pelo “vaudeville”, pelas “jazz-bands”, Francis Graça começaria por transformar a componente coreográfica da revista, juntando-lhe elementos da cultura popular, do pitoresco regional e tradicional, com uma sofisticação demonstrada pela atenção dada aos modernos “efeitos de luz”, aos figurinos, às cortinas de cena. Na revista, a dança passava a ter um papel mais autónomo, com uma maior importância dada à coreografia e à música, bem como um reconhecimento do papel dos bailarinos. A possível “modernidade” da dança em Portugal nos anos 1920, passaria em grande medida por espectáculos como Cabaz de Morangos (1926); Água-Pé (1927); Sete e Meio (1927); A Rambóia (1928); Chá de Parreira (1929). Já na década de 1930, Francis Graça estreava-se no cinema no grande acontecimento que foi o primeiro filme sonoro, A Severa (1930), de Leitão de Barros, e com música de Frederico de Freitas, marcando assim, na grande tela e para um público mais alargado, a sua relevância enquanto referência na dança em Portugal.
De facto, na década de 1930, foram muitas as participações de Francis Graça e da sua companheira de trabalho, a alemã Ruth Walden, em iniciativas tuteladas pelo Secretariado de Propaganda Nacional, criado em 1933 sob a direcção de António Ferro. Apresentando-se nos mais diversos certames, exposições, atribuições de prémios, Francis e Ruth construíam, também eles, um imaginário coreográfico, que fazia agora as ligações entre o pitoresco regionalista, a citação modernista e o programa do regime. Em carta patente no espólio Frederico de Freitas, de 16 de Julho de 1937, Francis Graça testemunhava o sucesso das apresentações da dupla no Brasil e dava-nos uma ideia do repertório que já se ensaiava então: “Bisamos Pastores, Chula, Nazareth e Fado, e queriam bisar Ribatejo e Douro”, afirmava.
Entre muitos outros espectáculos, no âmbito do teatro musical, é ainda de destacar a revista Minha Terra (1936), com música de Ruy Coelho, onde Francis dança, com Ruth Walden, um número intitulado “Pássaro Encarnado”, com claras reminiscências do stravinskiano Pássaro de Fogo dos Ballets Russes, e adivinhando já um salto temático para o “Verde-Gaio”, o pássaro verde.
Sob o entusiasmo crítico e jornalístico de António Ferro e sob as ideias de Manuel de Sousa Pinto, Francis Graça e Ruth Walden; os artistas plásticos Paulo Ferreira, Bernardo Marques e José Barbosa; os compositores Frederico de Freitas e Ruy Coelho, tinham, assim, na década de 1920 lançado as fundações do que viria a ser, a partir de 1940, a primeira companhia de bailado em Portugal, os Bailados Portugueses “Verde-Gaio”.
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[1] De forma não exaustiva, neste âmbito, são de salientar, no contexto académico, os capítulos de Carla Ribeiro, Daniel Melo, Elvira Alvarez, Graça dos Santos, Helena Marinho, Manuel Deniz Silva, Maria João Castro, Margarida Acciaiuoli ou Vera Marques Alves. Especificamente sobre os Verde-Gaio são de destacar a investigação de Maria Luísa Roubaud, o catálogo do Museu Nacional do Teatro, de Vítor Pavão dos Santos, as pesquisas de Helena Marinho, a tese de Rita Ferreira Nunes e a obra de José Sasportes.
[2] Edward Luiz Ayres de Abreu, Danças e Contradanças: Almada Negreiros e Ruy Coelho. Revista de História da Arte (2014), p. 111-124.
[3] Entre 1915 e 1917, os artistas plásticos franceses Sonia Delaunay (de origem ucraniana) e Robert Delaunay, associados aos movimentos modernistas do Simultaneismo e Orfismo, e com ligações aos Ballets Russses, fixaram-se na cidade de Viana do Castelo, mantendo convivência e correspondência com diversos pintores portugueses, e revelando-se uma importante influencia, nomeadamente sobre Eduardo Viana, Amadeo de Souza-Cardoso, José Pacheco ou Almada Negreiros. Almada Negreiros teria planeado fazer com Sonia Delaunay uma série de “ballets simultaneístes”que nunca se viriam, contudo, a realizar.
[4] “The Transnational Path Toward Corporeal Fascism”, in Mark Franko, The Fascist Turn in the Dance of Serge Ligar (Oxford: Oxford University Press, 2020); Scott Messing, Neoclassicism in Music: From the Genesis of the Concept through the Schoenberg/Stravinsky Polemic. (Ann Arbor, MI: UMI Research Press, 1988).
[5] O Homem que Passa [António Ferro], “A Entrevista da Semana: A ‘Ilustração Portuguesa’ entrevista a ‘Ilustração Portuguesa’”, Ilustração Portuguesa, 8 de Outubro de 1921.
[6] O Homem que Passa [António Ferro], “A Entrevista da Semana: A ‘Ilustração Portuguesa’ entrevista a ‘Ilustração Portuguesa’”, Ilustração Portuguesa, 8 de Outubro de 1921.
[7] Manuel de Sousa Pinto, “Pela Dança Portuguesa”, Ilustração Portuguesa, 5 de Novembro de 1921. Ilustração de Bernardo Marques.
[8] Manuel de Sousa Pinto, “Pela Dança Portuguesa”, Ilustração Portuguesa, 31 de Dezembro de 1921. Ilustrações de Alice Rey Colaço.
[9] António Ferro, “A Arte Moderna e os ‘Bailados Russos’ (Crónica da Semana)”, Ilustração Portuguesa, 14 de Janeiro de 1922.
[10] Referência aos Ballets Suédois (1920-1925), companhia sediada em Paris, dirigida pelo sueco Rolf de Maré e com Jean Börlin como coreógrafo, responsável por bailados marcadamente modernistas de que são exemplo La création du monde, Les mariés de la Tour Eiffel, ou Relâche. O repertório dos Ballets Suédois congregou compositores como o grupo Les Six, Erik Satie, Cole Porter ou Alfredo Casella; artistas plásticos como Giorgio Di Chirico, Fernand Léger ou Francis Picabia; com argumentos de autores como Blaise Cendrars, Luigi Pirandello ou Jean Cocteau. As “trupes suecas” serão, de resto, uma referência presente em vários textos de António Ferro nas apresentações dos BPVG.
[11] António Ferro, “Um Teatro de Arte”, Ilustração Portuguesa, 21 de Janeiro de 1922. Ilustrações de José Pacheko.
[12] António Ferro, “Últimas Notícias”, Diário de Notícias, 28 de Dezembro de 1927.
Entrevista Iluminem Tudo o que Vos Interessar
Beverly Emmons começou a fazer desenho de luz na década de 1960, com Merce Cunningham, e tornou-se uma das artistas de iluminação de referência da sua geração, lado a lado com os pós-modernos da dança como Lucinda Childs ou Trisha Brown, mas também com Martha Graham, Alvin Ailey, Bill T. Jones e não só. Emmons trabalhou extensivamente na Broadway e com o encenador Bob Wilson, com quem iluminou Einstein on the Beach. Esta entrevista, realizada na manhã gelada de 8 de janeiro de 2022, numa esplanada em Brooklyn, teve como ponto de partida a digressão da Merce Cunningham & Dance Company a Portugal em 1966, na qual Emmons assumiu o papel de diretora de cena e desenhadora de luz. A conversa salta no tempo e nas memórias enquanto sobressaem diferentes ideias de design, o papel do desenhador de luz no diálogo com coreógrafos e encenadores e a história do design à luz da sua emancipação enquanto prática profissional.
João dos Santos Martins: Uma das pessoas da equipa técnica que vos assistiu na digressão de Cunningham em Portugal, em 1966, foi Orlando Worm.
Beverly Emmons: Eu não me lembro do nome dele. Lembro-me do homem que coordenava. Era entusiasmado e alegre.
J: Ele era chamado eletricista, na altura, mas tornou-se desenhador de luz do Ballet Gulbenkian. Essa profissão não existia antes e ele terá sido um dos pioneiros.
B: A pessoa da iluminação nas grandes casas de ópera é o responsável pela equipa da eletricidade, que pode ou não ter talentos de desenho. Há uma grande diferença e é compreensível em relação ao teatro comercial. Quando alugamos um teatro na Broadway, temos cadeiras, uma cortina, paredes e algum tipo de sistema de suspensão. Tudo o resto tem de ser trazido, até as mesas de luz. Portanto, entramos e trazemos as coisas de que precisamos para o nosso espetáculo. E esse espetáculo vai continuar em cena tanto quanto conseguirem vender bilhetes. Trinta anos para o Fantasma da Ópera! A única coisa que têm de fazer é a manutenção, pôr algo novo ou renovar o filtro de cor. Agora é mais complicado, por causa dessas luzes…
J: As luzes LED?
B: Sim. Na Europa, há uma tradição chamada repertório rolante: hoje é esta ópera, amanhã é outra, e à tarde ensaiam uma terceira, por isso, tem de se refazer as luzes. Um desenhador é limitado no que consegue fazer dependendo de quanta ajuda tem. Isso tem limitado a ideia de iluminação ao que é conveniente para o espetáculo. Nós fazemos o mesmo, mas só na Metropolitan Opera. Mais ninguém faz essa coisa de “mudar todos os dias”. Já não nos podemos dar ao luxo de fazer isso.
J: É demasiado caro…
B: Até aos anos quarenta, as pessoas ainda trabalhavam assim na Europa, tal como nós costumamos trabalhar. Nos anos sessenta, quando estava na faculdade, passava o verão no American Dance Festival e conheci um pouco a Jean Rosenthal e o Tom Skelton. Todos os modernos passaram por lá: a companhia Alvin Ailey, o Paul Taylor, a Martha Graham passava todos os verões. Já viu a companhia Alvin Ailey?
J: Nunca vi ao vivo.
B: Se considerarmos um bailado como Revelations, que foi coreografado em 1958, e iluminado durante os anos sessenta, essa luz tem de ser a mesma e eles têm-se comprometido com isso. É impraticavelmente prático. Eles não querem gastar dinheiro a contratar um desenhador para o voltar a iluminar. Por isso, todos os bailados no repertório da companhia têm de trabalhar com essas cores e esse mapa de luz. Hoje em dia é mais flexível, mas isso é uma conversa para a próxima geração. O que quero dizer com isto é que também está a ver ideias sobre iluminação que se originaram nos anos sessenta. Em contraste com isso, o Merce Cunningham odiava cor.
J: Então não usava cor nas suas peças?
B: Poderia haver alguma cor, mas manuseada de uma certa forma.
J: Quando é que começou a colaborar com Merce Cunningham?
B: Eu fui contratada como desenhadora de luz para a digressão de 1965, quando tinha 21 anos. Estava no meu último ano de faculdade. A companhia tinha feito uma digressão internacional em 1964 e o Robert Rauschenberg, que tinha circulado com o Merce durante dez anos e tinha articulado algumas das suas ideias de iluminação, tinha acabado de ganhar o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, por isso, já não lhe fazia muito sentido continuar.
J: A sua carreira estava prestes a explodir. Então, foi substituí-lo?
B: Ele apenas inventava coisas. Eles nunca faziam um ensaio com luzes sequer. Mesmo quando eu já estava lá, eles não faziam ensaios gerais com luzes.
J: Uma das coisas que mais me impressionou no vosso calendário de digressão em Portugal foi que não havia pausas entre espetáculos e cidades. Um dia é Lisboa, no dia seguinte é Coimbra, no outro é Porto. Viajar de comboio até Coimbra demorava umas três a quatro horas. Como é que conseguiam fazer isso?
B: Bom, a equipa técnica ia à frente. Entenderam aquilo de que eu precisava e providenciavam-no. Provavelmente tinham equipamento de iluminação alugado quando estavam a viajar.
J: Até porque os teatros não estavam bem equipados. O teatro onde dançaram primeiro em Lisboa, o Tivoli, era o mais bem equipado em Portugal na altura.
B: Nós costumávamos enviar uns questionários que eram devolvidos com informação técnica. Nunca tinham nada.
J: Assim, saberiam o que levar.
B: A Fundação Gulbenkian foi ótima a organizar isso. Em Coimbra havia uma antiga mesa de luz inglesa, diabólica, uma pessoa torturava-se com aquela porcaria.
J: E porquê?
B: Não sei quão à vontade é que se sente com mesas de luz, esta era pré-computorizada. Era o que chamamos uma mesa pré-definida de dois canais: a lista branca de dimmers e a verde. Na parte de cima havia um interruptor, e podia-se mudar para as luzes que se quisesse. Tinha ainda um dimmer que funcionava entre as duas listas, a luz podia estar na coisa branca ou na verde ou a meio caminho entre ambas. Montava-se o que era preciso e ligava-se, mas depois, para apagar, tinha de se trocar de uma lista para a outra. Lembro-me de uma pessoa que trabalhava com essas mesas em Inglaterra e que dizia que tinham de preparar as deixas de luz de manhã e deixar os eletricistas sozinhos a tarde toda para que descobrissem como o fazer, era complicadíssimo.
J: Voltando às ideias de design, o que tem Jean Rosenthal que ver com isso?
B: Jean Rosenthal foi diretora de cena nos anos 1930, com encenadores muito famosos como Orson Welles. Muitas vezes a iluminação era feita da mesma maneira que na Europa, em que o encenador está à frente, talvez tenha o seu amigo ao lado, o cenógrafo, e dizem “agora queremos que isto seja azul”, e o eletricista no palco fazia. A situação que certamente aconteceu mais do que uma vez foi que, na qualidade de diretora de cena, ela diria: “Bem, amanhã temos de fazer 25 deixas.” Chegamos de manhã, sentamo-nos, diz-se isto e concordamos, e depois o diretor pergunta ao eletricista: “Isto é o único azul que têm?” E o eletricista diz: “É a única merda de azul que tenho!” E, de um momento para o outro, o teu plano foi ao ar. Agora vão todos discutir uns com os outros. A atitude da Jean foi: “Talvez alguém com um ponto de vista artístico pudesse ter uma conversa, antes de entrarmos no teatro, com o encenador e o cenógrafo e depois arranjar cores que eles gostariam de ver. E ter algumas sugestões para o eletricista sobre onde colocar as coisas.” Esse é o desenhador de luz. E demorou até ao início dos anos 1940 para o conseguir. Houve ainda um homem, chamado Abe Feder, que insistiu em fazê-lo. Ele foi a primeira pessoa a receber crédito como desenhador de luz. Penso que o Bob Wilson também terá sido responsável por isso na Europa, por ser tão impossível. Os tipos locais não querem lidar com ele.
J: Imagino que teria sido difícil fazer as luzes dos seus espetáculos sem um desenhador. Também desenhou as luzes para Einstein on the Beach?
B: Não. O Bob Wilson diz o que quer ver e não deixa passar um minuto até ter o que quer. Por isso, é preciso habituar-se ao tipo de coisas que ele quer e à linguagem com que as quer. Esse tipo de iluminação é extremamente difícil de fazer, mas também é preciso saber o que ele quer dizer. Por exemplo, ele grita: “Quero uma linha de luz na cara deles. Quero um feixe de luz!” Então começo a imaginar: “Deixa cá ver: pego numa luz e faço uma pequena linha.” Não, não, não, não. Ele só quer uma luz brilhante de um lado e nada do outro. Ele não o pede bem. Então, outras pessoas tentam fazer o que seria de loucos, quando na verdade é muito simples.
J: Disse que ainda estava a estudar quando foi para digressão com Cunningham em 1965.
B: Eu estava numa universidade muito liberal chamada Sarah Lawrence, no departamento de dança.
J: Significa que também estava a estudar dança?
B: Comecei por ser bailarina. Depois, ao ir ao American Dance Festival no verão, para ter aulas de dança, comecei a trabalhar nos bastidores e descobri que, em última análise, isso era muito mais interessante do que ser bailarina. Eu via todas aquelas companhias passarem por lá e pensava “vou ter de ser melhor do que algumas dessas miúdas ou não vou arranjar emprego”. Então, foi daí que veio. A universidade foi suficientemente flexível para que quando lhes disse que poderia ter de faltar a algumas aulas porque ia em digressão com Merce Cunningham, respondessem: “Merce Cunningham? Não há problema.”
J: Conheceu a companhia quando estava no American Dance Festival?
B: Sim, eles vieram umas quantas vezes e fiquei com uma ideia do seu trabalho. Mas, então, Jean Rosenthal. Duas coisas importantes: ela era diretora de cena da Martha Graham. E a Martha Graham dava às mulheres permissão para seguirem o seu caminho. Se queres alguma coisa, vai em frente. Ela dizia aos bailarinos: “Não me mostrem um movimento. Eu roubo-o.” “Se queres alguma coisa, agarra-a, agarra-a com energia.” Há muitas mulheres que ela apoiou… as pessoas não se apercebem disso. Basicamente, a Jean teve permissão para olhar para si própria como desenhadora de luz no contexto do trabalho da Martha Graham. A outra coisa que é importante sobre a Jean, algo acerca do qual era delicado falar até recentemente: ela era lésbica. O que significa que não havia conversa de sedução à volta dela. Toda aquela forma como as mulheres eram educadas para serem bonitas, namoradeiras e todo esse tipo de coisas: não, não, era tudo trabalho. “Bom dia, Sr. tal e tal, prazer em vê-lo novamente, como está a sua família, e agora podemos por favor tirar a escada e ir até ali?” Isso retirava pressão às equipas para não serem sexualmente competitivas. Deixava-os sentirem que só estávamos ali para pendurar luzes, para fazer um espetáculo. E essa é uma ideia essencial que libertou ambos.
J: Portanto, existe uma relação entre género e sexualidade que desempenhou um papel importante numa forma de emancipação da profissão?
B: De género, absolutamente. E muitas das mulheres que vingaram depois dela trabalharam no seu escritório ou como assistentes. Ela lançou as bases para todas as mulheres com quem ainda trabalhamos. E há muito poucas histórias de equipas técnicas a fazerem comentários inapropriados a mulheres.
J: Fiquei surpreendido por saber que acompanhou a digressão de Cunningham a Portugal em 1966 porque, nessa época, não apenas a situação para as mulheres era extremamente restrita socialmente, mas também pela situação política do país. Os anos 60 foram o período mais duro da ditadura quando a guerra colonial se intensificava, assim como a censura e a repressão tinham os seus ápices.
B: Como é que o Merce escapou a tudo isso?
J: A minha suposição é que a abstração permitiu um certo grau de liberdade. Quando vieram para Portugal, tinham conhecimento da situação política do país?
B: Não. Chegámos muito tarde. Estivemos uma semana em Estocolmo e foi apenas quando estávamos em Paris que descobrimos que não íamos para casa, que íamos para Portugal. Quando me encontrei pela primeira vez com o Merce, em janeiro do meu último ano de faculdade, ele disse-me: “A luz para o meu trabalho deve ser como o dia. E a forma como uma árvore parece diferente do lado de fora da janela é porque o Sol se moveu e não porque algo emocional aconteceu no mundo.” Ele não queria que a luz refletisse ideias emocionais. Ele nunca nos diria se houvesse uma história na sua cabeça sobre o bailado. Quando convidava compositores, dizia: “Estou a pensar num bailado de vinte minutos.” Era tudo o que dizia. E ninguém ouvia a música até ao dia espetáculo. A outra coisa que ele dizia, que é relevante para a iluminação, era: “Se tenho aqui os meus bailarinos todos juntos, não quero que apaguem o resto das luzes porque isso é dizer ao público que vamos ficar lá tempo suficiente para que valha a pena a mudança. Além disso, quando eu deixar o grupo, não têm de trazer as luzes para a frente a dizer às pessoas para onde vou. Isso não é da vossa conta, isso é da minha conta!”
J: O facto de o ponto de encontro entre música, luz e dança ser desconhecido até ao dia da apresentação é interessante do ponto de vista da censura, já que a censura não teria estratégias para lidar com esse nível de aleatoriedade. Quando começou a trabalhar, assumiu alguns dos projetos que Rauschenberg tinha feito? Por exemplo, o espetáculo Winterbranch tinha desenho de luz de Rauschenberg.
B: Desenho é uma palavra complicada, porque envolve papelada e decisões que se estabelecem. Nunca falei com o Bob Rauschenberg sobre Winterbranch. Foi-me dito pelo Merce quais eram as ideias do Bob e qual tinha sido a sua experiência, e ouvi dos dançarinos o quão escuro era e como as luzes lhes batiam nos olhos. Era completamente improvisado, nunca era igual. Assim, com base nisso, o desenho que eu fiz formalizava essas ideias.
J: Como é que isso se sucedeu?
E: Por articulação. Enquanto o Merce dizia que o seu bailado deveria ser como o dia, o Bob disse que deveria ser como a noite. Não a noite bonitinha com a luz da Lua. Não, deveria ser como a noite moderna: escura com fontes de luz elétrica. Faróis de carro a varrerem a paisagem, conduzir no escuro e, de repente, aparecer um enorme centro comercial e depois voltar ao escuro. Coisas acolá, como um parque de estacionamento com luz branca fria. Ou como quando os olhos ficam habituados ao escuro e se se apercebe que é a Lua que está a iluminar a parede do quarto, ou quando alguém tem uma luz de presença que faz uma sombra engraçada. Eram essas o tipo de imagens. E como é que se faz isso no teatro? Para começar, não se usa cor. Apenas branco. Depois, todas as pernas e bambolinas desaparecem, por isso é só maquinaria. A parede de fundo é o que lá estiver. Se houver algum cenário bonitinho, vira-se ao contrário. Lá no topo, estariam luzes de trabalho de halogéneo que se acenderiam. Só essas, por si só. E depois ligam-se as outras a 20% da intensidade. Assim, fica um cinzento aplanado sobre todo o espaço, e os bailarinos tornam-se figuras sombrias que mal se conseguem ver. Sobre um cavalete coloca-se um projetor PAR de cada lado. Ficava fora de vista do público e dizíamos ao eletricista para o mover pelo palco quando os projetores se acendessem.
J: Ah, eram os técnicos que os movimentavam!
B: Movimentavam-nos como se fossem faróis de automóvel. Podia perguntar-se: “O que acontece se acendermos as luzes da teia na direção das cordas ali? E se abrirmos aquela porta do corredor?” Uma das coisas que eu costumava fazer era pegar num projetor de ciclorama qualquer, pô-lo na teia, acima de tudo o que está pendurado, com um técnico ao lado, e dizia-lhe: “Sempre que a luz se acender, mova o projetor.” Assim, de repente, viam-se enormes sombras a moverem-se pelo palco.
J: Na verdade, era um trabalho coreográfico com as luzes.
B: Sim, exceto que a ideia era manter uma sensação de aleatoriedade. Os bailarinos não eram aleatórios, estavam sempre no mesmo lugar no mesmo momento. Mas nós só fazíamos as luzes quando já estávamos em digressão. Era muito perigoso e, felizmente, ninguém se magoou. Eles saltavam, a luz incidia-lhes nos olhos e não conseguiam ver onde caíam.
J: Curiosamente, era uma peça com muito cair e levantar, algo pouco comum para Cunningham.
B: E saltar e arrastar. Eu fui convidada por uma companhia chamada The LA Dance Project, eles queriam remontar o Winterbranch. O que é que eu fiz? Antes de mais, era uma companhia de repertório, não era “dançar para o papá”, era uma companhia sindicalizada. Se alguém se magoasse, haveria um processo judicial imediato. Por isso, não podíamos fazer a mesma coisa. Hoje em dia, com a facilidade das mesas de luz no computador, eu podia fazer duas listas de deixas. Na verdade, eu tive uma sessão de escrita de deixas antecipada, sentada na cozinha, que foi do tipo: “Vamos fazer algo aos dois minutos e trinta e dois segundos, vamos fazer algo aos quatro minutos e sessenta segundos.” Fiz apenas uma lista de tempos. Depois disse à equipa: “Agora escolham vocês a minutagem.”
J: Assim também contava com a participação da equipa.
B: Sim. Para estas deixas, eu escrevia a forma como queria que o palco ficasse, que era basicamente muito escuro, mas diferente. A mesa de luz memorizava as primeiras que escrevi como “lista de deixas número 2” e depois eu improvisava durante o ensaio geral e isso seria registado como “lista de deixas número 1”. Estas duas eram ativadas simultaneamente ao longo do bailado. Isso significa que os bailarinos experienciavam a luz no ensaio geral e depois no espetáculo seria igual. O público era novo, pensaria que é improvisado, e eu fiz a companhia prometer que nos lugares seguintes onde fossem seria sempre diferente. Também dei ao eletricista de cada lado do palco uma lanterna e disse-lhes: “Iluminem tudo o que vos interessar.”
J: Eu tinha curiosidade sobre Variations V, uma peça que também apresentaram em Lisboa, na qual havia muita parafernália em cena, e onde a iluminação era feita com projetores de slides e de filme…
B: Isto foi em 1966, a ideia da peça é que a dança produzisse a música e o cenário fosse produzido pela dança. Havia varas de alumínio em suportes de madeira colocadas à volta do espaço e o Merce tinha coreografado à volta destes objetos que se ligavam a uma máquina que, com base em sinais elétricos de células theremin, podiam dizer quando um objeto físico estava mais perto ou mais longe.
J: Eu li que nem sempre funcionavam.
B: Isso é outra história. Os sinais iam para o fosso da orquestra onde estava a máquina e havia dez canais de som a tocarem diferentes tipos de coisas à volta do auditório. A ideia para a projeção era algo que agora é possível mas que não conseguíamos fazer naquela altura. O Merce queria câmaras a filmarem a dança com projeção simultânea nos ecrãs. O Stan VanDerBeek acabou por vir ao ensaio filmar partes da dança que foram depois projetadas em ecrãs colocados à volta do palco.
J: Que tipo de imagens eram projetadas?
B: Sempre apenas os bailarinos. Há uma história divertida sobre um filme que foi feito a partir de Variations V em Hamburgo. Eles filmaram, vimos o filme, e depois o Merce e o John levaram o realizador para um lado e disseram: “Isto está tudo muito bem, mas podiam tentar à nossa maneira uma vez?” Disseram-lhe: “Quando tem uma câmara frontal que apanha todo o espaço, há sempre o equipamento técnico, pessoas a despedaçarem uma planta com som ao vivo e há dança a decorrer. Para onde levaria os outros operadores de câmara? Mande-os filmarem qualquer coisa que lhes interessar. O que faz como diretor é decidir quando quer a câmara 1, escolher a minutagem, câmara 2, 3, 4 e assim por diante. Atire uma moeda ao ar. Depois, quando montar, selecione os planos dessa forma.” Foi surpreendentemente melhor.
J: A filósofa Maria Filomena Molder diz ter sido convidada por Carolyn Brown a passar os slides durante a apresentação de Variations V em Lisboa. Esses slides também iluminavam os bailarinos?
B: Acontecia por acaso. Se o projetor de slides estivesse no chão, quando eles o atravessassem interferiam com ele.
J: Para Orlando Worm essa foi umas das experiências mais marcantes. A ideia de que a iluminação era feita com projetores. No entanto, é curioso que, uma vez mais, era resultado de algo aleatório. Havia também uma outra peça para a qual fez a cenografia, e não apenas as luzes.
B: Ah, sim, chama-se Place. Foi a primeira peça que o Merce fez sem o Bob, por isso não sabia o que fazer. Fizemo-la no sul de França, na Gallery Fondation Maeght, em Saint-Paul de Vence. Há um momento no fundo da cena em que o Merce olha para bailarinos que se movem à sua frente, e ele perguntou-me: “Podes construir alguma coisa que, se eu fizer algo pequeno aqui, algo grande vai acontecer ali”? Fiz-lhe duas cúpulas geodésicas de plástico com triângulos colados para que fosse fácil de transportar, com um transformador e uma lâmpada especial que já não se consegue arranjar. Era um filamento muito pequeno e brilhante que fazia com que saísse um enorme salpico de luz se se deixasse um dos triângulos abertos. Era uma peça tão emotiva. Ele estava sozinho, começava no palco vazio, a dançar. Quando voltei a ver a peça mais tarde pensei: “Esta é a peça sobre o Bob já não estar lá.” Havia uns bailarinos que passavam e atiravam as mulheres, era como um centro comercial. Então decidi que as mulheres deviam parecer tomates no supermercado e usar vestidos de plástico. Não sabia o que fazer para a cenografia até estarmos a passear nos Champs-Élysées e, à porta do teatro, havia lixo para ser levado e havia uma série de caixas de fruta de madeira. Pensei: “É este o cenário.” Trouxemo-las para dentro do teatro, pendurámo-las em cordas no fundo da cena como uma vedação. Depois pus papel de jornal a esvoaçar para ser sempre diferente. Era em frente a essa “vedação” que o Merce arrastava as cúpulas.
J: Tem alguma memória das reações do público em Portugal? Eu li que, na primeira noite em Lisboa, houve um sobressalto no público com pessoas a aplaudirem e outras a patearem.
B: Era comum as pessoas odiarem as coisas do Merce. Quando atuaram pela primeira vez em Paris, em 1960, foram atirados ovos e tomates. Os vendedores de fruta ouviam falar de um mau espetáculo e apareciam lá para vender os podres no intervalo. Paris era boa nisso. A propósito, houve uma mulher que foi instrumental para toda a dança norte-americana e para o Bob Wilson na Europa. O nome dela era Bénédicte Pesle. Ela era prima da família Menil, uma família aristocrática francesa que se mudou para Houston antes da Segunda Guerra Mundial. Essa família é proprietária da patente do furo para cada poço de petróleo que é extraído. O nome da empresa é Schlumberger. A Bénédicte era uma prima que não tinha montes de dinheiro. Obviamente, tinha uma pensão da família, mas ficava sem fundos se levasse demasiadas companhias de dança a jantar. Ela tinha conhecido o Merce e o John em 1949 na sua primeira viagem a França. Ela dirigia uma galeria na margem esquerda do Sena, a Galeria Iolas, com artistas como Niki de Saint Phalle, Jean Tinguely e surrealistas…. O Merce e o John voltaram depois para o Festival d’Automne. Quando eu fui com eles, em 1965, chegámos a Paris uns dias antes e a Bénédicte fez com que fossemos convidados – o balletto americano, como eles diziam – para vermos o recém-renovado Théâtre de la Reine, em Versalhes. Fomos depois convidados para almoçar pelo homem encarregado da renovação de Versalhes. Durante o almoço, eu disse à Bénédicte: “Ele não faz a mínima ideia do tipo de arte que o Merce e o John fazem”, e ela disse: “Eu sei, querida, mas desta forma, quando ele for ver o espetáculo amanhã à noite, já não poderá criticar porque almoçou com vocês.” Ela preparou tudo para que ele não pudesse falar mal, e era isso que ela fazia por todos. Ela conseguiu que Einstein on the Beach fosse pago pelo governo francês e pelo governo italiano, em 1976. A Bénédicte conseguiu todas essas coisas, também para a Lucinda Childs, e abriu uma pequena agência chamada ArtService que representava essas companhias.
J: Voltando à vossa digressão em Portugal, Carolyn Brown escreveu que vocês se apresentaram sempre em salas de cinema e que tinham de esperar que os filmes acabassem até quase à hora do espetáculo antes de poderem ir para o palco.
B: Sim, era uma maluquice e a equipa que viajava antes de nós fazia o que podia. Nós só chegávamos, descarregávamos os figurinos e, provavelmente, eu fazia as deixas de luz à medida que o espetáculo ia avançando, porque não tínhamos tempo para fazer quaisquer gravações.
J: Então, a sua participação também era “ao vivo”?
B: Eu acho que uma diretora de cena é uma performer, uma desenhadora de luz nem tanto, mas eu era ambas.
J: Também fazia a direção de cena?
B: Não havia mais ninguém, era só eu. Eu digo sempre que aquilo a que chamamos burocracia metastiza-se como um cancro. Em 1979, estava a viver em Massachusetts, a companhia Cunningham estava em digressão por lá e dei uma festa em minha casa. Nessa altura, os bailarinos já eram todos novos e não me conheciam. Eu ouvi um deles perguntar: “Quem é aquela?” E responderam “Ah, ela costumava fazer o trabalho do Harry, da Sally…” Havia agora cinco ou seis empregados a fazer o que eu fazia sozinha. Até muito tarde nem tivemos um gestor, eles não tinham dinheiro para isso. A companhia do Merce foi a primeira nos EUA a ser denominada “sem fins lucrativos”, e isso porque as pessoas que gostavam do seu trabalho eram pessoas que gostavam de museus. Por cá, o teatro sempre foi um empreendimento comercial, enquanto aos museus as pessoas ricas podiam doar e obter uma dedução fiscal. As pessoas que gostavam do trabalho do Merce eram suficientemente poderosas para pressionarem o governo para que esses grupos fossem considerados sem fins lucrativos, e para que o governo também os pudesse apoiar. Até então não havia apoio do governo. A mulher que estava a ajudar era a Judith Blinken, e o filho dela é agora secretário de Estado. Era esse o tipo de pessoas que apoiavam o trabalho do Merce. Porque podia-se ir a um museu e olhar para uma obra e não esperar que contasse uma história.
J: Quando trabalhava com a companhia, tinha liberdade para montar as luzes como queria, da mesma forma que os compositores ou os artistas visuais? Às vezes sentia-se perdida?
B: O Merce nunca vinha olhar para as luzes. Sentir-se perdido é algo que acontece.
J: Porque era muito jovem na altura…
B: Eu era muito nova mas tinha trabalhado com o Tom Skelton. Tinha feito luz para espetáculos de dança na escola. Com o Tom Skelton e o mapa de luz que fazíamos no American Dance Festival, podíamos acomodar diferentes companhias. Eu sabia o que deveria ser um desenho de luz para dança, e era isso que eu fazia com base no equipamento disponível: luzes contra, luzes laterais, luzes picadas. Depois desenvolvia uma ideia para cada peça. Mas levei algum tempo a perceber o trabalho do Merce. A primeira coisa que fiz, o Merce disse que estava bem. Foi uma peça chamada Suite for Five.
J: Que também apresentaram em Lisboa. Supostamente, essa peça foi-se compondo ao longo dos anos. É uma colagem de solos e duetos que já tinham sido feitos.
B: Sim, eu oiço dizer isso agora, nunca ouvi isso quando lá estava. Durante algum tempo, muitos anos depois, nos anos 90, eu fui diretora artística do departamento de educação do Lincoln Center e nós enviámos o Suite for Five para as escolas. Eu estava na posição de ensinar os professores, eles vinham ver e diziam: “Então, como é que olhamos para isto?” Enquanto os bailarinos dançavam, eu falava com os professores. Dizia-lhes: “Procurem as linhas horizontais”, “reparem como ela avança e há um ritmo”, “agora olhem para ali”. Basicamente, só lhes dizia o que procurar. O Merce ter-me-ia matado, mas eu não estava a dar significado a nada. De repente, perceberam e até acharam engraçado. Claro que ficaram todos irritados com a música do John Cage. Eles tinham de tirar notas, e alguém escreveu, em julho: “Estava tanto calor e tínhamos de lidar com esta coisa de Cunningham e uma música pavorosa.” Eu estava a ir para casa, estava exausta, saí do autocarro, estava em frente ao meu apartamento, as janelas estavam todas abertas, toda a gente tinha ligado um posto de rádio ou um programa de televisão diferente e, de repente, apercebi-me, estava num John Cage.
J: É curioso porque, nos anos 1960, não havia muita dança em Portugal, mas a cena musical era forte. Acho que Cunningham só veio a Portugal graças à visibilidade de Cage. Na imprensa, os críticos falam pouco sobre a dança, que parecem gostar e admirar, mas muito sobre a música, sobre a qual apenas reclamam. Os elementos não combinam nem correspondem e todos odeiam que assim seja.
B: Nos anos 1940, o John escreveu: “Porque é que a nota seguinte deve ser escolhida pelas minhas emoções?”, “não há outra maneira de escolher a próxima nota?”
Entrevista transcrita e traduzida do original em inglês por Inês Ramos e José Gil, revista e editada por João dos Santos Martins.
Clarissa Sacchelli Wild
Wild é selvagem. Wild entretanto carrega uma única vogal e uma grafia curta quiçá mais gráfica para designers do que selvagem. Wild abre-se com um W de linhas inclinadas que também poderiam ser dois V’s que se tocam. Wild faz um som que circula na boca. Wild. Selvagem não. Selvagem começa com a letra S. S, a letra da serpente.
Em inglês há wild e savage. Não significam exatamente a mesma coisa, mas poderiam ser sinônimos. Wild tem raiz anglo-saxônica/germânica, e savage, latina/francesa. Selvagem tem também raiz latina. Liga-se a Silva que, nada por acaso, é um sobrenome bastante recorrente no Brasil. E em português dizemos selvagem para savage e wild. Wild e selvagem são palavras que carregam uma história relacionada a violentas narrativas de ordens civilizatórias disseminadas pelo colonialismo. E sendo o português do Brasil minha língua materna, ensinaram-me desde cedo que selvagem poderia se referir a uma qualquer ideia de não-civilizada, ou a práticas sexuais não normativas, ou ainda ser o contrário das coisas ordenadas.
Wild é uma peça de dança estreada em abril de 2022. Mas selvagem não é um tempo antes. Não se orienta para um lugar que imaginamos ter existido nem para onde voltar. Tampouco é uma terra desconhecida. Selvagem aponta para outra epistemologia, ou até uma antiepistemologia. E desconstruir o binário selvagem/civilizada-domesticada não representa esquecer a história associada à palavra, mas ao contrário, trata-se de pensar, nas palavras de Jack Halberstam, na “violência que expulsou [e expulsa] as coisas selvagens do mundo em primeiro lugar”. 1
Rewild é um termo em inglês assinalado para se referir a processos de restauração de ecossistemas considerados destruídos ou degradados. Rewild pode apresentar diferentes traduções para o português, como renaturalização, refaunação ou, ao pé da letra, tornar selvagem outra vez. Rewild, entretanto, arrisca exaltar um entendimento de que existem condições mais naturais que outras, e para as quais devemos retornar. Essa perspectiva carregaria o potencial de perpetuar a dicotomia humano-natureza ou natureza-cultura que, por sua vez, apontaria novamente para histórias de colonialismo e imperialismo que ordenaram espaços propondo essas duas instâncias como separadas a fim de sustentar programas políticos e ideológicos de dominação.
Bewilderment é uma outra palavra em inglês que carrega uma sensação de tornar-se selvagem.2 Be wild, seja selvagem. Tornar-se selvagem, no entanto, se difere de tornar (algo) selvagem outra vez. Bewilderment pode ser traduzido para o português como desnorteamento, desorientação. E, aqui, interessa-me o que surge desse emaranhado entre tornar-se selvagem e fazer perder o norte, não só enquanto direção, mas como lugar de epistemologias dominantes. Desnortear, afinal, implica desorientar. E com desorientar não me refiro ao contrário das coisas ordenadas, e sim a uma possibilidade de perturbar o modo como os corpos (humanos e mais que humanos) são ordenados. Há ordens que existem antes e para além de nós, e as orientações dos nossos corpos são organizadas, não apenas casuais. A percepção indica sempre uma direção, e o que a gente percebe depende da nossa orientação.
Orientar-se seja para cima ou para baixo, de pé ou deitado, modela não só perspectivas, como também modos de operar. Desorientar a retidão da linha vertical, imposta como apropriada aos corpos humanos, seguramente transformaria nossa percepção. Talvez longe da incorporação da verticalidade, a visão humana, por exemplo, perderia sua autoridade dentro da hierarquia dos sentidos das pessoas que veem. A orientação corporal apoiada num ângulo de 90° em relação ao solo aponta para a produção de uma verticalidade eficiente, possivelmente associada a crenças ao redor da racionalidade e até mesmo da capacidade de se enquadrar na categoria de humano. Em contrapartida, uma orientação paralela ao solo poderia evidenciar uma outra angularidade, esperada e também reiteradamente imposta a determinados corpos humanos, sobretudo corpos minorizados, racializados e/ou com mobilidade diversa.3
As danças de baile, oriundas da França do século XIV, constituem um pensamento de dança baseado em corpos absolutamente verticais que, nunca saídos de seus próprios eixos, serviram para estabelecer uma suposta civilidade vinculada a sistemas de controle e poder que disciplinavam como um corpo deveria se portar na vida cortês. Ao passo que experimentações localizadas ainda nesse recorte da chamada história oficial da dança, que desafiaram a verticalidade a partir de uma reorientação da relação dos corpos com a gravidade – como o contato improvisação iniciado por Steve Paxton ou o trabalho de Trisha Brown – abriram espaço para a construção de outras relações de equilíbrio e vulnerabilidade entre corpos.
Perturbar o binômio vertical-horizontal poderia nos apontar para momentos de desorientação capazes de balançar a estabilidade requerida ou imposta por essas direções, respectivamente. Nem todes nós ficamos de pé, porém, ficar de pé, para um corpo humano ereto, emergiu de um processo de inclinação. E se bebês, à medida que crescem, não ficassem de pé, mas inclinades? Ou ainda, e se na chamada Evolução os corpos humanos não tivessem atingido a verticalidade? Talvez não fôssemos humanos como nos reconhecemos hoje.
Inclinar poderia, afinal, ser uma tentativa de desorientar estruturas permanentes e autônomas. É certo, todavia, que há muitas formas de inclinação, e a inclinação carrega também a possibilidade de dominação e submissão (tal como o corpo da reverência subserviente, o “pecador”, ou o corpo que ataca ou é atacado). Importa também distinguir a inclinação como disposição a fazer algo e a inclinação como ação corporificada. Nem sempre as duas ocorrem em simultâneo e, o que me interessa aqui, em virtude da minha prática se localizar no campo da dança, é pensar a inclinação como orientação corporal, movimento e ação do corpo. Em todos os casos, diferente da retidão da postura vertical, a inclinação enfraquece nossa estabilidade, reconhecendo mais nossa interdependência que autonomia.
Wild, a peça de dança estreada em abril de 2022, não surgiu intitulada como Wild nem partiu da inclinação como premissa. Manifestou-se da vontade de pensar que: se a dança frequentemente se materializa com e para outras pessoas e, se geralmente aprendemos a dançar olhando ou dançando com outras pessoas, há um incontestável ato de transmissão na dança capaz de trazer pessoas em relação. Reconhecendo, no entanto, que nem toda dança garante uma relação de interdependência, considerei aproximar conceitos de cuidado também implicados com ideias ao redor dessa noção, para, assim, imaginar uma prática capaz de trazer pessoas (e mais que pessoas) em relação. Ao pensar através do cuidado, não interessa apontar para a questão moral de como cuidamos mais ou melhor, ou ainda entrar nos imperativos contemporâneos do chamado autocuidado, mas sim se perguntar o que acontece aos nossos corpos, e ao labor da dança, quando prestamos atenção a como cuidamos. Ao observar os corpos humanos que cuidam – tal como pessoas que acompanham crianças ou doentes, ou aquelas em atividade em uma horta – há, em geral, um deslocamento do centro de seus corpos em direção ao outro corpo com o qual se relacionam. É a partir dessa perspectiva que a inclinação, como orientação corporal, despontou como uma abordagem coreográfica, cujo interesse não esteve na tentativa de extinguir a verticalidade, mas sim desfazer o ponto de vista no qual a verticalidade, e suas relações com estabilidade, linearidade e autonomia, fazem sentido.
Imagine uma dança social em trio, uma espécie de dança de salão para ajuntamentos de pessoas (e talvez coisas) que se movem sempre fora de seus eixos, em suporte mútuo, sem colapsarem. Imagine que a relação entre os corpos (que dançam e/ou observam) nunca se dá de modo simétrico, mas espera por reciprocidade. A distância entre os corpos requer ser (re)negociada a cada movimento, e a proximidade não garante maior suporte. Antecipar um contato pode impedir que um corpo saia de seu eixo, ao passo que tardar pode deixá-lo cair. Ao fim, imagino que toda desorientação envolva contato. Um contato, porém, que não segura nada no lugar, mas que talvez fabrique corpo, que agora penso não como fisiologia ou anatomia, e sim como um tecido no qual não há separação entre o corporal e o social. Toda desorientação é também uma desorientação espacial e temporal.
A peça Selvagem (Wild) foi feita em companhia de Carolina Callegaro, Danielli Mendes, Laura Salerno, Luisa Puterman, Miguel Caldas e Renan Marcondes, e com a colaboração de Anne Kersting, Niklaus Bein e Thiago Granato.
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Joana Levi Rasante
PROCESSOS EM RASANTE
Quando iniciei o processo de criação de Rasante, em junho de 2020, na primeira residência da rede Terra Batida,[1] estava interessada em processos e contextos de exploração e extinção.
Da exploração, interessavam-me os processos imersivos, onde eu pudesse explorar-me-com-em contextos, e não de fora como quem investiga um objeto ou expropria recursos. Na prática, esse mergulho deu-se pelo exercício de uma escritura sensorial. A partir da experiência de percursos sensórios, que misturam movimentos, impressões, pensamentos e memórias, eu viria a criar uma série de mapas de sensações e palavras, que a seguir tornavam-se textos-poemas, os quais, por sua vez, voltariam a inspirar novos percursos e sensações. Sensoriografia, foi o nome que dei a esse modo de imergir em matérias.
Através desse processo de imersão, interessava-me perceber que contextos seriam determinantes à extinção, ao desaparecimento de uma espécie animal. Perguntava-me que condições tornavam impossível a continuidade de determinadas formas de vida. E logo vi-me diante de uma experiência que de fato me colocou dentro do problema.
Estávamos em Castro Verde e fomos apresentadas à realidade de algumas espécies de aves ameaçadas de extinção. A exploração dos solos, a produção intensiva de alimentos, a depauperação da terra, o desmatamento, a falta de diversidade vegetal… Razões dentre outras, tantas e conhecidas, que levam seres vivos a fugir, morrer, desaparecer.
Nesse contexto de desertificação, tivemos a chance de acompanhar de perto um projeto científico de apoio a espécies de aves ameaçadas. O projeto tinha como objetivo construir ninhos artificiais que permitiam a reprodução dos pássaros, mesmo em ambientes hostis. Porém, para atestar a necessidade da intervenção, o método exige o controle da comunidade em questão, ou seja, contar, pesar, medir, marcar, rastrear, selecionar, testar os indivíduos que, enquanto objetos de estudo, são submetidos compulsoriamente a todo e qualquer processo necessário ao propósito da pesquisa.
Foi a partir do testemunho dessa experiência que as imbricações, empíricas e subjetivas, entre o racionalismo científico e as relações coloniais e supremacistas tornaram-se a matéria viva onde eu iria imergir no processo de criação da performance. RASANTE nasce, assim, não como texto, mas como fala-corpo que quebra-a-cabeça num puzzle de questões e perspectivas interespécies que exigem deslocamentos e descamações.
RASANTE (excerto)
Joana Levi
Eu, eu
sou uma gaivota.
Mas quem diz isso
não sou eu
eu enquanto eu
não existo
porque eu é quem diz, eu é quem me chama
… aliás, eu é aquilo que não me chamam.
Então, quando eu digo, “eu sou uma gaivota”
não sou eu que digo
porque eu não sou
eu.
Enfim,
então, a gente podia terminar por aqui, né?
Porque se eu não sou eu
porque eu não se chama eu
porque “uma gaivota” é o que dizem que eu sou, sendo que
eu, dizem, não sou
porque eu não penso, dizem
e se eu não penso
eu não posso dizer
que eu sou uma gaivota
porque se eu não penso, eu não falo, então, não teria como dizer que eu sou uma gaivota
eu teria como… não dizer.
Porque esse eu não é eu
porque esse eu é alguém que diz
e que pensa e que fala
e portanto alguém que não diz eu
que não diz que pensa
e que portanto não diz
eu
não posso ser eu.
Mas eu sou uma gaivota, dizem
e dizem que eu não penso e que eu não falo, dizem.
Então, tudo que eu disser aqui não sou eu que tô dizendo, ok?
Mas em sendo uma gaivota, como dizem,
que não pensa e não fala, como dizem,
gaivota… gaivota…
Eu sou, posso ser, dizem,
bonita
posso não ser bonita
posso ser útil
ou posso ser inútil.
Então tem assim algumas coisas, dizem, que eu posso ser mesmo sem ser eu.
Se eu for bonita, se eu for encaixada aí,
eu posso ser admirada,
visualizada, observada,
posso ser paisagem.
Já se eu for útil
posso ser usada,
testada, provada,
experimentada, monitorada, torturada…
Mas, se eu não for nem bonita e nem útil,
eu provavelmente devo ser inútil
e, se eu for inútil,
significa que é indiferente que eu exista ou não.
E aí é que as coisas se complicam um pouco
porque, dizem também, que mesmo que eu seja considerada obviamente inútil
que eu não produza carros
que eu não produza pensamento
que eu não produza
ou que eu só produza o que se explica, dizem, como som
cantos
música
experimental
hermética
que ninguém entende muito bem pra quê aquilo.
Ainda assim,
mesmo que não sirva pra nada essa coisa
que exista ou não exista gaivota,
dizem, existiria uma cadeia alimentar
que faz com que
eu tenha uma função
que seria basicamente a função de comer e ser comida,
comer e ser comida, comer e ser comida, comer e ser comida………………..
E que se for quebrada essa cadeia alimentar…
Quer dizer, imagina, uma experiência:
tira a gaivota
tira a gaivota
que ela não serve pra nada
(ela suja, ela grita)
ficou feia, virou praga
então, tira a gaivota.
O problema é que aí fica um buraco,
quer dizer, se eu deixo de existir, mesmo sem ser EU
deixo de comer os peixes que eu comia
e a águia, que me comia deixa de me comer,
então, a águia fica passando fome
e o peixe, uuu, deixa de ser comido
se multiplica, se reproduz, começa a comer muito
come todos os moluscos, os moluscos, os moluscos, os moluscos
que ainda restam
nos recifes agonizantes
dos mares escaldados
come tudo que vê pela frente
acaba com a comida dos outros peixes que dividiam
com ele a mesma comida
mas ele é maior, cresce muito, se reproduz, a gaivota não come ele
ele…. ppppppppppp
vira praga.
Então a gaivota não existir é um problema, vira um problema a gaivota não existir.
Porque
o homem, dizem, né…
O Homem
diz:
existe uma cadeia alimentar
onde todos os vivos ou quase vivos, os mortos ou quase mortos
estão presos nessa cadeia
menos EU, diz:
porque EU estou no topo
da cadeia
quer dizer Ele, O Homem, o EU
diz:
você come esse, esse come aquele e EU, que sou EU,
posso comer todo o mundo.
Então, O Homem, esse EU que tá no topo e que comanda lá de cima quem pode comer quem,
diz mais, diz:
Eu sou imagem e semelhança de Deus (o barbudo, pai de todos os EUs)
e por isso, diz, quem quiser me comer, ou roubar a minha comida, infelizmente ou felizmente,
vai ter que ser perseguido, exilado, exterminado etc.
Enfim, essa explicação é bem confusa, porque ele diz: EU (a.k.a. “macho adulto branco no poder”), EU sou imagem e semelhança de Deus, o barbudo, paizão de todos os EUs.
Mas… não seria o próprio Deus barbudo a imagem e semelhança dEUle,
macho adulto branco no poder…?
Enfim… mas isso seria como perguntar quem nasceu primeiro o ovo ou a gaivota…
Então, se é como dizem,
eu posso ser bonita
posso não ser bonita
posso ser útil,
ou posso ser inútil.
O que quer dizer que:
eu posso ser paisagem
posso ser morta
posso ser ajudada ou posso ser abusada.
Ou seja, tem aqueles que querem
me olhar
Tem aqueles que querem
me matar
e tem aqueles que querem
me ajudar ou me usar.
Nada disso fui eu que pedi
porque
eu não penso
não falo, dizem,
então, não posso ter dito:
ei,
me mata
tô precisando de ajuda
me usa
olha pra mim
eu, provavelmente, não disse nada disso.
______
[1] Terra Batida é uma rede de pessoas, práticas e saberes em disputa com formas de violência ecológica e políticas de abandono, iniciada por Marta Lança e Rita Natálio.
Romain Beltrão Teule Doubler
Em 2020, ele está em residência em Lyon (França) e começa a trabalhar acerca de sua futura peça, Dobra. Na altura, o trabalho ainda se chama Doubler. Ele escreve um texto que iria desaparecer ao longo do processo de criação, um texto a partir do qual ele fez a seguinte proposta:
Uma pessoa num palco, diante de vocês.
Atrás da pessoa, a projeção de uma paisagem.
Fundo sonoro de espaço exterior, ouvem-se pássaros, vento, som de passos na relva.
A paisagem desaparece.
O som fica.
A pessoa que está diante de vocês pega o microfone:
(em francês) O som que acompanha a minha voz foi gravado ao longo de um passeio que fiz na ilha de Naoshima.
Este episódio começa nessa mesma ilha quando, numa noite, saindo do banho público, ele tenta me dar um folheto. Uma pessoa passa ao meu lado na rua e tenta me dar um folheto.
Eu digo que não com a mão, esta mão que às vezes coloco entre mim e outra pessoa para comunicar que não é o momento de entrar no meu espaço.
Digo não com a mão e continuo meu caminho. Mas ele grita.
Outra voz “HOW RUDE”.
Não é muito habitual que alguém grite assim quando recuso um folheto. Então paro, olho para ele para lhe pedir desculpa. O gajo parecia muito chocado com meu gesto. E eu digo: “Sorry, it was automatic, I didn’t mean to offend… what is it about?” ou algo assim.
Então ele me contou que estava a fazer uma exposição em sua casa, que eu podia visitar quando quisesse. Peguei o papel e no dia seguinte fui lá.
Não me lembro se tinha realmente vontade de ver o trabalho dele ou se pensei que seria bom me esforçar para conhecer pessoas. Eu tinha ido para o Japão, originalmente, para estar sozinho e chorar no topo de uma montanha. Mas talvez não tivesse viajado até o outro lado do mundo só para chorar sozinho. De qualquer maneira, eu ainda não havia encontrado o caminho que me levaria ao topo de uma montanha. E eu pensava “talvez ele é um pouco bicha”.
A casa dele, que ficava do outro lado da ilha, estava coberta do chão até ao teto – inclusive no chão e no teto – de pinturas que julguei um pouco angustiantes. E ele começou a falar sobre a casa e o trabalho. Depois do terramoto de 11 de março de 2011, ele decidiu que tinha de fazer arte. Não me lembro bem se houve algo existencial que motivou essa decisão, mas, de qualquer forma, suas pinturas me petrificaram de angústia.
A pessoa no palco coloca o microfone na mesa, o som de natureza para, ela olha para vocês e fala sem amplificação.
Antes de continuar, tenho de contar que a decisão de ir para o sul do Japão e não para o norte se deu apenas porque eu não queria passar perto de Fukushima. Quando cheguei na casa de minha amiga Delphine em Tóquio, ela me deu uma informação crucial relativa à central nuclear: seriam necessários mais de 40 anos de obras para resfriar os reatores em fusão e, se houvesse ali um forte terramoto, havia uma boa chance de:
“que o mundo seja destruído?”, eu perguntei,
“que o Japão seja apagado do mapa, pelo menos”, ela respondeu.
E como, exatamente uma semana antes de minha partida para Tóquio, uma bomba explodiu no aeroporto de Bruxelas, de onde eu devia partir,
e como, no ano anterior, eu estava a caminho de Paris quando o jornal Charlie Hebdo foi atacado,
e como eu estava num avião ao mesmo tempo que houve o acidente da Germanwings,
eu estava começando a sentir uma grave síndrome de perseguição. Ou seja, depois do relato da Delphine sobre Fukushima, decidi mudar meus planos pensando que seria mais sensato não ir para o norte do Japão, o que me obrigaria a passar ao lado da central – com a sorte que eu estava tendo naqueles idos, se passasse ao lado dela, com certeza haveria um terramoto.
A pessoa pega o microfone, o som de natureza recomeça, e fala:
Estou na exposição à frente do pintor, que parece mais jovem do que eu, e ele começa a falar muito sobre Fukushima. Olhando de novo para suas pinturas, concluí que ele devia estar mesmo muito traumatizado. Ele sente que um desastre pode acontecer a qualquer momento. Namazu, o peixe-gato gigante que vive sob o arquipélago do Japão, vai acordar e o resultado será muito pior do que o 11 de março de 2011.
Ele me contava isso tudo de maneira super distante. Quanto mais ele falava, pior eu me sentia. Saí da casa e não sei bem o que fiz em seguida, mas lembro que ele morava do lado norte da ilha… e eu não conseguia olhar para a linha do horizonte sem me perguntar se uma nuvem atômica ia chegar por ali.
Para me acalmar, dei uma grande volta de bicicleta, fui até a praia do sul da ilha para ver um horizonte diferente e fui beber um chá no café mais apaziguante possível. Lucie me ligou, ela estava preparando uma performance na qual se transforma em sereia. Fiquei mais calmo.
Tudo isso para dizer que não fui para o norte para evitar pensar em Fukushima e acabei me encontrando em uma ilha, muito pequena e obcecada pela possibilidade de uma aniquilação iminente.
Cinco dias depois, cheguei a Kagoshima, a metrópole mais austral do principal arquipélago do país. Pela primeira vez desde o início da minha viagem, me encontro em uma cidade termal. A água que alimenta os banhos públicos é vulcânica. Cheira a enxofre. À noite, vou ao banho público.
Um cão começa a ladrar ao longe. A pessoa que está diante de vocês ignora essa informação sonora e continua.
Estou muito entusiasmado, acho que a experiência vai ajudar a tratar a tosse de que tenho sofrido desde a minha chegada a Tóquio. A água está muito quente, eu não consigo entrar no banho de uma vez.
O cão continuou ladrando, o som se aproximou. A pessoa que está no palco com vocês pára de falar. Ao mesmo tempo, a paisagem reaparece dentro e, no meio dela, tem uma pessoa parada com dois cães à sua frente.
Na linha do horizonte adivinhamos a presença de outra pessoa, que grita : “Max! Ça suffit ! Dépêche-toi, tu reviens. Allez Max! Max allez! MAX!”
O primeiro cão vai embora, o segundo fica fixo por um instante, ladra mais uma vez e vai embora. A pessoa que está na colina retoma:
“Eu vou e volto entre o chuveiro frio e o banho quente. Finalmente, consigo imergir meu corpo inteiro. Minha pele queima. Sinto-me zonzo. Isso acontece com bastante frequência quando me esqueço de respirar. Me tranquilizo. Olho ao meu redor. A água está muito agitada. Devo ter entrado no banho como uma baleia, pensei. A água ainda se move muito.”
Enquanto fala, a pessoa da colina se aproxima. A sua voz é muito parecida com a voz da pessoa que está diante de vocês.
“A água no banho de água fria, que um minuto antes era lisa como um espelho, também está se movendo muito. E eu sou o último cliente ainda presente. Percebo que se trata de um terramoto e logo me lembro de todas as instruções que Delphine me deu sobre como agir. Mas não vejo mesa alguma, nenhum arco de porta à minha volta. Decido então que tenho que sair para a rua. Nu. Saio do banho, me viro, vou aos vestiários e lá encontro o penúltimo cliente que estava se vestindo, em silêncio. Aproximo-me dele e não sei se lhe perguntei alguma coisa ou se ele apenas viu minha cara preocupada, mas de qualquer forma ele sorriu para mim e disse “earthquake” enquanto fazia o sinal de OK com a mão. E ele riu.
OK… pensei que não devia ser muito sério, mas a terra estava ainda tremendo bastante.”
A pessoa que está na colina continua se aproximando. Parece-se muito com a pessoa que está diante de vocês.
Quando saí do banho, a empregada do banho público não me parecia tão serena. Ela me disse que o terramoto tinha sido de magnitude seis e que o epicentro foi em Kumamoto, a 150 km dali.
Enquanto a pessoa da paisagem continua falando, dando mais detalhes sobre o que ocorreu depois do terramoto, a pessoa que está no estúdio diante de vocês ficou parada, de pé, olhando alternadamente para vocês e para o vídeo filmado dois dias antes. Escrevendo este texto e criando esta situação, ele, enfim, eu, estava à procura do duplo. Eu tinha feito a mim mesmo a proposta de trabalhar sobre a figura do duplo, e tinha a intuição que, escrevendo este texto, esta memória de viagem, ia encontrar esse doppelgänger.
E pensava: “será que esse doppelgänger só existe enquanto eu fujo dele?’.
Olhei para o público, olhei para o texto – que dobrei e coloquei na minha mala.
Janaína Moraes Residenciar a Palavra Morada
Residenciar a palavra morada – prática em con/texto.
Janaína Moraes
Há três anos, antes de sair de casa, no Brasil, estava a sonhar com as palavras que deixaria para trás. Dias antes da viagem, era comum despertar no meio da noite para anotar palavras que me vinham anunciar a co(n)fusão entre aqui e ali, essa língua e aquela, o Atlântico e o Pacífico.
o des-conhecido habita meu corpo língua, num gosto agridoce das palavras não-ditas. tempos de des-encontro. zonas de tempo. fusos. horários. con-fusos:
lá vai ela, atravessando espaços.
lá vai ela no topo das coisas.
lá vai ela sob superfícies. lingu(a)gem)
superofícios, orifícios.
lá vai ela de corpo todo.
po(t)e)nte. Onde o passado e o futuro se encontram para presente.ar o tempo. Onde o tempo é brecha, presente. E sente. Uma brecha de tempo que ocupa espaços ao atravessar idiomas. Linguagem. Qual é a frente do tempo? Esse tempo fantasiado de espaços entre. Quais são as costas do tempo? E os oceanos? Pacífico. Em con-fusão, Pacifico. Saudade é o Atlântico. Nesse percursos entre “here and there”, tenho colecionado perguntas.
Sendo uma artista migrante em Aotearoa, a terra da longa nuvem branca, ou Nova Zelândia, tenho perguntado o que significa morar quando uma sensação de desorientação toma o primeiro plano? Ser latina, em outras instâncias do Sul Global, me faz tremer a ética e a direcionalidade do meu corpo brasileiro deslocado, e me leva a perguntar: o que é ser uma artista em residência? O que muda quando alguém, como artista, recebe o estado de em residência? O que é uma residência? E, além disso, quem é capaz de conceder tal cargo ou título à pessoa e ao contexto (situação)?
Penso-movo inspirada por arranjos-colagens de fragmentos da poetisa experimentalista Lisa Robertson, em Soft Architecture: a manifesto (1961)[1]: Dentro do imaginário das estruturas suaves (ou moles), estou olhando para tais como arquiteturas que “invertem a história equivocada da profundidade estrutural”, revelando que “o lugar é um acidente posando como política” e dentro de sua “transiência permanente” a noção de espaço pode conter “a densidade do temporário em uma birra de ação”. Eu poderia talvez pegar emprestado as noções de Robertson e pensar em mim como uma coreógrafa suave (ou mole) que, como “arquitetos suaves (ou moles) encaram o meio-termo”.
Estou perguntando: como alguém pode se tornar uma pessoa “des-locada” ao mudar localizações de morada e/ou movendo a localização da morada de suas práticas criativas? Como se pode, por meio do deslocamento, re-relacionar-se com a(s) própria(s) identidade(s) e sentidos de pertencimento (be-longing) através do reconhecimento da alteridade? Podem as residências ser uma forma criativa de manifestar o sentido de (des)localização? Pode a noção de localização ser vivenciada através da perspectiva do tempo, de situações temporais?
Porque residência (artística) é temporária e porque me coloca em relação de cruzamento com “outros”, minha prática visa manifestar, sustentar e fomentar convites para pairar na confusão
con-fusão, com fusão,
com junteza
nublando os sentidos do eu e do outro, aqui e ali.
Como exercitar modos para transformar “residência” em um verbo de ação? O que implicaria o ato de residir? Tenho, então, experimentado uma prática de “residenciar” – uma experimentação radical de habitar, através de deslocamentos e trans-orientações.
orientações que ocorrem em trânsito.
O território e os devaneios da vontade – residenciar Portugal
Em minha visita-passagem-pouso em Portugal fui apresentada a uma “morada” que é endereço, address, direção. Ouvi que “perceber” é entender, to understand. E everything, as coisas mesmo, são “cenas”. Habitar o estranho familiar dessas palavras me convida a um novo estado de atenção, uma dis-posição à performatividade das palavras.
deslocar
desarmar
desalinhar
posição entre palavra e corpo
Desorientar palavras é reorientar meu corpo em relação ao outro – corpo, território, movimento. Encontro “moradas” para re-pousar, pass-e-ar, comer, apanhar comboios e autocarros, encontrar um estranho a-vir-ser amigo. “Percebo” a viagem como prática em dança, elasticizando as noções de espaço e tempo do acontecimento coreográfico. Dilato meu olhar para a importância que cada pessoa-mundo dá a um acontecimento e me encanto com as “cenas” – a potência estética das coisas.
De algum modo, voltar-me para a viagem “sem planos” é praticar uma dobra na noção do viajante. Entre a corpa turista, que busca nos pontos suas bússolas diretivas, e a corpa forasteira, que, vinda “de fora”, cria fissuras enquanto é fissurada pelo espaço. Encontrar-se em deslumbre, encontrar-se com o tempo de um grupo com o qual acabo de me ajuntar – por convite, sorte, acaso ou parasitagem.
Em uma medida, tenho experimentado uma espécie de re-volta da viagem, uma viagem que volta-se para “o outro” como ponto-nada-fixo de orientação. Sou apresentada aos caminhos, tempos e vínculos de um/a outro/a à minha beira. Atraio-me pelas atrações provavelmente não turísticas e o desejo de permanecer em contra-movimento. Contra-mapeamento, ao encontro dos mapas afetivos, relacionais. Rota-desvio como prática-guia. Paço do Lumiar, Póvoa de Santarém, Bonfim, Vila dos Chãs.
Exercito uma prática – nem sempre fácil – de não ceder à pressão do turismo produtivo. Não sei bem para onde vou até que eu chegue lá. Esse movimento me faz também pensar sobre uma prática de não-produção artística que não se pre-ocupa em produzir, mais do que ocupa-se em “existir com” – os caminhos e seus desvios, as pessoas e suas narrativas, os encontros e seus movimentos. A “lei não dita” do “bom viajar” é desafiada para desordenar outros circuitos de afetos. Pegar autocarros, comboios e caronas para chegar no território da infância de um outro que ainda não conheço; passar dias inteiros dentro da casa de Leonardo; ou, ainda, jantar com Clara e sua família são atividades tão intensas quanto percorrer os palácios de Sintra.
Pensar essa viagem como “residência artística” é questionar o que muda quando decido nomear uma experiência de “residência”. Quando me refiro a residências artísticas não estou falando de oficinas, laboratórios ou processos criativos rotulados de forma extravagante. Reconheço que residências artísticas podem conter inúmeros formatos, atividades e configurações, no entanto, ao nomear uma situação de “residência artística”, algo se trans-forma – em formato e em modo de operação. Para mim, residências artísticas se dão como arranjos de comunidades temporárias para criação; experiências de deslocamento relacional de tempo e espaço em convivência; exercícios artísticos que deixam vestígios, tangíveis ou intangíveis – produtos e/ou processos em contextos de elaborações compartilhadas. O pesquisador em arte e brasileiro Marcos Moraes (2009) propõe que uma residência artística é um conjunto de condições e circunstâncias em que relações com espaço e tempo se desdobram em vias “conviviais, profissionais, educacionais, afetivas e sociais” (p. 10),[2] apontando para possibilidades de (re)configurações relacionais por meio do “morar com” – e, portanto, tomar tempo com, fazer espaço com. Uma condição de deslocamento como um fundamento próprio de tais experiências “em residência”. O deslocamento como uma capacidade de desencadear modos “outros” de percepção, maneiras de experimentar o “extra” do cotidiano (extra-ordinary). As residências artísticas, nesse sentido, seriam contextos de deslocamento como uma capacidade criativa que se dá pelo ato de “viver com”.
Be(com)ing a stranger to this place, I started to break down worlds.
Be(com)ing a stranger to this language, I started to break down words:
vivendo com
com vivendo
con-viver
con-vida
con con-vidar vidar
______
[1] Robertson, Lisa. (1961) Occasional Work and Seven Walks from the Office for Soft Architecture. Astoria: Clear Cut Press, 2003.
[2] Moraes, Marcos José Santos de. Residência artística : ambientes de formação, criação e difusão [doi:10.11606/T.16.2009.tde-29042010-093532]. São Paulo : Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2009. Tese de Doutorado em Projeto, Espaço e Cultura. [acesso 2022-08-10].
Eduardo Batata Leonor Lopes Ves Liberta Vitor Grilo Silva CHE
As bruxas deitam-se no chão para saberem se a terra ainda está viva, para saberem se ainda há calor no solo. As bruxas têm sensores térmicos nas costas, no fundo das costas.
As bruxas esfregam os seus cabelos no chão para saberem se elas próprias ainda estão vivas, espalham cinzas pelo ar para devolverem ao ar pedaços de seres que deixaram de existir.
Às vezes fantasio com o poder de perder agência sobre o meu corpo.
Às vezes gostava que o meu fluxo sanguíneo, o meu plasma, os meus leucócitos, os meus
complexos de Golgi, os meus processos celulares tivessem mais agência do que eu sobre o meu corpo. Ou melhor, que tivessem eles toda a agência sobre o meu corpo. Que eles fossem a totalidade do meu corpo. Que eu fosse só um corpo que ingere e excreta como as marés e as luas. Que eu não tivesse que ser sequestrada por um popper tão mau, um popper-placebo-nem-isso, que me preconiza e me mentaliza, como se de um egoísmo se tratasse. Um frasquinho de egoísmo. Hardware.
Quem me dera que a minha voz fosse sempre gutural, sempre só um jorro, espesso, granular.
Que quase não se percebesse. Ou que não houvesse nada para perceber. Que fosse só mais uma consequência da vibração dos meus órgãos.
Quem me dera sentir o meu próprio fígado, senti-lo assim nas minhas mãos, sentir o seu peso, aproximá-lo da minha boca, dos meus lábios, tocar o meu fígado com os meus lábios. Sentir a temperatura e a textura do meu fígado nos meus lábios. Perceber que os meus lábios ficaram manchados de sangue. Recolocar o meu fígado no meu corpo, sem ter a certeza se é aquele o seu exato lugar, começar a sentir coisas, vestir-me de bege e ir para um date, assim, com os lábios pintados.
Quero arrancar a minha própria cabeça, não a cabeça por completo mas a pele da cabeça. Meto os dedos entre uma pele e outra e arranco-a, dispo-a.
Tenho um arquivo de peles, das peles que mais gostei de arrancar, de peles que tenho a certeza de que não voltarei a arrancar.
Não guardo memórias ou pessoas mas sim a sua pele. Posso usá-la quando quiser, hoje lembrei-me de ti e procurei a tua pele no meu arquivo. Peguei nela e colei-a no meu crânio com óleo. Já não é o toque na tua pele, nem a lembrança da tua pele.
Não recupero um toque que já não tenho mas uso essa pele como adereço, produzo um contacto-pele, uma espécie qualquer de sexo. O fumo penetra entre a minha pele e a outra que em tempos foi tua, cria uma bolha/espaço, uma cápsula que encho de óleo e deixo escorrer para o chão, toco-lhe com o pé e deixo-me cair.
Sonhei que a minha pele era anti-inflamável e que nunca arderia, assim poderia pegar fogo ao interior do meu corpo mas a minha pele, o meu exterior, manter-se-ia intacto. Peguei num molho de sálvia seca, atada com um fio e com o isqueiro peguei-lhe fogo. Abri a boca e engoli-a. O fogo em contacto com as minhas cordas vocais inflamou e serviu de rastilho para o restante interior do meu corpo.
Ardia por dentro, deixei de ter terminações nervosas, era só pele e carvão. Tecido e cinzas.
Um gel que surge por baixo da minha pele mistura-se com o carvão e cria uma tinta preta, uma espécie de petróleo.
Esse visco preto invade o chão e espalha-se por todo o espaço, estou numa casa sozinha.
O visco preto arrefece toda a superfície, torna-a gélida. Apenas os metais ficam quentes, sobreaquecem. Uso as maçanetas de metal, das portas, para aquecer as palmas das mãos, assim posso tocar na pele gélida que serve apenas de invólucro de um ex-corpo, de ex-entranhas. Uso os restos do fogo que me queimou para aquecer a pele que me resta.
Pensava que estava sozinha mas vejo outro corpo naquela sala, é um corpo nu, com um buraco na barriga, um buraco gigante, de onde saem chamas azuis, uma espécie de fogo-fátuo que flutua nos fluidos daquela barriga. Uma labareda ténue, uma combustão de metano. Uma chama como memória de um pântano onde se decompõem animais. Uma espécie de labareda-lama que queima e deixa tudo pegajoso. Uma chama que cresce e que quando toca noutros corpos se transforma em saliva.
Pego nas cinzas que guardei ao longo dos anos e que trago comigo. Espalho-as uniformemente no chão.
Com os pés colados ao chão dobro o meu corpo e faço baloiçar a cabeça entre os joelhos e os pés. Tremo e sinto a tinta das tatuagens que tenho nos braços a descolar-se da pele e a entrar no fluxo sanguíneo, sinto a tinta descer pelas veias até à ponta dos dedos e começar a sair pelas unhas. A tinta escorre e encontra a cinza que espalhei no chão.
A tinta em contacto com a cinza produz uma substância estranha, que não sei descrever, mas produz um gás intenso e ácido que me faz arder os olhos como nenhuma outra substância. Cria uma dor aguda e interna. Esse gás também me faz salivar sem parar, a saliva escorre da minha boca e cola-se à cinza e à tinta, faz derretê-las e forma uma espécie de lava quente. Essa lava sobe-me até aos tornozelos e prende-me ao chão.
Observo, com os olhos a arder, esta lava que me rodeia e que ocupa cada vez mais espaço.
Fixo o ponto mais distante que consigo observar e vejo uma pequena chama; lentamente, essa chama ganha espaço e começa a contagiar toda a lava.
O processo é lento, sei que pode demorar horas ou dias, mas sonho com o momento em que essa chama toque nos meus pés e me faça entrar em combustão, me faça explodir, que cada pedaço do meu corpo se funda com partes desta lava.
Quero que essa lava solidifique e crie rochas, que essas rochas tenham pedaços de mim e fiquem ali para sempre.
Que sejam habitadas por pequenos animais, por plantas e fungos.
Que um dia volte a acontecer o mesmo e que mais corpos se juntem a estas rochas.
O texto aqui publicado é um excerto do texto da performance CHE das autoras, apresentada na Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, em junho de 2022.
Amit Noy Diário como dança
6.4.22
O objetivo disto não é ser bom, nem é encontrar uma coisa para usar, mas é uma tentativa de investigar o espectro das minhas experiências sencientes.
Vou esforçar-me para não ser ardiloso (impossível) ou, pelo menos, evitar purgar o que considero inadequado para a caixinha da arte.
Hoje estava a nadar bruços contra um vento forte e quando emergi para respirar vi uma alforreca da cor do esperma ou das nuvens, mesmo à frente da minha cara. Ela pulsava devagar na água e quase não se mexia, estava ocupada a viver sem cérebro e sem vontades, sem fazer mais nada senão andar à deriva.
Decidi começar a escrever durante a leitura da biografia de Kathy Acker, escrita por CK [Chris Kraus]. Há tanto tempo que não danço que preciso de encontrar uma direção na forma de prestar atenção à minha experiência. Para que tudo não seja apenas um círculo em que me afogo. Preciso de uma maneira de afunilar a minha experiência numa direção, ou em muitas direções, para fora e para dentro, mas preciso do processo cinético de deslocação e subsequente (re)localização da minha experiência. A escrita é o funil. Se não for assim, torna-se ao mesmo tempo ou muito pesada ou nada de nada, quase inconsequente, refiro-me à vida.
Parece estranho fazer luto a masturbar-me. Mas é o que tenho feito há quase uma semana.
9.4.22
Israel: matei uma aranha, preocupa-me estar a ficar complacente com sistemas de violência, aqui sinto-me doente, sinto uma inquietude no corpo, mas ao mesmo tempo uma grande calma porque todas as pedras deste chão estão impregnadas de história da luta pela identidade, etc. Pergunto-me se matar o mito do neutro, de uma vez por todas, será uma coisa boa.
Israel: pergunto-me como é que se descansa em Israel, as florestas para passear cães parecem perigosas, os portões do kibutz fecham-se ao chegar o sabat e eu entro em pânico. Há lixo em todo o lado.
Ando por aí com o meu pequeno chapéu queer e sinto-me um alvo em movimento.
Israel: ninguém entende como tu a glória das especiarias: existe uma vila chamada Cominhos e ouvi dizer que é um sítio agradável.
Israel: homens a usarem calções num funeral e aqui quando as pessoas te abraçam sei que é sentido.
10.4.22
Masturbo-me e choro masturbo-me e choro masturbo-me e choro. Fui dar um passeio fora dos portões do kibutz, a lama cobria-me os dedos mindinhos dos pés, passei por uma planta pontiaguda e chorei. Mel na queimadura, faço papas de aveia e café. Não sei como resolver esta absurda e tortuosa relação com a Dança – o fazer real deixa sempre a minha imaginação desapontada, fica aquém do êxtase sobre o qual fantasiei. É difícil dançar e fazer com que valha a pena. Tenho dúvidas sobre o futuro e sobre o vazio profissional. Não, não é o vazio, é a falta: nada para fazer e nenhuma razão para me levantar da cama, de manhã, tirando o amor familiar.
20.4.22
Sinto muita falta do meu avô. A sua morte ainda parece um desastre horrível e cómico; uma piada de muito mau gosto ou uma mentira que tomou proporções épicas. Este sentimento vazio entra em loop quando se mistura com uma tristeza profunda e insondável. Não sei o que dizer. Existe muito pouco ar respirável na casa mortuária, mantêm as luzes acesas o dia inteiro e a luz do sol é enfraquecida pelas persianas, não parece conseguir entrar aqui como noutros sítios. Penso no meu avô em decomposição na sua caixa de madeira, no subúrbio onde viveu toda a sua vida e sinto… uma miríade de coisas, mas, antes de mais, uma incredulidade muda. A minha avó, já a planear a sua morte, quer escrever o nome dela no túmulo, ao lado do do meu avô, mas o meu pai conseguiu convencê-la de que era uma má ideia.
Entretanto sinto o meu corpo podre e cheio de vergonha. Sentir isto todos os dias é muito cansativo.
Estou a chegar a um ponto em que amo e aceito o meu corpo tal como é – sem sentir vergonha das minhas partes endurecidas, das partes moles, dos “excessos” – parece que estou a tentar ganhar uma guerra. Temo as consequências de não ganhar esta guerra. Tenho medo de perder continuamente para o resto da vida. Recuso-me a ser enterrado infeliz.
22.4.22
Quero chupar tantos caralhos que ver um homem bonito esparramado, com as virilhas expostas ao ar livre e convidativo, me deixa tão excitado como a visão do meu leite de soja pela manhã.
Lembro-me de me masturbar três ou quatro vezes durante um voo intercontinental. Tinha treze anos e tinha secretamente feito capturas de ecrã das fotografias de perfil do Facebook de alguns dos meus colegas de turma.
O que é intoxicante é a promessa de mais. A promessa de outra, de novo, de mais uma vez. Quanto de uma sentida ligação com alguém não é simplesmente a minha imaginação fértil, a minha vontade de fantasiar, a minha tendência para a ilusão?
Embarco no avião e sinto a gordura da minha barriga como uma odiosa úlcera sifilítica ou sinto um perigoso alto na garganta possivelmente cancerígeno. Toco no espaço entre o estômago e as costelas dúzias de vezes por dia, exortando-o a baixar, como que a implodir sozinho. Faço registos mentais de calorias da mesma forma que algumas pessoas tocam no seu cabelo, de forma automática. Sinto-me exausto, mas parar não é uma opção.
28.5.22
Estou aqui porque não estive durante um bom tempo. Estou a pensar em como quero ser artista, na arte que quero fazer. Tenho que me lembrar de acreditar no dia a dia, no fazer, na luta do momento presente. No suor. Fazer qualquer coisa, pegar numa ideia, sendo que uma ideia é como uma toalha molhada que tenho de torcer e torcer para lhe tirar a água. A poça que se forma no chão é a arte; quanto mais água tiver, mais difícil for de conter ou explicar (i.e. descartar) melhor. Mas como fazer isso com gentileza de forma a que todos se sintam bem? Se não estou a melhorar a vida das pessoas com quem trabalho, e a minha, então não quero continuar a trabalhar.
Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.
6
- [biologia, medicina] Tecido conjuntivo que constitui a camada profunda das mucosas, abaixo do epitélio e da membrana basal.
- [química] Elemento químico metálico branco, avermelhado (símbolo: Co), de número atómico 27, de massa atómica 58,93, duro e quebradiço, que funde a cerca de 1.490ºC e de densidade 8,8.
- [verbo transitivo]:
Cingir de coroa a cabeça de; adornar; terminar; rematar; satisfazer completamente. -
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- Shakespeare
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João dos Santos Martins Rotundamente
Num dos últimos textos que publicou, “Desmoronando juntos uma e outra vez”, em Abril de 2020, o artista holandês Jan Ritsema criticava o calabouço de comentários sobre o devir da sociedade no pós-pandemia e defendia que só melhores ferramentas poderiam contribuir para um mundo melhor. Dava como exemplo a rotunda, uma tecnologia que exige uma aprendizagem e negociação colectivas para funcionar. Ao invés de semáforos, que endereçam uma ordem a cumprir, a rotunda obriga a cooperar num espaço com muito poucas regras: “Não porque foi oferecida mais liberdade de operação, mas sim um instrumento, uma ferramenta inteligente, fácil de operar por todos juntos.” A grande vantagem é além de tudo não haver “necessidade de policiamento”. Nesse texto deixava em aberto se realmente “conseguimos imaginar, desenhar estruturas e construir mais ferramentas como esta”.
Jan Ritsema deixou-nos em Outubro de 2021 e não partiu sem deixar uma “ferramenta”: o Performing Arts Forum (PAF). À primeira vista, o PAF parecia uma residência artística convencional. Excepto que em vez de ser um espaço gratuito que atribui bolsas em regime exclusivo para se trabalhar, tinha de se pagar para trabalhar. Era um valor mínimo mas, ainda assim, eu achava que fazer arte deveria ser, pelo menos, custo zero. Entendi depois que o PAF era uma espécie de cooperativa financiada pelos próprios residentes que contribuíam para manterem o espaço em funcionamento e usufruírem dele. Havia uma razão para isso. Não era por não conseguirem financiamento. Este modelo permitia não apenas a sustentabilidade a uma estrutura autogerida, mas também garantia uma autonomia artística e independência burocrática (livre de políticas culturais e de mecenas dúbios). É certo que esta dinâmica resulta de um privilégio. Aliás, o espaço existe porque foi adquirido por Jan Ritsema com os seus próprios meios. Mas, contrariamente a outros, o PAF tornou-se lugar para uma organização colectiva, sem funcionários e, portanto, totalmente dependente dos seus residentes, mais ou menos regulares. No seu site, pode ler-se que o PAF é um lugar para pessoas que “podem monitorizar a sua própria produção artística e de conhecimento não respondendo apenas às oportunidades oferecidas pelo mercado institucional”. Nesse espírito, os residentes não são escolhidos, mas podem reservar a sua estadia até ao limite da lotação. De quando em vez, o PAF organiza encontros que combinam uma fértil interação entre a cena experimental das artes performativas e da teoria, combinando pensamento e performance radicais, no seio de uma organização imperceptivelmente radical. Da personalidade de Ritsema, agente cúmplice da experimentação que criou condições para esta colectividade emergir, recordo um inconformismo generalizado com a linearidade e o consenso, levando cada situação ao seu limite, muitas vezes, indiferente ao politicamente correcto, exercendo uma liberdade intelectual insuportável a muitos. Lembro-me que quando programei o curso PACAP #4, no Forum Dança, em 2019, Ritsema escreveu-me a dizer que deveria ter atenção com o prevalecimento de estruturas hierárquicas e piramidais no ensino. Não se referiu a nada em particular mas deixou as suas palavras à consideração.
Enquanto escrevo isto não consigo deixar de pensar que, ao fecho desta edição, a artista e programadora Patrícia Portela foi afastada do cargo de directora artística do Teatro Viriato pela associação cultural que o gere, após menos de dois anos na função, e durante o período de proliferação da Covid-19. Sendo as razões do afastamento desconhecidas publicamente, e havendo recusas de esclarecimento à própria imprensa, resta comentar que a falta de transparência neste procedimento é altamente danosa para a comunidade e para a confiança nas instituições culturais. Desde há muito envolto em disputas de poder, seja internas, seja pela própria Câmara Municipal, proprietária do edifício e sua principal financiadora, a situação do Teatro Viriato parece espelhar um sintoma preocupante na ocupação de cargos de decisão cultural um pouco por todo o país: uma dinâmica pontuada entre tronos e reinados, por um lado, lugares indisputáveis e totalmente alienados do espírito democrático, e, por outro, uma dança de cadeiras onde o mínimo mal-estar resulta num despejo, numa confusão e num desrespeito encobertos por obscurantismo. Entre nomeações directas, concursos enviesados, conflitos de interesse e alternâncias de pendor político, parece que a cultura e as artes reificam dinâmicas adversas ao espírito livre, aberto e colectivo em que escolhemos existir. Melhores tecnologias como a rotunda poderiam ajudar a fortalecer esse espírito e a renovar o modo de funcionamento das organizações culturais, privilegiando e cultivando a negociação do dissenso, da diferença e do desacordo.
Isabel Cordovil Fim
Tenho-me lembrado muitas vezes de um livro do historiador de arte holandês Carel Blotkamp no qual se explora o conceito de “obra de arte final”[1] literalmente: o último trabalho de um artista antes de parar de produzir (causa mais comum: a morte). Blotkamp traça uma ligação entre a percepção de um trabalho realizado no fim da vida e a expectativa/fenómeno das últimas palavras, apócrifas ou não, e como às vezes estas pretendem ser um resumo da sua visão da vida, da arte ou de ambas, e como algumas se tornaram quase proverbiais e as suas origens se confundem entre mito e mito-ficção (exemplo: Até tu, Brutus?[2]). Não deixa de ser romântica a ideia de que o fim desvenda algo, como acontece em Citizen Kane com o famoso sussurro da palavra rosebud. Cruzei-me com este livro em pesquisas para a minha tese de mestrado, a que chamei Performing Absence (A Performance da Ausência) enquanto vivia aos pés dos Alpes. Estava muito interessada em personagens cujo desaparecimento (momentâneo ou permanente) foi ferramenta para a criação de uma mitologia do próprio: em Jesus Cristo (ascendido aos céus) interessava-me a condição de que se o corpo fosse descoberto não poderia ter havido uma milagrosa ascensão; em Bas Jan Ader, que em 1975 desapareceu no mar enquanto concluía o projecto In Search of the Miraculous – uma travessia transatlântica a solo num pequeno veleiro de recreio –, era a questão de se haveria ou não intenção no que poderia ser um gesto assumidamente performativo ou uma experiência estética; em D. Sebastião era a cenografia de um trono suspenso e o nevoeiro que o invocava; em Osama bin Laden, e nos seus quase dez anos como “o homem mais procurado pelo mundo ocidental”, era toda a loucura em volta de o encontrar com vida para ter o poder de a retirar;…
Em todos estes casos pensei nesse desaparecimento como uma acção final – que ousei ver como arte –, o próprio desaparecimento ser tão parte da narrativa de uma vida – que ousei ver como arte também – como qualquer outro gesto ou movimento anterior. Andei muito tempo a pensar no que é que eu faria como o meu trabalho final se fosse olhar para a minha vida e o meu trabalho como um linha narrativa pré-desenhada, lembrando-me da série de normas e engenhos narrativos que Edgar Allan Poe escreve no seu ensaio A Filosofia da Composição[3], por exemplo, que se deve calcular o rumo de uma narrativa em direcção à sua última linha e tom final com que impactará o leitor/espectador.
Numa tarde de Outono do ano passado, enquanto arrumava o atelier (o rochedo de Prometeu que me calhou) e me perguntava sobre o que é que um ser alienígena ou um meu sobrinho-tetraneto pensaria ao encontrar os meus objectos – mais especificamente as pedras que tenho guardadas a conviver no chão de onde trabalho –, cheguei a uma evidência sobre a minha prática artística: assumindo que a própria vida é performativa – desde o carregar das funções do corpo para cá e para lá até à manutenção das relações, dos ciclos, dos dias –, o meu corpo de trabalho pode ser visto como uma documentação expansiva desse algo de longa duração. Pensando assim, se o meu trabalho é a documentação desse movimento que é estar vivo e se esse movimento à semelhança de tantos outros se baseia na repetição, talvez pudesse abandonar a preocupação com o que é a estrutura narrativa do meu trabalho, que apenas pretende explorar detalhadamente a arena-palco a que se restringe: o tempo que cá tenho. E neste tempo até agora tenho tentado documentar, com uma relação passional com a exactitude e com a disciplina de alguém encarcerado que risca os dias na parede: quanto pesava o meu corpo no dia em que H. morreu? Quanto tempo demora um cubo de gelo a derreter na minha mão? Quantas epifanias, semimilagres, quebras de coração tremendas ou raptos de esperança súbitos conseguem caber num só dia? Quantas vezes atravessou o amor o meu espaço, a minha cama, o meu corpo? E talvez neste mar de dados inúteis se encontre um corpo e um tempo que se relacionaram profundamente um com o outro até se esgotarem.
ERRATA (para um futuro): onde se lê que morri deve acrescentar-se que, antes disso, vivi três dias no estômago de uma baleia, como Jonas, mas nunca cedi às chantagens de nenhum deus; que a minha casa tinha trezentos e sessenta e cinco quartos; que as minhas últimas palavras foram, muito calmamente, com os braços muito abertos e um único foco de luz a atravessar-me como o meio-dia: cinco, quatro, três, dois, um.
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[1] Carel Blotkamp, The End: Artists’ Late and Last Works (Londres: Reaktion Books, 2019).
[2] William Shakespeare, Júlio César (Lisboa: Cotovia, 2018).
[3] Edgar Allan Poe, A Filosofia da Composição (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2011).
Renan Marcondes Da Importância de Falar Mal
A tecnologia da arte, ao contrário, não é uma tecnologia de melhoria e substituição, mas de conservação e restauração – uma tecnologia que traz os vestígios do passado para o presente e que leva coisas do presente para o futuro.[1]
Boris Groys
O que é falar mal e por que isso importa no campo das artes? Antes de tudo, é preciso silenciar após a palavra “mal” e assumir um ponto final, ou no máximo arriscar uma interrogação ou exclamação. Falar mal. Falar mal! Falar mal? Não há aqui espaço para reticências e muito menos para o adjunto “de”: falar mal de alguém, falar mal de coisas. “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim”, diz a expressão popular transformada em música por Chorão em 2005 e novamente por MC Melody dez anos depois em seu hit de YouTube.
Não quero pensar sobre esse falar mal de algo. Isso as redes sociais já nos obrigam a fazer o tempo todo. É rápido, certeiro como um tiro e, se não mata de fato, pode deixar a pessoa desaparecida desse segundo mundo por dias e meses. Falar mal “de”, hoje, pode ser letal. Não. Quero pensar apenas sobre falar mal: não falar direito, não argumentar bem, não se posicionar corretamente, não convencer ninguém, não estar do lado certo, não ter uma frase de efeito e altamente circulável. Quero pensar sobre isso porque sinto esse ato tão raro quanto urgente nos dias de hoje.
Pego-me pensando sobre isso porque, no dia 15 de setembro de 2021, a 34ª Bienal de São Paulo, então em curso, publicou no Instagram uma foto da performance de Eleonora Fabião (Rio de Janeiro, 1968) comissionada para a mostra. nós aqui, entre o céu e a terra é um programa performativo feito pela artista e por colaboradores no qual 27 cadeiras (mesmo número de estados do Brasil mais o Distrito Federal)[2] de diversas instituições públicas do entorno do Parque Ibirapuera são carregadas com varas de bambu pela cidade até o prédio da Bienal, formando uma espécie de fórum sem corpos, unindo simbolicamente essas diversas instituições no pavilhão. Após a Bienal, as cadeiras são trocadas pela artista: uma escola pode receber uma cadeira de um hospital, assim como um museu pode abrigar uma cadeira de biblioteca municipal.
Sob a foto divulgada nas redes sociais, na qual quatro pessoas carregam uma cadeira pela cidade, a clássica enxurrada de ressentimento. Para além do clássico “isso não é arte”, alguns comentários falavam que o problema da performance era que ela “precisava de legenda”, que não fazia “nenhum sentido”; outras pessoas perguntavam, nos comentários, se “alguém explica”. Todas as críticas ou considerações, mais ou menos violentas, pareciam apontar para esse problema: acham que a obra não fala nada para eles. Ou, se fala, fala mal (se falasse mal de algo, tudo bem, sem problemas). Mas a obra parece não falar bem ou direito.
Para pensar um pouco mais sobre isso, interessa-me um desses comentários, segundo o qual na arte de hoje “tudo o que aparece são narradores narrando suas novas ideologias patéticas”. Talvez essa pessoa fale sobre a relação entre obra e descrição ou legenda, tão central desde a arte conceitual dos anos 1970.[3] A questão é que a performance em discussão é justamente uma obra fora do campo da ideologia (seja ela patética ou não). A ideologia só pode ser reconhecida nas obras que falam bem, transmitindo mensagens — e não há distinção de valor aqui, pois mesmo obras poderosas como as de Alfredo Jaar são bastante ideológicas.[4] A obra que não precisa de legenda, que faz sentido, cuja mensagem é clara, é a obra ideológica por excelência.
O filósofo Boris Groys apresenta bem essa distinção. Para o autor, há duas leituras possíveis do papel da arte em relação ao público.[5] De um lado, temos a arte como parte da superestrutura e, do outro, como parte da base material. A primeira, que parece embasar esses comentários de Instagram, acredita que a arte mudaria o mundo capturando a imaginação e mudando a consciência das pessoas. Nessa leitura, a arte precisaria ser um tipo de comunicação para poder transmitir uma mensagem com sucesso para quem a vê. Ou seja, não é a arte que muda o mundo, mas é a mensagem passada com sucesso que permitirá que a pessoa que a viu mude o mundo, reveja sua ética, seus posicionamentos. Para isso, artista e público devem falar a mesma língua, formando uma comunidade dos que falam igual.
O problema é que esse viés idealista tira da arte qualquer possibilidade de radicalização, projeção ou inovação do campo. Se ela precisa comunicar, se deve falar bem, ela está no campo do reconhecível, da convenção. Apesar de, historicamente, podermos notar bons usos de estratégias de reconhecimento como ferramenta crítica no campo da arte contemporânea (inclusive com a arte conceitual tendo abusado dessa estratégia), parece-me conservador buscar apenas produzir reconhecimento para quem vê em relação ao que é visto. Conservadorismo que se agrava em um tempo como o nosso, no qual somos direcionados a ver e ouvir apenas a parcela do mundo que mais se parece conosco.
No lugar desse idealismo citado pelo autor, outro caminho seria a transformação direta no mundo material — à qual sou muito mais afeito, justamente por produzir e pesquisar em performance. Aqui, a arte deixa de ser entendida como “produção de mensagens” e se torna “produção de coisas”, mudando diretamente o mundo no qual as pessoas vivem (mudança desvinculada de mensagem, ou seja, não melhorista). A transformação, portanto, não viria da mensagem, mas sim da própria reconfiguração do ambiente no qual as pessoas se encontram. Groys cita casos vanguardistas como a Bauhaus para explicar que eles “compartilhavam um mundo com seu público — mas não uma linguagem”.[6] Porém, creio que a frase se aplica muito bem ao que vemos na performance de Fabião. O que se partilha nesse trabalho é da ordem da concretude do deslocamento, da remoção e do reposicionamento de coisas: cadeiras, que acomodam o corpo para pensar, dormir, comer, descansar. Elas, cadeiras públicas, carregadas sem rei ou rainha sobre elas, vazias, sendo resguardadas por um tempo-espaço no campo da arte para depois serem devolvidas, mas em outros lugares. Tudo muda, mesmo que na aparência tudo permaneça igual. Em vez de tentar mudar a alma, mudar o mundo naquilo que ele tem de mais banal.
Nesse caso, poderoso justamente por desconfiar da ideia de que a arte (e, portanto, também os artistas) teria alguma mensagem para passar, a mudança de sensibilidade das pessoas deixa de ser parte de um projeto oriundo de um indivíduo ou grupo excepcional que vê além e passa a ser algo da ordem do descontrole e do imprevisto: pode gerar uma feliz utopia, pode perder o rumo completamente (alô, 2013?)[7] e pode dar em lugar nenhum. Não há o direcionamento da palavra de ordem ou da palestra. Ou, como Fabião afirma sobre essa obra: “O que de fato acontecerá dependerá das circunstâncias. Ou melhor, se fará por meio delas, pois as circunstâncias são matéria fundamental da ação.”[8]
Afinal, a performance e a fala são amigas próximas. Não há uma sem a outra. Na Teoria dos Atos de Fala, proposta por John Austin[9], o verbo performativo só o é porque, mais do que transmitir uma mensagem, efetiva uma mudança concreta no mundo. Para quem estuda o tema, alguns exemplos clássicos são o padre que “declara” como marido e mulher um casal heterossexual, ou o prefeito que “nomeia” um barco antes que este parta. Eles mostram não apenas essa proximidade entre falar e fazer, mas também indicam que essa fala está necessariamente vinculada à Lei. E se toda fala está do lado da Lei, como também afirma Barthes em O rumor da língua,[10] a clareza da mensagem é apenas uma ferramenta a seu serviço.
Portanto, falar mal é um dos campos possíveis da performance, principalmente dessa veia recente chamada arte da performance. Essa linguagem artística, surgida nos anos 1960 e focada no corpo, partilha com o ato de fala performativo esse desejo e compromisso de mudar o mundo diretamente, fugindo do campo da representação (no qual residem a explicação e a legenda), mas também se distancia do performativo ao desconfiar da sua força de Lei (onde residem a fala clara e o sentido). Aproximar-se de produções como a de Fabião nos ajuda a perceber que, se o ato de fala é central para produzir mundos e se a clareza da fala é espaço da Lei, para que se produza um mundo completamente outro é preciso falar mal segundo os parâmetros do mundo de antes. Deixemos as mensagens para os apresentadores de TV e não duvidemos do poder sensível da desordem e do silêncio porque, se a arte tem algum poder que lhe é específico, é o de falar mal.
Ah, e para os que escreveram os comentários citados, basta lembrar da frase de Antoni Muntadas impressa clara e grande como um banner: “Atenção: percepção requer envolvimento.”[11]
_________
[1] Groys, Boris. “The truth of art”. E-flux Journal n° 71, março de 2016. Tradução livre.
[2] O Distrito Federal, uma das 27 regiões administrativas que compõem o Brasil, é o menor ente administrativo do país e serve de abrigo para a capital federal, Brasília. Ao contrário dos Estados brasileiros, não pode ser dividido em municípios, além de possuir mudanças em relação à sua legislação.
[3] Ver o texto seminal de Kosuth, Joseph. “A arte depois da filosofia”. Em: Ferreira, Glória e Cotrim, Cecilia (orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975, pp. 210-234.
[4] Refiro-me especificamente a um recorte mais recente da produção do artista chileno, também exposto na 34ª Bienal. Nessas obras, são recorrentes frases impressas em pôsteres ou exibidas em neon (como “outras pessoas pensam”) que sugerem posturas morais dos observadores em relação ao seu entorno.
[5] Ver Groys, Boris. “The truth of art”. Em: E-flux Journal n° 71, março de 2016.
[6] Op. cit., p. 3 (tradução nossa).
[7] Os parênteses ecoam as manifestações ocorridas em todo o Brasil no ano de 2013, atualmente chamadas de Jornadas de Junho e iniciadas pelo Movimento Passe Livre por conta do aumento da tarifa do transporte público. O potencial revolucionário dessas manifestações acabou reavivando uma onda reacionária no país, culminando no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e na eleição do atual presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro.
[8] Em: 34ª Bienal de São Paulo: Faz escuro mas eu canto (catálogo). São Paulo: Bienal de São Paulo, 2021, p. 192.
[9] Austin, John Langshaw. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press, 1975.
[10] Barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
[11] Refiro-me aqui à intervenção de Muntadas “Atenção: percepção requer envolvimento”, parte do projeto em curso On translation. Nessa obra, o artista instala em diversos contextos essa frase impressa em branco sobre um fundo vermelho.
Jan Ritsema Jonathan Burrows Dança Fraca Perguntas Fortes
dos cadernos de Jonathan Burrows e Jan Ritsema
No início eram Celan, Eliot e Thomas: poesia.
ALGO SERÁ, mais tarde
contigo se completa
e se ergue
até uma boca
Da estilhaçada
loucura
me reergo
e contemplo a minha mão
vejo-a traçando
aquele um único
círculo
(Celan)[1]
Ele diz que eu não devia querer provar nada com o movimento, que devia só fazer perguntas, mas como é que alguém pode fazer uma pergunta movendo-se? É impossível. Cada movimento é uma afirmação, foi o que aprendi quando comecei a dançar. E ao contrário do discurso, os movimentos nunca são uma coisa diferente do que são, não fingem. Então, como é que posso duvidar de um movimento que só pode ser claro para mim?
Não faças gestos, deixa o esqueleto fazer o movimento, e não conduzas o teu movimento com os olhos de um ponto para outro; aí estás a tentar salvar o teu corpo, e não há salvação. Afunda-te no corpo, vai de um momento para o outro e faz pergunta atrás de pergunta; interroga continuamente.
Ele está a falar da forma como dança e quer dizer “o meu corpo” e diz “o meu dinheiro”, e depois diz “quando danço o meu corpo parece mais jovem”, e eu penso “isso é preocupante, eu queria dançar com um homem mais velho”.
Ele diz que tem de esquecer mais o seu corpo treinado. Ele não tem nada para esquecer, só para experimentar. Não é possível o corpo esquecer, porque os músculos não conseguem esquecer.
Eu apenas posso dizer, ali nós estivemos; mas não posso dizer onde.
Não devia pensar que a vida me pode tirar coisas, coisas que tenho a obrigação de tentar segurar, só devia pensar nas possibilidades que a vida oferece. Devia saber que só há oportunidades e nada a perder.
Fechado numa casca de noz eu poderia julgar-me
rei de um espaço infinito: não fossem os sonhos maus que tenho.
(Hamlet)[2]
Ele diz que não se trata de ser destemido, mas de aceitar o medo, por isso não pratiques os princípios, não te exercites, vai em frente e pronto, hás-de falhar de qualquer maneira, deixa que o teu corpo se lembre disso, aguenta o teu corpo, não lhe podes escapar.
Ele quer dançar mas fica preso numa imagem daquilo que pensa que é dançar.
Ele anda às voltas por casa a fechar portas à sua passagem e depois espera abri-las quando dançar.
As imagens oferecem-nos consolo para o sofrimento da vida
E a vida oferece-nos consolo para o facto de as imagens
Não significarem nada
(Godard)
Normalmente não me interessa o que acontece entre a partida e a chegada, alcançar o objectivo parece ser a única coisa que importa. Tenho de mudar isso. Tenho de dividir grandes distâncias em pequenas distâncias. Ir a Moscovo começa com trancar a porta do meu apartamento, apanhar o elevador, abrir a porta da rua, caminhar até à estação de comboios, e assim por diante. Isto retira o medo à grande viagem. É assim que eu tenho de dançar, de movimento em movimento, e o tempo todo a enfrentar todas as mudanças. No início apenas as maiores, e depois avançando devagar, entrando nos pormenores.
Quando ele pensa em dançar, remexe-se na cadeira e começa outra vez a encolher-se, começa a ficar pequeno, como se quisesse desaparecer.
Ele diz que é a sua dança sem-vergonha, mas ao mesmo tempo tem muita vergonha, diz que quer dançar e ao mesmo tempo quer desaparecer.
Ele é a pessoa mais medrosa do mundo, o medo é o seu estado geral de ser, diz ele, e no momento seguinte diz que não tem medo de nada.
Ele diz que não tem medo, mas se não tivesse mesmo medo não falava nisso. Diz que quando o medo o invade, ele contra-ataca
e por isso nunca tem os pés no chão.
Está sempre em fuga.
Tudo lhe pertencia, mas o importante era ele saber qual era o seu lugar.
Levanto-o, ponho-o em cima do meu ombro, aqui, atiro-o ao ar, ele até fica lá, talvez, eu vou sempre apanhá-lo, uma e outra vez.
Ele pergunta a si próprio: quanto da árvore que vejo à minha frente existe em mim?
Será que tenho raízes, que estou ligado à terra, que dou sombra, que fico com folhas novas todos os anos,
será que as minhas folhas também morrem?E quanto de mim existe na árvore?
Será que pode dançar, ser feliz, inscrever-se na segurança social, será que uma árvore pode foder, ter cancro?
Ele diz que ao fazer-se estas perguntas sente que vive um pouco menos aprisionado dentro de si, um pouco menos do que é costume.
Quando entramos em cena, e também durante a performance, não devemos negociar o espaço, nem o tempo. Entrar e querer possuir o espaço é uma negociação. É tão difícil não querer ser interessante.
Ele diz que quer tornar o seu cérebro físico, de alguma forma, diz isto bastante vezes. Mas o seu espírito continua com medo, e ele começa a recitar Dylan Thomas:
Embora enlouqueçam, serão sãos,
Embora se afundem no mar, erguer-se-ão de novo;
Embora os amantes se percam, o amor não.
És um orangotango, diz ele, quando me observa.
Há qualquer coisa de antropologia no que fazemos.
Quando ele dança, a sua boca assume uma certa expressão e de repente parece um padre. Porque é que ele está a fazer aquilo?
Sim, voltei a fazê-lo. Porque penso que a dança é uma coisa séria.
Mas quando a minha boca não é um padre, o meu braço é completamente diferente.
Quando sou um padre, mostro um problema e não estou a oferecer nada.
Começámos por ler e recitar partes de poemas um ao outro. Alguns ficaram, como o T. S. Eliot (Four Quartets, “Burnt Norton”). Embora tentemos mover-nos “nem de nem para”, nunca paramos durante a performance:
No ponto morto do mundo em rotação. Nem carne nem espírito;
Nem de nem para; no ponto morto, aí está a dança,
Mas nem paragem nem movimento. E não se chame a isso fixidez,
Onde o passado e o futuro se reúnem. Nem movimento de nem para,
Nem ascensão nem declínio. Se não fosse o ponto, o ponto morto,
Não haveria dança, e há só a dança.[3]
Será o tentarmos dançar de maneira a que cada movimento contenha a possibilidade de todas as direcções?
Será o prazer de reconhecer a individualidade como produto de todas as possibilidades possíveis?
Será então a celebração da individualidade como Spinoza a descreveu: “o reconhecimento de ser composto por um conjunto de uma infinidade de conjuntos infinitos de partes extensas, interiores ou exteriores, que me pertencem segundo relações características, e estas relações características expressam apenas um certo grau de poder que forma a minha essência, a minha essência de acordo comigo, por assim dizer, a essência que me é particular”?
A sensação de que somos compostos pela nossa vida, na qual percebemos e experimentamos e somos percebidos e experimentados por outras partes internas e externas? E isto numa cadeia de transformações e transposições?
Será então o fascínio pelo vazio sem-vergonha? Aquilo a que algumas pessoas chamavam a “coragem” de estar em palco sem estar protegido por um contexto ou significado? Sem aquilo a que chamamos estar debaixo do telhado de uma tarefa?
Será o fascínio por uma coisa que é tão comum que tendemos a ignorá-la ao mesmo tempo? Uma coisa que está lá e ao mesmo tempo não está? Uma coisa que se pode afastar do pensamento facilmente, uma coisa que se pode esquecer porque vai estar sempre lá, uma coisa que se pode apagar em segurança sem o medo de consequências imprevistas, uma coisa corajosa porque sabemos tão bem, tão bem como lidar com ela de modo a que tu, como público, nunca podes falhar?
Será a aparente contradição nesta fábrica-de-movimentos-que-não-produzam-produtos-específicos que a liga mais à natureza, mais a uma paisagem que cria a fruição de uma profunda ausência de propósito pela qual, mais uma vez, é corajoso viajar?
Será o alívio em relação à ausência do espectacular e do entusiasmante, não só em nome da excepção mas por alguma razão intrínseca que não deve ser confrontada com os estereótipos do que impressiona?
Será a ausência de música ou de qualquer som durante a performance, apenas o ruído quotidiano proveniente do exterior do teatro, que questiona a origem da execução concentrada dos movimentos em curso e, assim, a motivação por detrás de todo este movimento?
Será a ausência de qualquer toque físico entre nós que desencadeia um desejo por parte do público de nos juntar na sua imaginação?
Ele diz: “Se ele estivesse na resistência, na guerra, nunca teria o pacote consigo, encontraria sempre maneira de ficar em segurança, alguma saída, nunca se colocaria assim em risco.”
E ele diz que hoje em dia vivemos e actuamos nos filmes uns dos outros o tempo todo. E que quer fazer uma performance que seja um processo onde seja simples participar. Ele quer ser tocável e que a performance seja tocável, o que não é a mesma coisa que tocável.
Ele diz: “Não quero controlar-me mas quero que toda a gente me possa controlar (a compreensão que têm do que está a acontecer).”
Uma vez entrevistei um monge, um homem muito velho a quem chamavam Irmão Harold. E foi há muito tempo, por isso posso contar esta história sem ficar com vergonha. Não, é mentira, ainda estou envergonhado, mas vou contá-la à mesma. E então, claro, no final da entrevista eu disse: “Bom, deixe-me fazer-lhe a pergunta óbvia: o que é que Deus significa para si?”, e ele disse, imediatamente e sem qualquer hesitação: “O mais [the more] no meio de.” Disse-o assim de imediato, sem qualquer hesitação e olhando-me nos olhos. Não houve necessidade de parar para pensar, havia uma vida inteira de pensamento por trás da sua resposta, e o que eu percebi foi que o mais era agora, aqui, o presente, o ser, que é rodeado pelo que veio antes, o que eu queria fazer, o que eu pensei que devia fazer, e o futuro, o que quero fazer a seguir. Quando contei a história, ele pensou que eu tinha dito “o movimento [the move] no meio de”, e de alguma forma isso continua a ser-lhe útil.
Que idade tenho quando danço?
Existe um “eu” na performance? Que outras partes de mim posso aceitar? Quem é que quero ser?
Qual é a sensação da roupa? Dos sapatos?
Como é que eu me mexeria se me atrevesse? Como é que me mexo quando não questiono a forma como me estou a mexer?
Será que dançar às vezes é humilhante?
O que significa despir o acto de performar?
O que é que preciso de confirmar sobre mim próprio, expondo-me desta maneira?
Como é que posso fazer alguma coisa quando duvido?
O que é que eu faço quando me sinto confuso?
Quando me sinto confuso em relação aos limites corro para os extremos, então será que devo correr ou devo aguentar o meio-termo?
Isto é uma viagem pessoal?
Se o processo for partilhado, então o que é que convido as pessoas a partilhar?
Em que medida é que a performance é diferente da minha própria vida? Em que medida é semelhante? Uma vez que não estou preparado para ser menos do que perfeito, devo aceitar a busca da perfeição?
Qual é a imagem recorrente de movimento “aberto”?
Será mais eloquente não falar?
O que significa “demasiado significativo”?
Porquê alterar a linguagem e esperar compreensão?
Como é que eu foco o palco?
O que significa despir o espaço de performance?
Será que estou a fazer perguntas que já foram feitas?
Será que devo saber o que estou a fazer?
Como é que devo tomar notas?
Será que posso aceitar as contradições?
Posso simplificar tudo isto?
__________
Texto inicialmente publicado sob o título “Weak Dance Strong Questions” no volume 8 da revista Performance Research, editada pela Routledge Journals, em 2003. Traduzido do original em inglês por Joana Frazão.
[1] Tradução de Flávio R. Kothe, Hermetismo e Hermenêutica, Paul Celan — Poemas II. (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985).
[2] Tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto: Lello Editores, 1987).
[3] Tradução de Gualter Cunha. (Lisboa: Relógio d’Água, 2004).
Emiliano Aversa Um Lábio Homeostático
a. Um espasmo teve o polegar 𓂭
b (a)1. Um espasmo teve o lábio inferior 𓂋
c. Um espasmo teve o Carlo 𓀤
d. Um espasmo teve o lagarto 𓆈
e (d). O lagarto virou-se ao contrário 𓆈 𓄳
f (a-b). O lábio fez comichão 𓂋 𓈖
O meu estar no mundo padece do ar que me arranha, do solo que piso, da luz que se projeta à minha frente. Cada momento vivido por mim é examinado à luz de uma luta destinada à harmonia da minha permanência, uma luta harmoniosa entre a minha subjetividade e o meu ser no mundo, o meu relacionar-me com isso. A subjetividade, complexa peculiaridade que tem origem na proprioceção, não existiria sem tal relação, portanto a pergunta fundamental parece ser: onde se encontra o limite entre a minha subjetividade e o mundo que me rodeia? Onde se inicia e finda a relação que tenho com isso? Esta pergunta pressupõe a conceção do espaço entendido não como recipiente, mas como espaço que cria espaço no qual o corpo age como elemento consciente e dinâmico. Uma resposta plausível encontra-se no final deste texto, já que a pergunta contém em si um erro; mais do que uma resposta, trata-se de uma correção de perspetiva que invalida a pergunta. De qualquer forma, tal questão contém em si uma série de parêntesis e fluidos corporais que merecem ser mencionados.
O meu objetivo é procurar lançar uma luz sobre a existência de uma regulação orgânica, que diz respeito também à relação entre o orgânico e o inorgânico, seja no mais pequeno movimento do ser, no caso de um braço, seja sempre que se encontrem organizações de movimento mais complexas, mesmo que o movimento resulte de uma escolha artística, que, pela sua essência, não pode divergir da natureza para alcançar o seu objetivo nulo. Por objetivo nulo entendo aquele que é exatamente o objetivo da arte, ou seja, aquele de dizer tudo, o que equivale a não dizer nada. Em poucas palavras, a arte espreme o ser de modo a evidenciar o sangue que nele flui quotidianamente.
Uma gota da minha saliva cai no chão do meu estúdio. Uma vez que que me abandona, esta parte de mim não precisa de me reconhecer, torna-se parte do fluir orgânico, o meu eu, não enquanto subjetividade, flui como parte do todo.
Uma gota da minha saliva cai no chão do meu estúdio, lambo o chão do meu estúdio para me reapropriar da gota da minha saliva, algo mudou, é necessária a ativação de um processo químico que faça com que tudo se equilibre, com que o círculo se feche, com que o meu corpo volte a aceitar a gota de saliva e se aproprie dela, alterando-se, mas continuando o mesmo. Uma curva de reapropriação que acolhe novamente a minha saliva aceitando o seu estranhamento locativo, reinserindo a sua química modificada no meu corpo.
O movimento do meu braço, se não destinado a agarrar alguma coisa ou a cumprir um objetivo, tem como finalidade o movimento em si mesmo, a meta acaba sempre por ser a mesma, isto é, coincide com o início do movimento. A minha vontade de executar um gesto puro tem apenas um sentido: o elogio do gesto.
Até um movimento paroxístico ditado por uma necessidade fisiológica pode incluir-se radicalmente entre as tipologias de movimentos puros, na medida em que é ditado por uma necessidade intrínseca ao corpo e, como tal, é corporal no sentido absoluto.
Se concebermos o movimento do meu braço dançante como indivisível em termos espaciais e temporais, este estará presente mesmo quando o braço alcançar um estado de repouso, já que o seu estar “parado” é sempre, ainda assim, um movimento.
Este movimento, considerado na sua plena execução, constitui em si mesmo uma homeostase estética, na medida em que a partir da quietude atinge, de forma curvilínea, um ápice gestual, para depois se reestabilizar. Se tal execução não constituísse uma parábola de satisfação, tal movimento não seria dançante. A satisfação estética em questão não se refere obviamente ao sujeito dançante, mas é na verdade intrínseca ao movimento.
A homeostase (do grego omeo- e -stasi, “posição semelhante”) é a tendência natural à obtenção de uma estabilidade relativa, seja das propriedades físico-químicas internas, seja das comportamentais, que é comum a todos os organismos vivos, para os quais este regime dinâmico deve manter-se ao longo do tempo, mesmo que haja variação das condições externas, através de mecanismos autorreguladores específicos. Para o filósofo e neurocientista português António Damásio, a homeostase é um imperativo sem o qual não existiria vida,2 cada partícula do corpo está envolvida e toma parte neste processo, até mesmo a esfera intangível das emoções, que nada mais são do que músculo.3
Regressando à gota de saliva, passando pelo movimento do braço e chegando à consciência de si, a homeostase é aquilo que permite, momento após momento, que a minha subjetividade se forme, é aquilo que faz de mim eu mesmo.
A homeostase tem uma forte correlação com a topologia em termos de movimento formal. Enquanto movimento invertido, é comparável aos sistemas homeomorfos da topologia4 que voltam a ser aquilo que não eram, ou melhor, já eram aquilo em que se tornaram. Os espaços homeomorfos são espaços topológicos unidos pelo homeomorfismo, ou, por outras palavras, formas do mesmo objeto obtidas através de uma deformação sem ruturas.5 Assim, algo torna-se noutra coisa, que já o era, permanecendo o mesmo. De igual modo, mediante um processo homeomorfo, o movimento de regresso a um estado de suposto equilíbrio pressupõe a existência de alicerces de um estado identitário que, contudo, já não é completamente o mesmo de antes.
Então, o movimento, do início ao fim, se porventura se possa identificar um início e um fim, atravessa no seu ápice um auge laudatório que equivale ao auge do processo homeostático. Se se dirige o olhar ao mais pequeno movimento, precisamente aquele do braço, num conjunto de movimentos ou numa orquestração de movimentos, como pode suceder no caso de um ato performativo, a parábola acabará por ser a mesma: suspensão, movimento, movimento de conjunto, movimento e suspensão. De um ponto de vista artístico a pergunta que se coloca é: porque escolho que algo aconteça? E: o que escolho que aconteça?
Essa dança que se manifesta como vórtice simultaneamente evolutivo e involutivo pode acolher a possibilidade de uma escolha coreográfica. O dispositivo coreográfico entendido como sistema intrincado estável através do qual algo acontece em palco é sempre um movimento circulatório graças ao qual é dito através do corpo – também entendível como corpo de um objeto – aquilo que não pode ser dito de outro modo, e é aqui que entra em jogo o elemento rítmico – visto como a dinâmica rítmica do fluxo em palco – que, ao esgotar-se, regressa ao não-dito. Desta forma, os corpos entram na cadência do indizível para assim se calarem, já que aquilo que se quer que seja dito é o gesto; neste sentido cumpre-se o regresso identitário. Aquilo a que se assiste mediante um ato performativo é um acontecimento homeostático acima de tudo; não um acontecimento que transporta o corpo até algo de arrebatador que necessite de um regresso identitário ao estatuto de corpo, mas sim um evento que leva o corpo até ao extremo e o devolve inanimado à sua quotidianidade. Neste sentido, o sujeito dançante vive uma homeostase per se.
Como pode a dança, apologia do movimento, não ter em conta o processo homeostático, se ela própria é homeostase por excelência? Colocar a argumentação no âmbito coreográfico significa ter em consideração o movimento de um corpo e o seu equilíbrio interno, o equilíbrio entre este corpo e o espaço, o equilíbrio entre este corpo e um outro corpo, o equilíbrio entre a mão deste corpo e o resto das partes deste corpo. A este propósito poder-se-ia considerar a introdução de um novo estado do eu que vá para além do eu nuclear e do eu alargado propostos e analisados por Damásio.6 Tratando-se de um eu performativo que experimenta um processo homeostático privilegiado, poder-se-ia falar de um eu extra que leva ao extremo o seu estado espaciotemporal.
Um dispositivo coreográfico é, assim, uma parábola que contém em si infinitas parábolas mais pequenas e que, ao prescindir daquele que é o ponto fulcral que subjaz à conceção da peça não se pode abster da sua essência homeostática, de transmitir aquele sentido de regresso voraz ao cerne da dialética de todas as partes; este deve, por força das circunstâncias, ter o sabor do sangue, caso contrário não há dança.
A intangibilidade do processo homeostático, a forma como o próprio sentido de reajustamento se reajusta e encontra o sentido do seu reajustamento no ato de se reajustar, continua a ser um mistério insondável. Se não houvesse homeostase nada seria aquilo que é.
Eis, então, o momento da resposta para quem não deu um salto, para quem não teve um espasmo. A minha subjetividade existe no mundo e não é concebível fora deste, o meu corpo é um corpo de mundo.
Traduzido do original em italiano por Sara Santos.
___________
1 As letras entre parêntesis indicam que as várias orações se referem a um mesmo sujeito.
2 Acerca da importância do processo homeostático segundo Damásio: The Strange Order of Things: Life, Feeling, and the Making of Cultures (Londres: Pantheon, 2018). N.T.: publicado em português: A Estranha Ordem das Coisas: A vida, Os Sentimentos e As Culturas Humanas (Lisboa: Temas e Debates, 2017).
3 Acerca do estudo de Damásio sobre a relação entre corpo e emoções: António Damásio, The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Consciousness (San Diego: Harcourt, 1999).
4 Para uma primeira introdução à topologia: Martin Crossley, Essential Topology (Nova Iorque: Springer, 2005).
5 “Dois espaços topológicos X e Y dizem-se homeomorfos se existirem duas aplicações contínuas f: X → Y e g: Y → X tais que g ◦ f = IdX e f ◦ g = IdY. f e g são considerados homeomorfismos; um homeomorfismo é, portanto, uma aplicação contínua, biunívoca e com contínua inversa (biunívoca e bicontínua).” Gianluca Occhetta, Note di topologia generale (Trento: Universitá di Trento, 2010), 10.
6 “O self é construído em passos distintos e tem seu alicerce no protosself. O primeiro passo é a geração de sentimentos primordiais, os sentimentos elementares de existência que surgem espontaneamente do protosself. O seguinte é o self central. O self central refere-se à ação – especificamente, às relações entre o organismo e os objetos. O self central manifesta-se em uma sequência de imagens que descrevem um objeto do qual o protosself está se ocupando e pelo qual o protosself, incluindo seus sentimentos primordiais, está sendo modificado. Finalmente, temos o self autobiográfico. Esse self é definido como o conhecimento biográfico relacionado ao passado e ao futuro antevisto. O protosself, com seus sentimentos primordiais, e o self central constituem o ‘eu material’. O self autobiográfico, cujas instâncias superiores englobam todos os aspectos da pessoa social de um indivíduo, constitui um ‘eu social’ e um ‘eu espiritual’. Para fins práticos, a consciência humana normal corresponde a um processo mental em que atuam todos esses níveis de self, dando a um número limitado de conteúdos mentais uma ligação momentânea com um pulso de self central.” António Damásio, E o Cérebro Criou o Homem (São Paulo: Companhia das Letras, 2011).
André Lepecki O Espelho Estilhaçado / A Dança do Existir
Alteridade colonial e violência identitária num solo de Vera Mantero
Treze anos de guerra colonial,
derrocada abrupta desse
império pareciam
acontecimentos destinados não
só a criar na nossa
consciência um traumatismo
profundo – análogo ao da perda
da independência – mas a um
repensamento em profundidade
da totalidade da nossa imagem
perante nós mesmos e no
espelho do mundo. Contudo,
todos nós assistimos a este
espetáculo surpreendente: nem
uma nem outra coisa tiveram lugar.Eduardo Lourenço, O
Labirinto da Saudade (1991).“Não saber
Não ler
Não saber nada
Do mundo”Vera Mantero, palavras de
abertura em A Dança do
Existir.As duas epígrafes falam-nos de uma dupla crise no Portugal contemporâneo: uma crise dos sentidos e uma crise da memória.[1] Manifestam os termos pelos quais a derrocada dos 500 anos do Império colonial português trouxe consigo um profundo distúrbio na imagem da identidade pós-colonial(ista) da nação.
Interessa-me a expressividade física desse corpo português pós-colonial(ista) em crise. Interessam-me as estratégias discursivas desse corpo – sobretudo algumas estratégias coreográficas através das quais a violência colonial reprimida é criticada e posta em cena no Portugal contemporâneo. Um desses momentos de crítica inteligente e de inquietante exposição é o tema deste ensaio – um solo de Vera Mantero intitulado A Dança do Existir (1995). Nesse solo, a violência recalcada do passado colonial é identificada como ainda presente, como ainda atuante, e depois investigada, iluminada e subvertida de forma profunda.
Eduardo Lourenço descreve a forma como o fim abrupto do colonialismo foi (e ainda é) coletivamente percebido por Portugal como um não-acontecimento – como se as ondas de choque criadas pela guerra colonial, e as enormes fendas tectónicas trazidas por uma mudança social e política monumental, tivessem sugado, em vez de gerar, energia psíquica e força histórica. Para Lourenço, essa situação de silêncio e de apatia é intrigante. Como é possível, interroga-se, que
um acontecimento tão espetacular como a derrocada de um “império” de quinhentos anos, cuja “posse” parecia coessencial à nossa realidade histórica e mais ainda fazer parte da nossa imagem corporal, ética e metafísica de portugueses acabou sem drama.[2]
É no âmbito desta “falta de drama” na imagem corpórea dos portugueses que se deve formular uma teoria das formas de expressão portuguesas contemporâneas e, em particular, das formas de arte baseadas no corpo, como é a dança.
A declaração irónica de Mantero – “não saber, não ler, não saber nada do mundo”, com que abre A Dança do Existir – reflete e ecoa a observação de Lourenço sobre o surpreendente e entorpecedor “não-acontecimento” que cercou a queda “abrupta” do império e o fim da guerra colonial. As palavras de Mantero também delineiam aquilo a que o antropólogo Allen Feldman chama “anestesia cultural”: “O banimento de presenças e agentes sensoriais desconcertantes, discordantes e anárquicos, que minam as premissas normalizadoras e muitas vezes silenciosas da vida quotidiana.”[3]
Quais são as “premissas silenciosas da vida quotidiana” que são brandamente banidas da maior parte do discurso público no Portugal contemporâneo? De uma maneira geral, estão ligadas à (má) gestão mnemónica que o país faz da violência colonial, e à dessensibilização quanto ao recente ressurgimento dessa mesma violência dentro das fronteiras estreitas da ex-metrópole. Em 1998, Eduardo Lourenço identificou como é que as forças de esquecimento e de anestesia cultural ainda operavam uma repressão massiva e coletiva do passado português colonialista, fascista, ditatorial e violento:
Nem em Itália, nem na Alemanha (com a sua pesada cruz), nem mesmo na União Soviética (a Rússia atual) – todos os lugares onde a tentação de enterrar o passado sob uma camada de esquecimento foi uma espécie de dever ou reflexo nacional – vimos a produção de tal fenómeno de inexistência póstuma.[4]
Inexistência de facto, mas apenas ao nível da sua manifestação consciente ou pública. Pois as correntes subterrâneas da violência e do colonialismo sempre estiveram lá para serem sentidas, provadas e palpadas. Silenciosamente, insidiosamente, essas correntes movem-se sob o véu da anestesia cultural e dos discursos públicos exaltando a suposta tolerância nacional face ao Outro. Entretanto, skinheads suburbanos assassinam negros, tanto em Lisboa como no Porto, milícias organizadas de “bons” cidadãos no interior do país expulsam à mão armada ciganos das suas vilas e cidades, vivem-se maus-tratos constantes de negros pelas forças policiais: a compostagem borbulhante do racismo cotidiano. E também as ocasionais erupções de nostalgia colonial que, no início da década de 1990, incluíam a comercialização de cassetes de vídeo contendo filmagens da “inesquecível” vida noturna em Angola e Moçambique nas décadas de 1950 e 1960. “Para relembrar os bons velhos tempos”, dizia a publicidade na RTP. Apesar do insistente discurso público e governamental sobre a “tolerância racial e cultural” portuguesa, basta ficar parado por um momento na Baixa lisboeta, onde dezenas de homens africanos se reúnem durante o dia nas escadarias do Teatro Nacional à espera de serem levados para qualquer tipo de mão-de-obra barata que os empreiteiros brancos lhes dão, para que os espasmos fibrilantes da violência recalcada comecem a galgar o sistema nervoso, expondo a violência entranhada que o silêncio coletivo contém.
“Não saber, não ler, não saber nada do mundo.” Ouvi as palavras de Mantero pela primeira vez em 1995, nos momentos iniciais da sua dança de quinze minutos intitulada, muito apropriadamente, A Dança do Existir. Foi uma peça que me marcou profundamente. Trata-se de uma dança que existe principalmente na escuridão, que acontece predominantemente através do som, e que começa e acaba em imobilidade. Vi-a ao vivo apenas uma vez, precisamente na sua noite de estreia e, apesar da sua fisicalidade, o modo como tenho regressado a ela ao longo dos anos tem sido exclusivamente um modo sonoro. Pois apesar de toda a dança que acontece neste solo, a memória que tenho dele é sobretudo acústica. Ao longo dos seus quinze minutos de duração, assistimos a uma subordinação da presença visual de Mantero a uma banda sonora complexa composta pelo compositor Sérgio Pelágio e pela própria Mantero. Para mim, a banda sonora é A Dança do Existir – e no deslocamento que esta dança provoca no órgão normalmente convocado para testemunhar dança, o olho, para o ouvido encontro uma instância de resistência à anestesia cultural (pre)dominante.
Seguindo os deslocamentos, as reposições e as manipulações sensoriais e mnemónicas performadas pelo solo de Mantero espero mostrar como a coreógrafa critica e desafia não apenas a espetatorialidade e a teoria da dança mas, mais significativamente, o estado coletivo de apatia cultural e histórica, a anestesia sensorial e cultural generalizada no Portugal contemporâneo quanto à questão colonial(ista).
A Dança do Existir pede um deslocamento radical do ótico ao propor, desde o começo, uma escuta bastante intensa. A escuta de um corpo de uma mulher entregando-se a um movimento duplo e simultâneo de encobrimento e desencobrimento, ambos cuidadosamente coreografados, do passado coletivo da violência colonial. Escuta essa feita por via da paragem, do movimento inusitado, da escuridão e do som.
A peça começa com Mantero parada, cena esquerda e à beira do palco, junto aos bastidores. Compõe uma figura incongruente. Uma t-shirt verde, velha, manchada e meio destruída cobre-lhe o torso; um glamoroso vestido de baile de seda azul da década de 1950, com balões em volta da cintura e a cobrir-lhe a maior parte das pernas; pedaços de um tutu branco a brotar por baixo do vestido e um par de ténis coçados e sujos completam o figurino. O cabelo é comprido, crespo e indomável. Em concentração absoluta, escuta atentamente uma gravação da sua própria voz descrevendo, de maneira coloquial e informal, o que traz vestido naquela noite. O que ficamos a saber é que cada peça do seu figurino – a glamorosa, a banal, a velha, a suja – carrega consigo uma história camuflada de violência. A voz gravada de Mantero informa-nos que o vestido de baile é da mãe. Costumava usá-lo nos anos 50, nos bailes glamorosos da alta sociedade lisboeta. Esses bailes eram afamados pelo chique cinematográfico – os seus excessos contrastavam fortemente com a situação desesperada da maioria da população: eram a maneira de o regime encenar normalidade, num pano de fundo de total miséria e repressão. A t-shirt é da adolescência de Mantero, uma que gostava tanto de usar, que agora mal se segura inteira. A t-shirt está rasgada, diz-nos, porque uma noite um amigo “um pouco violento” a empurrou com um pouco mais de força do que o habitual e a t-shirt se desfez. Os ténis sujos eram da mãe, informa a voz off de Mantero. Um outro amigo dera os sapatos à mãe, como prenda, mas eram grandes demais. A mãe passou-os a Mantero. Também eram grandes demais para ela, mas guardou-os mesmo assim, já que não tinha nenhum par como aquele. Levou-os à Croácia para visitar um amigo, em plena guerra civil na ex-Jugoslávia, em 1993. Ele escrevia durante o dia e ela ensaiava. No final do dia, corriam juntos pelos campos. Algumas noites, parecia-lhe escutar ao longe os bombardeios. Conheceu refugiados e combatentes em estado de choque. Era um dos lugares mais belos para se passar férias. Os ténis ficaram vermelhos com a poeira cor de ferrugem típica daquela área tranquila à beira do horror, e ela nunca mais os lavou. Aqui, a voz gravada de Mantero termina a descrição e afirma: “Eu neste momento não estou aí.” E o palco fica em completa escuridão.
Na escuridão, uma nova banda sonora começa. Em vez da voz clara de Mantero, ouvimos uma mescla complicada, esmagadoramente verbal, hiperbolicamente fragmentada, enchendo cada canto do teatro com uma torrente contínua de vozes. É esta banda sonora que começa com as palavras “não saber, não ler, não saber nada do mundo”. Após a atitude parada inicial de Mantero, enquanto ela ouvia atentamente a sua própria narrativa sobre as violências escondidas em peças de vestuário quotidianas, a nova banda sonora ecoa fortemente no escuro, e o público é assim colocado na mesma condição de imobilidade atenta que a bailarina acabara de performar no palco. Nessa inversão de papéis especular, chega o momento de o público se envolver numa arqueologia da violência quotidiana – que mais não é do que uma arqueologia das tensões entre identidade e alteridade. Sentados em silêncio nos nossos lugares, entramos nas nossas próprias danças de existir. O que ouvimos, nessa dança sem luz, sem movimento visível, não é óbvio. Vozes diversas, modos de falar diversos (por vezes poéticos, por vezes coloquiais, por vezes confessionais), sotaques diversos, todos entrelaçados e editados com sons estranhos, cortes abruptos, interrupções criadas por samples de diversos géneros musicais. A verbosidade da banda sonora cria uma barreira semântica e acústica volumosa, e o corpo de Mantero permanece apagado por essa massa linguística e sonora avassaladora que, na sua intrincada montagem, flirta tanto com significação como com o insignificante. Apesar de fortemente baseada em linguagem, a paisagem sonora não define um domínio de comunicação, ou de representação, mas propõe uma linguagem de e em desarticulação, em curto-circuito, em livre associação. Há vozes claramente “encenadas” (as de Mantero e Pelágio assumem personagens diferentes ao lerem de fontes diversas – poemas, catálogos pornográficos, discurso associativo livre incoerente) enquanto outras são claramente “documentais” (extraídas de talk shows, de entrevistas na rádio ou feitas na rua por Mantero e Pelágio).
Ao longo de dez minutos ouvimos, entre muitas outras: a voz de Pedro Paixão, um romancista que se interroga sobre o amor, Deus, a morte e a sua mãe; a sua voz sobrepõe-se às vozes de Mantero e Pelágio que leem fragmentos da biografia de Glenn Gould, especificamente sobre as suas fobias, o seu amor pelas estruturas e os seus cantos para os animais do zoológico; tudo isto se entrelaça com vozes de soldados traumatizados pelas guerras coloniais, contando da miséria em Portugal nos anos 1960 e de como foram treinados para matar e nada mais do que matar, enquanto gritavam como cães loucos como a tropa era bonita, e como foram ensinados a orgulharem-se dos seus troféus de morte. E há ainda a voz alquebrada de um dos veteranos, a soluçar, incapaz de narrar as torturas que aplicava aos guerrilheiros africanos, um fragmento da Paixão segundo São Mateus, de Bach, no exato momento em que o coral canta um verso pedindo a misericórdia de Deus pelas lágrimas que causámos, enquanto tudo se entremeia aqui e ali com um poema delirante em livre associação, de uma jovem cuja vida começa numa das ex-colónias em África, continua no Brasil após a independência e acaba em Portugal. E há mais vozes e textos e texturas continuamente adicionados, da pornografia ao elogio feito por William Blake da energia como deleite eterno…
Após cerca de quatro minutos no escuro, a banda sonora chega a um ponto em que ouvimos, consecutivamente, dezenas de vozes diferentes dizendo, simplesmente, as palavras “descobrir as regras”. Homens, mulheres, com sotaques diferentes, repetindo a frase que pode ter conotações ligeiramente diferentes – “encontrar (pela primeira vez) as regras” mas também “desencobrir as regras”. Além disso, “regras” tem um duplo significado – período menstrual, mas também norma. É nesse momento que o palco é inundado por uma luz brilhante que revela Mantero no centro do palco, já em movimento pela primeira vez. Antes de descrever o que faz enquanto se move, é preciso considerar tudo o que precedeu esse momento literal de iluminação e de dança. É fundamental considerar o papel do som e da paragem que antecederam o desencobrir/descobrir pela luz de Mantero dançando.
O que chama a atenção na primeira parte de A Dança do Existir é o tom vivaz e coloquial da voz gravada de Mantero, em contraste com o conteúdo do que está a dizer. Cada uma das peças de roupa que veste carrega consigo não apenas uma história, mas uma história maculada por atos de violência ou por um contexto histórico de violência. A sua figura surge como uma composição dessas histórias que lhe foram transmitidas por meio de objetos que herda da mãe, objetos destruídos por amantes violentos, objetos que trilharam os caminhos empoeirados por transformações históricas e guerreiras. Não é irrelevante que Mantero ouça parada a sua própria voz, e que essa imobilidade se expanda para além do seu corpo: pois é como se a sua perceção e postura fossem transferidas para o público quando as luzes se apagam. No escuro, o público fica plenamente consciente das histórias de amor incongruentes mesclando-se com as vozes daqueles que perpetraram a violência colonial. Qual poderá ser a finalidade da estratégia coreográfica de Mantero em A Dança do Existir, de apagar visualmente a sua presença, de jogar enfaticamente com um deslocamento sensorial do visível para o invisível, de privilegiar conscientemente o sonoro, tudo no contexto de uma peça que é também, e explicitamente, uma crítica pós-colonial às correntes subterrâneas da violência no Portugal contemporâneo? Talvez ficarmos plenamente conscientes de que há que descobrir, desencobrir (parados, na escuridão) as regras que regulam o “não querer saber nada do mundo”.
No seu ensaio sobre anestesia cultural, Allen Feldman critica The Civilizing Process, de Norbert Elias.[5] Para Feldman, a noção de Elias de que “a modernização implica a retirada progressiva da violência da vida quotidiana, de par com a sua crescente monopolização pelo Estado”[6] deve ser questionada. Feldman exemplifica com vários casos em que o Estado “democratiza ativamente a violência”, como na Irlanda do Norte e na ex-Jugoslávia. Nesse sentido, para Feldman, a violência deve ser reposicionada das “margens dos processos civilizacionais e da modernidade europeia” e retornar ao próprio núcleo da “civilização” e da “modernidade”.[7] É esse deslocamento de perceção que Mantero encena ao contar as suas histórias sobre o que lhe cobre o corpo, na sua dança do existir. O efeito quase cómico causado pela primeira aparição de Mantero com a sua t-shirt esfarrapada, o vestido de baile de seda arredondado e os ténis sujos é radicalmente boicotado pelo facto de nos contar a micro-história das violências contidas em cada peça da roupa com que se veste. A violência impiedosa do fascismo, a violência brutal dos amantes, a violência estrondosa da guerra, a violência normativa do treinamento (o tutu de ballet) não são apresentadas como acontecimentos externos, fora do fluxo “normal” da história e da quotidianidade, mas como aquilo que mantém a quotidianidade dentro da sua própria lógica existencial. Andamos sempre com violência vestida, mesmo que optemos por não ouvir os seus ruídos crepitantes.
E que dizer da estratégia coreográfica que Mantero escolhe performar para sublinhar dramaturgicamente a violência no âmago da quotidianidade? Porque é que Mantero permanece parada? Porque é que escolhe, neste momento de auscultação histórica, não se mover? Aqui é útil invocar a noção de “ato parado” [“still act”] proposta por Nadia Seremetakis na sua importante crítica dos sentidos na modernidade.[8] Para Seremetakis, o “ato parado” não é um congelamento do sujeito em rigidez estatuária. Pelo contrário, é um momento de interrupção social em que o sujeito suspende hegemonias temporais, narrativas e ideológicas por meio de uma interpelação quieta da história. Para Seremetakis, os “atos parados” são esses momentos de pausa e paragem em que o sujeito – ao introduzir fisicamente uma rutura no fluxo da temporalidade hegemónica que nos condena a todos ao movimento sem pensamento – interpela a “poeira histórica”.[9]
Recorrendo ao uso da paragem enquanto escuta a sua própria voz a desencobrir calmamente a violência no cerne do banal, Mantero encena uma resistência sensorial. Mais importante, essa resistência sensorial como reorganização de memória é depois transferida para os corpos do público. Pois quando o corpo de Mantero desaparece, é o público que é colocado na escuridão sob uma enxurrada sónica de vozes. É o público que assume o papel ativo de se colocar em estado de paragem atenta.
Ao percorrer as notas de Mantero para a criação de A Dança do Existir, encontrei o seguinte fragmento que ilustra as suas ideias sobre os usos do som, da escuridão e da paragem na dança do existir:
Escutar um texto, sons e música na escuridão é partir para o mundo do invisível […]. Falar na escuridão é uma oportunidade de dizer coisas que implicam os outros, é até uma oportunidade de penetrar no mundo interior deles, quase entrar nos seus sonhos como personagem, em vez de lhes dar algo mais visual e exterior (a eles).[10]
Ao optar primeiro por não dançar, mas antes escutar, para depois desaparecer ativamente de vista, Mantero resolve uma questão coreográfica para uma ética do relembrar e da resistência sensorial. Uma que brinca com o trocadilho possível no termo re/lembrar,[11] ou seja, re-organizar e re-distribuir o corpo e as suas partes, os seus sentidos e canais, de maneira a gerar um corpo novo, imaginativo, criativo, provocativo e historicamente crítico.[12]
Nesta estratégia da coreógrafa, a sua suspeita do visível é importante. Particularmente quanto à capacidade do visível, de revelar a violência sob a pele dos dias. Essa suspeita propõe uma retificação da noção de coreografia como forma de arte essencialmente visual. O que traz uma dupla consequência teórica. Em primeiro lugar, endossa a visão de Mark Franko de que ao considerar danças “politicamente resistentes” deve ter-se em conta que elas são, muitas vezes, “práticas assimétricas e não ilustrativas.”[13] Para Franko, essa qualidade “não ilustrativa” das danças politicamente resistentes traz importantes implicações epistemológicas, a saber, a necessidade da teoria e da historiografia da dança questionarem “o quanto da prática da dança se materializa como visível ou deve entender-se em termos visuais apenas”.[14] A questão de Franko é particularmente relevante para a presente discussão. O seu projeto de expandir a fixação sensorial nos estudos de dança para além dos limites do campo do visível (e escapar assim ao que chama “falácia visual na história da dança”) ilustra precisamente como Mantero entende o uso do corpo na dança. Em 1993, dois anos antes de criar A Dança do Existir, Mantero afirmou numa entrevista ao jornal Público que “apenas com o corpo, a dança não consegue dizer tudo”.[15] Para Mantero, no seu trabalho o corpo é secundário, no sentido em que deve saber a hora de se apagar, para poder dizer com mais impacto.
Nas suas muitas camadas, permutações e fragmentação estratégica, A Dança do Existir de Mantero investiga um dos episódios mais silenciados da história recente portuguesa, a guerra colonial de 1961-1974 – uma guerra que pode ter acabado no terreno, mas ainda está presente na vida quotidiana do Portugal pós-colonial. O mais chocante para o público português é escutar as narrativas quase nunca ouvidas dos veteranos da guerra colonial, cuja história, como nota Eduardo Lourenço já em 1998, ainda está por contar.[16]
Walter Benjamin, nas suas Teses sobre a Filosofia da História, diz-nos que “articular o passado historicamente não significa reconhecê-lo ‘como realmente foi’. Significa apoderar-se de uma reminiscência quando ela irrompe num momento de perigo”.[17] Mantero articula uma história que “ainda está por contar” criando uma atmosfera de urgência, no escuro, dando voz a quem tinha sido afastado da memória histórica. A memória irrompe como articulação da história por meio do ritmo urgente, dos sons discordantes ao fundo e do caráter testemunhal dos depoimentos dos veteranos da guerra colonial que ouvimos.
Seria injusto dizer que este é um solo sobre a guerra colonial. Isso corresponderia a uma redução da sua polissemia explosiva e das suas ramificações fragmentadas radicalmente libertadoras. Mas é justo alegar que é um solo sobre aquelas forças em ação no Portugal contemporâneo que perpetuam as mesmas velhas relações coloniais e tensões raciais; reciclando e re-energizando (ainda que impercetivelmente) a violência latente resultante daqueles anos de guerra e terror. Nesse sentido, é um solo sobre a natureza repressiva do silêncio, à medida que atravessa o corpo social, gerando o seu sistema nervoso neocolonial.[18] É só a esta luz que podemos compreender porque é que Mantero, num pequeno texto para o programa da noite de abertura de A Dança do Existir, lhe chama (contra o impacto óbvio da sua contínua massa sonora, vozes, choros, fragmentos musicais) “uma dança do silêncio”.
Mas podemos entender as suas razões. Esta é uma dança que investiga aquele silêncio que prospera precisamente debaixo da verbosidade, da visibilidade e do ruído mais ensurdecedores. Esse silêncio que expressa “anestesia cultural” – a capacidade, segundo Feldman, “de infligir dor no Outro [e] de tornar a dor do Outro inadmissível no discurso público e na cultura”.[19]
Como é que se podem ouvir as vozes descartadas da história, sob a amnésia coletiva trazida pelo estilhaçamento do espelho colonial? Aqui, sob a orientação do auditivo, colocamos uma questão coreográfica – pois essa escuta é também uma questão de preparar o corpo, de o condicionar, ajustá-lo a uma posição específica dentro do tempo (histórico) e do espaço (social e político). Nesta nova posição, o sujeito negocia, valida e descarta o que considera pertencer ao domínio do (in)significante e do (im)percetível.
Para Nadia Seremetakis, “o impercetível tem uma estrutura social baseada em zonas culturalmente prescritas de não-experiência e significado cancelado”. Seremetakis identifica no “entorpecimento e apagamento das realidades sensoriais”, os indicadores cruciais de momentos de transformação social e histórica. Esse entorpecimento cria um desafio para a interpretação crítica, exigindo uma certa reorientação dos sentidos:
Esses momentos [de transformação histórica] só podem ser vislumbrados obliquamente e nas margens, pois a sua visibilidade exige uma imersão na memória sensorial interrompida e nas emoções deslocadas.[20]
A noção de Seremetakis de vislumbres oblíquos, permitindo a imersão numa “memória interrompida”, ou numa emoção deslocada (ou reprimida), é crucial. Esses vislumbres oblíquos, de soslaio, são tantos olhares desviantes, caminhando pelas margens dos sentidos e da história, retomando-se à beira dos momentos percetíveis de entorpecimento coletivo e dos vestígios do apagamento contínuo das experiências sensoriais e sociais. Vale a pena seguir este caminho desviante – é o mais fenomenologicamente adequado para o trabalho em questão.
Depois do escurecer, uma série de vozes diversas proferem a frase “Descobrir as regras”. Encontrar ou desencobrir as regras. É neste momento que a luz inunda a cena e encontramos Mantero a dançar no centro do palco com o seu figurino compósito. É uma dança fragmentada. Mais ainda, a sua fragmentação parece exigir um contínuo e oblíquo vislumbrar de soslaio. A secção “dança” de A Dança do Existir dura cerca de seis minutos. É nesses seis minutos que emergem as vozes mais perturbadoras da memória colonial, incluindo o veterano soluçante, incapaz de contar o seu passado como torturador. Além disso, ouvimos as associações livres mais alucinatórias:
[Veterano #3] “Pois as agressões, lembro-me, está presente em mim até hoje, as agressões dele contra a minha mãe…”
[Pedro Paixão] “Quer dizer, eu já morri várias vezes.”
[Vet. #3]: “…inclusive de um pontapé que levei uma vez…”
[Mantero e Pelágio]: ”Fecha os olhos.”
[Vet. #3]: “…para evitar que ele desse esse pontapé na minha mãe…”
[Mantero e Pelágio]: ”Fecha os olhos.”
[Vet. #3]: “…e aquela vida má, a pobreza, a miséria que havia, que vivíamos num quarto…”
[Mantero a ler do poeta Ruy Belo]: “Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias.”
[Pelágio a ler a biografia de Gould]: “A noção de que todos os sons são dignos de atenção.”
[Mantero a sussurrar rapidamente]: “Amigos a desenganarem-se, amigos a desencontrarem-se. encontros. refugiados. morte. fome. prazer, desgraça, sol. brasil. grandes acontecimentos. dor, ginástica, mentes. muitas mentiras. prazer. encontros imediatos do 3.º grau. fazer tudo para não cair no buraco. canseira, dores de cabeça, felicidade.”
[Vet. #1]: “…Por exemplo, do género: ‘rastejar até mim!’, e a malta a rastejar, ‘vamos embora a rastejar, abaixar o rabo, abaixar o cu, essa cabeça, rastejar até mim, até mim, junto a mim!!’ Todos ali ao monte, todos amontoados, uns por cima, outros por baixo. ‘A tropa é linda? É! A tropa é linda? É! Filhos da puta, a rastejar até mim!!’”
Vet. #2: “Nós saímos de casa com uma mentalidade de que era… de que era preciso matar. Fazia-se gáudio disso. Era uma honra.”
Enquanto isso, Mantero dança como se o seu corpo fosse descontínuo. Mantém o tronco direito, raramente dobra as costas, os braços e as pernas giram das articulações como pêndulos, mantendo ângulos retos. Mantém uma expressão concentrada, como se aquela abstração fosse parte da mais articulada e significativa atividade. Esquiva-se, não fica num sítio mais do que um instante. Não há fluidez no seu movimento constante; tudo é feito de partes descontínuas, segmentadas e isoladas, da mesma maneira que o movimento de uma sequência fílmica é feito de imagens fotográficas distintas. É impossível ter uma sensação de completude – de uma dança inteira, de um corpo inteiro. Os meus olhos saltam daqui para ali tentando seguir o seu corpo, e sobretudo desistindo porque os meus ouvidos querem focar toda a minha atenção na banda sonora emendada, e escuta-se melhor quando os olhos descansam imóveis. Vislumbres oblíquos então, uma e outra vez em direção ao palco, com ela a escapar-me a maioria das vezes, porque já se tinha mudado para outro sítio. Tal como mencionei anteriormente neste ensaio, o ecrã da minha memória desta dança é apenas sonoro. Quando comecei a escrever estas páginas, não conseguia de todo lembrar-me da dança. Pedi a Mantero um registo vídeo da peça. Ela enviou-me um, feito por um videasta profissional. Coloquei a cassete no meu gravador de vídeo e deixei correr. O nervosismo da câmara é quase patológico. Não há um só segundo em que a câmara não se mova sobre o corpo de Mantero, fazendo zoom para dentro e fora do palco, captando partes do corpo ao acaso, caindo em sequências aleatórias como se procurasse, no seu zoom frenético, um corpo que afinal estaria bem ali. Surpreendo-me ao reconhecer que, muito embora Mantero não ande a correr pelo palco, escapa constantemente ao confinamento ótico da câmara. Tal como tinha prometido no início da peça, é como se, de facto, “Eu neste momento não estou aí”. As suas movimentações descontínuas provocam o falhanço absoluto da documentação; mas também produzem o efeito de distração no meu inconsciente ótico. O registo de vídeo da dança do existir de Mantero, ziguezagueante, nervoso, permeado de vislumbres oblíquos de um corpo que se esquiva da captura, é o registo mimético do muito particular e radical manifesto sensorial dessa dança.
O solo de Mantero performa um momento de suspensão histórica, de interrupção, de rutura, um momento que ilumina as margens de um campo repressivo de silenciamento e de empoeiramento históricos. O catalisador da minha busca oblíqua através dessas imagens, perceções e emoções deslocadas, em fuga, foi uma dança de que me lembrava principalmente como som. Dança: câmara de eco onde memória, movimento e violência se entrechocam, moldando corpos, coreografando identidades, rearranjando alteridades.
Traduzido do original em inglês por Paula Caspão.
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[1] Este ensaio foi escrito no ano 2000 e publicado originalmente em francês na revista Protée, em 2001. Trata-se de uma versão muito reduzida de um capítulo com mesmo título da minha tese de doutoramento, Dancing Without the Colonial Mirror (2000). A vontade dos editores do Coreia de o traduzir e o publicar hoje, em Portugal, talvez indique que a “contemporaneidade” dessa dupla crise que o texto discute ainda subsista – duas décadas mais tarde. Aos leitores, cabe decidir se de facto assim é.
[2] Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991), 43.
[3] Allen Feldman, “From Desert Storm to Rodney King via Ex-Yugoslavia: On Cultural Anesthesia”, em In The Senses Still: Perception and Memory as Material Culture in Modernity, ed. Nadia Seremetakis (Chicago: The University of Chicago Press, 1996), 89.
[4] Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. 2.ª ed. (Lisboa: Gradiva, 1999), 67-68.
[5] Norbert Elias, The Civilizing Process (Nova Iorque: Urizen Books, 1978).
[6] Ver Feldman, “From Desert”, 87.
[7] Ver Feldman, “From Desert”.
[8] Nadia Seremetakis, “The Memory of the Senses, Part II: Still Acts”, em The Senses Still. Perception and Memory as Material Culture in Modernity, ed. Nadia Serematakis, 23-43 (Chicago: The University of Chicago Press, 1996).
[9] Seremetakis, “The Memory of the Senses, Part I: Marks of the Transitory”, 12, em The Senses Still.. A noção de “poeira histórica” é de Walter Benjamin. Para Benjamin, a natureza da sociedade mercantil foi capturada na imagem da ruína – daí a importância da poeira. A poeira, como imagem dialética, expressa a forma como a impercetível sobreposição dos acontecimentos históricos anestesia os sentidos, num silencioso processo coletivo de repressão como sedimentação. Para Benjamin, “a história está tão quieta que acumula poeira”, escreve Susan Buck-Morss – mas também, pode acrescentar-se, a história produz poeira de modo a performar o seu movimentado espetáculo de progresso. O Portugal contemporâneo sufoca soterrado nestas duas visões de poeira histórica. Mantero literalmente traz “poeira histórica”, como índice dessa violência, ao palco: nos seus ténis empoeirados pela terra vermelha da ex-Jugoslávia em guerra, partículas das quais se desprendem ao longo de A Dança do Existir.
[10] Vera Mantero, notas coreográficas para a criação de A Dança do Existir. Caderno de notas intitulado “O Meu Trabalho”.
[11] N. da T.: a possibilidade do trocadilho é mais sonante no termo inglês “re/membering”, que aponta claramente para a profunda implicação entre o ato de relembrar e o movimento de re-com-posição entre as várias partes que fazem um corpo.
[12] Sobre as implicações teóricas deste re/membering, em particular para a dança contemporânea, ver Gabrielle Brandstetter e Hortensia Völckers, eds., ReMembering the Body (Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz Publishers, 2000).
[13] Mark Franko, Dancing Modernism / Performing Politics (Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1995), xii.
[14] Franko, Dancing Modernism.
[15] Maria José Fazenda, “Apenas com o Corpo, a dança não consegue dizer tudo”, Público, Outubro, 15 (1993), 28.
[16] Eduardo Lourenço escreve: “Durante treze anos de guerra colonial na Guiné, em Angola e em Moçambique, milhares de quadros milicianos, estudantes, médicos, intelectuais foram mobilizados para a última e absurda cruzada contra o independentismo africano. A história desta mobilização massiva (…) não está escrita.” Ver Lourenço, Portugal como Destino, 69.
[17] Walter Benjamin, “Theses on the Philosophy of History”, em Illuminations, ed. Hannah Arendt, 253-264 (Nova Iorque: Schocken Books, 1969), 222.
[18] Ver Michael Taussig, The Nervous System (Nova Iorque e Londres: Routledge, 1992), em particular a introdução e os capítulos 7 e 8.
[19] Ver Feldman, “From Desert”, 90.
[20] Seremetakis, “The Memory”., 23.
Piny O Corpo e a Cidade
Pensar o corpo dentro da cidade e a cidade que envolve o corpo é necessariamente pensar como ambos se constroem através das políticas vigentes e das condições sociais. A dança (informal, tradicional, de rua, urbana) é simultaneamente corpo, espaço, celebração, protesto e resistência. É fruto das contingências de onde se vive, das necessidades de cada pessoa ou grupo, e dos processos económicos e sociais de cada tempo.
Em 2007, no final da licenciatura que completei em Arquitetura, escrevi uma tese sob o título (Etni)cidade – Tipos habitacionais existentes no bairro do Alto da Cova da Moura – caracterização e qualificação, orientada pela Profª Isabel Raposo com colaboração do Moinho da Juventude. Fiz entrevistas e desenhos (plantas e alçados) das habitações, que foram entregues aos donos/habitantes/construtores das mesmas. A sua formalização em papel não as tornou mais reais, mas como a tradição oral existe sem necessitar de registo, se fossem destruídas sem documentação ficaria apenas a memória, até que nem a memória restaria. A preservação do património construído é uma das bases da construção da identidade coletiva, e parece-me importante pensar o que define, e quem define, o que é património e porquê. Se a conservação define a importância de um edifício, essa escolha determina à partida o que ficará registrado na história e as referências para as gerações futuras. Define, portanto, o que é relevante, sendo que o que não é considerado importante desaparecerá sem registo, e isto pode ser manipulado por forma a escrever apenas uma parte da história, que será sempre uma versão da realidade, porque há inevitavelmente uma seleção do que interessa manter ou esquecer.
As danças de cariz informal nascem como as casas que um dia estudei, vão nascendo consoante a necessidade, respondem ao momento em que vivem, às políticas impostas, às restrições a que os corpos estão sujeitos, aos espaços de liberdade e opressão, ao que está disponível, e vão-se alterando a cada nova possibilidade.
No início do século XVI, em Lisboa dançava-se o Lundum, o batuque e a charamba. Estas danças foram trazidas por marinheiros e pessoas escravizadas de origem africana, e tinham muita popularidade nas ruas de Lisboa até ao século XVIII. “Os termos utilizados com referência à dança do Lundum eram ‘bater’ ou ‘riscar’, com movimentos (considerados) sensuais de aproximação do ventre, a umbigada. Existe uma possibilidade de que as primeiras versões do fado que eram dançadas tenham a sua origem no lundum. […] Algumas destas danças de origem africana tinham nomes curiosos como Canário, Guinéu ou Charamba, a Fofa, o Sarambeque, para além de Lundum e Fado”[1].
As migrações, muitas vezes forçadas, e a vivência da rua boémia e da cidade sempre originaram danças e música. Normalmente eram proibidas, esquecidas ou alteradas, e passavam de um contexto informal e de rua para um contexto elitista e dentro dos parâmetros considerados aceitáveis.
Em julho de 1974, três meses após o fim do Estado Novo, pela “Lei da Descolonização”, Portugal reconheceu o direito dos povos dos territórios colonizados à autodeterminação. Esta parte da história determina em muito a cidade de Lisboa, os corpos na cidade e o meu corpo também. Em 1975, a minha mãe chega a Portugal vinda de Luanda, sozinha com a minha tia. O meu pai chega depois.
A natureza das políticas adotadas e as suas consequências afetaram muito, e até hoje, as populações afrodescendentes, assim como populações migrantes de diversas origens, que chegam às cidades e encontram uma forte marginalização social e residencial. Isto acontece também no espaço metropolitano de Lisboa. Estas áreas, que crescem e se alteram constantemente, propiciaram desde a década de 1980 outro cruzamento que veio a fazer parte de mim, através das culturas urbanas nascidas nos Estados Unidos da América. Fruto da resistência e sobrevivência das comunidades afro-latino-americanas nos subúrbios das grandes cidades, foram criadas música e dança, que circularam primeiro em VHS e K7, depois via internet, e posteriormente através de filmes, livros, viagens e intercâmbio cultural direto, até ocuparem o seu espaço em diversas cidades por todo o mundo, como em Lisboa.
É interessante pensar como toda a diáspora se conecta e se interliga através da identificação coletiva, ainda que espalhada pelo mundo.
Em Lisboa houve e há cruzamentos de linguagens próprias, que se podem desenvolver, estudar, potencializar, e são únicos. Há uma história que se conta através dos corpos que habitam os espaços informais e, agora, os ecrãs do telemóvel, como palco em autogestão. Há potência no discurso do corpo que dança, não moldado unicamente pela academia branca ocidental; há potência nos cruzamentos que se criam pela coabitação de corpos diferentes, de histórias diferentes, de pessoas que não se querem iguais mas se respeitam e se orgulham das suas heranças. Há potência no cruzamento entre o informal (que cada vez mais se escreve, como os desenhos das casas) e a formalidade do estúdio de dança, do espaço performativo e formativo. A formalização solidifica mas não tem de congelar. Estas danças são vivas e sempre mutáveis, mutantes, em transformação.
Na década de 1980, o Hip Hop tomou conta. Como cultura urbana considera-se que é composto por cinco vertentes: dança, grafitti, mcing, DJ e knowledge. O breakdance, nascido na Costa Este dos EUA, foi a primeira manifestação da dança. A ele juntaram-se o Popping e o Locking, que surgiram na Costa Oeste, e estes três estilos são hoje considerados old school. Falamos hoje em danças urbanas, danças de rua, clubbing, ballroom, e ao olhar de fora cada um destes universos pode ser considerado semelhante e até pode ser confundido. Por vezes estes termos são utilizados incorretamente e associados a uma geografia única, quando há danças de rua específicas de cada país e mesmo de cada cidade por todo o mundo. Em 1999 comecei o meu estudo em danças do Norte de África e Médio Oriente e a partir de 2003 mergulhei na magia das danças urbanas afro-norte-americanas.
Ao procurar que manifestações teriam sido estas em Lisboa em décadas anteriores, por forma a entender as influências constantes dos encontros e das diásporas, vejo que a maior parte das danças denominadas urbanas ou de rua que existem em Lisboa desde finais do século XX estão diretamente ligadas à história colonial e à construção da cidade. Estas danças, como manifestação cultural e social, de celebração, de resistência, de emancipação, de luta, de questionamento e subversão, de criação de códigos, de criação artística e de discurso, não têm tido o espaço e a atenção devida. Têm sido apenas curiosidade e exotismo. A herança negra e a do povo de etnia cigana no fado dançado e no flamenco vizinho fazem parte destas heranças históricas, e urge investigar e recuperar, pois têm sido continuamente apagadas.[2] Para entender melhor a realidade de hoje é urgente ir um pouco mais atrás, anos, décadas, séculos, e criar pontes e paralelismos que nos permitam criar uma nova versão e história.
Ainda dentro da cultura afro-norte-americana, surge mais recentemente na cidade o Krump, o Lite Feet, o Turfin, entre outras; dentro da cena clubbing, já não na rua mas ainda dentro do contexto urbano, existe o House como manifestação maior de uma herança ritual e fusão absoluta de danças de origem africana, latinas e até europeias (referência ao Ballet e à influência do sapateado irlandês na construção do sapateado americano). Entre o Disco e o House surge o Waacking, resistência pura através da celebração, e hoje inicia-se com um atraso de vinte anos em relação ao resto da Europa, uma comunidade Ballroom, onde se insere o Vogue, por uma população jovem, negra, lgbtqia+, portuguesa e não portuguesa que reside na cidade e a altera.
Outras danças ocupam a periferia de Lisboa e até as escolas de dança não académicas, como o Kuduro (de Angola) e o Afro House (com origem na África do Sul) e tantas outras que ficam a faltar.
A história das danças de rua em cada cidade estará sempre indissociável da história política a cada tempo, da interculturalidade, das gerações que procuram a descolonização do corpo, dos territórios e da linguagem, o fim da segregação, do racismo, e a resiliência na manutenção dos seus códigos culturais, música, dança e práticas sociais. Temos Capoeira, o nosso Carnaval tem Blocos, Samba, e Lisboa hoje é presenteada com Forró, Funk e corpos jovens, artistas, negros e brancos, feministas, travestis, trans, corpos que fugiram de um clima político opressor, machista e racista, na procura de um espaço mais livre e seguro, que nem sempre se apresenta como tal. O Brasil existe bem vivo e presente aqui. A cidade muda outra vez, porque o corpo da cidade é um corpo híbrido, vivo.
O território não é mais o que dita de onde somos e os espaços que ocupamos, assim como a família formal não é mais obrigatoriamente quem nos abriga como sítio de pertença. As danças que brevemente mencionei aqui trazem com cada uma delas uma história profunda, longa, ancestral. São a escrita sem palavras de uma história, como as casas e a cidade. São importantes, essenciais e têm de ter espaço, mais espaço, mais apoio e maior visibilidade.
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[1] Ver Infopédia, entrada relativa a lundum: https://www.infopedia.pt/$lundum.
[2] Ver o documentário “Gurumbé. Canciones de tu memoria negra”, de Miguel Ángel Rosales.
Miguel Oliva Teles Empatia, Medicina e Corpo
a partir do livro Anda, Diana, de Diana Niepce[1]
Isto não é uma recensão crítica. Nem uma análise ou uma síntese. Isto é a força de Anda, Diana e o que a sua leitura em mim suscita. Muito me surpreenderia que, uma vez lido este testemunho, pudesse restar em alguém, de todas as coisas possíveis, indiferença. Ou talvez isto até possa acontecer e haja, bem dentro do livro, algo que nos avisa para isso mesmo. A mim, depois de lê-lo, não vejo outro caminho senão pensar e agir nesse espaço que a Diana abre de forma tão desabrida.
EMPATIA
Em Anda, Diana há muita coisa. Há a experiência de um corpo que, numa cambalhota, se desliga, levita e muda. Há o confronto abrupto entre duas Dianas, pondo em causa de forma violenta, repentina e absurda a utopia do corpo normalizado. Há um intruso e a concretude de se viver a alteridade dentro do próprio corpo. Há o amor e a sexualidade. Há a conciliação de uma ferida com um mundo – ambos gerados da quebra, do rasgo e da ruptura. E há um questionamento fundo e impiedoso do que é doença, saúde e medicina.
Há muita coisa em Anda, Diana. Mas há uma que se destaca: Anda, Diana é também uma avassaladora e inquietante mostra da falta de empatia que grassa à sua volta.
Começa logo nas primeiras páginas. É o “Dia 1” deste diário. Diana, 27 anos, bailarina, cai de um trapézio, “a cervical bate no chão” e há “o barulho de ossos a partir”. Numa questão de segundos, não se mexe para baixo do pescoço. Chega uma enfermeira e logo a seguir mais um. Entre eles, comentam: “Ela está consciente? Está e não se cala.” Daqui passará para os cuidados intensivos, onde não é só suporte que a espera, mas também o terror (“Se não te acalmas, amarro-te”). O diagnóstico: lesão medular. E a saga assim continua. Com mais profissionais de saúde. Com a família, os amigos e os amantes. No meio artístico, onde há caras familiares que se viram (constrangidas?) e episódios absurdos de inacessibilidade. Continua, enfim, no mundo – “fora do centro de reabilitação”, “fora dos muros”, fora de Diana – um mundo que, a partir de então, não a contempla e a invi(si/a)biliza.
Mas não é fácil a empatia, que se reconheça e experiencie uma experiência de outrem. Ao mesmo tempo, talvez não seja tão difícil. Ao ler Anda, Diana penso haver uma relação entre a empatia (ou a falta dela), a medicina (na sua prática e pensamento ocidentais) e o corpo (não como construto, mas na sua materialidade, posição e movimento).
MEDICINA
O pensamento e a cultura ocidentais são orientadas para e pela ordem, para e pelo que é certo. Interessa o que funciona, o que está de acordo. E tudo orbita certas[3] dicotomias: há o bem e o mal, o certo e o errado. Há, de um lado: o funcional, o útil e a verdade. E do outro: a anomalia, o improfícuo e a mentira. Neste paradigma, o interstício é o pavor, porque nele (esse fora, esse entre) degenera a incerteza e a sombra, habita a diferença e não o mesmo. E assim, o erro e a dissonância são preteridos numa ética que se desfasa do real, que o rejeita e o afasta[2].
Desenvolvendo-se no seio deste paradigma e também para ele contribuindo, a medicina poderia dizer-se como que orientada para um fim pré-determinado. É muitas vezes isto: surge um problema, uma disfunção, uma anomalia e o seu papel é corrigi-los. A missão é consertar esta desordem e trazer de novo harmonia. Desta forma, também a medicina pode facilmente repudiar o erro e a discórdia, se procurar cegamente o equilíbrio, a normalidade e a função. Pergunto: onde caberá a empatia nesta prática heroica que se impõe, anulando e rejeitando o que considera desvio? Encadeando tudo com uma luz purificadora, potencialmente violenta nessa tentativa de trazer a paz e a ordem que ela própria supõe?
O mais irónico é que esta medicina, ao contrário do que anseia e alega, contém em si mesma uma grande parte de incerteza. Mas quando encontra o desvio, o irresolúvel ou o desconhecido – frustrada e ansiosa – tende a evitar, a normalizar ou a corrigir de volta o que a desconforta para águas mais certas. Pergunto: que resultado (nocivo?) tem esta rejeição ou revisão do que está para lá da margem? E quão perverso será que seja a própria medicina a definir as fronteiras do que ela própria esconjura?
Diana diz-nos, a certa altura: “Quando me vejo ao espelho já não vejo um escaravelho, mas também já não vejo uma borboleta. Vejo antes uma escaraleta ou um borbovelho.” Ela está no meio. Entre duas Dianas. Entre dois corpos. Entre uma bela criatura e um bicho feio. Diana posiciona-se, mostrando a farsa por detrás dos pares e das dicotomias e o valor da ambiguidade.
Estaremos mais em paz com o nosso corpo e as nossas experiências se nos assumirmos ambíguos e se nos movimentarmos nas águas fluidas entre extremos? Talvez seja isto estar-se saudável. Para além de disfunção, de alteração bio-fisiológica e de normalidade, saúde pode considerar-se como a experiência transparente de cada um com o seu corpo: o não se sentir nele estrangeirado, dele alienado, ou tendo-o como objeto de estudo e intervenção. A “vida vivida no silêncio dos órgãos”[4]. Estar com o corpo como estar em casa[5] .
CORPO
Num encontro médico não há só um corpo ou uma vida que se entrega aos cuidados de outrem. Há dois corpos que se encontram. Podemos, por isso, perguntar-nos: que corpo tem sido o desta medicina?
A medicina ocidental moderna parece seguir, desde a sua origem, um vetor que é frontal, reto e irruptivo. O corpo doente é encarado de frente, com uma mirada intransigente, autoritária e que não o contempla, mas que o penetra na direção de um (suposto) problema. Depois, há lugar a uma intervenção que, geralmente, o irrompe ou o invade e que o leva – numa linha que é reta e rígida – desse suposto erro à sua correção[6]. Assim, seja de dentro-para-fora (como as flebotomias e as práticas purgativas, frequentes na época pré-moderna, que expurgavam os humores nocivos ou em demasia[7]); seja de fora-para-dentro (pela invasão dos tubos, dos fios, fármacos e dispositivos que vão corrigir o mal que vai dentro); o vetor tem sido o mesmo: frontal, reto e irruptivo.
Voltemos à Diana. “Dia 4. Acordo com os tubos a sufocar-me […] A enfermeira diz: ‘Não chores’.” O sofrimento pode ser também um erro, a disfunção numa vida que se quer, imperiosa e intransigentemente, feliz. Talvez até seja a sua forma mais abjeta e temerosa. Encaramo-lo, por isso, primeiro com terror. E desse susto, a primeira resposta pode, geralmente, ser esse vetor corretivo: expurgar o horror, retirá-lo de dentro do corpo onde reside; ou afastá-lo, no sentido inverso, para longe de nós. “Não chores.”
Chego então aqui ao fulcro: é a falta de empatia que inviabiliza um encontro médico generoso, onde os corpos estivessem juntos e não assimetricamente dispostos num movimento que impõe a norma. Que ignora o ambíguo e o desconhecido. Que irrompe e rouba tanto quanto acerta. Que cura mas não cuida.
BORBOVELHOS ANDAM, ESCARALETAS VOAM
A empatia não é só um processo cognitivo ou individual, nem um processo passivo e distanciado de leitura ou simulação. A empatia faz-se e acontece em conjunto e primeiramente no corpo, sendo um processo de inter-afetividade e ressonância corporal. Nela dá-se uma troca de afetos e é o corpo, primariamente, o lugar onde eles se integram e se tornam experiência[8].
Que movimento a empatia instala no encontro médico? Que corpo é que a empatia promove? Não poderá ser reto – o vetor dos afetos é um turbilhão de linhas entre os corpos, luzindo para todos os lados. Nem tampouco frontal – o corpo que empatiza é um corpo aberto, disposto à ressonância, é côncavo: um arco ou um vaso. E não será irruptivo, porque a empatia, sendo abertura, acolhe e permite, manipulando menos do que o que oferece de cuidado e de ajuda. Nem frontal, nem reto, nem irruptivo. O corpo do movimento empático é sendo-para-outrem, não só permitindo e amparando o erro e o ambíguo como definindo-se e transformando-se por ele e com ele. O corpo empático promove, assim, o poder ontológico, ético e político da generosidade[9]– não mais uma virtude dentre outras (no domínio do que se delibera), nem fruto de uma lógica individual de propriedade e dádiva, mas primeiro essa abertura: uma disposição que é excesso, entrega e desmesura. Empatia e generosidade: ambas acolhimento e dádiva, como um duplo movimento a que também poderíamos chamar doçura[10].
Quão diferente seria se Diana pudesse afinal contar-nos: a enfermeira diz: “Chora, Diana“? Ou que não o dissesse de todo, mas apenas mostrasse esse acolhimento, essa disponibilidade, com o corpo. Os olhos encarando os outros. O tronco côncavo, relaxado, ligeiramente curvado para a frente e para dentro. E talvez até um ombro, um braço e uns dedos que se aproximariam num arco (não de frente), curvando-se de baixo e para o lado, pousando muito levemente num outro ombro, ou braço, ou dedos.
Acolher assim o erro, o sofrimento, não será jamais promovê-lo, mas aceitar que existe e não fazer de quem o experiencia uma ente duplamente sofrida. Sofrendo pelo sofrimento e também porque está sofrendo. Sozinha e ilegítima.
Quão diferente seria?
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[1] Diana Niepce, Anda, Diana (Lisboa: Sistema Solar, 2021)
[2] Friedrich Nietzsche, Introdução ao estudo dos diálogos de Platão (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020).
[3] Ronald Domen, “The Ethics of Ambiguity: Rethinking the Role and Importance of Uncertainty in Medical Education and Practice”, Academic Patology, 3 (2016).
[4] Conceção de saúde de Havi Carel. Ver Bas de Boer, “Experiencing Objectified Health: Turning the Body into an object of Attention”, Medicine, Health and Care Philosophy, 23 (2020).
[5] Conceção de saúde de Fredrik Svenaeus, ibid.
[6] Michel Foucault, O nascimento da clínica (São Paulo: Forense Universitária, 2019).
[7] Ver Robert Sullivan, “Sanguine Practices: A Historical and Historiographic Reconsideration of Heroic Therapy in the Age of Rush”, Bulletin of the History of Medicine, 68 (1994).
[8] Florian Schmidsberger e Henriette Löffler-Stastka, “Empathy is Proprioceptive: The Bodily Fundament of Empathy – A Philosophical Contribution to Medical Education”, BMC Medical Education, 18 (2020).
[9] Rosalyn Diprose, Corporeal Generosity (Albany: SUNY Press, 2002).
[10] Anne Dufourmantelle, Puissance de la douceur (Paris: Payot, 2013).
Diana Niepce Chiara Bersani Carla Fernandes Sejamos Unicórnios
A conversa que aqui se transcreve, entre as artistas Chiara Bersani, Diana Niepce e a jornalista e ativista cultural Carla Fernandes, aconteceu no dia 14 de novembro de 2021, após a segunda apresentação de Gentle Unicorn (2019) de Chiara Bersani na Sala Estúdio do Teatro Nacional Dona Maria II, no contexto do Alkantara Festival 2021.
Carla Fernandes: Como te sentes hoje?
Chiara Bersani: A dança e o público são uma parte importante da performance, da experiência e da viagem. Todos os dias me surpreendo e hoje foi bastante doce e íntimo. Não é sempre assim. Às vezes é muito sombrio. Por exemplo, ontem foi muito cómico, não sei bem porquê! Em Edimburgo, o público fartou-se de rir. É sempre uma experiência diferente. Às vezes há pessoas que não querem ter nada que ver comigo, o que não tem problema, mas conseguem ser um bocado violentas.
Diana Niepce: A relação que tu crias é muito íntima e forte. É extraordinário ver um corpo extraordinário mover-se duma forma politicamente tão gentil. Tocou-me bastante, e fiquei emocionada no final, porque há algo de muito belo nestes estados que vais alcançando pela maneira como moves o teu corpo para criar uma ligação com o público. Foi também uma das poucas vezes que pudemos ver uma artista com deficiência a apresentar o seu próprio trabalho aqui em Portugal. Foi uma experiência impagável, luminosa e única.
CF: A minha primeira pergunta tem que ver com o nome do espetáculo. O que te levou a pensar que este título [Gentle Unicorn] seria um bom veículo para transmitir o significado político do corpo na sua interação com a sociedade?
CB: A história verdadeira é muito estúpida.
CF: Passeamos, então, de interação política para isso! [risos]
CB: Eu estava na casa da minha mãe e tinha acabado de a ajudar a instalar um novo modem para o wi-fi. A palavra-passe era “Gentle Unicorn”. Normalmente as palavras-passe são do género “ABC” ou “123”. Essa noite liguei a um amigo que também é coreógrafo, o Marco D’Agostini, e contei-lhe a história e ele disse-me: “Esse vai ser o nome do teu primeiro solo.” Esta é a primeira parte da história. Depois fui pesquisar sobre a história do unicórnio e apercebi-me de que o unicórnio não tem história. Eu tinha a certeza de que o unicórnio estaria de alguma maneira relacionado com a mitologia grega, mas, na realidade, é só uma história comum. Havia um homem na altura do Império Romano que dizia às pessoas que tinha visto um unicórnio numa viagem à Índia, um animal com um grande corno que fazia coisas mágicas. Esta história começou a espalhar-se e, ao longo da história da humanidade, as pessoas começaram a associar diferentes significados ao unicórnio. Em algum momento foi até considerado importante para os movimentos católico e satânico. Eu achei isso tudo muito fascinante porque, se falas do corpo, que é algo muito simples, começas imediatamente a ser político e a atribuir-lhe interpretações diferentes. O unicórnio era perfeito. E “gentle” [gentil] porque estava na palavra-passe da minha mãe, mas também porque apesar de estar sozinha no palco durante toda a performance tenho próximas pessoas, como a Isabella, que é música; a Giulia Traversi, que é curadora; e a Valeria Foti, que é desenhadora de luz. A ideia de usar o adjetivo “gentil” surgiu porque não queríamos começar de um lugar zangado. Eu estou sempre zangada, mas queríamos manter um diálogo num ambiente mais gentil e ver o que aconteceria.
CF: Uma das coisas que vem à cabeça quando se pensa em unicórnios é que, por exemplo, quando se diz “eu sou um unicórnio” isso significa “eu sou estranha e fora da caixa”.
D: Ou que estás numa relação a três, em que o unicórnio é a terceira pessoa. Tem muitos significados diferentes.
CF: Exatamente. Em que te faz pensar esta criatura?
D: Como sou bailarina tenho muito interesse na linguagem corporal e no hibridismo do corpo que se está sempre a transformar e a trazer camadas de diferentes estados que criam tensão para o público. Esta ideia do corpo que produz esta criatura ser absolutamente detalhado, gentil e sedutor, é como se fosse poesia. Há um excerto específico que [a Chiara] escreve na carta que dá ao público, alguma coisa como: “Como não posso escolher morrer, chego agora ao momento mais humilhante da minha idade avançada, serei apenas este cavalo com um corno e um arco-íris a sair do meu rabo.” O unicórnio invoca também este estado sarcástico de uma idade avançada, a deficiência num corpo político. Este excerto reflete a minha pessoa, por isso, de alguma maneira posso dizer que me transformo no vosso unicórnio. Consigo rever-me nisso. Também acho que muitas das pessoas que assistem ao espetáculo também se apercebem da sua própria fragilidade e dos corpos estranhos que todos temos e que estão num estado híbrido de transformação e mutação.
CF: Numa entrevista que a Diana deu sobre o corpo, ela dizia: “O meu corpo é um acidente e penso que todos os corpos são acidentes da sociedade, por isso tento criar um choque entre corpos que são convencionais e não convencionais. São muito semelhantes, na verdade, e não se consegue compreender qual é a convenção. As pessoas com deficiência não costumam mostrar os seus corpos, por isso gostaria de o fazer. É bastante interessante ver que não somos todos iguais.” Estava a olhar para a Chiara e a pensar que ela estava a ser muito vulnerável, e depois apercebi-me de que eu também me sentia vulnerável.
D: Esta vulnerabilidade acontece porque a Chiara domina todos os aspetos do que está a acontecer, ou seja, a ligação com o público.
CF: De certa forma, é uma espécie de orientação que dás ao público: “Olha para os meus dedos a mexerem, olha para o meu pé a mexer, olha para a minha maneira de olhar para ti.”
D: É sobre um corpo utópico, de como as normas e o sistema nos programam para entendermos o corpo, por exemplo, de como se deve pegar um copo de água. Eu tive um acidente e fiquei tetraplégica. Quando se renasce num novo corpo, é preciso programá-lo “do zero”, e as pessoas diziam “não se deve levantar o assim”. Porque é que não me é consentido fazê-lo como posso? Quando fazia algo diferente, como o gesto de pegar um copo de água, as pessoas diziam: “Não, não, deixa que eu faço.” Mas depois fiquei a pensar: “Eu posso fazê-lo à minha maneira.” Quando estava a recuperar das lesões, tinha todos estes graus de aprendizagem de como fazer certos movimentos. Neste momento, penso: “Porque não posso fazer isto à minha maneira? Porque é que as pessoas não conseguem lidar com isso?”
CF: Afinal de contas existe uma convenção?
D: Ensino bailarinos sem deficiências a andar e a transferir o peso corporal e a usar os músculos flexores para puxar a perna para cima. Eles dizem: “Uau, andar é tão diferente e tão difícil”, e eu fico do género: “Bem, sim, e eu estou numa cadeira de rodas!” Isto é o corpo político: ser levada à especificidade do teu movimento singular, e é absolutamente extraordinário quando o público deixa de julgar os nossos próprios movimentos e se deixa seduzir por eles. Quando a Chiara se sentou nele [aponta para alguém na audiência], ele primeiro não sabia o que fazer, depois começou a tocar no cabelo dela, depois ficou muito quieto, como se fossem um só corpo. Foi muito bonito por causa deste momento de “o que devo fazer?”. Será que ele vai fugir? Vai puxá-la ou o que é que vai acontecer? Estas pequenas surpresas são o que torna este trabalho extraordinário.
CB: Quando o Gentle Unicorn nasceu, a proximidade com o público era totalmente diferente da atual. O espetáculo nasceu com a ideia de que eu não tocava em ninguém, de que ficava um pouco distante do público, e o meu desejo era entreter a ideia de que algo pode acontecer, mas não acontece. A questão é que no meio aconteceu a pandemia, e quando recomeçámos a trabalhar, na primeira performance que fizemos na Biennale di Venezia, foi tudo muito violento, porque as pessoas, como agora, estavam com máscara a uma distância de dois metros, e a distância mais a máscara era como um jardim zoológico, um safari. A distância era realmente violenta. Por vezes, eu sentia-me um autêntico animal estranho, um estranho humano sem contacto com as pessoas porque não tinham um rosto, apenas o olhar, não tínhamos proximidade, não tínhamos nada. Às tantas pensámos que talvez não fosse possível fazer o Gentle Unicorn durante os tempos de pandemia. Queríamos relacionar-nos com o presente, mas não parecia razoável. Por isso decidimos tentar mais uma e outra vez, e penso que descobrimos que se eu não tinha a cara das pessoas, se não podia ter apenas o olhar, precisava de um corpo, precisava de algo. Sei que a proximidade é uma questão muito delicada, porque para muitas pessoas não é aceitável ter contacto físico com alguém e sei também que o meu corpo não é assim tão simples para os outros. É um corpo muito intenso mas, a cada momento, estou aberta e sorridente. É possível que alguém não queira ter contacto físico comigo. Tento, não sei se acontece, mas tento dizer, perguntar se posso ficar perto de cada pessoa.
CF: Perguntas através do movimento?
CB: Sim, quando a música parou, por exemplo, abri os olhos e fizemos contacto visual e para mim isso quer dizer “tudo bem, eu consigo lidar com isto” e por isso tento…
CF: Foi muito curioso porque a música acalmou e depois subiu de tom. Algo se abriu, não sei se foi o ambiente que ambos criaram, mas algo mágico aconteceu através dessas coisas técnicas. Como é que sabes que podes avançar — através do movimento, do olhar, do sorriso —, e compreendes que não há problema em seguir em frente?
CB: Eu tento perguntar se me posso aproximar, quanto tempo posso estar perto, se posso tocar, “sim”, “não”. Se a pessoa não quiser, tudo bem, também podemos ter uma relação de outra forma ou não ter. No momento em que a música pára e a luz é tão precisa é porque, na dramaturgia, corresponde ao momento em que vejo pela primeira vez o público. É um momento muito frágil para mim porque também tenho medo de olhar para o público, não é só o público que tem medo de mim. Medo porque não sei quem são, se querem ficar comigo ou se me querem matar. O momento no canto do palco é muito importante no meu percurso. Esse canto é o lugar onde faço um pequeno mapeamento do público e encontro a minha zona de conforto. Nesse momento reconheço os meus amigos e coloco a minha pequena “casa” às costas e sei então que posso começar. Se as pessoas estiverem abertas, é um momento muito bonito para mim; se as pessoas estiverem fechadas, é “ok, foda-se”.
CF: A vida continua. Também falavas sobre o corpo como um arquivo…
CB: É uma questão complexa porque está relacionada com a deficiência. Nós temos uma experiência diferente — e é diferente porque o meu corpo é aquele corpo desde o início da minha vida, mas ninguém na minha família tem o meu corpo, a minha deficiência. Se eu realmente tivesse uma árvore genealógica diferente, eu teria a árvore genética — o meu pai, a minha mãe, etc. —, mas também teria uma composta por outras pessoas com a minha doença genética. É muito complexo para pessoas com osteogénese imperfeita terem uma categoria clara para as diferentes tipologias da doença. Não é claro porque é que somos todos tão diferentes. Não é uma coisa poética, é real. Nós somos loucos, os nossos corpos são completamente anárquicos e, na estranha relação com todas as pessoas com osteogénese imperfeita que chegaram ao mundo antes de mim, eu sinto que de alguma forma, elas ensinaram-me algo sobre o meu corpo. Quando vejo um concerto de Michel Petrucciani,[1] quando observo pessoas diferentes com um corpo parecido com o meu, descubro sempre algo que reconheço, que tem uma ressonância no meu corpo. Se eu não pensar nisso, sinto que perco o meu arquivo.
CF: Vocês as duas têm experiências diferentes, então provavelmente os vossos arquivos devem ser formados de forma distinta.
D: Eu não nasci com deficiência, acordei com um novo corpo que não entendia e que nunca tive. Acordei num mundo completamente diferente que não conhecia.
CF: Então tiveste que recriar esse arquivo?
D: Eu precisava. Costumo dizer que reaprendi tudo e precisei de me apaixonar novamente pelo meu corpo e de entender as regras da sociedade. Eu sou uma pessoa muito chata, incomodo muita gente e não lido muito bem se alguém me diz “isto é assim, isto é assado”. Se for ao contrário preciso de perceber porque é que “isto é assim” e — de facto, eu tenho brigas por causa de pão às vezes, porque não percebo. Eu preciso de entender o enredo, o significado, e é muito frustrante porque na maioria das vezes sinto-me sozinha. Se eu não tenho os meus corpos fora do baralho, corpos fora da norma, corpos que funcionam comigo, sinto-me num estado de absoluta solidão, com o qual ninguém se pode realmente conectar ou entender. Há uma coisa que disseste que eu quero voltar a pôr na mesa: quando o público está a observar um corpo que não funciona de maneira normal.
CF: Ou que não funciona como o seu ou algo assim.
D: Com o privilégio de um corpo normativo. Tu transformas este olhar, que antes só existia em freak shows de feiras e circos, para algo espetacular que o corpo privilegiado não conhece. Quando vou à rua ou a um centro comercial, tenho pessoas a olhar para mim e esse olhar é porque sou diferente e estou numa cadeira de rodas. Este estado de conexão, de alguém a olhar para ti com este olhar perverso, é muito interessante para mim. Tu estás a trabalhar com gentileza e isso é um estado de revolução. Trabalhar de forma revolucionária, de forma política, com gentileza é absolutamente incrível, porque na maioria das vezes somos discriminadas e quando és discriminada começas a sentir pena de ti própria e a pedir desculpa e a dizer obrigada, “obrigada por ter uma rampa para mim”, “peço desculpa por precisar de uma rampa”. E isso vai parar a “obrigada por poder usar a casa de banho”. É muito frustrante.
Sobre o arquivo, há uma coisa que também me fascina, é a história do corpo que se vê no espetáculo e que muito raramente se vê nas artes performativas do mundo da dança. Eles têm todo um vocabulário de como um corpo se deve mover e como o corpo precisa de saber a técnica, clássica, contemporânea, jazz, o que seja, o Flying Low, etc., mas as pessoas com deficiência não conseguem fazer Flying Low. Então, ao trazeres essa singularidade de movimento que tem muita técnica de dança, mas não é o vocabulário normativo da dança, trazes uma nova história da dança, a história do corpo, a história real dos corpos que anulamos.
CF: Enquanto via o vídeo deste espetáculo, estava sentada com o meu filho de dois anos. Estava a ver na cozinha, um estava a gritar, o outro a tentar rastejar para o meu colo e eu fiquei do género “Não me consigo concentrar, o que é isto?” De repente, ele sentou-se e fez um gesto, sorriu e olhou para o vídeo. Esse movimento levou-me de volta aos meus arquivos de gravidez, quando ia ao médico e via o bebé lá dentro e os pequenos movimentos, a mão… Foi uma experiência muito transformadora porque eu estava a olhar para algum tipo de movimento essencial. Como disseste, tens a árvore genealógica, mas também o arquivo das pessoas que têm a tua deficiência, então estes são os meus arquivos como mãe. Este tipo de experiência é muito enriquecedora quando realmente te entregas à experiência do movimento, do olhar.
D: A memória do teu próprio corpo?
CF: É isso e eu acho mesmo que devemos prestar atenção a isso.
CB: Em cada cidade onde vamos, fazemos um pequeno workshop com um músico para construir a parte final do espetáculo. Nesse workshop formalizamos o que é o trabalho, qual é o nosso desejo, e há uma pequena história que contamos sempre. O Gentle Unicorn é uma situação em que duas pessoas estão a andar na rua em duas direções diferentes e, a certo ponto, vês a outra pessoa que está a vir na tua direção e há algo na outra pessoa que é estranho para ti. Não consegues reconhecer, há esse instante em que podes estar com medo ou tens um pensamento negativo, e tentas dizer “tudo bem”, porque a primeira reação é algo animal e não queres julgar. De cada vez dizemos ao músico que queremos trabalhar sobre esse momento e tentarmos ficar nessa caminhada, na direção da outra pessoa. Se tentares manter o olhar com a outra pessoa talvez possas reconhecer algo que conheces e talvez a tua ideia possa mudar, já que o meu corpo, que é tão estranho, deixa de ser assim tão estranho se começares a olhar para mim durante um tempo, e vires que tenho dois olhos e cabelo loiro e mãos… Não sei bem o que queres mas, se ficares comigo, reconheces algo e deixa de ser difícil ficar calmo, não ter medo. Pensamos isso para nós. A experiência é apenas essa: mantém-te calmo. Mantém-te no momento, não fujas.
D: Eu assisti a uma conferência sobre teoria Crip [Sinais culturais de queerness e deficiência, de Robert McRuer] e ele perguntava “Quando te olhas ao espelho vês-te como um deficiente ou só te vês a ti?”, e eu pensei: “Sim, são precisas duas pessoas para sentires que tens deficiência, porque se eu estiver sozinha o meu corpo funciona perfeitamente da maneira que funciona.” De uma forma diferente da antiga Diana, é certo, mas não me vejo com um problema. Se olho para mim ao espelho, porque é que vejo em mim problemas que sinto que tenho por não seguir a norma ou as normas privilegiadas da sociedade? Talvez fosse ótimo ter unicórnios por perto. Sejamos unicórnios e olhemos e fiquemos no olhar, para entendermos que cada um tem as suas especificidades. Espero que a tua viagem a Lisboa não esteja a ser muito desafiadora com os obstáculos na cidade. Ganhámos um prémio de acessibilidade em Portugal [Prémio de destino de Turismo Acessível 2019], não sei se sabes… [risos]
Transcrito e traduzido do inglês por Inês Ramos e José Gil.
[1] Michel Petrucciani (1962-1999) foi um pianista francês que nasceu com osteogénese imperfeita.
Andrei Bessa Giovanna Monteiro Leonor Mendes Roberto Dagô Vicente Antunes Ramos Quando Não Olhamos Sós
Como seria possível escrever coletivamente a partir da Composição em Tempo Real (CTR)? A CTR é uma ferramenta teórico-prática de improvisação em performance desenvolvida por João Fiadeiro em colaboração com outres artistas desde 1995. Entramos em contato com a CTR em 2021 no âmbito do Programa Avançado de Criação em Artes Performativas do Fórum Dança, contexto no qual nos conhecemos no estudo conduzido por João Fiadeiro, Márcia Lança e Daniel Pizamiglio.
Aplicar a CTR ao processo de escrita também foi uma maneira de irrigar este território com o pensamento coreográfico e performativo. O texto se tornou o frame da ação, onde o corpo coletivo sustentava a criação de um evento ao mesmo tempo em que as singularidades faziam e desfaziam futuros possíveis.
Tal como na CTR, este exercício de escrita começa com a primeira posição, como um caractere, uma palavra, um fragmento, uma imagem etc. Outra pessoa faz a segunda posição – o segundo gesto de escritura – que relaciona-se a partir de algo que a primeira posição já contém – suas propriedades –, e indica uma relação específica – uma tendência. A terceira posição confirma qual é a relação e, a partir daí, temos uma operação. O jogo é alimentado nas posições seguintes até que possibilidades de mudança possam emergir e, assim, ressignificar/reatualizar o caminho da escrita.
Nesse período de experimentação, elaboramos três sessões de escrita com parâmetros diferentes. A relação com o presente, noção tão importante dentro do pensamento da CTR, é particularmente tensionada na experiência com o texto. Se em sala de ensaio o Tempo Real é o que partilhamos presencial e cronologicamente, percebemos que no território da escrita o passado não desaparece de fato; ele permanece atualizado, concreto sobre a superfície do papel. O esquecimento é impossível quando cada posição está registrada. A cronologia da experiência coreográfica tornava-se arquivo, um corpo único e textual.
A experiência com o texto em CTR nos provou a impossibilidade de controlar o evento-escrita, soberano nas sintaxes e semânticas, em que cada posição era apenas mais uma peça nas engrenagens dessa coreografia. Uma paisagem se desenhando pouco a pouco a partir da relação tríplice entre coletividade, singularidade e evento. Essa imprevisibilidade da construção coletiva nos reafirmou sua dimensão político-afetiva: de que há sempre mais futuros possíveis quando não olhamos sós.
SESSÃO 1:
Uma palavra será escrita como uma palavra.
Uma palavra será dita como uma palavra.
Uma palavra será muda como uma palavra.
Uma palavra será eterna como uma palavra.
Uma palavra será enfim como uma palavra.
Uma palavra será enfim como um começo. Um começo será enfim como uma bomba. Uma bomba será enfim como um sussurro. Um sussurro será enfim como uma paisagem. Uma paisagem será enfim como uma lembrança. (…)
SESSÃO 2:
Essa palavra é um círculo
Esse círculo é uma ferramenta
Essa ferramenta é uma possibilidade
Essa possibilidade é uma materialidade
Essa materialidade é um agrupamento
Esse agrupamento é um desejo
Esse desejo é uma palavra
Desejo é uma palavra
É uma palavra
Uma palavra
Palavra Palabra Parabra Parabla Carabla Carobla Corobla Coroblo
Corobio
Significado de Corobio:
Uso numa frase:
(…)
“Há mais perigo em teus corobios do que em vinte espadas!”“Dance, dance, otherwise we are corobio.”
“Oh, I believe in corobio.”
The Beatles
“Oh, Corobio, can you see?”
Hino nacional Norte-americano(…)
“Uma vez Corobio, sempre Corobio. Corobio sempre eu hei de ser.”
Hino do CorobioA nação de Corobio tem 3.456.900.002 habitantes. A culinária local é feita por iguarias específicas e faz uso de técnicas herdadas secularmente. (…) O clima de Corobio é peculiar, uma vez que possui todas as estações do ano em um mesmo dia – ocasionalmente é possível ver determinadas plantas florescendo com os primeiros raios e morrendo ao pôr do sol. A natalidade de Corobio é alta como sua mortalidade, pois, assim como essas plantas, muitas crianças nascem, crescem, pagam boletos, envelhecem e morrem no mesmo dia. O viajante que passar por Corobio por mais de uma semana, verá diante de seus olhos sete gerações da cidade, o que faz com que Corobio seja uma cidade muito interessante arquitetonicamente – são movimentos arquitetônicos se sobrepondo uns aos outros, e é por isso que Corobio é famosa por seus imensos canteiros de obra, que nunca param, noite e dia, e só não são maiores do que as suas caçambas de entulho, que transportam para lá e para cá pela cidade os destroços dos antigos edifícios, construídos muitas gerações antes, no dia de ontem. O calendário de Corobio não segue o tradicional, pois a demarcação temporal é feita acompanhando esse movimento geracional. Uma das tradições folclóricas mais conhecidas é a dança corobioense, onde muitos cidadãos corobioenses se juntam nas praças das principais cidades para dançar em sentido anti-horário, ralentando a velocidade do tempo uma vez por ano.
SESSÃO 3:
i
ii
iii
/ (…)
um
dois
três
/
sozinho
dupla
grupo
/
euvocê
a gente
/quiromania
papai-e-mamãe
ménage-à-trois
/
vela
fogueira
incêndio
/
indicador
paz e amor
mão
/
espelho
óculos
janela
/
Ángela Millano Julián Pacomio Simular Ser-se Outro Para se Ser Si Próprio
À crença ocidental na imutabilidade e na permanência da substância corresponde uma noção de autoria e de originalidade: o ser é igual a si próprio e por isso toda a reprodução tem algo de demoníaco, que destrói a identidade e a pureza primárias. O pensamento chinês, em contrapartida, é desconstrutor desde o início, prescinde de qualquer ideia de ser e de essência. Frente à identidade, reivindica a diferença transformadora; frente ao ser, o caminho.[i]
Shanzhai é um neologismo chinês que originalmente faz referência à falsificação de produtos electrónicos como os smartphones, marcas de roupa ou produtos culturais como Harry Potter no início dos anos 2000. Em termos mais amplos, é a apropriação de uma forma ou de uma ideia: um fake. Num seu ensaio, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han diz que, para a cultura ocidental, a ideia de originalidade está estreitamente relacionada com a verdade; o ser, enquanto conceito fundamental do pensamento ocidental, é igual a si mesmo e não permite nenhum tipo de reprodução. Neste sentido, a origem e a identidade permanecem intactas, o valor artístico reside no original histórico e verdadeiro. Pelo contrário, continua o autor, na tradição do pensamento chinês o ser não aparece como algo uniforme e único, mas antes como mutável; as alterações que uma obra artística pode sofrer (as suas cópias, acções de restauro, reconstruções…) impõem-se sobre a autoria e a genialidade do artista individual.
Nas produções culturais contemporâneas são muitos os casos que giram em torno da apropriação, do plágio, da cópia, do fake, da imitação, do reenactment e da reescrita de materiais alheios (com as suas mais ou menos acertadas éticas). Por exemplo, o escritor Alejandro Zambra, no seu último romance, Poeta Chileno (2020),[ii] descreve Javiera Villablanca, uma poetisa que a cada manhã, ao tomar o primeiro café, lê dez vezes um qualquer poema de outrem tentando memorizá-lo. Depois dedica o resto do dia aos seus afazeres quotidianos e à noite, por volta das onze, escreve o poema que leu de manhã, tal como se lembra dele. Estes novos poemas (re)escritos por ela podem entender-se como traduções ou tergiversações derivadas da passagem dos originais pelo corpo num lapso de espaço-tempo limitado a um dia de vida. O autor conta-nos que a poetisa já faz esta sua prática, dia a dia, desde há vinte anos como forma exclusiva de enfrentar a sua própria escrita. No caso de Villablanca, entendemos que não se trata apenas de mais uma mera experiência de escrita, mas antes da própria escrita, a sua forma de fazer literatura. Quem sabe se, , podemos entender a cópia e a imitação como uma forma mesma do ser, visto que as alterações e transformações que acontecem numa obra não supõem uma situação externa e alheia a ela própria, desvalorizada, mas estão antes na base do seu ser.
Existe um gesto real e, no entanto, ainda mais radical do que a ficção de Zambra. Referimo-nos ao projecto Time has fallen asleep in the afternoon sunshine,[iii] de Mette Edvardsen, iniciado em 2010 e que continua activo. Nele, a artista convida várias pessoas a memorizarem um livro à sua escolha, convertendo-se desta forma em livros vivos. O exercício de memorizar e encarnar um livro faz com que se construa uma biblioteca viva e expandida, que pode ser consultada. Para isso, tal como numa biblioteca, a pessoa que encarna o livro leva o seu leitor a um espaço adequado (uma cafetaria, um passeio num jardim, sentados ao lado de uma janela…) e recita-lhe o livro aprendido. A aprendizagem e a memorização dos conteúdos dependem do tempo investido e do material escolhido, e é um processo contínuo de esquecer e recordar. A pessoa que encarna um livro pode, possivelmente, esquecer alguns fragmentos, assim como recordar outros parágrafos que pensava ter esquecido, pelo que a leitura de um livro vivo deriva inevitavelmente numa forma de reescrita. A artista não só torna realidade a biblioteca de livros vivos do romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, como, vários anos depois, as pessoas que decoraram os livros os (re)escrevem. Isto é, os livros memorizados voltam a ser editados em papel e são colocados à venda na página web do projecto.[iv] Estes livros são publicados sob a assinatura de uma dupla autoria, do autor original e da pessoa que dele se apropriou ao longo de anos: I am Bartleby the Scrivener by Herman Melville by Kristien Van den Brande,[v] I am Four Quartets by T. S. Eliot by Sébastien Hendrickx[vi] ou I Am a Cat by Sôseki Natsum by Mette Edvardsen,[vii] para dar alguns exemplos.
Tanto a tarefa da poetisa imaginada por Zambra como o projecto de Edvardsen consistem na memorização, apropriação e reescrita de textos. A poetisa fá-lo todos os dias, como prática da sua literatura, escolhendo muitos e diferentes autores. Os livros-vivos do projecto da artista fazem-no escolhendo um único livro, mas na totalidade. Ambos os casos são um exercício de (co-)autoria, tendo os textos sido reactualizados ao passarem pela vida, o corpo e a memória daqueles que, mais tarde, os (re)escreveram. Estes actos de apropriação e de reescrita são um modo de trazer à luz imagens adormecidas e a priori imperceptíveis que já habitavam os livros e os poemas. São, sem dúvida alguma, uma forma de trazer à superfície as identidades de todos aqueles que lêem, relêem, memorizam e reescrevem os conteúdos em cada encontro. Em certo sentido, são uma forma de se ser genuínoa partir de exercícios simples de imitação, cópia e apropriação.
Em consonância com estas práticas, em La mirada imposible, o ensaio publicado em 2021 por Agustín Fernández Mallo, aborda-se a ideia de que tentarmos parecer-nos com outros e colocarmo-nos no seu lugar nos aproxima do que realmente queremos ser e não somos.
Imitação e cópia: mecanismos não apenas de sobrevivência mas também de contínuas e inéditas criações. A imitação como primeiro acto apropriador, a imitação como triunfo da fantasia, e a fantasia como ofensa ao mundo para criar novos mundos[viii].
Ou seja, simular ser-se outro para se ser si próprio é uma forma de enganar o mundo, de camuflagem ou de metamorfose que não faz, contrariamente ao que poderia parecer, que nos afastemos da nossa identidade, mas antes que nos encontremos de frente com ela. Sermos outros, colocarmos uma máscara, fazermos nossos os conteúdos e as formas produzidas pelos outros – mais do que uma ocasião de engano, é um indício do real. A imitação e a cópia são sempre uma condição de expressão mais do que de dissimulação. Parece que para se ser si próprio há que tentar ser-se outro, muitos outros. A ficção não oculta as coisas, antes pelo contrário fá-las aparecer. Tanto o neologismo shanzhai como a ideia de simular ser-se outro para se ser si próprio confiam numa forma de fazer em que por baixo de um mesmo nome e de uma mesma imagem podem surgir muitas vozes, outros corpos e, evidentemente, outros fantasmas.
Qualquer obra nunca é um objecto fechado de uma vez por todas, um produto cultural não pode ser entendido sem as camadas de olhares colocadas sobre ele. Todos os corpos que alguma vez se relacionaram com uma obra são, de algum modo, parte dela. Como será um processo de criação que se interroga sobre as capacidades e possibilidades dos corpos para escreverem novas histórias através de um contínuo processo de apropriação e de reescrita? Para já, será contrário à imagem do génio criador a partir do nada. Nem o artista nem a obra são herméticos. Uma obra é uma peça móvel e a sua mobilidade depende em parte do conjunto das relações e olhares que se tecem ao seu redor. De modo que os projectos que tentarem responder a estas perguntas vêem-se na tessitura de perpetuar um conteúdo cultural que poderia ficar relegado, esquecido, flutuante ou desaparecido, conservando-o e protegendo-o no corpo, na memória e no movimento das pessoas que o encarnam. Mas não se trata só disso, visto que ao reproduzirem esses conteúdos, ao levarem-nos ao encontro do espectador estes se actualizam, se reciclam e se dotam de um sentido contemporâneo. Corpo, encontro e memória surgem como maquinarias de arquivar e de actualizar. O que é que acontece aos materiais de que uma pessoa se apropria depois de os fazer passar pelo corpo e pela memória? E o que é que acontece ao corpo e à memória ao acolherem e transmitirem estes materiais? A tarefa não é só pensar que modificações se produzem nas obras, mas também no que nos acontece a nós próprios ao passarem pelo nosso corpo os objectos criados por outros.
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[i] Byung-Chul Han, Shanzhai. El arte de la falsificación y deconstrucción en China (Buenos Aires: Caja Negra, 2016).
[ii] Alejandro Zambra, Poeta Chileno (Barcelona: Anagrama, 2020).
[iii] http://www.metteedvardsen.be/projects/thfaitas.html.
[iv] http://www.timehasfallenasleepintheafternoonsunshine.be/bookshop.html.
[v] I am Bartleby the Scrivener by Herman Melville learned by heart and transcribed by Kristien Van den Brande (Time has fallen asleep in the afternoon sunshine, 2017).
[vi] I am Four Quartets by T.S Eliot. Sébastien Hendrickx (Time has fallen asleep in the afternoon sunshine, 2017).
[vii] I Am a Cat by Sõseki Natsume by Mette Edvardsen (Time has fallen asleep in the afternoon sunshine, 2017).
[viii] Agustín Fernández Mallo, La mirada imposible (Girona: WunderKammer, 2021).
Clara Amaral Quando Escrevo Diálogos Sei Sempre que Voz é que Voz ainda que Dentro da Minha Cabeça Pudesse Dizer Que Todas as Vozes São a Mesma (Voz)
Quando escrevo diálogos sei sempre que voz é que voz ainda que dentro da minha cabeça pudesse dizer que todas as vozes são a mesma (voz)
À primeira vista, estas vozes parecem ser todas a mesma mas eu sei que não são a mesma voz.
Às vezes uma voz opõe-se a outra voz, outras vezes ecoa outra voz e muitas muitas outras vezes não entendo nada do que se está a passar.
Na verdade, vejo-me em discussões inesperadas porque nunca estou certa do tipo de voz que estou a acolher ou que não acolho de todo mas simplesmente me invade.
Não é que eu esteja à espera que estas vozes andem por ali
mas andam
e penso
ah, interessante.
E surpreendo-me e quando começo a associar uma das vozes a um dos corpos, sim, porque também há corpos, e depois associo a outra voz ao outro corpo, imagino estas pessoas que não têm caras mas têm palavras e que existem através das palavras, existem mesmo. E às vezes também se movem por causa dos corpos e depois o movimento de uma é diferente do movimento da outra. E eu sei perfeitamente quem é quem e quem é que está a falar e quem é que está a ouvir e quem é que fala bem e quem é boa ouvinte. E quem vai arranjar problemas por tudo e por nada e quem é que vai só ficar sentada e quieta durante horas e horas e horas e horas.
E é estranho e na maioria das vezes interessante e às vezes quando está tudo pronto e já na página troco de lugar o
eu
e o
tu.
Deixo as falas exactamente como estão mas troco as vozes que as usam. Só para ver o que acontece. Só para ver o que isso faz ao texto e ao espaço fora do texto.
Percorro o texto fala a fala e troco as vozes de lugar mas no espaço fora do texto, o espaço do
eu
e do
tu
do
eu
e do
tu
em diálogo é diferente, porque o
eu
e o
tu
não são assim tão facilmente permutáveis.
Mas quando conseguimos, quando conseguimos finalmente trocá-los em nós próprias, fora do texto,
o eu e o tu
nessa altura dizemos uma à outra as palavras uma da outra e as falas uma da outra.
E é curioso porque eu já sei o que tu vais dizer antes de o dizeres porque é o que eu já disse e não há guião mas também não há frase que me seja desconhecida e ouço as tuas palavras e as tuas frases como se fossem minhas mas soam-me outras porque penso
Ah, podia ter dito aquilo, isto podia ser eu a falar.
Mas quando ouço as palavras e as frases
não ouço a minha voz, ouço outra voz, ouço a tua voz.
E eu ouço-a como se fosse a minha voz e acompanho dentro da minha cabeça cada uma daquelas palavras com a minha voz interior e ponho-me a postos para dizer o que devia dizer a seguir que é na verdade o que te cabia a ti dizer.
E lá vou
devagar, devagar com a minha língua a tocar vezes sem conta no céu da minha boca,
sabes como é? diz uma palavra, uma palavra qualquer e vê o que a tua língua faz.
E os meus lábios fecham-se e logo imediatamente se abrem para te seguirem até uma vogal mais aberta, na expectativa da palavra; a boca a saber a café, a saliva solta. E esta expectativa em cada palavra, palavra a palavra, na palavra que tu agora vertiginosamente proferes, uma palavra que eu já quase reconheço, conhecendo eu a palavra que será, é o que me guia.
E isto é como um déjà vu de palavras, que é obviamente diferente do déjà vu tal como é geralmente entendido. Num déjà vu tem-se a sensação de já se ter experienciado a situação presente. Num déjà vu de palavras há a sensação de já se ter experienciado o diálogo da situação presente mas não a situação ela própria. Assim sendo, em vez de falarmos de déjà vu de palavras poderíamos chamar-lhe déjà dit, um já dito. E o déjà dit já dito é um déjà dit já dito porque
tu o disseste antes
e
eu disse-o depois
e
eu o disse antes
e tu di-lo-ás depois.
E neste momento já nos desejamos tanto que falamos sem parar para nos aproximarmos mais e trocamos palavras e falas e diálogos para ficarmos ainda mais próximas e para sentirmos o que seria dizer as palavras que eu diria e dizer as palavras que tu dirias.
Entre as palavras e as frases que eu diria e as frases e as palavras que tu dirias, há uma abertura, ali. Ali. E não é só por trocarmos de lugar palavras e frases (e diálogos) e eu passar a ser tu e tu passares a ser eu que a abertura vai desaparecer. Continua a estar por ali mas ao contrário. E apercebemo-nos de que é bom que a abertura esteja ali, desde que, desde, na condição, na condição de não se tornar um obstáculo à nossa proximidade. À proximidade do discurso de uma e da outra. À proximidade do discurso.
O acto de colocar o que tu disseste no que eu digo faz algo, faz-nos algo. Porque eu penso e sinto que esta é a tua forma de pensar e sentir o mundo e ao dizer as tuas palavras e frases eu acabo por ficar mais perto, mais perto do teu mundo.
E depois penso isto nunca foi um déjà vu já visto,
por momentos foi um déjà dit já dito
mas tornou-se um déjà tu já tu.
Um déjà tu já tu significa,
significa que no momento em questão, no já deste agora, eu passei a ser tu. E passei a ser tu, tornei-me em ti só só com as palavras que tu me disseste e que eu te disse de volta. E o já tu em que eu me tornei é só só ligeiramente diferente do já tu que tu eras ou do já tu em que te estavas a tornar quando passaste a ser eu. E tiramo-nos uma da outra só para a seguir nos devolvermos uma à outra outra vez. E não precisamos de estar juntas para falarmos, mas estamos, falamos, para estarmos juntas. O já tu é a pressa de eu passar a ser tu. Passar a ser tu através das palavras que dizes e disseste e dirás e só só através dessas palavras.
Texto publicado inicialmente em holandês na revista Theatermaker, n. 3, Maio de 2019. Traduzido do original em inglês pela autora em diálogo com Tiago Barbosa.
Miguel Pipa Capa/Contracapa
Guilherme Figueiredo Joelho Decidido
O joelho localiza-se entre os pés e o sexo. Entre o toque e a idealização etérea da identidade. Os joelhos são pontes de comunicação, de contacto, são mecanismos de mobilidade.
Nos primórdios do século XIII, os fatos de guerra começaram a fazer a transição das cotas de malha para as armaduras de chapa. Nas fases iniciais dessa mudança, a articulação da armadura localizada no joelho foi um dos principais focos. Era necessária mobilidade antes de proteção. Estes elementos na armadura têm em conta a forma da parte do corpo que protegem, mas também o movimento total destes corpos metálicos. A forma deste declarará as interações com o fato e o exterior. Os órgãos, a pele, a segunda pele e a arma que toca os outros corpos.
A joelheira aparece como um escudo desta articulação, uma roda que concede espaço para a batalha e o sexo. É esta dobradiça que permite o desencaixe dos ossos de forma a juntá-los. É formada uma aliança entre o joelho e a sua proteção, um contrato que promete fidelidade a esta junta.
* * * * *
Imagina isto:
o pequeno pelotão a que pertences está a ser chamado de emergência para se armarem no celeiro, local onde todo o equipamento está guardado. Enquanto todos os outros membros começam desenfreadamente a sair e a dar ligeiros encontrões no teu ombro, tu bebes o último gole no bar — não sabes se não vai ser o teu último. Acabas a bebida e levantas-te de imediato, sentes uma leve vibração nos joelhos — o medo faz o teu corpo mexer-se aos soluços como se forças contraditórias batalhassem dentro da tua anatomia — mas acabas por sair da taverna e começas, em passadas largas e ritmadas, a ir em direção ao rendez-vous. Enquanto permaneces neste limbo entre corrida e passeio, sentes o peso completo do corpo com cada contacto de pé e chão, toda a carga se abate sobre o joelho e este vibra com a ansiedade da antecipação. A conexão torna-se então desleixada e mole e só consegues pensar em morte — a morte dos outros e a tua.
Ofegante da exigência da corrida, empurras vagarosamente a porta do celeiro de madeira. A temperatura escaldante do exterior, que te ferveu o sangue das veias, luta agora contra o ambiente frio e húmido em que acabaste de entrar. O tremer do corpo intensifica à medida que absorves a atmosfera do espaço. A maioria dos cantos e buracos da sala estão em completa escuridão e as únicas fontes de luz presentes — dois lampiões prateados a emitirem luminosidade tremulante e uma pequena tocha presa a uma das paredes, circundada por metal brilhante — iluminavam a sala pouco mais além das suas auras luminosas. O interior do celeiro começa a pintar-se à medida que os teus olhos se ajustam à nova claridade. As paredes de madeira incrustadas soltam chiares como se elas próprias fossem os ratos que procuram migalhas debaixo das placas. Moves a cabeça e o torso em volta, começas a ver pessoas debruçadas sobre bancos a vestirem os coxotes e as grevas das armaduras. Finalmente chegas ao banco designado, a tua armadura está disposta à tua frente, presa por dezenas de ganchos de cobre que fazem a armadura parecer um corpo vivo. A armação devolve o olhar. Começas a sentir que o fato metálico entra na tua cabeça como um personagem principal, a mover-se desordenadamente entre os teus pensamentos, acompanhado de ruídos, de clic e clac produzidos pelo material. [O fato corre pela sala. Salta e produz a trajetória arqueada do arremesso de uma lança. A descida é prática, se bem que sinuosa, mas produz sons tempestuosos que destroem o movimento melódico que ainda agora tinha gerado. Um desordenado e belo espetáculo.]
Apercebes-te de que alguns membros estão a sair do edifício completamente equipados e apressas-te. Viras as costas à armadura, sentas-te no banco e começas a tirar os sapatos. Dobras as costas para chegares com os braços aos pés, o queixo acaba a pousar no joelho e dás outra vista de olhos pelo espaço. As armaduras que pendiam nas paredes foram substituídas pela roupa no chão — uma espécie de balneário medieval.
Levantas-te, retirando a cabeça do berço em que o joelho se estava lentamente a tornar e continuas a despir-te. Sentes todos os pequenos toques da humidade na tua pele enquanto esta vai aparecendo, depois de a roupa deslizar por ela. Trancas o olhar de novo com o corpo metálico. Olham-se nos olhos e sentes-te vulnerável enquanto vestes as calças à pressa para esconderes os joelhos nervosos, fazendo com que as fibras de palha presas façam cortes desconfortáveis ao longo das coxas e dos gémeos. Finalmente, já com o revestimento de malha vestido, caminhas para o corpo reluzente e começas a desmontar as pernas. Sentes um enorme peso na curva das costas, como se alguém estivesse a olhar intensamente de cima enquanto despes a figura pendurada.
As pernas estão divididas em quatro secções cada: o coxote que tapa as coxas e rodeia de certa forma a área da virilha; os sabatons são os sapatos pontiagudos de metal que previnem os pés de serem esmagados por martelos e cavalos; a greva protege a canela e o tendão de Aquiles; e a joelheira é o joelho de metal do fato de guerra. Pegas neste elemento e encaixa perfeitamente na tua mão enquanto o rodas. A frente pontiaguda evita o sucumbir da peça no caso de uma colisão forte, a sua forma arredondada permite a comunicação entre o coiote e a greva. Nesse momento apercebes-te de que é este minúsculo componente que permite o movimento do fato. Começas a entrar de novo na tua cabeça enquanto apertas as alças da joelheira no corpo. Tudo aparenta, subitamente, ter uma espécie de dobra. A tocha torce-se onde toca o metal sujo e queimado; a manivela do tanque de água chia a cada flexão que faz ao chamar a água, e estas ideias trazem-te de volta ao teu joelho oscilante.
Levantas-te com a ajuda da mão esquerda no banco, de repente a carne do joelho torna-se osso. O físico transforma-se no esqueleto que faz o fato de metal mover. O metal que te rodeia é agora uma espécie de pele. Pensar nisso deixa-te um pouco desconfortável e apercebes-te de que existe algum tipo de performatividade na guerra.
Toda a armadura está no seu sítio e tudo serve perfeitamente nas tuas proporções, rodas o braço sobre o próprio eixo só para confirmares o encaixe e começas a caminhar para a saída de encontro ao resto do pelotão. Andas até lá fora enquanto tentas ainda medir o peso do que acabaste de vestir e olhas para o céu para veres se te consegues sentir um pouco mais leve. Vês pássaros e pensas para ti: “Pássaros sortudos. Sem armadura, sem carne pesada, apenas ossos ocos nas asas…”
* * * * *
#1 – Os joelhos dos pássaros
Os joelhos dos pássaros voam. Pendem à espera de uma aterragem. Ao levantar voo, o que estava conectado ao chão torna-se imaterial. Cada descolagem depende das pontes entre as silhuetas que definem as pedras (e as asas) e as ideias de reprodução, estimulação e urina.
Enquanto as garras estiverem presas firmemente na terra, nos telhados e no betão, os pássaros são estátuas. São firmes elos a mensagens divinas. A explicação lógica de uma oferenda sem forma. A dança destes animais pausa quando tocam as superfícies. No ar recebem e na terra dão, soltam (deixam ir).
* * * * *
Ao examinares as planícies circundantes reparas em cinco armaduras a correrem de forma pouco graciosa pelos prados de relva enlameada. A correrem para se depararem com o fim. O de quem corre e do resto. Acabas por pensar para ti mesmo: “O celeiro é a ponte entre o descanso e a guerra.” E é mesmo.
* * * * *
#2 – Curiosidade e o joelho dobrado
Estar debruçado sobre algo cria uma arena de seriedade. O foco origina daí. É o foco que torna isso a única coisa do momento. Dobrar os joelhos para dar uma festa num cão é igual a reconhecê-lo. Dobrar-nos nesta parte da anatomia sobre flores para as cheirar é o mesmo que pensar: “Estas preciosidades merecem a minha atenção.”
O microscópio partilha da mesma silhueta que uma criança curiosa. O que estava longe está agora perto (o que era pequeno agora tornou-se colossal, é o que quero dizer). As escalas são obliteradas pelo meio. O casulo agachado torna os pontos aconchegados. Elimina o espaço entre identidade e mundo, carne e exterior.
O casulo torcido sobre si mesmo oblitera pensamentos — cada curva torna-se uma manifestação de calor.
* * * * *
Algo te toca nas costas, como que para te acordar de uma passageira ilusão. Dás a primeira leve corrida com o equipamento todo e as gotas de suor caem tão pesadas quanto o fato. Segues a tua equipa através do descampado enquanto pensas o quão silencioso tudo estava antes do celeiro e, inevitavelmente, o quão silencioso tudo estará depois da batalha.
* * * * *
Pressinto a existência de uma espécie de etimologia dos ossos. Não só dos ossos, mas das roupas e das armaduras do civil. O medo aparece entre as camadas da pele tremelicante antes do espetáculo e estas subcamadas podem ser analisadas, pesquisadas e traçadas de volta às suas origens.
As origens do medo por antecipação, as origens do tremer (vibrar, oscilar, estremecer, etc.), do celeiro e dos bastidores, origens do fato de metal que se mexe, da sua dança.
5
Sara Graça Capa
Raimund Hoghe Lembro-me
-1-
Lembro-me de que queria muito ter 12 anos para ver filmes para maiores de 12 anos.
Lembro-me de que o meu avô só via filmes nos cinemas Roxy e Astoria.
Lembro-me da Audrey Hepburn a correr à chuva no Breakfast at Tiffany’s.
Lembro-me de matinés vazias no Lichtburg e de nos mandarem para casa se não houvesse pelo menos oito pessoas para ver o filme.
-2-
Lembro-me de que havia neve lá fora e de que tinha os pés molhados quando estava sentado no cinema com a minha irmã a ver o West Side Story.
Lembro-me de que a Romy Schneider e a minha irmã nasceram no mesmo dia.
Lembro-me de atravessar o palco a carregar uma árvore de Natal, na peça Arthur Aronymus e os seus pais, de Else Lasker-Schüler.
Lembro-me de que o produtor dos Beatles transformou Priscilla White na cantora Cilla Black.
-3-
Lembro-me do que a Judy Garland disse no palco do Palace Theatre, em Nova Iorque: “I’ll stay as long as you want me.”
Lembro-me da Soeur Sorire, a freira cantora, que teve um sucesso mundial com a música Dominique. Acabou por se suicidar com a namorada.
Lembro-me do escândalo que foi o casamento de Edith Piaf com o grego Théo Sarapo, vinte anos mais novo do que ela, e dela a posar orgulhosa para as câmaras. Cantaram juntos em palco A quoi ça sert l’amour.
Lembro-me de ter 17 anos quando recebi um postal do cantor pop Rex Gildo com os votos: “Tudo de bom e muito amor.”
Lembro-me da Minouche Barelli a representar o Mónaco no Festival da Eurovisão da Canção, em 1967, com uma música contra a guerra chamada Boum Badaboum.
Lembro-me dos Beach Boys, de Donovan e dos Beatles com o Maharishi na Índia.
Lembro-me da Cass Elliot, dos Mama’s and Papa’s, ter morrido em Londres depois de uma série de festas, que incluíram o 31.º aniversário de Mick Jagger. Tinha 33 anos. O título de um dos seus últimos álbuns é The good times are coming.
-4-
Lembro-me do vizinho a quem uma bomba matou os dois filhos que brincavam no quintal.
Lembro-me de me aconselharem a deitar à sombra de um muro e a proteger a cabeça com uma mala em caso de bomba atómica.
Lembro-me das fotos do Vietname, das caras queimadas pelo napalm e das crianças a fugirem da poeira da bomba.
Lembro-me das imagens em papel de lustro dos rapazes hitlerianos e das raparigas nazis num álbum de poesia de uma tia.
Lembro-me de um amigo que, quando criança, ficou muito impressionado ao descobrir números tatuados no braço de um tio que era judeu. “Para que são os números?”, perguntou ele ao tio. “É o meu número de telefone”, respondeu-lhe o tio. “E eu achei”, disse-me o meu amigo, “que era bastante prático ter o número de telefone no braço.”
Lembro-me de que na escola nunca falaram da guerra ou do Holocausto.
-5-
Lembro-me de papagaios de papel no céu, a voarem para longe num céu sem nuvens.
Lembro-me do medo de ter de frequentar a escola de danças de salão.
Lembro-me dos saiotes engomados da minha irmã que eram postos a secar no chão até ficarem duros como pedra.
Lembro-me dos penteados colmeia das senhoras e das calças dos senhores, justas nas ancas.
Lembro-me da concha de gesso em que dormia e que era fechada todas as noites com duas ligaduras cor de pele no peito e no estômago.
Lembro-me de ter ouvido a notícia do primeiro homem a pisar a Lua no comboio rápido para Wuppertal.
Lembro-me da Marcha sobre Washington, do Movimento pelos Direitos Civis e do discurso de Martin Luther King – “I have a dream”.
Lembro-me do popular café no centro da cidade alemã de Bielefeld, onde pessoas negras não podiam entrar.
Lembro-me da mãe do corredor de 800 metros que, depois de o filho ter ganho a prova olímpica, disse: “É tão importante ter sido um alemão a ganhar. E sobretudo ter sido um atleta com pernas brancas.”
Lembro-me dos sorrisos dos homens brancos que participaram no assassinato do político negro Patrice Lumumba, no Congo.
Lembro-me do dia quente de verão quando o Roger, do Ruanda, me disse que não conseguia arranjar trabalho aqui por ser negro. “And I cannot change my skin” disse, e o sol brilhava e não se via uma nuvem no céu.
-6-
Lembro-me do dia da morte de Marilyn Monroe e da fotografia dela no calendário das estrelas de cinema pendurado junto ao louceiro. “O seu coração pesava 300 gramas”, veio a noticiar-se mais tarde.
Lembro-me da minha irmã a limpar os degraus da cave quando deu a notícia da morte de Kennedy, em Dallas.
Lembro-me do sangue no vestido rosa-claro da Jackie Kennedy.
Lembro-me do casaco de pele falsa da minha mãe e do casaco que ela nunca chegou a usar e que a loja aceitou de volta quando ela morreu.
Lembro-me de que Martin Luther King, um dia antes de ser morto, disse: “Tal como toda a gente, eu gostaria de viver uma longa vida.”
Lembro-me do dia em que saiu a última edição da revista Film-Revue. Foi como se alguém tivesse morrido.
-7-
Lembro-me da senhora da bilheteira do teatro e do seu sonho de viajar até à Lua. “Ir lá acima uma vez – é esse o meu sonho”, disse ela e riu-se.
Lembro-me dos olhares de nostalgia no Morte em Veneza, do Visconti.
Lembro-me da Maria Callas, numa masterclass, encorajar os alunos a não lançarem fogo de artifício, mas sim a trabalharem os seus sentimentos.
Lembro-me dos protestos ruidosos contra o filme O Silêncio, do Ingmar Bergman.
Lembro-me do assassino de crianças Jürgen Bartsch, que foi considerado uma besta e que era suposto ser castrado e morreu na operação.
Lembro-me do vermelho da bíblia maoista e do verde do relvado do Blow Up, do Antonioni.
Lembro-me do negro do Black Power e do rosa do movimento gay.
Lembro-me do Ragazzi di vita, do Pasolini, e do Mike, um jovem prostituto de Hannover que adorava a sua cobra a quem chamava Futuro.
Lembro-me da poeta Rose Auslander na cama da qual já não conseguia sair e onde escreveu poemas até à sua morte. Num dos seus últimos poemas escreveu: “Atira este medo ao ar.”
Este é o texto do solo Another Dream, de Raimund Hoghe, de 2000. A performance reflete sobre a década de 1960 e conclui a trilogia que começou com Meinwärts (1994) e Chambre séparée (1997). O texto foi originalmente publicado na plataforma online Sarma. Traduzido a partir do original em alemão e da versão em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia da Silva.
Anna Halprin Prefácio
Enquanto folheio as páginas da minha compilação de escritos, estou sentada num banco de onde vejo a minha plataforma de dança e estúdio, rodeada por sequóias e ensombrada pela presença constante do monte Tamalpais. Apercebo-me de que estou aqui há muito tempo. Cada árvore, cada voo de pássaro, ruído de veado, sensação da brisa ou som da buzina de nevoeiro encerram em si uma memória de uma dança criada neste sítio. A minha vida e trabalho estão entrelaçados com os ritmos, mudanças e variações subtis desta terra.
Deixei a região Centro-Oeste da minha infância e uma carreira de bailarina profissional na cidade de Nova Iorque para me mudar para a Califórnia em 1945. A Segunda Guerra Mundial tinha chegado ao fim e rumei a São Francisco para me juntar ao meu marido que tinha acabado de regressar do Pacífico. Tinha 25 anos de idade. Seis anos mais tarde já tínhamos duas filhas, Dania e Rana, e a nossa jovem família mudou-se para uma nova casa desenhada pelo Bill Wuster, com o meu marido, Lawrence. Estas duas pessoas foram as principais influências para o estilo de arquitetura e paisagismo da região da baía de São Francisco, um movimento que me influenciou a mim e à minha arte todos os dias. Esse estilo possibilitava uma relação fluida entre o interior e o exterior, um tema central no meu trabalho que fui desenvolvendo ao explorar a dança, tanto dentro como fora do teatro. Na minha nova casa, as janelas de correr abriam para terraços cobertos de casca de pinheiro que nos conduziam até aos bosques de sequóias, e a vista ia desde a baía até às encostas da montanha majestosa. A minha nova casa no campo parecia fazer parte da natureza e foi-se transformando cada vez mais num ambiente de contemplação, livre das distrações da cidade. Naquela altura, partilhava um estúdio de dança com Welland Lathrop, em São Francisco, mas gradualmente fui sentindo uma atração pelo meu estúdio de casa, onde passava cada vez mais tempo.
Lawrence e o desenhador de luz de espetáculos de dança moderna Arch Lauterer desenharam uma plataforma de dança que serpenteava por entre as sequóias por baixo da nossa casa. A atração ia-se tornando cada vez maior. Não queria separar-me das minhas duas filhas e estava pronta para romper de vez. Deixei a cidade e comecei a dançar neste ambiente exterior revigorante. Cortei os laços com a dança moderna e comecei a procurar outros caminhos. Propus oficinas experimentais para bailarinos e convidei artistas plásticos, músicos, atores, arquitetos, poetas, psicólogos e realizadores. Chamei ao grupo Dancers’ Workshop, uma ideia da Bauhaus, a escola experimental da Alemanha pré-Nazi. No Dancers’ Workshop procurávamos formas de redescobrir a natureza mais básica dos nossos materiais, livres de preconceitos e de associações pré-concebidas. Estávamos interessados em evitar a previsibilidade da causa e efeito. E como resultado das nossas muitas experiências, criámos peças de teatro e performances na plataforma de dança e no bosque envolvente para o público que era convidado. À medida que as pessoas se iam interessando pelo nosso trabalho, fomos sendo convidados para festivais de arte internacionais, tanto aqui como no estrangeiro.
Os três aspetos do meu trabalho que gostaria de destacar são, parece-me, trajetórias singulares e têm sido muito importantes para mim ao longo dos anos. O primeiro é que as experiências que fiz com o Dancers’ Workshop nas décadas de 1960 e 1970 com novas formas de dança deram origem a novas utilizações da dança. Dançar fora das restrições do teatro de proscénio e no meio ambiente – tanto nas ruas de uma cidade como na natureza – produziu resultados inesperados. Ao aproximar-se dos ambientes onde as pessoas viviam, a dança tornou-se mais ligada à vida das pessoas e respondeu de forma mais direta às suas necessidades. Abandonámos a construção de imagens e os truques típicos do teatro e passámos a fazer a nossa arte com a matéria crua das nossas vidas. Alteraram-se e expandiram-se as fronteiras entre arte e vida e entre performer e público, e os usos e aplicações da dança seguiram-lhes o exemplo. Sentia-se o movimento de uma força maior, que eu acredito ter que ver com as raízes da dança e a sua importância primordial para os seres humanos.
Há um segundo aspeto que foi desenvolvido: enquanto investigávamos novos usos para a dança e para o movimento, as nossas formas tornaram-se acessíveis a mais pessoas e começaram a existir fora do teatro, no quotidiano de pessoas comuns. Com a expansão das formas, o tipo de pessoas que se dispunham a participar foi ficando cada vez mais diverso e isso provocou mudanças profundas na dança. Enquanto procurávamos criar uma forma de arte em diálogo direto com diferentes grupos étnicos e nacionalidades, com pessoas de diferentes realidades económicas, idades ou capacidades físicas, desenvolveram-se novos métodos de comunicação e um processo criativo que encorajava o envolvimento plural.
Agora que tínhamos descoberto um teatro holístico e total também precisávamos de um performer-bailarino holístico bem preparado. Comecei então a criar formas em que as componentes física, emocional, mental e espiritual dos corpos tivessem uma maior relação entre si. Estava à procura da pessoa completa, e o meu critério era o sentido na vida de cada indivíduo.
O meu trabalho começou por se focar em novas formas e usos para a dança; mais tarde foquei-me no significado dos trabalhos que estava a criar, para depois reinvestir nessas novas formas com mais emoção e motivação pessoal. Durante o processo de despir todo o fingimento do teatro e de envolvimento da pessoa completa descobrimos que acontecia uma síntese inesperada. Começámos a trabalhar com temas da vida real, e agora as danças que criávamos faziam sentido na realidade da vida das pessoas. Estávamos a explorar as nossas histórias pessoais e as danças que criávamos tinham poderes transformativos. Comecei a chamar-lhes rituais e a identificar como mitos os materiais que as criavam. Foi um ponto de viragem para mim no que diz respeito ao modo como olhava para a dança e para os seus usos potenciais.
O terceiro aspeto do meu trabalho, e a parte que me desafiou e estimulou durante todos estes anos, foi o modo como a dança tem sido instrumental no desenvolvimento de comunidade através da expressão de todos estes mitos e rituais. Parece que foi inevitável – a experiência de comunidade – e, à medida que a comunidade se transformava no meu tema central, emergiam símbolos ou arquétipos. A força motriz, a força pulsante da vitalidade que nos motiva a todos tornou-se a inspiração para os meus trabalhos mais tardios. O choque de ter cancro e as mudanças que isso provocou na minha vida e no meu trabalho levaram-me a explorar a relação entre dança e cura. Comecei a trabalhar com a dança como uma arte curativa e com pessoas que estivessem a lutar contra doenças potencialmente fatais. Compaixão, saúde, amor, catarse, vida, morte – o espectro completo da luta da humanidade – precisavam de estar presentes nas formas que desenvolvia. E uma e outra vez, ao regressar à montanha ou ao mar, alimentava-me de imagens e recursos e energia que reciclava e introduzia no trabalho de construção de uma comunidade vital.
Tal como muitos de nós lutam para encontrar a sua identidade espiritual, eu acredito que podemos voltar à dança para recuperar uma tradição ancestral que servirá muitas das nossas necessidades na cultura atual.
A sabedoria da dança e do corpo contém recursos que nos podem oferecer ferramentas para a sobrevivência da vida neste planeta. A nossa ligação com a terra e com os outros como formas da terra é o próximo passo a dar. Acredito que seja esta a possibilidade maravilhosa da dança hoje em dia. Através da dança podemos redescobrir uma identidade espiritual e um sentido de comunidade que perdemos, e o trabalho de tornar esta dança vigente, imediata e necessária continua a ser de grande importância. Neste momento, a natureza é a minha maior professora, a voz mais clara que guia a minha dança. Sentir e experienciar a terra ajuda-me a encontrar a minha natureza humana mais profunda e estou a dirigir muita da minha dança para este teatro infinito e intemporal.
Ao sentar-me no banco de onde vejo a plataforma de dança sou invadida por uma enxurrada de perguntas. O que se segue? Para onde estou a ir? O que é o meu trabalho aos 75 anos? O que fazem os mais velhos em outras culturas? Ensinam os mais novos, curam os doentes, cuidam da terra, preservam os rituais, falam com os antepassados, mantêm a família. Eu faço tudo isto e convoco os espíritos, onde quer que estejam, o que quer que signifiquem e como quer que apareçam, para me guiarem e me levarem mais longe neste caminho de evolução da dança ao qual dediquei a minha vida. Continuo a acreditar no extraordinário potencial demonstrado por todo este trabalho, na sua evolução desde a rebelião à expansão, à comunidade, à cura e de volta ao mundo natural.
Anna Halprin Kentfield, Califórnia, junho de 1994
Publicado originalmente em Anna Halprin (autora) e Rachel Kaplan (editora), Moving Toward Life: Five Decades of Transformational Dance (Hanover, N.H.: Wesleyan University Press, 1995). Traduzido do original em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia da Silva.
Hwayeon Nam 남화연 Seung-Hee Choi, Kyunghee Lee e o Sr. H 최승희, 이경희, H씨
“Não ficamos na praia a perguntar ao oceano qual foi o seu movimento no passado e qual será o seu movimento no futuro.”
Isadora Duncan, “The Dancer of the Future” (c.1902), in The Art of the Dance. New York: Theatre Arts Books, 1928
Conheci a Kyunghee Lee há dois anos, no verão. Durante uma tremenda vaga de calor em Tóquio. Eu e a Haeju Kim 김해주, curadora da minha exposição individual Mind Stream (no Art Sonje Center, em 2020) estávamos a conversar sobre o terramoto que tínhamos sentido naquela noite. Fomos juntas de metro até à escola Chosun, em Tóquio. Já conhecia a escola há algum tempo, mas sem saber porquê senti-me surpreendentemente nervosa com a visita. Ainda me lembro de algumas das paisagens que vi da janela do comboio, no caminho. A escola Chosun foi discriminada institucionalmente pela sociedade japonesa e alvo de discursos de ódio pelas organizações de direita japonesas, devido às ligações financeiras e políticas com a Coreia do Norte e a vários casos de raptos de cidadãos japoneses na Coreia do Norte nos anos 1970 e 1980.
Ainda existem cidadãos coreanos residentes no Japão que se mudaram durante a ocupação japonesa da Coreia (1919-1945). Mudaram-se para o Japão antes da divisão da península coreana e não puderam voltar, mesmo depois da independência da Coreia. No final da Segunda Grande Guerra, depois de o Japão ter sido derrotado, cerca de dois milhões de coreanos permaneceram no Japão e viram a sua nação atravessar tempos caóticos que culminaram na divisão entre Coreia do Sul e Coreia do Norte. Os que permaneceram no Japão, depois de expatriados, foram forçados a escolher entre uma das nacionalidades. Contudo, o Japão era já a sua base e foi aí que um grande número de coreanos se instalou por questões práticas, mas também por motivos políticos ou por causa da instabilidade que se vivia na península coreana. E foi assim que surgiu a primeira geração de coreanos zainichi.
A escola Chosun do Japão é uma escola étnica da Associação Geral de Coreanos Residentes no Japão (Chongryon), uma entre outras, criada pelos coreanos zainichi para ensinar história e cultura coreana às gerações futuras. A escola Chosun tem-se mantido graças ao apoio da Coreia do Norte. Nos últimos tempos tem-se refletido, na Coreia do Sul, sobre o silenciamento, que já dura há muito, e sobre a atitude descuidada do governo sul-coreano relativamente ao passado. Kyunghee Lee, uma antiga professora de dança da escola Chosun no Japão, e Ok Seon Moon, um encenador, amigo de infância de Lee, que me ajudou a conhecê-la, são ambos coreanos zainichi que se formaram na escola Chosun.
Muitos dos coreanos que não puderam voltar para o seu país de origem permaneceram no Japão. Seung-hee Choi estava na China quando a Coreia se tornou independente, em agosto de 1945. Na altura, Choi fundara o Instituto Asiático de Pesquisa de Dança, em Pequim, e dava aulas na Academia Central de Drama na mesma cidade. Choi mudou-se para o Japão em 1926, quando fez 15 anos. Choi nasceu na Coreia, em 1911, logo depois da anexação pelo Japão. Depois de assistir a uma performance da companhia de dança de Ishii Baku [1], em Kyungsung – o antigo nome da cidade hoje conhecida por Seul –, Choi mudou-se para o Japão onde aprendeu a dança moderna de Ishii Baku. Com as suas bases de dança moderna, Choi optou por colocar em palco danças coreanas e foi bastante apoiada por pessoas cultas e por intelectuais japoneses. Desta forma, Choi tornou-se rapidamente na bailarina representante da sua colónia, bem como do Império Japonês.
Depois disto, Choi teve várias experiências no estrangeiro, atuando na América do Norte e do Sul, bem como na Europa, e não só ampliou terrenos estratégicos para o desenvolvimento e modernização das danças tradicionais como reestruturou as possibilidades do que seria de esperar de uma bailarina. Choi era uma artista que representava tanto o Império Japonês como o orgulho artístico nacional dos coreanos colonizados. Era simultaneamente um produto de valor cultural para o imperador japonês, que, através dela, introduzia estilos artísticos das colónias, e uma presa fácil de atacar e criticar por não respeitar de forma rígida as danças tradicionais da Coreia. Para além de tudo isto, Choi era uma “Nova Mulher” que aprendeu dança moderna e que conhecia a dança ocidental e tinha uma grande paixão pelas suas conquistas artísticas. Era mulher numa altura em que as bailarinas eram menosprezadas e olhadas como gisaeng – mulheres de famílias marginais ou de escravos, educadas para serem cortesãs e oferecerem entretenimento e conversa a homens coreanos de classe alta –, numa altura em que o reconhecimento da dança como género artístico independente era raro.
Ehera Noara (1933) pode ser tida como a dança que consolidou a ascensão de Choi no Japão. Ao apresentar pela primeira vez no Japão este espetáculo coreografado depois de ter aprendido dança tradicional coreana, Taepyeongmu [2] e Hallyangmu [3], Choi decidiu vestir-se como um homem. Podemos supor que a sua posição enquanto artista, os conflitos interiores gerados pela sua identidade social e as complexas projeções de que era alvo por parte de outras pessoas poderão tê-la influenciado nesta escolha. A cultura de passeios turísticos dos japoneses à Coreia colonial, que incluía diversões com gisaeng, por exemplo, pode também ter tido algum peso na declaração de resistência de Choi, que se poderá ter querido vestir como homem na sua estreia no Japão de modo a estabelecer-se como artista e não como um sujeito exótico.
“A verdade é que atualmente a dança coreana está à beira da morte, sem dar sinais de alguma coisa a que se possa chamar ‘dança’, para além da preservação da tradição pelas gisaeng em festas e outros lugares. Não se consegue sequer encontrar literatura sobre o assunto.
A minha dança coreana não é mais do que o recurso ao escasso material que ainda se encontra na Coreia, ou a criação de novas coisas para interpretar em palco. Julgo que ninguém reconhecerá traços de ‘originalidade’ ou ‘criatividade’ na minha estilização da dança coreana. Os meus métodos de estilização podem ser vistos como semelhantes à abordagem da La Argentina [4] à dança espanhola ou de Uday Shankar [5] à dança indiana. Para mim, esses dois métodos são experiências fundamentais.”
Seung-hee Choi, A Letter to My Folks, Flame: An Autobiography by Seung-hee Choi, Dancer of a Century, 1911-1969. Seoul: Jamo Books, pp 82-83.
Quando regressou ao Japão em 1941, depois de ter dançado em diferentes países, Seung-hee Choi participou em espetáculos para ajudar a levantar a moral dos militares e fez doações ao exército japonês quando rebentou a Guerra do Pacífico e se começaram a sentir as pressões políticas daí decorrentes. Durante o período da Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, época em que o imperador japonês propagava uma ideia de unidade financeira, geográfica e cultural transversal a toda a Ásia [6], Choi dedicou-se a trabalhar sobre a estilização de danças da Ásia oriental, incluindo danças do Japão, da Coreia e da China.
Após a independência da Coreia, Choi ainda não se tinha livrado das acusações que lhe foram feitas no auge do período colonialista, altura em que despontava uma consciência política que pretendia aniquilar e condenar todos os grupos pró-Japão. Para dar resposta a essas acusações fez algumas declarações estratégicas, afirmando estar empenhada em transformar aquilo a que na altura se chamava “Dança Oriental” em “Ballet Coreano” e comprometendo-se a trabalhar afincadamente para alcançar tais feitos artísticos.
Por razões ideológicas, Choi acabou por ir viver com o marido, Mak An, para a Coreia do Norte. As suas peças de dança em estilo de propaganda e o manual Dança Básica Nacional da Coreia [7] (1958) – que compilou para difundir as suas coreografias – são os principais trabalhos desse período. Até que, em 1969, foi anunciada uma purga que a vitimou por motivos políticos não muito claros.
Já há algum tempo descobri Seung-hee Choi como pioneira da dança moderna. Enquanto artista, tenho vindo a trabalhar com os seus arquivos, compilados por ela e reunidos por pessoas que gravitavam à sua volta. Apesar de muita coisa ter mudado, fico por vezes exaurida pela sua história de vida difícil e pelos preconceitos que se continuam a associar a Choi e às contradições de uma vida de artista pró-Japão, comunista, etc., preconceitos esses que foram apresentados de forma trágica pelos diferentes órgãos de comunicação social da Coreia do Sul, bem como pela comunidade internacional. Como pensar as escolhas políticas de Choi perante sucessivas encruzilhadas? Será possível entendermos as divisões ontológicas de uma figura histórica feminina que foi colonizada e que era artista? Mais importante ainda, qual a matéria substancial da dança de Choi que seria fundadora para a dança da Coreia do Norte, do Sul e zainichi, e como deve ser lembrada?
Em janeiro de 2012, estava a viver em Berlim, e a pesquisar para o Garden in Italy, o meu primeiro trabalho sobre Choi Seung-hee e os registos que dela existiam, um trabalho que me conduziu a vários impasses. Não havia arquivos públicos nem outros da bailarina que fossem acessíveis na Coreia do Sul. Não tive escolha, tive de confiar num punhado de publicações sobre Choi. Resolvi visitar o Arquivo de Artes Cénicas da Akademie der Künste, mas sem grandes expectativas. Acho que procurava perceber que critérios deveriam orientar a minha investigação sobre performance ou artes performativas:
“Devem existir filmes de arquivo, algumas fotografias, descrições curtas, cartas, desenhos, peças de cenografia e figurinos. Isto é o que recolhemos e guardamos. Se existe muito ou muito pouco material já depende da pessoa. Mary Wigman desfez-se de todas as cartas que recebeu. Morreu em Berlim em 1973. Palucca, por exemplo, uma das suas alunas, guardou tudo. Tem um enorme arquivo. Por razões que desconhecemos, Tatiana Gsovsky fez uma seleção. E não existe muito deixado por Valeska Gert, mas é o suficiente para que a lembremos.”
Entrevista com Stephan Dörschel, Arquivo de Artes Cénicas, Akademie der Künste, 17 de janeiro de 2012
É sabido que Choi criou mais de 200 peças de dança. E apesar da quantidade de trabalho é raro encontrar arquivos originais intactos, como vídeos integrais das peças, e, mesmo que esses vídeos existissem, seria muito difícil descobri-los e o acesso ser-me-ia negado. Por exemplo, o que existe de Ehera Noara, um dos seus trabalhos fulcrais, são apenas algumas fotografias documentais. Mais tarde, enquanto compunha o manual Dança Básica Nacional Coreana, Choi tentou difundir os estilos de dança coreanos que criou. No entanto, Choi não se preocupou muito em arquivar os seus próprios trabalhos. Parece não ter sentido necessidade de os documentar. Isto teve seguramente que ver com o contexto complexo, como as guerras que estavam a acontecer na altura. Como tal, muitos dos seus trabalhos perderam-se e os que sobreviveram mantiveram-se ou foram transformados nas memórias e arquivos de outras pessoas. No meio disto tudo, aconteceu conhecer Kyunghee Lee.
Seung-hee Choi era chamada de “Choi Mo” – palavra coreana que se aplica a uma pessoa que não precisa de ser especificada ou nomeada. E claro que foi apenas em 1988, depois de a Coreia do Sul ter suspendido a interdição de entrada a artistas que desertaram para a Coreia do Norte, que a vida e o trabalho de Choi se tornaram acessíveis para serem investigados e avaliados oficialmente. Até então, entre 1959 e 1984, o navio de repatriamento que circulava entre o Japão e a Coreia do Norte, conhecido como o “navio de regresso a casa” [8], transportou coreanos zainichi de volta para a Coreia do Norte. A Dança Básica Nacional da Coreia, de Seung-hee Choi, era ensinada nesta viagem. A dança que Kyunghee Lee ensinou aos seus estudantes como sendo a dança da pátria, na escola Chosun, e a dança que ela própria aprendeu com os seus professores tinham como base a Dança Básica Nacional da Coreia, de Choi.
“Havia uma dança que se fazia com uma corda. Estávamos todos dentro de uma pequena cabine. E depois tropeçámos na corda e destruímos o candelabro [risos]. O navio estava parado mas ainda se sentiam as ondas e abanava assim. No navio havia professores de dança do Norte.”
Entrevista com o sr. H, Escola Chosun de Tóquio, 28 de julho de 2019
O sr. H, que conheci na escola Chosun em Tóquio, era um apaixonado pelas aulas de dança. Lembro-me da sua cara luminosa, do seu ocasional humor inteligente e da sua cara de desconforto quando, por vezes, não conseguia encontrar a palavra certa em coreano. O sr. H foi um dos primeiros bailarinos coreanos zainichi a aprender algumas das coreografias de Choi, bem como a Dança Básica Nacional da Coreia. Conseguiu entrar furtivamente no navio de repatriamento da Coreia do Norte que ancorou durante pouco tempo no porto de Tóquio para poder ensinar a dança da pátria aos seus colegas e estudantes. Durante 25 anos, aproximadamente 93 mil coreanos zainichi foram repatriados no navio que circulava nessa rota. Por ter permanecido no Japão, o sr. H empenhou-se na educação e dedicou-se ao trabalho na escola Chosun e à companhia de dança da federação de escritores e artistas Chosun, no Japão. O sr. H diz ser agora o único sobrevivente do grupo de bailarinos que conseguiram entrar no navio.
A peça de dança Contra Ondas (1956) de Choi conta a história de uma figura que navega pelo mar e canta uma canção popular de barqueiros para sobreviver. Nesta peça, Choi usa uma máscara de homem de idade e roupas compridas de homem. Mesmo depois de se reformar, Kyunghee Lee ainda dá algumas aulas de dança. Quando regressava a casa, depois de me ter encontrado com ela, Lee deu-me um arquivo em vídeo intitulado “Paisagens da prática de dança”. Aí vemos estudantes na escola Chosun a dançarem ao som da canção popular dos barqueiros e a própria Kyunghee Lee a gritar a contagem para manter os alunos no tempo certo. A vida dos indivíduos e as suas danças acontecem no meio das marés, tal como a história que se faz em ondas gigantes.
Apesar de achar que as performances devem continuar a existir, que os seus princípios devem permanecer vivos, não podemos simplesmente ignorar que muitas são esquecidas, perdidas ou abandonadas. Mesmo que estas próteses de memória ultrapassem ou deturpem o original, não nos fazem regredir. Apesar de tudo, ainda quero debater sobre a vida dos que continuam presentes na memória, comemorando e lembrando a dança e todos os que se quiserem juntar. Pode ser que isto seja também sobretudo sobre a precariedade da vida da performance [9].
Traduzido do original em coreano para inglês por Hyo Gyoung Jeon 전효경, e do inglês para português por Patrícia da Silva e José Maria Vieira Mendes.
[1] Ishii Baku 石井漠 (1886-1962) é considerado um pioneiro da dança moderna do Japão que formou bailarinos coreanos fundamentais de dança moderna, entre os quais Seung-hee Choi e Taeg-won Cho, e também Kazuo Ohno, um dos cofundadores do Butô, ou Lee Tsia-oe, uma figura influente da dança moderna em Taiwan.
[2] Taepyeongmu (태평무; significa literalmente “grande dança da paz”) é uma dança coreana que tem a função de desejar paz ao país.
[3] Hallyangmu (한량무) é uma espécie de peça de dança satírica apresentada em eventos oficiais. Hallyang refere-se a uma aristocrata que não conseguiu emprego na corte. Também se refere a homens que têm sensibilidade para apreciar arte e cultura, e que também apresentam um espírito de retidão.
[4] Antonia Mercé (1890-1936), de nome artístico La Argentina, foi uma bailarina espanhola nascida na Argentina conhecida pela sua criação de um estilo de flamenco neoclássico como arte teatral, muito influente nos anos 1910 e 1920 na Europa. Foi uma das maiores influências do bailarino de butô Kazuo Ohno.
[5] Uday Shankar (1900-1977) foi um bailarino e coreógrafo indiano, mais conhecido por ter criado um estilo de dança de fusão, no qual adaptava técnicas teatrais europeias à dança clássica indiana, imbuído de elementos clássicos indianos, folclóricos e dança étnica.
[6] Anunciado na rádio a 29 de junho de 1940 pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Hachirō Arita, a ambição japonesa declarou a intenção de criar um bloco autossuficiente de nações asiáticas do Pacífico, que seriam lideradas pelos japoneses e estariam livres do jugo do poder do Ocidente.
[7] Em alguns trabalhos, Dança Básica Nacional da Coreia é também traduzido por Dança Folclórica Básica de Joseon – Joseon foi um reinado da dinastia coreana que durou até 1897, depois do qual o território entrou em disputas coloniais.
[8] A repatriação de coreanos zainichi para a Coreia do Norte foi executada pelo governo norte-coreano, pela associação Chongryon e pelo governo japonês. Foi possível pela necessidade da Coreia do Norte de estabelecer internacionalmente a sua presença e posição, e pela necessidade japonesa de exilar coreanos zainichi.
[9] Ver Hwayeon Nam e Haeju Kim, “Larger than Life”, A/R, n.º 3, http://art-recherche.be/hors-menu/article/a-r-3?lang=fr.
Henrique Neves Uma Nova Peça Nova
1 No ano 2000, Jérôme Bel e alguns dos seus assistentes realizaram um workshop em Amesterdão para explorar ideias de trabalho que, juntamente com material desenvolvido antes, deu origem a The Show Must Go On (Jérôme Bel, 2001). Descreveria TSMGO como uma peça depurada, baseada num conceito claro que entrelaça canções pop, coreografia e os recursos técnicos e cénicos de um teatro, conduzindo os performers e membros do público por vários estados físicos, de reflexão e de emoção. TSMGO estreou, fez tournées internacionais durante anos, é parte do repertório de companhias de dança e teatro, estudado em escolas e citado em publicações. A obra ou os seus registos foram apresentados em exposições de arte contemporânea. Desde 2008, TSMGO deixou de circular com o seu elenco original, do qual eu fazia parte, e passou a ser remontado com elencos locais em cada cidade onde é apresentado. O trabalho de remontagem é geralmente feito por dois assistentes com o apoio do Jérôme Bel e da sua companhia. Eu sou um desses assistentes, e trabalho sobretudo com Dina Ed Dik.
A outra forma de começar este texto seria dizer que TSMGO faz parte da minha vida há duas décadas. Mudei de país três vezes, a minha irmã e os meus pais faleceram; fiz um mestrado; casei-me; mudei a minha principal atividade artística. TSMGO tem sido fio, trama e urdidura de eventos alegres, deprimentes e muitos outros que não são nem uma coisa nem outra.
2 Em linha com registos tradicionais, existe uma partitura escrita para TSMGO que descreve o que os intérpretes e os técnicos devem fazer, bem como os seus requisitos cénicos. Mas TSMGO é uma obra que existe num momento presente, ao vivo, dentro de um teatro. A peça muda de noite para noite e é marcada pela re-encenação, local de apresentação, performers e público. Há imposições exteriores que se atravessam, como a necessidade de negociar nudez com xs intérpretes, censura política, ou sociedades de direitos de autor que negam o uso de certas músicas. O tempo histórico atira canções para fora das listas de êxitos e um filme biográfico ressuscita-as. TSMGO não existe puro, sendo influenciado pelos contextos e pelas geografias.
É o sonho secreto de qualquer americano dançar a Macarena. Fizeram-no quatro vezes seguidas, uma após outra, no casamento da minha irmã, disse ele.
3 As diferenças vão além de detalhes ou episódios e em cada re-encenação a peça é a mesma e é diferente. O coletivo e os indivíduos acrescentam características singulares, amplas e sentidas. A longevidade da peça e a sua itinerância têm trazido ao palco uma maior diversidade de corpos e de identidades étnicas, sociais, de género, de sexualidades, e com ela personalidades, gestos e modos de estar distintos. A língua de cada local condiciona a relação entre performers e assistentes, assim como a leitura da peça. As próprias cidades carregam a sua história e os seus ecos. Já testemunhei reações do público, ao vivo, de celebração de resultados eleitorais, de repúdio por desigualdades sociais, de ultraje pela falta de virtuosismo de uma Companhia Nacional de Dança a realizar ações banais, ou de comoção pela inclusão de corpos com deficiências em cena. Essa capacidade de falar do local e ao local é essencial ao trabalho.
Foi um acidente. Ele disse que não tinha apalpado os seios dela. Até mal os tinha tocado. Além disso, eu próprio lhes tinha pedido para tocarem o corpo dxs parceirxs. E no teatro e na dança e nestes trabalhos estas coisas acontecem todo o tempo. E na altura ela nem ficou chateada. Foi imediatamente mandado embora.
4 TSMGO sempre incluiu profissionais do espetáculo e pessoas de outras profissões. Embora a obra parta de um trabalho meticuloso, requer ver e ouvir xs intérpretes. Por vezes as suas respostas às propostas do trabalho não se distanciam muito das já encontradas. Outras vezes são descobertas, fruto de escolhas individuais, vivências, identidades, valores ou extensões de condições físicas e de corpos que só agora têm voz e lugar no palco.
Esse trabalho de adaptação pode ser desafiante, tanto para os assistentes como para xs participantes. Explicar deixas musicais a uma bailarina surda, expor características físicas ou dançar livremente como numa discoteca em locais onde não existem discotecas são desafios. Como o são a consciencialização de regras, a transposição do cansaço físico ou da insegurança. As surpresas são também corpos que carregam histórias visíveis, ou que xs performers se recusam revelar por escolha ou trauma: já trabalhei com ativistas que se mostram tímidos no palco ou cadeirantes que rejeitam usar a cadeira de rodas como marca identitária. Por vezes a ausência de uma língua ou cultura comum exige discussão e a delegação de decisões aos intérpretes. O processo de trabalho não é de sentido único e engloba confronto e recusa.
Ele respondeu que não dançava. Disse que eu era um europeu branco e não entendia que o seu povo não podia dançar. Eles não tinham permissão dos brancos para dançar. Morreram e morrem aos milhares, todos os dias: de álcool, drogas, penúria. Ele não dançava porque não lhe era permitido. E eu, um europeu branco, não podia entender isso.
5 Entendo que a minha função de assistente é instigar os performers a encontrarem a sua voz, a sua política, a sua liberdade na peça. Incito a uma emancipação a partir do aprofundamento e engajamento com as tarefas do trabalho, mas que abraça e procura risco (e riso). O meu papel é criar um espaço que encoraje os performers a apropriarem-se da peça e a afirmarem-se, indo além da figura de autoridade que represento.
As remontagens locais implicam mudanças importantes, mas por vezes surgem questões sobre a sua relevância em relação à data de criação da peça. A melhor maneira de responder exigiria inquirir os produtores que a convidam. Conheço algumas das respostas: TSMGO é uma peça icónica; Jérôme Bel é uma voz marcante; o número de pessoas que viu a peça é reduzido; poucos criadores internacionais trabalham com elencos locais; “organizamos uma mostra de dança europeia”, etc. Para mim, a questão da relevância não é premente e acredito que a obra responde à pergunta.
Pediu-nos uma entrevista para uma estação de rádio local. Depois de fazer algumas perguntas, mencionou que a sua filha se havia candidatado, mas que não a tínhamos selecionado. A sua filha ficou muito desiludida e triste. Expliquei. Na estreia veio ver o show e disse que o detestou. E fez questão de mo atirar à cara, no meio das amigas, no foyer do teatro.
6 A preocupação com a novidade parece ser algo característico da dança contemporânea. Intriga-me que uma arte tão efémera, que vive no momento ao vivo, esteja tão envolvida com o porvir e nisso olvide, apague e coma o que já foi feito.
Não existe um arquivo central de dança em Portugal e muitos dos registos dos últimos 30 anos estão dispersos, são de difícil acesso, casuais e perigosamente perecíveis. Sanar esse falho não é apenas uma questão de valorização da dança e dxs artistas, mas também de consciência coletiva. Sem memória nem rastos tudo desaparece. O novo pode tornar-se simplesmente a revisitação do que foi esquecido.
TSMGO relaciona-se com os códigos e a história da dança e do teatro no Ocidente, operando através de trocas e ativações de referências e materiais. A obra dialoga com coreógrafxs, artistas e pensadores, ao mesmo tempo que já faz parte do arquivo e entrelaça tempos diversos.
7 Em tempo de emergência climática, TSMGO endereça preocupações atuais, e com o futuro, por via dos modos de trabalho. A remontagem com elencos locais, há mais de 10 anos, respondia à preocupação de Jérôme Bel com a pegada ecológica das viagens de 20 performers. Durante anos apenas os assistentes de encenação viajaram. Há cerca de três anos a sua companhia deixou de viajar de avião. A decisão foi recebida com espanto e desconfiança, embora Jérôme já há muito trabalhasse à distância. Surgiu a Covid-19 e o que era estranho vingou. Tive dúvidas se eu próprio teria oportunidade e capacidade para continuar, mas entretanto já re-encenei outras obras on-line e irei proximamente remontar TSMGO por esse mesmo meio.
Trouxe alguns ovos cozidos com especiarias, feitos na noite anterior, para oferecer aos colegas. Todos adoraram os ovos. Na manhã seguinte trouxe mais. Daí em diante, diariamente, durante toda a semana, trouxe mais de 15 ovos cozidos. Todos os dias se queixava do tempo que demoravam a fazer, mas trazia. Xs performers chegavam cedo, conversavam, descascavam os ovos e comiam-nos deliciados. O cheiro a ovo cozido na sala de ensaio era nauseabundo.
8 Muito do que escrevi aqui tornei-me eu. Nos deslocamentos testemunhados e vividos nestes anos, transformei-me em algo que não havia sido antes: a ser mais aberto, a olhar pessoas, corpos e identidades com mais carinho e admiração, a abraçar o que nem sempre entendo. Descobri como buscar resoluções para problemas que surgem no momento. Aprendi a procurar respostas e ações para o que me assombra, atormenta e seduz no campo limitado que é o meu trabalho. Ver TSMGO como um corpo em movimento, impelido em direções que o transformam e transformam quem nele participa é válido para a obra, para performers, para públicos mas também para mim: alguém que neste trabalho existe entre um criador que admiro, uma obra e aquelxs que lhe dão corpo e a fazem acontecer.
O hotel hospedava as pessoas que trabalhavam na Universidade (a que o Teatro pertencia) e acolhia doentes em tratamento no hospital e os seus familiares. Quando cheguei, estranhei tantos pijamas e robes no pequeno-almoço. Uma manhã ouvi duas pessoas a comentar os tratamentos oncológicos de parentes. Ouvi conversas da boca dos próprios doentes. E fez-se luz sobre a falta de “etiquette” às refeições. Na TV, o programa da manhã celebrava o aniversário de Gloria Gaynor. Entrevistaram-na. Gloria levanta-se e começa a cantar I Will Survive em playback. As câmaras saltam dela para as apresentadoras risonhas noutras partes da cidade, tagarelando e dançando com gente comum. Olhei ao meu redor. A mulher cujo pai fazia quimioterapia estava concentrada a pôr manteiga na torrada. Duas idosas pálidas, de robes com flores, olhavam para a TV, sem reação. Peguei no meu croissant trincado, na chávena de café e fugi para o meu quarto.
Sara Wookey Transmitindo Trio A
Trio A é uma peça coreográfica de Yvonne Rainer, criada em 1966, que integrava o espetáculo A Mind is a Muscle. São aproximadamente quatro minutos e meio dançados em silêncio por um ou mais intérpretes que nunca olham para o público enquando dançam uma sequência contínua de movimentos sem modulações (nem aumentos de ritmo ou quebras na dinâmica), movimentos que foram apropriados (do ballet clássico, de formas de dança modernas e pós-modernas, da cultura popular) e movimentos feitos à medida, e que são simultaneamente reconhecíveis e irreconhecíveis para o público de um espetáculo de dança. O intérprete deve executar os movimentos como no dia a dia, e com um nível de energia idêntico e nunca superior ao despendido quando se cozinha ou se faz outra tarefa doméstica, e sem nenhuma necessidade de agradar, apresentar, falar com ou transmitir qualquer espécie de mensagem ao público durante o espetáculo. Como afirma Yvonne: “A dança está ocupada a dançar e o público está ocupado a observar. E acontece estarem juntos na mesma sala”.i
A peça exige dx bailarinx uma enorme concentração e atenção, energia, determinação, humildade e elegância e também um comprometimento físico e uma vontade de trabalhar diligentemente, de forma consistente e sem distrações. Estas intenções e exigências podem contudo transformar-se em desafios tanto para x bailarinx como para mim, a transmissora. Já me aconteceu ser confrontada com as exigências básicas do trabalho para que este fosse reconhecível como Trio A. Muitas pessoas, sobretudo artistas plásticos que conhecem o trabalho de Yvonne pelo seu Manifesto do Nãoii, mas que não são bailarinos de formação, têm problemas com o facto de Yvonne já não aceitar que qualquer versão da dança seja apresentada ou transmitida. Ela própria tem vindo a mudar de opinião em relação à qualidade que espera. A abordagem de 1960, que entendia que qualquer pessoa a podia dançar, ainda se mantém, mas essa pessoa tem de trabalhar bastante para apreender a mecânica da dança de modo a dançá-la de acordo com as especificidades do trabalho e as expectativas de Yvonne.
Eu fui “certificada” pela própria Rainer como uma transmissora de Trio A, depois de ter estudado com ela na Universidade da Califórnia. Lembro-me claramente de ela dizer que seria a quinta e última bailarina a ser certificada por ela. O termo “transmissora” surgiu de uma conversa que tivemos muito mais tarde, quando encontrei e lhe mostrei um certificado académico da minha avó. No meu papel de transmissora, sou depositária do trabalho de Yvonne (Trio A, Diagonal e Talking Solo (parte de Terrain, 1963)) e responsável por transmiti-lo, garantindo a sua integridade através do tempo. Sou a cuidadora do trabalho, uma historiadora oral e tradutora física. Transmitir um trabalho com um processo tão rigoroso (Yvonne passou três meses a trabalhar no estúdio para construir uma peça de quatro minutos e meio) significa ensaiar para manter uma estrutura coreográfica que é igualmente rigorosa e tem de ser executada com precisão e com a intenção dos princípios da peça original.
Para conseguir esta linguagem específica, juntamente com os movimentos físicos, criei um conjunto de aproximadamente cem cartões com ilustrações desenhadas à mão e palavras sob a forma de citações de Rainer e com as minhas próprias descrições. Este sistema de notação pessoal reflete também uma organização dos quatro níveis de informação na dança – o movimento físico, a espacialização, o olhar e o ritmo –, cada um deles entendido como sistemas distintos mas que se sobrepõem. Esta forma obsessiva de tirar notas pode ajudar a prolongar a dança no futuro. Serve para ajudar a preservar a memória de uma dança ao longo do tempo nas gerações de pessoas a quem a transmitirei. Há alturas em que preciso de rever um movimento específico da peça. E isto pode querer dizer que tenho de recorrer às minhas notas de referência ou ao conjunto de cartões que desenvolvi ou a uma consulta por email com Yvonne.
Na minha experiência, apesar de a peça ter sido criada numa altura em que os artistas, incluindo Yvonne, eram muito influenciados pelo minimalismo, ela não é nem minimal nem pedestre. O que pode porém ser considerado minimal ou pedestre está no ritmo ou uso do tempo da peça. É uma dança composta por uma série de sequências complexas executadas de forma contínua. Não há paragens nem pausas, apenas uma longa frase de movimento que só se interrompe quando é executado o último movimento: um toque ao pousar o pé direito, relaxado e equilibrado nos dedos dos pés, atrás do pé esquerdo, com o corpo virado para o canto de trás da sala, os olhos a olharem para as palmas das mãos apertadas contra o lado esquerdo do corpo agora próximo do lugar onde começou a dança.
Certas condições circunstanciais foram levantando questões no que diz respeito ao que pode ser um andar “neutro” ou como traduzir para a contemporaneidade a estética da cena de dança da baixa de Nova Iorque nas décadas de 1960 e 1970. A reapresentação de Trio A (1966) por estudantes de dança de Los Angeles em 2019, por exemplo, colocou desafios produtivos e novas perspetivas relacionadas com tradução cultural, compreensão e um certo grau de flexibilidade na interpretação. Eu costumo partilhar leituras sobre o contexto cultural da época do Judson Dance Theatre e também discuto acontecimentos sociais e políticos da altura. Há momentos em que me pergunto: “O que faria a Yvonne nesta situação?”, e tento personificar a sua abordagem, disponibilidade, criticidade, ética e rigor. Ou, em outros momentos, convido-a simplesmente para a conversa, e até já a tive comigo em estúdio para resolver as questões que surgiam, tanto na peça como no grupoiii.
Um exemplo recente aconteceu em Toronto, onde estava a trabalhar com um grupo de artistas de performance (e alguns bailarinos) a convite do Centro de Artes Performativas FADO. Logo no início do processo, que durou uma semana, consultei a Yvonne por email. Ela estava em Nova Iorque mas em trânsito para ir trabalhar com o grupo antes de apresentarem a peça na Galeria de Arte de Ontário (AGO). Uma vez que a maioria dos artistas do grupo não estava preparada para apresentar um Trio A coeso, discuti com Yvonne a possibilidade de apresentar uma mostra do processo não acabado de transmissão da dança, ou seja, um ensaio com o título Transmitindo Trio A.
Quando a Yvonne chegou ao estúdio em Toronto havia um ambiente de nervosismo e incógnita. Tínhamos tido uma série de conversas sobre as expectativas, a pressão e a visibilidade do espetáculo na AGO, e eu queria que a Yvonne me ajudasse a tomar a difícil decisão de como apresentar a peça neste contexto. Consciente ou não do ambiente que se sentia na sala, Yvonne foi muito inteligente. Pediu-me que dançasse Trio A para que fizéssemos uma das nossas “afinações” regulares. Esta “afinação” é uma forma de verificar o estado da peça para os transmissores que a ensinam a outros. Já tínhamos feito algumas “afinações” mas nunca perante pessoas a quem estava a transmitir a peça, e desta forma foi possível mostrar o que eu estava a tentar traduzir em palavras: que também eu estou permanentemente a tentar implantar a dança no meu corpo; que é um processo sem fim. Esta experiência de fazer uma “afinação” perante o grupo teve outras vantagens: colocou-nos no mesmo lugar, com as mesmas experiências, porque também eu era uma aprendiz em permanência desta peça icónica.
Transmitindo Trio A foi bem recebido na AGO e abriu novas possibilidades de partilha da dança com o público num enquadramento pedagógico. Este exemplo levou-me à minha atual investigação sobre a dança enquanto prática relacional, no Centro de Pesquisa de Dança (C-DaRE), na Universidade de Coventry, o que inclui uma reflexão sobre como as aptidões transmissíveis dos bailarinos e as práticas coreográficas expandidas contribuem para uma mudança da ecologia humana do museu.
i Escrevi bastante sobre esta abordagem bem como sobre o modo como ela sugere uma certa relação entre bailarinos, público, lugar de apresentação e outros, na minha tese de pós-doutoramento Spatial Relations: Dance in the Changing Museum (2020) no Centre for Dance Research (C-DaRE) da Universidade de Coventry.
ii Manifesto do Não foi publicado pela primeira vez na edição de inverno de 1965 da Tulane Drama Review, n.º 10: 178, com a intenção de desmascarar por completo a ideia de expressionismo formal na dança:
Não ao espetáculo.
Não ao virtuosismo.
Não à transformação e à magia e ao faz de conta.
Não ao glamour e à transcendência da imagem da estrela.
Não ao heroico.
Não ao anti-heroico.
Não à imagética lixo.
Não ao envolvimento do intérprete ou do espectador.
Não ao estilo.
Não ao camp.
Não à sedução do espectador pelos artifícios do intérprete.
Não à excentricidade.
Não a comover ou ser comovido.
(N. do E.)
iii Para mais informações e exemplos, consultem o meu capítulo “Transmitting Trio A: The Relations and Sociality of an Unspectacular Dance”, em Transmission in Dance, Dance Research, 37, n.º 2 (2017).
Alice Dusapin Christophe Wavelet Ensinar Uma Coisa Que Não Se Sabe
Christophe Wavelet – Olá, querida Alice.
Alice Dusapin – Olá, Christophe.
C – Que dia é hoje?
A – Hoje é dia 5 de Julho de 2021.
C – É isso. Tu estás em Roma, no salão dos bolseiros da Villa Medici. E eu, mais modestamente, estou no meu apartamento parisiense, que é do mais haussmanniano que há.
O que é que te tem ocupado em termos de trabalho, desde que chegaste à Villa Medici?
A – Muitas coisas, muito diferentes, o que é uma metodologia de trabalho que tenho tentado combater, mas ao mesmo tempo acho que só assim é que consigo avançar, ou seja, fazendo muitas coisas em simultâneo. Diria que o maior projecto foi acabar de escrever o livro sobre o Wolfgang Stoerchle. É a primeira monografia sobre este artista, que era videasta e performer, nascido na Alemanha mas naturalizado norte-americano.
C – Em que ano é que ele chegou aos Estados Unidos?
A – Chegou ao Canadá em 1959 e a Los Angeles em 1962. Nunca mais deixou os Estados Unidos e morreu prematuramente em 1976, aos 32 anos.
C – Sabes o que o terá levado a deixar a sua Alemanha natal para se instalar primeiro no Canadá e depois nos Estados Unidos?
A – É difícil identificar claramente as razões, mas o pai do Wolfgang era um homem muito violento e a mãe, Carolina, que tinha sete filhos, decidiu deixá-lo e começar uma vida nova longe dali. Os irmãos do Wolfgang partiram primeiro, em 1957, e depois a Carolina e o Wolfgang juntaram-se a eles em 1959. Ficaram juntos durante três anos, foi um período muito bonito.
C – Que idade tinha Stoerchle nessa altura?
A – Nasceu em 1944, portanto tinha 15 anos. Conheci o irmão mais velho do Wolfgang, Peter, que me contou que, na altura, o Wolfgang estava a trabalhar num rancho. Era guia, fazia passeios a cavalo. E uma noite, ao conversarem os dois sobre o facto de se aborrecerem muito no clima frio canadiano, decidiram, primeiro na brincadeira, deixar o Canadá e ir para a Califórnia, mas fazendo a travessia a cavalo. No fundo, queriam concretizar a fantasia do western americano: tornarem-se cowboys da maneira mais cliché, e fizeram-no!
C – De onde partiram, no Canadá?
A – Partiram de Uxbridge, uma cidadezinha no norte, a 29 de Janeiro de 1962, e pensaram que iam demorar seis meses. Já era um projecto bastante ambicioso, mas chegaram mais tarde do que o esperado, a 23 de Dezembro de 1962. Do mesmo ano, portanto foi um ano de viagem.
Encontrei pela primeira vez o irmão Peter Stoerchle, em 2017, em Berlim, e ele mostrou-me muitos documentos dessa travessia. O Wolfgang voltaria a este acontecimento a posteriori. Em 1970, foi professor de vídeo na CalArts e, na biografia de apresentação do curso, assinala-se que a sua primeira performance foi a travessia dos Estados Unidos a cavalo. Foi por isso que eu quis que o livro começasse assim. E depois fez parte do trabalho do Wolfgang voltar à sua própria história… era o seu jogo. Ele conhecia – e dominava – os modos de criar um mito a partir de experiências íntimas, mas que ao mesmo tempo podiam produzir muitas fantasias. Foi o que aconteceu neste caso. E quando comecei a entrevistar artistas que o conheceram, todos me disseram que a sua melhor performance foi a travessia a cavalo.
C – Não é coisa pouca, passar um ano no lombo de uma pileca para chegar a Los Angeles, é de loucos.
A – É de loucos. E o que foi uma maluquice nesta investigação é que, no início, eu julgava que ia ser um pequeno projecto, uma pequena publicação sobre a obra e a vida muito esquiva de Stoerchle; mas depois transformou-se num enorme projecto, quatro anos da minha vida, três exposições monográficas e um livro de 420 páginas.
Comecei esta investigação graças ao Christophe Daviet-Théry, que me mostrou um livrinho publicado em 1996, na sequência de uma exposição que o Paul McCarthy tinha organizado no Magasin [Centre National d’Art Contemporain de Grenoble], dedicada a três importantes figuras europeias que tinham marcado significativamente a Costa Oeste [dos EUA], e que eram o Bas Jan Ader, o Guy de Cointet e o Wolfgang. O Bas Jan Ader e o Guy de Cointet tiveram um reconhecimento…
C – Tardio.
A – Tardio, e ligado a essa exposição! Esse foi o ponto de partida e, ao fazer alguma pesquisa, descobri muito rapidamente, por um lado, que não havia nada na Europa e, por outro, que em 2009, a sua segunda mulher, a Carol Lingham – ele morreu aos 32 anos mas foi casado duas vezes – vendeu todo o arquivo de vídeo ao Getty Research Institute [L. A.]. Fui então aos arquivos, a pensar que ia ver vídeos, consultar arquivos em papel, documentos, cartas, tudo isso, e voltar com material suficiente para fazer um pequeno projecto com o Christophe Daviet-Théry, era essa a ideia inicial. Mas, ao chegar a L.A., apercebi-me rapidamente de que muitas pessoas tinham vontade de falar sobre ele, e que o processo ia ser longo. O Wolfgang deu uma cadeira na CalArts que partilhava com o compositor Harold Budd, que aliás faleceu este ano. Tinham vários alunos em comum, e a ideia era que o Harold Budd ensinava arte e performance e o Wolfgang ensinava música. Tinham uma cadeira cruzada muito bonita.
A partir daí conheci muitos compositores norte-americanos e também artistas plásticos porque na altura, nas aulas do Wolfgang, os alunos eram por exemplo David Salle, Eric Fischl, Matt Mullican ou James Welling. Tudo isto para dizer que, de repente, percebi que havia imensas coisas a fazer, e como o trabalho dele era essencialmente performativo, e usava também muito o vídeo, o conjunto das minhas fontes seriam testemunhos. A sua obra é constituída por uma história oral e, por isso, tinha de fazer muitíssimas entrevistas – acabei por fazer 37!
C – E é isso que está no livro?
A – Não, no livro há cinco entrevistas com os artistas David Salle, Matt Mullican, Paul McCarthy, o compositor Daniel Lentz e a galerista e curadora Helene Winer. Mas muitas das outras entrevistas – e falo bastante sobre isso na introdução – foram utilizadas como base para o livro. Porque no livro há uma descrição e um comentário para cada um dos vídeos (são 39), para todas as performances, todos os quadros, esculturas, ephemera. E sempre que encontrava alguém que dizia coisas interessantes sobre o trabalho dele acrescentava a citação. Portanto, o livro é pontuado por todas essas vozes.
C – Estou a ver, é incrível! A verdade é que te deparaste com um momento que é, de facto, a idade de ouro da CalArts, e que fez a sua reputação até hoje. Que sorte, foi um tesouro, é mesmo a caverna de Ali Babá.
A – Foi extraordinário e, passado um ano e meio, consegui o apoio para a investigação em teoria e crítica de arte do CNAP [Centre National des Arts Plastiques], o que me permitiu ir a Oklahoma City, onde o Wolfgang estudou entre 1965 e 1968 e onde conheceu a primeira mulher. Ele tinha passado pela cidade durante a viagem a cavalo e queria lá voltar. No entanto, ainda ficou em Los Angeles durante uns tempos, e trabalhou primeiro para uma revista chamada Teen Screen. Era uma revista do género cor-de-rosa da altura. Aí, aprendeu a fazer paginação, ganhou o gosto pela composição de manchetes e brincou um pouco com os boatos.
C – Portanto, ao trabalhar para essa revista, ele formou-se para ser uma espécie de segundo Warhol, em termos de “como compreender o sistema da publicidade”?
A – Sim, e sem qualquer perspectiva artística. Foi uma coisa que aconteceu antes da sua carreira de artista, por isso julgo que terá sido muito profundo.
C – Lembra-te que, de todos os fotógrafos ocidentais vivos, aquele que tem agora a carreira mais fulgurante é um rapaz que começou a trabalhar para umas revistas em voga, se bem que fossem revistas de moda, o Tillmans. Mas tal como o Warhol – que quando trabalhou como ilustrador para a Vogue e para a Harper’s Bazaar também não era numa perspectiva artística –, depois usou isso no trabalho.
Mas, enfim, é quando está em Oklahoma que ele conhece a primeira mulher?
A – Sim, a Karen Couch Wieder.
C – E é nessa altura que se casa com ela?
A – Sim, é uma história engraçada. Digamos que oficialmente casou com ela em Oklahoma mas, na realidade, casaram noutro estado dois anos depois. O pai da Karen estava a morrer, e então fizeram crer à família que eram casados. A Karen era filha do reitor da universidade. Foi uma história de amor muito, muito bonita. Ficaram três anos juntos em Oklahoma, a mãe do Wolfgang vivia com eles. Havia uma espécie de contrato tácito entre eles: até ele terminar os estudos, ela continuaria ali para apoiar o filho, tratar da casa, cozinhar. A Karen aceitou esta trilogia inusitada. Ainda se mudou com eles para Santa Bárbara e quando se foi embora, em 1970 – na altura em que o Wolfgang começou a dar aulas na CalArts –, foi evidente: ele foi emagrecendo, emagrecendo, emagrecendo, emagrecendo.
Mas voltando à capacidade do Wolfgang para criar mitos, o que tem graça é que quando comecei a estudar os arquivos dos seus tempos em Oklahoma encontrei artigos que falavam do Wolfgang antes mesmo de ele começar a estudar na Universidade, com títulos como: “Ele escolheu a Universidade de Oklahoma depois de uma viagem a cavalo de 7150 quilómetros.”
C – Ele sabia muito bem o que estava a fazer. Plantou uma semente que sabia que daria frutos durante décadas.
A – O trabalho dele em Oklahoma é muito diferente, claro. É o princípio, são muitos quadros e bronzes. Mas se tivermos um olhar de conjunto, há qualquer coisa que já é muito precisa e clara nas ideias que ele vai desenvolver mais tarde na sua prática como videasta e performer.
C – Para além do facto de ele poder narrar esta odisseia neo-western com o irmão, há alguma coisa no trabalho que traduza plasticamente essa travessia?
A – Não sei se isto responde à tua pergunta, mas às vezes, quando falo disso, há uma coisa… é um termo que o Matt Mullican usa na entrevista que lhe fiz. Dizia-me ele: “O trabalho dele era muito deadpan”, seco, por assim dizer. Associo isso também àquela postura cliché do cowboy. Diria que o seu trabalho é justamente isso, e muito mais.
C – Mas no fundo, quando ele diz deadpan quer dizer que apesar de tudo está ali um corpo. Que fica.
A – Sim, e uma atitude. Oito anos depois da travessia dos Estados Unidos, ele revisita o acontecimento e apresenta-o como a sua primeira peça. É qualquer coisa. É impressionante a maturidade e a mestria que ele tem. Sabe construir muito rapidamente uma história, dizendo a coisa certa, detendo-se um pouco antes, jogando com os códigos; ele sabe como criar desejo. Para o mestrado em Santa Barbara, fez uma série de performances. Encontrei o vídeo em Oklahoma, nos arquivos da Karen; o Wolfgang e outras pessoas que ele convidou executam acções muito rudimentares: saltar, correr, cair para partir estruturas em gesso. Ele usa óculos de sol pretos durante toda a performance, e realiza as acções de uma forma muito silenciosa e séria mas, ao mesmo tempo, sempre com um sorrisinho no canto da boca…
C – Sim, é sexy. Que idade tinha ele?
A – Era um pouco mais velho do que os outros, tinha 26 anos.
C – Aos 26 anos, um rapaz que acabou de atravessar os Estados Unidos, com o irmão, em cima de uma pileca, é sempre sexy. Quer ele queira, quer não. Fisicamente, como é que ele era?
A – Tinha qualquer coisa muito especial, e também foi mudando muito. É estranho. Às vezes, não o reconhecemos. A propósito da sua última performance, que fez em 1975, no ateliê do John Baldessari, muitas das pessoas que entrevistei e que viram essa performance disseram-me que algo tinha mudado, que fisicamente ele estava diferente. Mas ainda tinha aquela coisa…
C – Aquela plasticidade, chamemos-lhe psicofísica. Psíquica/física.
A – Sim, na entrevista que fiz ao Paul McCarthy sobre esta última performance, ele disse-me: “O Wolfgang estava a tentar afectar o seu ser. E (…) essa última peça é sobre isso. Está a afectar quem ele é, à nossa frente.”
C – O que não é coisa pouca.
A – O livro termina com isso e é muito bonito, uma pessoa a forçar tanto os limites que se vê fisicamente transformada, é qualquer coisa… mas a nível mental, sobre a questão do próprio ser, é muito forte.
C – É uma reflexão magnífica.
Desculpa, mas vou passar à questão mais complicada, ele morreu de quê aos 32 anos?
A – Acidente de viação, o que é inacreditável. E foi por isso que eu demorei tanto tempo, para manter essa atmosfera de myth maker e, ao mesmo tempo, desconstruir coisas que foram ditas sobre ele e a sua obra, que nem sempre são verdadeiras, são boatos. Os boatos nunca são totalmente falsos, mas também nunca são totalmente verdadeiros. Eu queria desconstruir sem arruinar essa ambiguidade. Quando conheci o Matt Mullican, ele disse-me “pois, a última performance dele foi o suicídio, de carro”. Mostra bem a ideia que as pessoas têm do Wolfgang.
C – Não está mal visto e, além disso, não foi qualquer um a dizê-lo.
A – Sim, mas eu contei-lhe o que tinha descoberto sobre o acidente, e a resposta dele foi: “Isso é o que as pessoas dizem!” O Wolfgang ia de carro com a segunda mulher, a Carol Lingham, com quem me encontrei várias vezes e que me contou o acidente detalhadamente. Claro que tudo o que rodeava o Wolfgang podia dar a impressão que…
C – Associaram o acidente à potência ficcionalizante que ele tinha.
A – Exacto. Mas no que diz respeito ao acidente, tristemente, foi só um condutor bêbedo que chocou contra eles.
C – De facto, não é nada romanesco.
A – Em Março de 1976.
C – Como é que ela viveu a coisa?
A – A Carol Lingham voltou a casar. É muito especial, porque estas duas mulheres com quem passei tanto tempo tornaram-se importantíssimas na minha vida. Eu era bem próxima da Karen, que infelizmente morreu de Covid este Verão. Ficou muito emocionada por voltar a falar do trabalho do Wolfgang. Quando eu apareço em Oklahoma quarenta anos depois e lhe bato à porta… foi como se ela sempre tivesse sabido que esse dia ia chegar, foi tudo muito natural. Voltei lá várias vezes, porque ela tinha guardado tudo – é incrível – em caixas de sapatos, não tinha digitalizado nada. Estava tudo por fazer, e foi fantástico fazê-lo com ela. Lembrar-me-ei sempre de quando nos metemos as duas na auto-estrada para irmos ter com uma pessoa que podia digitalizar os super-8, e ela voltou a ver as imagens do Wolfgang, houve momentos muito bonitos. Para a Carol, o acidente foi muito duro e…
C – E ela virou a página.
A – Sim, mas ela é uma verdadeira flower power, manteve essa coisa, consegue estar ali e noutro lugar ao mesmo tempo. E digo isto com ternura, foi uma solução que lhe tem permitido andar para a frente em muitas coisas, viver depois daquele trauma.
C – Lembrei-me de uma coisa, fiquei a pensar que há bocado disseste que tinhas recebido o prémio da crítica do CNAP. Foi atribuído para quê?
A – Apoio à investigação. Eu já estava a trabalhar sobre o Wolfgang há um ano e meio, e depois expliquei que precisava de ir a Oklahoma, havia várias pessoas que eu precisava de conhecer, e também tinha de voltar a Los Angeles.
C – E quanto é que eles te deram?
A – 6000 euros.
C – Ah, nada mau.
A – De qualquer maneira, este livro teve uma montagem financeira meio maluca. Aprendi a ser editora, produtora, investigadora e escritora.
C – E conta lá: acabaste de fundar uma editora, como é que se chama?
A – Daisy. Uma editora que criei com o Baptiste Pinteaux.
C – Baptiste que é um dos quatro da octupus notes, a revista que têm em conjunto.
A – Sim, com o Martin Laborde e a Alice Pialoux.
C – Então, tu e o Baptiste decidiram fazer a Daisy juntos.
A – Sim, a maneira como trabalhamos na octopus notes gera um enorme interesse sobre certos temas, que tínhamos vontade de desenvolver mais sob a forma de livro. Ambos tivemos logo esse desejo, e primeiro pensámos em fazer a octopus book, mas depois quisemos criar outra imagem, outro repertório. Claro que haverá muitos projectos ligados à octopus notes, é inevitável, mas serão assinados Daisy.
C – Adorei, e porque é que se chama Daisy?
A – Daisy porque… Sabes como é, as razões para a escolha de um nome são sempre más ou superficiais, e quando se explica é uma desilusão. Pensámos em muitas coisas e, no início, queríamos que fosse o nome de alguém. Pensámos até que podia ser Daisy Miller, queríamos que fosse uma pessoa. E, ao mesmo tempo, havia a Daisy, a namorada do Donald, e a flor também…
C – Claro, pensei logo nisso. Daisy, a namorada do Donald, é fantástico.
A – Um amigo mandou-me isto no outro dia, vou-te ler, é em inglês: “I believe in the world as in a daisy because I see it but I don’t think about it because to think is not to understand”. Isto é Pessoa em inglês. E eu pensei: “Pronto, já está.”
C – E o que é uma daisy em inglês?
A – Uma margarida.
C – Voltemos à tua investigação. Conseguiste dinheiro, o que te permitiu conhecer as duas mulheres de Stoerchle e entrevistar os que o conheceram na época da CalArts, e depois disso?
A – Na verdade, houve várias viagens. A ida a Oklahoma, que foi muito importante, como também o encontro com a Lisa Overduin, que é directora da galeria Overduin & Co., e que me convidou a organizar uma primeira exposição monográfica sobre o Wolfgang, em Los Angeles. A exposição aconteceu em Março de 2018, arranjámos maneira de eu ficar mais tempo para poder fazer todas as entrevistas e conhecer o David Salle e o Daniel Lentz. A seguir, também fui a Nova Iorque para me encontrar com a Helene Winer, depois a Berlim… Organizei-me para juntar todas as peças do puzzle.
C – Um trabalho de montagem.
A – Sim, e a última coisa foi o prémio da Terra Foundation [for American Art] pelo manuscrito do livro, o que foi fantástico. É um prémio para o manuscrito, portanto tive de enviar tudo. Também tem de haver relatórios de académicos sobre o texto. Pedi ao Alexander Dumbadze, que escreve sobre o Bas Jan Ader, e à Valérie Mavridorakis, que é professora na Sorbonne.
C – Mais uma vez, não é só teres nascido com uma estrelinha da sorte porque a Valérie Mavridorakis, na nova geração de grandes historiadoras da arte que dão aulas na universidade, é uma das duas mais interessantes, há que dizê-lo.
Voltemos ao Wolfgang. Depois de teres feito aquelas entrevistas todas, percebes que tens em mãos um material extraordinário e insano, que tem de ser organizado, mas imagino que, à medida que fazias as entrevistas e as transcrevias, já sabias quais é que iam constar do livro.
A – Sim, na verdade as entrevistas que publico são as conversas que aconteceram quase de uma assentada. Mas há outras, há muitos amigos do Wolfgang a quem ainda hoje escrevo. Dizia-te há pouco que aprendi um ofício enquanto fazia este livro, fui o que se chama um editor em inglês, ou seja, uma directora editorial. Eu era muito nova mas já tinha feito alguns trabalhos antes, e a minha ideia era manter o barco à tona, pondo toda a gente a conversar e a trabalhar para que o projecto não se afundasse, para que vingasse. Eu estudei história da arte, mas não tinha a veleidade de saber realmente escrever.
C – Eis senão quando, não é Vénus que sai das águas, mas sim a super-Alice.
A – E, no meio disto tudo, deparo-me com muito material. É por isso que o livro está construído como um sourcebook e uma biografia, é uma mistura. Com o Wolfgang acontecia a mesma coisa, a sua história de vida é tão importante como a sua obra; são também os anos 70, e há um desejo de misturar arte e vida sem entrar em sentimentalismos.
Por isso, senti que tinha o direito de fazer isto sem ser especialista. Muito naturalmente, a minha preocupação era recolher informações, o meu plano era recolher material, regressar a Paris depois das várias viagens, formar uma equipa de autores e dizer-lhes: “Tenho aqui isto, agora está nas vossas mãos, bom trabalho, ponham isto na história da arte.” Mas havia aquela história do Wolfgang a dar uma cadeira que se poderia resumir como “to teach something you don’t know”, “ensinar uma coisa que não se sabe”, então eu pensei: “Queres melhor do que isto?” Verdade seja dita, não fui eu que pensei nisto, foi o Christophe que me disse quando eu voltei: “Mas Alice, tu é que tens de escrever o livro, tens tudo aí.”
C – Era óbvio. Abençoado seja o Christophe Daviet-Théry, mais uma vez. O livro agora vai sair em que editora?
A – Está actualmente a ser revisto e vai ser lançado em Outubro. Nas edições Daisy e Christophe Daviet-Théry.
C – Fantástico. Isso quer dizer que quem ler esta entrevista vai conseguir encontrá-lo.
Entrevista realizada por videochamada no dia 5 de Julho de 2021. Transcrita por Cyriaque Villemaux. Traduzida do original em francês por Joana Frazão.
Dani Issler Frédéric Sayer Stars and Stripes na Graça
“Descubra Daniel Buren na Graça” é uma Experiência Airbnb™ que oferece uma visita guiada a pé, no animado bairro da Graça (pelo preço de 25€), na qual se pode visitar cinco locais históricos em que o célebre artista francês Daniel Buren (n. 1938) afixou as suas criações improvisadas, “Affichages Sauvages”, em 1980. A este périplo segue-se a visita à casa do artista luso-americano Ricardo Valentim (n. 1978), que oferece as melhores vistas panorâmicas de Lisboa e onde são servidos refrescos e a conversa sobre arte conceptual passa da esfera pública para a privada.
Depois de ter criado a página no site da empresa, Valentim, o responsável pelo desenvolvimento do conceito e pela iniciativa, foi contactado por um representante da Airbnb, um jovem brasileiro residente em Dublin, para confirmar as informações da oferta, e num telefonema de uma hora ajudou-o a desenvolver o descritivo e a estratégia de marketing. Depois disso, tirou umas fotografias com a ajuda de amigos e assim que foram colocadas na página o projeto estava pronto a arrancar. Uma experiência turística artística e um potencial pequeno negócio. Isto foi no início de 2020. Começaram a chegar as reservas, fizeram-se três eventos e veio a Covid. Os turistas desapareceram e a vizinhança tornou-se silenciosa.
Valentim, um residente de curta duração na Graça que vivera em Lisboa entre 1997 e 2003, período durante o qual estudou arte e antropologia, acabou por passar aí grande parte do período de 2018 a 2021, em trânsito entre Nova Iorque e San Diego com a sua família. Durante estes anos, experimentou a sua própria gentrificação e empenhou-se na ideia de um projeto site-specific associando-se a um contexto que estava literalmente à porta de sua casa: a descoberta de uma nota de rodapé ignorada pela história da arte local.
Em fevereiro de 1980 Buren foi convidado pelo galerista Mário Teixeira da Silva para criar uma instalação, a travail in situ, que esteve em exibição durante mais de um mês no seu apartamento que era também o Módulo – Centro Difusor de Artei. Em imagens da exposição podemos ver uma instalação composta por listras vermelhas e brancas nas ombreiras das portas, nos vidros das janelas, nos revestimentos de madeira e nas paredes, que desconstruíam o que parecia ser uma típica sala de estar burguesa. No dia seguinte à inauguração, Buren tomou também a liberdade de usar restos dos materiais que sobraram da exposição e instala-los em alguns prédios situados no bairro da Graça, afixando as suas listras em justaposição com os tradicionais azulejos. Uma rápida operação seguida de uma sessão fotográfica para arquivo do artista.
Aparentemente o projeto remete Buren para segundo plano e Valentim esclarece que não se trata de uma homenagem. A passagem de Buren pela Graça, seis anos depois da queda da ditadura, aconteceu numa altura-chave de transição na sua carreira: depois de ter sido um dos pioneiros do minimalismo e de ter repensado a circulação da arte fora das instituições ultrapassando as noções comuns de mercado da arte, Buren estava tornar-se extremamente comercial com trabalhos para centros comerciais e átrios de hotéis, já para não falar do seu icónico Les Deux Plateaux (1986), apresentado posteriormente em Paris.
A experiência Airbnb oferece uma brochura que Valentim desenhou e produziu para a visita, na qual vemos imagens históricas a preto-e-branco. São as mesmas imagens disponíveis a cores nos arquivos do site de Buren, tiradas por ele na altura. Estas fotos, sobretudo de pormenores, estão justapostas na brochura a fotos mais recentes tiradas por Valentim, respeitando o enquadramento das imagens de Buren, possibilitando uma verificação em tempo real durante a visita. Ao optar pelo preto-e-branco nas fotos, Valentim faz com que seja mais simples e explícita a diferença entre o antes e o depois, encorajando também os participantes a tirarem as suas próprias fotos a cores. O que nos é dado a ver são as listras alinhadas com os azulejos por trás. E se as listras já desapareceram há muito, o situ continua intacto.
Valentim, que passou mais de uma década em Nova Iorque e é já um cidadão norte-americano, quer fazer-se passar por um guia turístico artístico local “autêntico”, mas a sua crítica ao provincialismo da cena artística lisboeta é a perspetiva de alguém que ao mesmo tempo é daqui mas conhece outras realidades. A experiência performativa de duas horas é dirigida a turistas que também estão de passagem. Uma “visita imaginária” que santifica o espaço público sem valor artístico de um bairro de trabalhadores, sem instituições artísticas, e que o profana. No entanto, ao trazer as pessoas e ao estimular a conversa torna-se mais real do que o cubo branco.
Esta “Experiência” tem paralelismos com aqueles momentos em que estamos a navegar na internet e nos perdemos na exploração de um detalhe sem importância da biografia de um artista, que tem mais que ver com a nossa própria vida, com os nossos interesses, o nosso gosto, etc. Esse pormenor pode ser considerado completamente irrelevante para o entendimento da obra do artista mas pode inspirar ou desencadear fortes reações e até mudanças em nós próprios. Este projeto pode ser olhado com os termos que o crítico francês Nicholas Bourriaud criou na sua teoria da “estética relacional”, designando os artistas como facilitadores em lugar de criadores e a arte como uma troca de informação entre artistas e observadores, abrindo caminho à possibilidade de provocar mudanças sociais. Não por acaso, em setembro de 2018 centenas de lisboetas saíram à rua em protesto contra o aumento desregulado das rendas, por causa da proliferação dos arrendamentos locais de curta duração.
Procurar as listras perdidas de Buren também serve para chamar a atenção para as excecionais fachadas de azulejos, banalizadas pelos locais mas tão especiais e reconfortantes para quem as vê. Valentim valida o que “sentimos” ter um certo valor artístico, embora a princípio nos pareça apenas decorativo: o nosso entusiasmo com a beleza da esquina lisboeta. Em “Affichages Sauvages” (“Exibições Selvagens”) existe também alguma violência que é reinscrita, uma espécie de desobediência social, especialmente por ter sido feita por um estrangeiro de visita. Como Buren, o turista é seduzido pela ideia de deixar uma marca.
É possível considerar que a performance de Valentim questiona ironicamente o turismo de massas: de facto, a Graça atravessa um processo de gentrificação que se relaciona com os alugueres de curta duração. Se o turismo de massas transforma monumentos, paisagens e lugares pitorescos em simulacros, a experiência de Valentim funciona na direção contrária e permite-nos ver o que o tempo tornou invisível – o rasto de Buren. É o percurso inverso do simulacro, que aniquila o real e satura a imagem: Valentim levanta o véu do vazio – a entropia do tempo – para nos trazer de volta o passado, encenando ironicamente o absurdo do turismo.
Atualmente o turismo de massas baseia-se, mais do que nunca, em imagens e em fotografias: os turistas já conhecem os lugares que vão visitar porque já os viram online. O que fazemos enquanto turistas é verificar se a realidade corresponde à sua versão imaginada. Atribuímos o hashtag certo à imagem geolocalizada. Susan Sontag, no seu ensaio Sobre fotografia (1973), antecipou esta “poluição mental” imagética que dissolve o real. Desta vez, não é só o mundo sensível que é feito de simulacros, mas sim o suporte fotográfico que duplica o simulacro, tal como afirma Jean Baudrillard quando se refere ao desaparecimento da mensagem em favor do medium em Simulacres et simulation (1981), corroborando a nossa perceção do turismo de massas e as suas ligações à fotografia.
Além disso, Valentim incorpora na sua experiência um aperitivo inspirado por Buren que joga com os clichés franceses (“vinho e queijo”) e com a paragem obrigatória para os turistas franceses na Graça (“vinho com vista”). No vasto supermercado de lixo imaginário produzido pelo turismo de massas, Valentim reflete sobre o que terá desaparecido e sobre o que apenas o cérebro e o conhecimento adquirido em encontros ao vivo conseguem reconstituir. A saturação de imagens abre espaço para o vazio e o consumo, o que, por sua vez, conduz à impossibilidade de possuir apenas com o olhar.
Valentim exerce a sua autoridade artística para garantir autenticidade. Como se diz no grande filme de Almodóvar: “Custa muito ser autêntico, e não podemos ser forretas com estas coisas porque quanto mais autêntico fores, mais te vais parecer com o que sonhaste ser.” Adorno definiu uma vez a arte como sendo conteúdo que ganhou forma. Neste caso, testemunhamos um conteúdo que se transformou num formato. Numa época de glocalismo e airbnbização, ao utilizar os meios de produção performativos americanos à sua disposição, Valentim prova que ele, tal como o próprio Buren, vive e trabalha in situ.
i Módulo — Centro Difusor de Arte foi uma das primeiras galerias privadas a abrir no pós-25 de Abril, inicialmente no Porto, em 1975, numa casa da avó do galerista à Rua da Boavista. Propunha um espaço cultural orientado para as novas tendências da arte contemporânea, sobretudo fotografia e arte pós-conceptual, apostando em artistas estrangeiros e que não tinham carreira expositiva em Portugal. Mário Teixeira muda-se para Lisboa em 1979, instalando a galeria, até 1988, na casa que habitava no número 54 da Av. António Augusto de Aguiar, 5º Dto. Como explica numa entrevista a Sandra Jürgens publicada na artecapital.net em 2012, “a galeria era no meu apartamento, metade era galeria, metade era habitação […] Lembro-me que quando fiz aquela instalação do Daniel Buren, gente bem sonante, afirmou que eu tinha transformado a galeria numa barraca de praia e que aquilo não era arte.” A galeria hoje existe na calçada dos Mestres¸n.º 34 A/B, nas Amoreiras. (N. do E.)
Paula Caspão Rassemblages Pre-Lúdicas para Ensaiar Recusar
Tenho sorte porque do sítio onde estou consigo ouvir o sussurro dos livros, podcasts, filmes e vídeos deste ano a terem conversas uns com os outros. É uma sala de montagem onde as vozes parecem sair umas das outras e por isso não me vou preocupar muito com uma certa iconização do empréstimo. Faut pas dorer sur tranche, não embelezar, diz Nathalie Quintaine no prefácio a Chaosmogonie, de Nanni Balestrini (2020) – fumant la forme libérée du marécage de la syntaxe par intermède de Balestrini. Pantanal de sintaxe, à ne pas imaginer qu’on puisse faire sien à um tel point un discours théorique qu’il en devient une partie intimei. Assim se passa. Reler The Hundredsii, sobretudo a página que diz ‘The Things We Think With’, e pôr-me a recitar our citations are dilations, not just memories we have fidelity toiii. Citações dilatadas, dizer não ser autora, artista, investigadora, isso que é ser entidade identificada, como se fosse possível separar-me do planeta, separar aquilo que sou e (não) faço dos outros animais, coisas e des-coisas. Perder a compostura, ensaiar descolar-me das formas de imperialismo e policiamento naturalizadas nas instituições onde trabalho e neste corpo que me suporta, comporta, transporta, reporta indefinidamente (rehearsals of disengagement, escreve Ariella Aïsha Azoulay no livro Potential History: Unlearning Imperialism, de 2019, aí pelas páginas 43-45).
“Paula, larga o trabalho e volta a voar.” Olha… a Easyjet agora trata-me por tu, apesar de ser uma companhia que tenho evitado. A injunção veio empacotada no Assunto de um mail que recebi em 15 de junho de 2021, às 16:01. A essa hora estava de facto a tentar trabalhar a contrarrelógio, a montar um Poema Mudo no iMovie, para apresentar no Instituto de História de Arte de Paris uns dias depois. Um tanto atordoada, porque na manhã desse mesmo dia fui vacinada num centro cultural da rua Merlin (Salle Olympe de Gauges) transformado em centro de vacinação com banda sonora ao vivo. Tive direito a um concerto de xilofone e acolhimento em pezinhos de lã, intervalo de paradisíaco bien-être em modo we care so much, prelúdio de sonho de uma noite de febre, efeitos de uma Pfizer em cima de uma Astrazeneca, e eu toda contente. Mas sobre delírios e paraísos já a TAP me tinha informado uns dias antes: “Paula, o paraíso existe e situa-se em pleno oceano Atlântico.” E anteontem aconselhou-me: “Paula, prolonga o teu verão.” Não há que negar, o algoritmo às vezes acerta na mosca com certa poesia. Mas chiça, meninas, poupem-me, parem de chamar por mim como se fossemos amigas de infância. E daí… talvez sejamos e só agora me estou a dar conta. Pesadas as circunstâncias, somos certamente mais íntimas do que gostaria de ter de reconhecer. É que não lhes escapa nada.
O terminal 2E do aeroporto Charles de Gaulle de Paris dotou-se recentemente de um Espace Musées. Algures entre 30 de abril e 6 de outubro de 2019, esbarrei com um grande poster a anunciar orgulhosamente que tinham em exposição Voyages d’Explorateurs, do Museu do quai Branly – Jacques Chirac. De pasmar, desfrutem tamanho capital cultural, ó estimados cosmopolitas, amantes de descobertas e de cultura cultivada, adoradores de arte e movimentos vertiginosos, we love you so much we travel all the way with (in) you: “Une invitation au voyage, un appel à la découverte, c’est l’engagement de Paris Aéroport à ce que le meilleur de la culture parisienne et française s’invite partout dans ses aéroports pour que l’art fasse aussi partie du voyage”iv. Como se isto não chegasse para dar aquela vertigenzinha de satisfação ou náusea a qualquer passante, o cartaz dizia ainda que “a exposição contém múltiplos objetos, peças iconográficas e obras de referência, sendo a sua coleção dedicada às artes e às civilizações de África, da Oceânia e das Américas, e os objetos apresentados provenientes das grandes viagens da época dos reis de França até às viagens comerciais, diplomáticas ou de exploração”. Curiosa forma de dedicação. De invasões europeias, de expropriação, genocídio e saque massivos não se fala. Gente, poderes públicos e seus bureaus de comunicação, a paciência esgotou. Deixem-se de eufemismos, parem de regar a plantação como se estivessem deveras a cultivar diversidade e inclusão, para lá das vossas imagens psico-serôdias de multiculti duty free. Fico a pensar no livro de Hito Steyerl, Duty Free Art: Art in the Age of Planetary Civil War, que saiu em 2019. Como introdução, vale a pena ler o texto “Duty-Free Art” publicado na e-flux em 2015v.
Começa a tornar-se difícil aguentar. Será que estamos condenadas a contar e recontar as mesmas histórias até ao fim dos tempos (dizer isto com a boca de Saidiya Hartman, numa entrevista)vi.
Manter o Não à mão. “Imagine Going on Strike: Museum Workers and Historians”, escreve Ariella Aïsha Azoulay no livro Potential History: Unlearning Imperialism (2019).
Imaginemos uma greve não apenas como protesto contra uma situação específica de opressão, não apenas contra uma instituição em particular e não unicamente como forma de reivindicar melhores condições e salários, mas como recusa geral da lógica do capital profundamente incorporada nos museus e nas suas desavergonhadamente ilusórias missões de inclusão de diversidade e de produção de intercâmbio cultural. Uma greve assim generalizada a todas as profissões, não só as que se encontram diretamente ligadas a instituições como museus ou universidades, ajudar-nos-ia a pararmos de conceber as nossas atividades profissionais como atividades produtivas cujo valor se pode medir a partir de resultados encaixáveis numa história linear progressiva, para as concebermos como modalidades de implicação com o mundo que reconhecem a nossa inseparabilidade, o nosso emaranhamento radical. Imaginar os detalhes disto.
Imaginar especialistas do mundo da arte a admitirem que todo o projeto de salvação artística ao qual eram fiéis é uma loucura e não poderia ter existido sem o exercício de variadíssimas formas de violência, atribuindo preços espetaculares a peças que não deveriam sequer ter sido adquiridas. Imaginar todos esses especialistas a reconhecerem que o conhecimento e as competências que o museu tornou violentamente raros e valiosos não se encontram extintos. Para que o valor de mercado desses objetos se preserve, houve que negar tempo e condições às pessoas que herdaram o conhecimento e as competências para criar e construir o seu mundo. Imaginar diretores de museu e curadores tomados por um despertar tardio – semelhante ao que experimentam por vezes os soldados – relativamente ao sentido da violência que exercem sob cobertura benigna, e a admitirem até que ponto a sua profissão é constitutiva de violência diferencial. Imaginar estes especialistas a fazerem greve, até obterem permissão para abrir as portas das suas instituições a refugiados políticos vindos dos lugares de onde as suas instituições detêm objetos, convidando-os a produzirem objetos semelhantes aos saqueados, obliterando assim os ditos ‘autênticos’.
Traduzi estas linhas a partir de um pequeno excerto do livro de Azoulay, publicado na revista e-flux, num interessante dossier sobre formas de greve, de retirada, de recusavii.
Imaginar enviar este excerto ao Museu do Oriente em Lisboa, que tem por missão vangloriar-se desavergonhadamente da “presença portuguesa na Ásia”, da “multiculturalidade” da “relação secular que foi estabelecida entre o Oriente e o Ocidente” através de Portugal. Com um discurso de apresentação que fala de supostamente magníficas “trocas comerciais, culturais, vivenciais, científicas, técnicas e religiosas que possibilitaram o conhecimento de mundos até então desconhecidos” entre Portugal e a Ásia. Nem um pio sobre violência(s) perpetradas por esse passado fora e continuadas hoje e amanhã de várias maneiras e feitios, nestes igualmente magníficos museus. O mecenas principal é o Novo Banco que, como banco que se preza, tem uma estratégia de mecenato cultural e é um agente benevolente interessado em contribuir para “a criação e formação de novos públicos”, nomeadamente “dinamizando a oferta cultural existente”. Falando deste museu, lembro-me que a Fundação Oriente faz parte do Consórcio Lisboa, a pomposa rede colaborativa entre o Programa de Mestrado e Doutoramento em Estudos Culturais da Universidade Católica, a Câmara de Lisboa, a Cinemateca Portuguesa, o Museu Nacional do Teatro e da Dança, a Fundação Gulbenkian, a Culturgest, o Centro Nacional de Cultura, a Fundação EDP, o Oceanário de Lisboa e a Parques de Sintra – Monte da Lua, que este ano organizou a XI Lisbon Summer School for the Study of Culture sob o tema CONVIVIAL CULTURES. Maravilhosa convivialidade, a avaliar pelo modo autolaudatório como se descrevem. A não perder, o vídeo de apresentação: www.lisbonconsortium.com, com convívio do melhor. A verdade é que já nada disto me choca. Mas continua a intrigar-me profundamente (pensarão que pega?), não sei se ria ou se chore. Talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Manter o Não à mão. Gritar aos vários ventos: a investigação e a arte têm de fugitivar. Manter a inclinação para o gaguejo, a vertigem da falha, praticar a não-performance da performance literal: não corresponder à demanda. Descolar-se do programa globalmente programado. Recusar ir dar onde as esperam. Não ir logo a correr quando nos chamam. Porque sim, é preciso manter a indeterminação. O que é isso de performar investigação, arte, trabalho, a universidade, o museu, eu, os slogans da convivialidade deles, tudo, na economia associalmente conectada da performance e do conhecimento. Manter o não à mão. Hoje, para variar, Não consinto. Não vou. Não faço. Re-dizer: Não é Investigação. Não é Teoria. Não é Arte. Com estes três Nãos prefaciou Hito Steyerl “Wihdrawal from Representation”, a conferência que deu no simpósio Psychopathologies of Cognitive Capitalism, em 2013. Não estive presente, mas a tripla negação dirigida à investigação, à teoria e à arte (que li pouco tempo depois num texto de Rike Frank) reaparece-me agora como adágio (re)generativo.
Inclusão sous videviii
Há muito que andamos atentas às políticas de apropriação cultural, há muito que desconfiamos da atração das instituições de poder pela ‘diversidade’. Aprendemos a não subestimar a rapidez com que o capital absorve noções relevantes para as transformar em slogans vaziosxix. Facto é que se atribuem financiamentos a exposições sobre a questão da ‘habitação’, por exemplo, enquanto as pessoas continuam a ser massivamente ejetadas dos abrigos variados a que chamam ‘casa’x. Já deu para perceber que anda por aí muita curadoria que consiste simplesmente em neutralizar arte, que é a arte da inclusão neoliberal, dos múltiplos regimes de exposição que subjugam e colonizam, sempre bem-intencionados, mas sempre racistas. Exímios em demonstrar e performar uma certa imagem de boa vontade inclusiva democrática. Mas que (não) fazer de tanta arte que não quer ser ‘curada’, nem assim nem de maneira nenhumaxi?
De facto, neste momento já não se trata de lutar contra as estruturas exclusionistas das instituições (neste momento poderíamos até chamar-lhes ‘inclusionistas’), já que aquilo contra o que lutamos são as constantes modalidades de extração incorporativa, nada de novo afinal, apenas uma atualização de novas e velhas tecnologias, diz Fred Moten em conversa com Sandy Grande, Stefano Harney, Jasbir Puar e Dylan Rodríguez, a propósito da ação ‘Strike MoMA Working Group of IIAAF’xii. Nesta conversa, Stefano Harney compara os museus e as universidades a vastas ‘máquinas trituradoras’, que esmagam e digerem variadíssimas modalidades de estética social e de estudo que as pessoas praticam um pouco por todo o lado de formas indeterminadas, para as transformarem em entidades individualizadas identificáveis. O negócio destas instituições é andar por aí a identificar quem anda a tentar levar vidas estéticas e formas de estudo coletivas autónomas, e mandar patrulhas de curadores para as capturar, sob cobertura de ‘inclusão’. Na verdade, a principal razão pela qual se guardam obras de arte nos museus, diz Harney, é fingir que há de facto algo individualizado a que podemos chamar uma ‘obra de arte’ – para além das razões que já conhecemos, a saber: manter esses objetos de arte em segurança de modo a torná-los inacessíveis a quem os queira de volta; alugá-los, o que significa que de cada vez que pagamos para ir ao museu estamos a alugar a arte que vamos encontrar; comodificá-los e especular sobre o seu valor. Haver algo a que possamos chamar ‘obra de arte’ é pois um facto que precisa de ser sujeito a um ataque anticolonial consequente.
Descolonizar sous vide
O que (recusar) fazer? Vivemos numa época em que a instituição encena e reencena a sua criticalidade, a sua diversidade, a sua intermedialidade, a sua pós-colonialidade e a sua convivialidade, mas pouca coisa muda de facto. Provado está que o raio do capital é perfeitamente capaz de incorporar a ideia de descolonização e de descolonialidade. Por isso precisamos de considerar a endurance da ‘colónia’ para lá do regime político colonial historicamente situado. O capital é sempre colonizador, portanto a colónia é consubstancial ao capital e está no meio de nós. Para compreender como persiste temos de nos livrar da abordagem que só consegue ver a colónia sob a forma que a Europa lhe deu no século XIX, e não confundir colonização e colonialismo. Sem a colónia, escreve Vergès (2019) – inclusive a colónia de férias – não haveria países com instituições estruturalmente racistas. Pois é, não é certo que haja vida descolonizadora para além da maravilhosa economia do conhecimento e da performance que ritma os nossos dias e noites, que é tão generosa e criativa ao ponto de ter dito ‘faça-se investigação artística nas universidades’xiii. Nem é certo que as duas aulas que me entusiasmei a desenhar para o semestre de 2022 – sob a designação ‘Práticas de resistência, co-imaginação e ação descolonial quotidianas na era da performance digital’ – sejam capazes de descolonizar o que quer que seja para além do sentido metafórico em que o termo tem vindo a proliferar nos nossos ecrãs. Acredito ainda assim neste amor à contaminação entre os materiais, através dos quais me apetece reunir pessoas. Uma (r)assemblage que me faz poesia na página e um desejo forte de pensar coletivamente, a ver.
Le Passeur (instalação, 2008) / Mined Soil (filme, 2015) / Spell Reel (filme, 2017) / Cotton Algorithms (instalação, 2019) – todos de Filipa César. Imagine Going on Strike: Museum Workers and Historians, in Potential History: unlearning Imperialism (Azoulay, 2019). The Hundreds (Berlant & Stewart, 2019). Revolutionary Feminisms: Conversations on Collective Action and Radical Thought (Bhandar & Ziadah, 2020). Conversa On Fugitive Aesthetics (com Moten, Harney, Swayer, 2021). Unshrinking the World (Avery Gordon, “An interview with Woznicki on her book The Hawthorn Archive: Letters from the Utopian Margins, 2019). Undercommons: Fugitive Planning and Black Study + All Incomplete (Harney & Moten, 2013 e 2020). Wayward Lives: Beautiful Experiments (Saidiya Hartman, 2020). Exterminate All the Brutes (filme-ensaio de Raoul Peck, 2021). How Not to Be Seen (videoarte de Hito Steyerl, 2013).
Dos materiais aqui reunidos espero que nos ajudem a arejar o chão que nos suporta. A descortinar forças para nos desengajarmos do que, nas nossas vidas, profissões e posições quotidianas, continua a performar a pedagogia implícita do capitalismo (no mínimo). Não é por acaso que os textos, filmes, entrevistas, conversas e instalações com que aqui se tece são quase todos realizados em colaboração, e que vários deles experimentam formatos que torcem e entortam géneros existentes. Nada prometem porque não fazem por ora ideia de quem com eles – e através deles – virá encontrar-se; o que virá ensaiar-se a várias mãos, texturas, imagens, afetos, ritmos, numa prática de estudo que emaranha e impurifica tudo (arte e teoria, crítica e poesia, tempos com espaços, still-moving-images, tudo e nada). Um estudo como prática que não começa nem acaba no conceito, e desconfirma todos os princípios da separação onto-epistemológica que a modernidade ocidental se aplicou a produzir. E se for difícil de acreditar, é ouvir Avery Gordon: “I tried to follow Monique Wittig’s instruction in Les Guérillères (1969): ‘There was a time when you were not a slave, remember that. Make an effort to remember. Or, failing that, invent’” (2019)xiv.
i “A fumar a forma livre do pântano da sintaxe através de Balestrini; não imaginar que se possa a tal ponto fazer seu um discurso teórico que se torna parte íntima.” Tradução livre.
ii The Hundreds é um livro que reúne várias vozes, em não mais de 100 palavras cada, editado por Lauren Berlant e Kathleen Stewart (Durham, CN: Duke University Press, 2019).
iii “As nossas citações são dilatações, não apenas memórias às quais somos fiéis.” Tradução livre.
iv “Um convite à viagem, um apelo à descoberta, este é o compromisso do Aeroporto de Paris para levar o melhor da cultura parisiense e francesa a todos os seus espaços, para que a arte faça também parte da viagem.” Tradução livre.
v https://www.e-flux.com/journal/63/60894/duty-free-art/.
vi https://www.newyorker.com/magazine/2020/10/26/how-saidiya-hartman-retells-the-history-of-black-life
vii https://www.e-flux.com/journal/104/299944/imagine-going-on-strike-museum-workers-and-historians/ e https://www.e-flux.com/readers/362461/strike.
viii A tradução de sous vide em português é ‘embalagem a vácuo’. A expressão em francês é entretanto utilizada internacionalmente, sobretudo em contextos de alta cozinha. Mas a embalagem a vácuo também está muito presente em qualquer supermercado e permite cozinhar e/ou aquecer os alimentos sem os retirar do plástico.
ix Ver o livro de Françoise Vergès, Un féminisme décolonial (Paris: La fabrique, 2019).
x Ver o texto de Giulia Palladini, “On co-existing, mending and imagining: notes on the domestics of Performance”, in A Live Gathering, editado por Ana Vujanovic e Livia A. Piazza (Berlim: b_books, 2019).
xi Ver o texto de André Lepecki, “Decolonizing the curatorial”, na revista Theater 47, n.º 1 (2017).
xii Em 27 de maio de 2021: https://www.youtube.com/watch?v=V2vzhwnjy4s.
xiii Note-se que isto é dito por alguém que ama variadíssimas práticas de investigação e em particular de investigação artística; alguém que se implica com paixão na composição (o mais coletiva possível) de aulas de Prática como Investigação num Programa de doutoramento em Estudos de Teatro; alguém que desfruta a fundo o tempo passado com pessoas nesse contexto a que se chama oficialmente ‘aula’. E contudo, ser um agente desta economia do conhecimento não vai sem dor. O que me anima é acreditar na contradição, na necessidade de manter as coisas complicadas (muito tenho aprendido com as práticas de ‘antagonismo geral’ tecidas por Fred Moten e Stefano Harney).
xiv “Tentei seguir a instrução de Monique Wittig em Les Guérillères (1969): ‘Houve um tempo em que não eras escrava, lembra-te disso. Faz um esforço para te lembrares. Se não conseguires, inventa'” (2019), citado de uma entrevista com Avery Gordon a propósito do livro The Hawthorn Archive: Letters from the Utopian Margins, disponível em: https://transversal.at/blog/unshrinking-the-world. Tradução livre.
Min Kyoung Lee 이민경 O País-Escola Secundária 고등학교 나라
Havia um país que era por si só uma escola. Um país-escola secundária onde todos estudam de forma militante do início ao fim. Esta escola-nação não é uma pessoa nem um bicho, mas funciona de forma orgânica. Além de dezenas de aulas, exames mensais e estudo diário à noite, a escola providencia inúmeras outras atividades que contribuem para um funcionamento ininterrupto. O exame de admissão à universidade é repetido todos os anos, contudo o número de diplomados é muito reduzido.
Abaixo encontra-se uma lista de terminologia relacionada com a escola-nação.
Escola Secundária
A escola-nação segue o modelo da escola cristã, com enormes instalações, uniformes aprimorados, uma longa tradição e a reputação de tratar os alunos de forma respeitosa. Regida pelos princípios cristãos, alunos obedientes ao lado de professores benevolentes criam uma atmosfera pacífica e única. A escola é constituída por milhares de alunos, diretores, vice-diretores, professores, pastores de igreja, funcionários administrativos e de escritório, responsáveis de limpeza e de segurança (idosos), e ainda pelos pais dos alunos (que exercem pressão adicional). Nesta escola pacata e ordeira, podem-se também encontrar professores provocadores, alunos dissidentes e muitas outras perturbações.
Ao contrário dos ideais da “educação”, o principal motivo da existência da escola é a preparação para o exame de admissão na universidade. Todas as aulas são preparadas para esse fim. E com uma preparação tão intensa não há tempo a perder com qualquer outro assunto que se desvie do estudo. Além de desleixo, isso seria considerado um ato de rebelião. Felizmente, na maioria dos casos, os alunos obedecem aos seus professores, e estes aos seus superiores, e portanto não há necessidade de punição. Apesar da desoladora quantidade de suicídios entre os alunos, a escola presta-lhes a sua homenagem e reza por eles. Graças ao papel cooperante que cada membro tem para o sucesso nos exames de admissão à universidade, a escola está bem de saúde.
O País-Escola Secundária
Apesar de ter uma dimensão muito maior, é possível assumir, em termos estruturais, que o país é em tudo idêntico à escola secundária.
Arte no País-Escola Secundária
Nesta nação pacífica e organizada, existem vários tipos de ocupações. Existem também artistas. Muitos. Da mesma forma que se assiste a um rápido desenvolvimento do país enquanto potência cultural, o número de artistas está também a aumentar de forma acelerada.
“Dê o seu primeiro passo como artista ao passar no Exame de Certificação de Artistas. Receba uma qualificação de artista reconhecida pelo Estado. É possível obter certificados de nível 1, 3, 5, 7 e 9, com diferentes graus de dificuldade e custos diversos. Prepare-se para se tornar um artista da forma mais rápida e segura com a ajuda do nosso Instituto.”
Existe um certificado a nível nacional com cada vez mais reconhecimento, que se pode encontrar em anúncios de autocarros escolares: o certificado de artista. Para se tornar artista, não há nada melhor do que obter este certificado. Todos os seus detentores são reconhecidos como trabalhadores e o seu talento artístico é garantido em permanência. Ao se reformarem, terão os mesmos direitos que qualquer outro trabalhador.
Os exames para a certificação de artista incluem perguntas sobre a definição da arte e a natureza da criatividade artística. Perguntas sobre problemas relevantes na sociedade atual são também habituais. Na preparação para o exame pode ser importante pesquisar e decorar notícias partilhadas nas redes sociais. As perguntas são na sua maioria de escolha múltipla, mas também há perguntas de desenvolvimento. O método mais eficaz para responder a estas é memorizar um parágrafo inteiro. Naquelas em que é necessário exprimir um ponto de vista, a resposta que pareça ser diferente mas ainda assim se enquadre no senso comum receberá a melhor classificação. Como em qualquer outro exame, as respostas às perguntas podem ser encontradas no verso dos manuais.
Na escola encontram-se espalhadas notícias que afirmam que, num futuro próximo, a indústria cultural e artística irá emergir como indústria-chave para a economia nacional. De forma a preparar esse futuro, o orçamento do país-escola destinado à cultura e às artes aumentou em função do orçamento total, demonstrando a sua valorização, à semelhança de qualquer outro país desenvolvido.
Artistas na Arte do País-Escola Secundária
Num país em que o estatuto número um e mais cobiçado pelos estudantes é o serviço público, o simples facto de um artista ser visto e reconhecido como tal parece um sonho tornado realidade. Todas as tarefas dos artistas formados no território nacional são consideradas serviço público. Cabe aos artistas, além de criar, gerir todas as tarefas administrativas necessárias à produção, distribuição, gestão e reprodução dos seus trabalhos. Isto acontece porque, por um lado, os diretores e funcionários desconhecem os procedimentos e, por outro, sai mais barato que todas as responsabilidades sejam assumidas diretamente pelo artista. De forma a que a escola-nação possa executar os seus programas culturais e artísticos, os artistas devem submeter planos de criação, candidaturas e portefólios, bem como planos de pré-produção, relatórios internos, relatórios de resultados, comprovativos de despesas, registos fotográficos e ainda cooperar na produção de materiais promocionais como entrevistas e teasers. Estes materiais providenciam conteúdos para arquivo que podem vir a ser úteis, seja para efeitos de educação artística como para fomentar ideias inovadoras no campo da tecnologia. O uso e a necessidade dos artistas neste país são vastos. Em contrapartida, a nação-escola garante Segurança Social, direitos e até empréstimos. Assim, os artistas produzem vários projetos em simultâneo para alimentar os seus currículos e portefólios e vendem a alma com vista a vingar no mundo.
Mesmo não tendo uma verdadeira inspiração artística, ou não sabendo qual a necessidade da arte, os artistas sabem que devem ser melhores do que os outros. O tipo de competitividade no meio da arte do país-escola não é muito diferente do de qualquer outro tipo de competitividade.
O Espírito de Artista na Arte do País-Escola Secundária
Os manuais dizem que a arte tem um espírito de resistência e de subversão. Isto pode ser útil decorar porque é um tema recorrente nos exames. Os alunos e artistas do país-escola são bons a escrever, desenhar, dançar e cantar sobre subversão. Conhecem também o seu significado simbólico e sabem dar exemplos históricos. Claro que isso não quer dizer que sejam subversivos nas suas vidas. Em vez disso, com a perícia que adquiriram através da memorização e da repetição, são capazes de expressar o seu espírito artístico subversivo da forma mais competitiva. Tenha como exemplo as indústrias culturais de sucesso noutros países.
Numa escola em que cada dia é uma batalha, estudantes-artistas e professores deparam-se regularmente com palavras como resistência e subversão. Por vezes são atravessados por uma sensação de estranheza ou de nostalgia mas depressa decoram as palavras e passam à frase seguinte.
Diplomas no País-Escola Secundária
Há poucos diplomados neste país-escola. Para atingir tal fim, é necessário que os estudantes se subvertam à própria escola. Infelizmente, o método de subversão não é ensinado.
A escola, na verdade, não é uma pessoa, não é nada. Qualquer pessoa dentro da escola pode tornar-se “a” escola, e deixar de “a” ser. Certo é que, de tempos a tempos, alguém é as mãos, os pés e a cabeça da escola. É aquele que fala em reuniões, escreve e-mails e faz telefonemas. Aquele que cria novos concursos todos os anos, que muda os termos de inscrição, que produz e distribui novos cartazes. Mãos, pés e cabeça que escrevem montanhas de planos e relatórios. A escola manifesta-se no corpo e na mente. E se esse alguém começa por não ser a escola, no momento em que se transforma deixa de ser inocente.
Como lutar com quem não é a escola, mas que ao mesmo tempo, e de tempos a tempos, se transforma em escola? A luta contra a escola não deve ser considerada como uma típica batalha contra o inimigo. Será antes um misto de fantasia e terror no qual inimigos e aliados se confundem. Ao lutar, há que lembrar que os alvos se movem, mudam constantemente de lugar e se alteram. Pode deparar-se com o dilema entre cuidar ou lutar contra os seus companheiros que, de um momento para o outro, viraram inimigos. Como é algo vivido na primeira pessoa, a princípio pode-se pensar que os sinais serão fáceis de perceber. Mas pode ser o contrário. Se todos tivessem a capacidade de entender estas manifestações, já todos se teriam diplomado. Quando se luta contra si próprio e contra aqueles que se podem facilmente transformar, interpretar a vitória ou a derrota exige saber separar e discernir a “escola” da pessoa. A escola vem até nós e, como em qualquer luta, a chave é saber agir no momento certo. Nem antes nem depois, mas no exato momento em que aqueles ao nosso redor se transformam na escola, aí tornam-se combatíveis.
Existe um país que é por si só uma escola. Esta escola tem muito poucos diplomados. Entre as perguntas dos exames finais, pode-se encontrar esta: “No momento de transformação, que tipo de força faz a escola voltar a ser uma pessoa?”; “Pode a escola emocionar-se e inspirar-se? Desenvolva a sua resposta.”
Para referência, a lista de autores deste país-escola encontra-se mencionada acima.
Traduzido a partir do original em coreano e da sua versão em inglês por Sara Godinho e João dos Santos Martins.
Leandro Souza Refrão
Berlim, Alemanha, setembro de 2017. Saíamos de um espetáculo no Dock 11, um espaço conhecido de produção, aulas e apresentações de dança da cidade. No caminho para casa, trocávamos, eu e uma jovem mulher europeia, impressões sobre a peça. Em dado momento da conversa, comentei que alguns aspectos foram desafiadores e não havia captado certas nuances do trabalho. Ela me olhou e disse algo, como: nós somos sutis e vocês são explícitos. Fiquei atento a ela, não havia compreendido. Aquilo se agarrou aos meus pensamentos. Me perguntava quem eram o “nós” e quem eram o “vocês”, enquanto ela dava seguimento a fala. Então, apontou para o casal de colegas nossos que caminhava à frente – uma moça e um rapaz, brasileiros como eu – e teceu comentários acerca das formas corporais de ambos, especificamente, comparou os atributos físicos da brasileira com os da dançarina europeia, que ficara nua em certo momento da peça. Chegou a mencionar, brevemente, a recorrência da nudez nos experimentos que nossos colegas realizavam no curso que estávamos fazendo naquela época e, também, recordou de quando eu disse a ela que gostava de uma canção que ela cantara em um estudo coreográfico, relacionando meu gosto ao fato dela ter berrado o refrão da música, como se fosse uma característica comum “nossa”. Eu poderia concluir, então, que nudez e berrar seriam indícios de que nós éramos “explícitos”. Mas Nós quem? Nós brasileires? Negres? Negres brasileires? Latines-americanes? Negres gays brasileires?
Certas afirmações são realizadas como se fossem o refrão de uma música que se acostumou a cantar sem saber o porquê, mesmo que pareça um tanto anacrônica. De certo é possível verificar diferenças entre lugares, pessoas, culturas etc. Mas quando é que tais refrões deflagram modos de ver, pensar, dizer, fazer, viver diferentes e quando é que se tratam de desejos de distinção entre grupos, pessoas ou culturas? Talvez o limite seja tênue.
Tenho refletido sobre essa dinâmica do “Nós” e “Vocês” e a variante “Eu” e “Nós” a fim de pensar a diferença, o comum e o irreconciliável, considerando especialmente a realidade de nações forjadas sob o signo da violência colonial. Não somente pensar a diferença, o comum e o irreconciliável entre populações e grupos diametralmente opostos, mas também pensar tais questões no interior de cada grupo e os sentimentos de pertencimento, identificação e desidentificação dos membros que os integram.
Ao compartilhar essa conversa, mencionando o contexto no qual se deu o diálogo e os agentes envolvidos, é automática a ênfase na relação – Nós versus Vocês – seguida de um posicionamento que toma partido do Explícito como qualidade a ser valorizada. Nota-se a tentativa de ressaltar a complexidade do Explícito e a defesa da capacidade de articular a sutileza, como se fosse uma “falta” a ser compensada. Por fim, encontram-se os argumentos que tentam encerrar a questão dizendo que ninguém pode ser completamente Explícito e ninguém pode ser enxergado como inteiramente Sutil. Até aí, há de se concordar. Porém, na tentativa de encerrar o debate lança-se mão do: somos diversos, afirmando que não é domínio da arte lidar com tais questões. Mas esse argumento não se sustenta, porque é perceptível que as várias instituições e circuitos artísticos se balizam, sutil e explicitamente, por esses parâmetros.
Os desafios de pensar e explorar o Explícito e o Sutil na criação coreográfica passam por uma revisão dos sensos comuns que se arvoram em torno dessas duas qualidades. Pode-se dizer que é possível traçar um estereótipo de uma dança sutil e de uma dança explícita, mas até que ponto? Eventualmente, um ou mais podem fazer parte de uma estratégia de criação artística, a depender da intencionalidade.
No dicionário Aurélio, Explícito e Sutil estão definidos da seguinte maneira: ex.plí.ci.to [Lat. explicitu.] adj. 1. Claro, explicado. 2. Sem reservas ou restrições. su.til [Lati. subtile.] adj2g. 1. Tênue, delgado. 2. Agudo, fino. 3. Muito miúdo. 4. Feito com delicadeza. 5. Perspicaz; sagaz. [Pl.: -tis. Superl.: sutilíssimo ou sutílimo.]
É curioso que a significação de Explícito como algo claro e explicado me recorda pessoalmente as falas de colegas e amigues negres/periferiques relatando a constante atribuição aos seus trabalhos a pecha de: didáticos ou sem rigor. Nesse pensamento, o Sutil seria da ordem do não didático (não seria obrigação da arte ensinar nada, diriam algumas pessoas) e sinônimo de rigor. Mas no dicionário Explícito também significa sem reservas ou restrições. Em que medida existências subalternizadas e racializadas não têm de lidar com reservas ou restrições? Podem tais corpos fazer tudo? Circular à vontade pelos espaços e lugares, falar, ter acesso à informação, sem reservas ou restrições? Percebo uma leitura ainda muito essencialista das diferenças e pouco embasada em seus aspectos materiais e históricos.
Há uma tendência por parte do Outro – branco brasileire/latine/europeu/estadunidense – de canalizar os esforços artísticos de pessoas negres, racializades e subalternizades para a reparação dos danos causados pela produção obsessiva de representações nocivas e arraigadas no imaginário ocidental, gerada por ele. Percebo também a pressão de que esses artistas sejam capazes de manobrar estruturas que estão fora de seu alcance, vinda por parte de coletivos e indivíduos dos seus grupos de pertencimento. Então, me questiono: o que obras de arte feitas por corpas racializades, subalternizades, negres, especificamente, podem ou não, devem ou não dar conta? Poderiam explicitar sutilezas? Quais? Como? Aquilo que está explícito sempre está claro (ou escuro)? O que explicitar? É necessário?
Trabalhar para a decomposição de tais imagens não resvala necessariamente em um identitarismo – palavra da moda nos circuitos tradicionais de dança que denuncia certo reacionarismo, para não dizer outra coisa – aos modos de pensar-fazer arte subalternizades, negres e racializades. Trata-se de uma resposta à própria lógica de operação das instituições e circuitos da arte-dança diante dessas corpas. A putrefação desse imaginário colonizado é incontornável.
Identificar-se inteiramente com aquele ou outro lugar pode ser contraproducente, parece que, cada vez mais, afirmar algo deve ser um recurso usado de modo estratégico e, por vezes, talvez deva ser rejeitado. Uma saída dessa emboscada está na capacidade de invenção. Mas a invenção proposta neste texto não tem relação com criar espaços específicos para tais modos de pensar-fazer arte, até porque alocar esses modos de operar em um reino à parte participa do mecanismo de apagamento vigente. Apagamento por confinamento. Invenção, neste caso em particular, significa permitir que corpas subalternizades possam mover-se livremente pelos espaços, acessando os arquivos das artes/danças, exercitando a errância, arranhando os discos, tornando os refrões uma cacofonia, oscilando entre Sutil e Explícito. Recusar-se à pretensão de conciliar diferenças que se constroem nos exercícios de poder de determinados grupos em relação a outros. Fica o desafio de tecer redes de apoio, laços de solidariedade, amizade, amor e parcerias que não cedam ao uso das táticas de coerção e homogeneização capitalistas neoliberais.
Nós somos sutis, vocês são explícitos torna-se o refrão condutor para a implosão da poética da miséria produzida pela relação do Nós e do Eles, enquanto melodia cantada insistentemente e que sustenta uma lógica de relação geopolítica/artística que se perpetua. Esse “canto da sereia” parece nunca ter sido entoado tão fortemente no jogo político, social, cultural e econômico mundial atual, no qual nos encontramos imersos, assolados pela pandemia de um organismo que zomba de quaisquer convenções criadas por nós e que acreditamos serem reais.
Bruno Zhu Que Merda
Quando andava no secundário, pediram-me para posar para um projecto de fotografia sobre os sete pecados mortais. Na avaliação, o aluno explicou que o meu retrato representava a gula e quando os professores lhe perguntaram porque é que me tinha escolhido, ele disse que foi por eu ser feio. Há três anos, encomendaram-me uma obra de arte para um centro comercial em Lisboa. Depois de fazer a proposta, a directora de marketing ficou confusa. Apesar de o museu de arte contemporânea com quem fazia a parceria já lhe ter introduzido o projecto, ela estava incomodada com o facto de a minha prática artística — e claro, eu — não parecer suficientemente português. Ela disse que o centro comercial atraía clientes de classe alta e infelizmente o meu perfil não se enquadrava nisso. Durante um jantar entre artistas no verão passado, estávamos a falar sobre sucesso no mundo da arte contemporânea. Quando a conversa voltou para as pessoas que estavam na mesa, uma delas — um membro activo da associação cultural onde a minha exposição iria abrir em breve — virou-se para mim e disse que o meu sucesso vem de eu ser “chinoca” pois as questões identitárias estão muito na moda ultimamente.
Em todas estas circunstâncias, fiquei calado a digerir o impacto. Desfiz palavras, tons e contextos, porque certamente nenhum deles quis dizer o que disse por mal? Talvez quando o aluno disse “feio” se referisse ao espírito da fotografia. “Não parecer suficientemente português” pode ter significado eles quererem um artista mais estabelecido. Talvez o termo “chinoca” tenha sido usado num tom atrevido para anunciar um nível novo de amizade? Mas se estas expressões não foram ditas como ofensas, então porque é que fui chamado de feio? Porque é que fui descartado como alguém a quem lhe falta algo? Porque é que fui julgado por ser demasiado uma coisa? O que mais me assusta nisto tudo é aperceber-me que nenhum deles me quis ofender. Aos olhos deles é justamente um facto que eu, um português de primeira geração filho de imigrantes chineses, não me encaixo nos padrões de beleza, nacionalidade ou humanidade deles. Que eu sou um monstro, um extraterrestre, um fetiche da indústria.
Dado que a minha exposição seria acolhida pela pessoa que usou um termo racista para me descrever a mim e à minha prática artística, não quis continuar sem tomar acção. Pensei em cancelar a exposição, mas isso só me iria penalizar a mim, e fazer com que o despedissem não evitaria que usasse insultos racistas noutras ocasiões. Por isso decidi explorar o estado das políticas raciais no Portugal de hoje. Queria entender como é que alguém que se apresenta como anti-racista e antifascista, que foi à marcha Black Lives Matter e que faz tudo o que se espera de milénicos esquerdistas, usa um insulto racista tão facilmente em privado. Se o termo não era para ser ofensivo, porque é que ele tem o direito de evacuar o significado da palavra? Porque é que ele tem o poder de deslocar a História? Porque é que ele tem o privilégio de atribuir identidade?
Fiquei chocado por ver vários tipos de colonialismo a serem combinados num só recentemente, sem mencionar a escassez de diálogo sobre as consequências da(s) descolonização(ões) e a sua ramificação na sociedade contemporânea. Este último ponto é uma experiência em curso para os portugueses, pois as gerações que passaram pelo período autoritário do Estado Novo (1933-74) ainda estão vivas hoje. Alguns foram da metrópole para as colónias em busca de riqueza e viram Portugal alterar a sua Constituição, em 1951, para se tornar num império. Outros viram os seus filhos serem enviados para a guerra contra os movimentos nacionalistas africanos que lutavam pela liberdade. E esses filhos voltaram, tristes e destituídos do seu estatuto de colono quando o regime caiu em 1974. Tentar perceber como alguém aliado ao pensamento de Esquerda me chama “chinoca” fez-me pensar se houve uma tradição racista na Esquerda portuguesa. Não parece ter havido uma tradição explicitamente racista, mas é suspeito se repararmos que o Partido Comunista Português, então o maior partido de oposição, nunca foi firmemente anticolonialista até usar esta posição como uma oportunidade para derrubar o regime. Os protestos estudantis de 1969 em Coimbra, que provocaram o início do fim do império, eram maioritariamente compostos por estudantes de classe média-alta, reflectindo os protestos de Maio de 1968 e os movimentos de contracultura pelo mundo. É importante salientar que estes movimentos dissidentes eram ideologicamente heterogéneos e atravessavam o espectro do pensamento marxista. Apenas os grupos maoístas promoveram constantemente uma visão anticolonialista.
O fim do regime autoritário foi um momento crítico para a vida da população em Portugal continental, mas a vanguarda esquerdista portuguesa estava mais investida no internacionalismo. Depois da tentativa de construir um estado socialista, conhecido como o Verão Quente de 1975, Portugal restabeleceu a democracia com a com a vitória do Partido Socialista nas eleições de 1976 e integrou-se no mercado livre europeu sem olhar para trás. Sem olhar para Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe ou Cabo Verde, todos descolonizados à velocidade da luz e abandonados para lidar com cinco séculos de exploração e desapropriação. Sem olhar para Timor-Leste, deixado vulnerável enquanto a Indonésia anexava o seu território em 1975. O Partido Socialista foi fundado com o apoio monetário da Agência Central de Inteligência (CIA). Os Estados Unidos receavam que Portugal se iria transformar num estado comunista.
Porque é que falo de anticolonialismo? Porque não estou interessado numa abordagem contra o racismo baseada em afectos. O ódio e o medo são reais, mas porosos. Deixam demasiadas saídas para o sentido de responsabilidade escapar. Na minha experiência, o comportamento racista costuma ser entendido como um evento isolado da História. Costuma apresentar-se mais como um acto de paixão — impulsivo e rapidamente esvaziado quando as desculpas são pedidas. Eu tenho de aceitar as desculpas, porque se não o fizer sou mal-agradecido. Desculpas são como presentes, e presentes são coisas boas. Que mais posso querer, perguntam eles.
Nos últimos anos, discussões em torno do racismo introduziram um aspecto histórico através da revisão dos imperialismos ocidentais. Receio que este conhecimento importante não tem produzido relações causais, mas apenas alegações para apanhar a História ‘em flagrante’. Entre os meus amigos ‘despertados’, reconhecer o passado colonial das suas nações tem-se tornado numa experiência moral, catártica e individualista: colonialismo=escravatura=mau, responsabilidade ou “accountability”=conhecimento=bom. Eu era mau, agora sou bom. Sentirem-se mal sobre o passado previne os seus egos de reconhecerem o papel que eles próprios têm na reprodução da liberdade de expressão, autonomia e progresso que apenas beneficiam uma geopolítica particular. No meu caso, eu identifico o artista com quem jantei como um “fidalgo liberal”. É alguém que nasceu e foi educado com ideais liberais — o pai dele foi activo na luta contra o regime, logo ele acumula capital revolucionário adquirido pelos seus antepassados. Ele teve um livro de Frantz Fanon na mesa do seu atelier. Ele faz comentários contra o capitalismo como quem deve na “época antropocénica”. Ele tem consciência da ironia da branquitude através do TikTok. No entanto, é-lhe concedida a distância luxuosa de não ser alvo de crítica porque a sociedade encarrega precisamente a pessoas como ele o papel do crítico, a voz da Razão. Talvez a minha ambivalência em utilizar termos descritivos como privilegiado, branco, homem, cis, hetero ou ocidental atrapalhe a minha mensagem, porque eu recuso servir-me da mesma lógica redutora que ele usou. Mas espero que vocês, leitores, consigam entender o meu argumento.
Ainda que nenhuma postura explicitamente racista se encontre nos registos da Esquerda tradicional portuguesa, é visível uma resistência em reconhecer todas as modalidades de opressão. Existe um foco em privilegiar a humanidade de uns em vez de outros e em proclamar uma apologia nacionalista loquaz que, no seu melhor, subestima e, no seu pior, foge do seu próprio legado colonial. Eu sou capaz de aceitar que chamar-me “chinoca” não faz dele um racista, mas a leveza com que usa um termo deste tipo é testemunho duma certa mentalidade burguesa de classe média-alta que continua intacta hoje em dia.
Se a História portuguesa é prova de uma cirurgia plástica nacional que troca o seu passado colonial pela modernidade europeia, a psique portuguesa parece ter escapado ao bisturi. Durante o Estado Novo, o regime promoveu intensamente o lusotropicalismo. Este enquadramento polémico, fruto do seu tempo, foi desenvolvido pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre nos anos 1930 numa tentativa de reificar o hibridismo racial da identidade brasileira. Para tal, Freyre refere aspectos geográficos e antropológicos que justificavam positivamente o colonialismo português. Ele propôs que Portugal seria um colonizador legítimo dado que os portugueses eram eles próprios uma mistura de várias civilizações — romana, celta, mourisca — tornando-os familiares com a condição de colonizados, logo colonos mais brandos; que os portugueses, estando mais próximos do Equador, comparado com as outras nações europeias, tinham sangue mais quente e logo mais adaptável ao clima tropical; que estes atributos fisiológicos, para além do império colonial português ser a presença territorial mais antiga do mundo, justificavam a propensão dos portugueses à miscigenação.
Ser português era ser do mundo, um corpo de várias raças, um profeta de culturas e continentes velhos e novos. Enquanto esta postura etnopluralista criava directrizes desumanizadoras nos territórios ultramarinos, em Portugal metropolitano desenvolveu-se um caso de hiper-identidade. Segundo o filósofo Eduardo Lourenço, Portugal tem uma fixação mórbida com a sua história colonial como uma história que nos eleva, a nós portugueses, das outras nações. Para Lourenço, esta hiper-identidade permite a Portugal ter sempre uma identidade independentemente do contexto, uma que é menos sobre a capacidade colectiva da nação e mais sobre ser o “privilegiado actor histórico da aventura europeia no mundo”.
A escala e a influência de Portugal colonial pelo tempo, cristalizada pelo seu fim abrupto, tornou-se num mito fundador da sua identidade nacional, mesmo depois da queda do Estado Novo. Dado que o lusotropicalismo tentou remover a questão racial da colonialidade portuguesa, o discurso crítico de hoje usa pessoas não-brancas ou como dados históricos (por exemplo, o comércio transatlântico de escravos ter sido um desenvolvimento mercantil racional) ou estritamente como uma paleta de cores da pele humana. Neste modelo, ver cor não equivale a ver raça. O termo pejorativo “preto” é usado frequentemente utilizado por pessoas não-negras para descrever afro-portugueses ou pessoas negras, por isso não surpreende que eu tenha sido chamado de “chinoca”. Eu certamente me pareço com um, certo? Muitos portugueses torcem o nariz à palavra raça, porque para eles existe apenas uma – a humana – por isso o termo etnia é preferido. Poderíamos considerar esta preferência refrescante, visto que é de sabedoria geral a raça ser uma construção social, mas quando este ponto é levantado entre a população geral portuguesa a maioria despreza a expressão “construção social” como uma geringonça intelectual. Assistimos assim a um outro jogo semântico onde discriminação contra grupos étnicos segue o racismo científico pré-Segunda Guerra Mundial. O alinhamento racialista da identidade é reforçado por um espírito intransigente de titularidade pós-racial, que não dá espaço para o Outro reivindicar a sua subjectividade.
Voltando àquela noite, eu percebi porque é que o meu sucesso profissional foi entrelaçado com a minha etnia, sendo que o último aspecto representa o valor único que posso ter no contexto do mercado da arte. De repente, esta equação racista é transformada, dirigida ao demónio inevitável que o fez insultar-me: o capitalismo! O capitalismo fê-lo pensar nisso! O capitalismo fê-lo acreditar nisso! O capitalismo fê-lo dizer isso, então certamente tem de ser desculpado, e até louvado por ser tão perspicaz?! Então, um insulto racista é justificado porque é usado contra um mal maior? Existem circunstâncias nas quais tenho de tolerar ser reduzido a um estereótipo racial? Existem momentos válidos para empregar pensamento racista que eu preciso de saber?
Eu quero imaginar que vocês responderiam a estas perguntas com um tremendo “Não”, mas não consigo deixar de ser céptico com a forma como as pessoas interpretam ou se tornam aliadas à causa anti-racista. Numa conversa com uma artista local durante os protestos em solidariedade para com Bruno Candé, o actor afro-português assassinado em pleno dia em Moscavide por um veterano da guerra colonial no Verão passado, desabafei sobre a minha frustração com o estado actual dos debates raciais e de género em Portugal. Critiquei a falta de originalidade na linguagem à volta deles: como, em vez de criar um novo léxico para traduzir e situar estas questões no contexto nacional, se dependia imenso de anglicismos. Quando sugeri que inventar um vocabulário novo seria provavelmente a coisa mais patriota que a nossa geração poderia fazer para abrir caminho para o progresso social, a artista ficou amedrontada. Ela disse que “patriota” era uma palavra feia, que era antiquado e algo que ela associava aos seus avós. Ela parece ter confundido patriota com nacionalista. Voltei ao mesmo assunto com outrx artista local e, ao mesmo tempo que concordava comigo, comentava que as instituições deviam ser “held accountable” [ser responsabilizadas], sem referir em que é que deveriam ser responsabilizadas por. Não conseguiu dizer isto em português, reparou nesta inconsistência e a conversa ficou por aí.
A minha geração testemunhou um êxodo de intelectuais portugueses para os epicentros culturais da Europa Central como Londres, Paris e Berlim. Se a contemporaneidade pós-fascista portuguesa foi predicada num salto para a Europa, o seu subproduto é uma visão fatalista, profundamente cínica das condições locais de reprodução social. Sob nenhuma forma apoio qualquer ideia de isolacionismo, mas não consigo deixar de ver como as pessoas fazem uso da sua mobilidade social e as formas e vazios que isso traça. Para mim, isto cria brechas preocupantes que confirmam o deslocamento cultural de uma nação relutante em diagnosticar a sua própria identidade, enquanto define a identidade de outros como patologias.
O que é que a identidade nacional tem que ver com casos racistas isolados? Ao despir a categoria política de raça da sua História, a sociedade portuguesa consagrou incontestavelmente a racialização na produção dos seus sujeitos nacionais. Por isso é natural agarrar a carteira quando se vê um cigano, persuadir estudantes afro-portugueses a não ingressarem no ensino superior, espancar até à morte um emigrante ucraniano no aeroporto, hiper-sexualizar o corpo brasileiro, ou acusar os meus pais e a comunidade chinesa de evasão fiscal, tráfego de órgãos humanos e dominação global através da “Covid-19 comuna”.
O meu objectivo ao escrever este texto foi para fazer sentido do que se passou naquele jantar. Eu fui traído por um par que, tendo acesso à minha prática artística e vida pessoal, me humilhou para exibir a sua rebeldia. Não estávamos sozinhos na mesa, mas como os professores no meu secundário e a equipa de marketing do centro comercial, os meus amigos permaneceram imperturbados. Não posso culpá-los por viverem numa realidade social estagnada que dá prioridade a uma mudança cosmética em vez de ideológica. Muitos deles publicaram quadrados pretos durante o #BlackOutTuesday no Instagram, e repartiram publicações info-sociais para educar os seus seguidores. Mas nenhum deles parece ter questionado o contrato social que inscreveu involuntariamente o racismo na sua linguagem. É por isso que insultos raciais em português deslizam facilmente do seu significado inicial, desde que o locutor anuncie “Eu não disse dessa forma”. Então de que forma é que um epíteto racista existe? Terei de me conformar a ser manipulado, a aceitar “chinoca” como um termo… carinhoso? Como é que posso escapar a esta caracterização racial? Terei de imitar a estética K-Pop? Terei de provar não ser um membro do Partido Comunista Chinês? Terei de participar na produção de branquitude para brancos, para que se sintam visíveis numa altura que é sobre tudo menos branco? Porque se não estou condenado a corrigir projecções racistas lançadas contra mim. Terei de sujeitar-me a ser “chinoca”, mas não daquela forma. Será que quero produzir “raça”? E se o mecanismo para tal produção nunca esteve nas minhas mãos para começar?
As obras na exposição em questão não tiveram nada que ver com o incidente. Foram inspiradas pela planta do espaço. A casa-de-banho, situada mais ou menos no meio do espaço expositivo, segue a direcção dos canos que vêm de cima. Eu reparei nisso durante uma visita e acabou por inspirar a instalação. Se fosse potente o suficiente, puxar o autoclismo poderia hipoteticamente fazer desabar o edifício inteiro. Dessa forma, o autoclismo poderia ser considerado como uma força direccional transgressiva e a sanita como um portal. Alguém iria para baixo. Alguém iria abaixo. Por isso imaginei o espaço à espera de ser submergido ou, se reverterem o esquema, à espera de emergir do submundo. E o que viria da sanita. Merda? Alguém merdoso? Sentimentos de merda? Chegar a um lugar merdoso? Pensei que lidar com merda conceptual iria ser engraçado e político. Não esperava ter sido posto na merda durante o processo.
Leticia Skrycky Carta a Anaísa para Nunca Ser Enviada
sáb., 24 abr., 9:31
Hola, Anaísa:
¿Cómo estás?
Qué bueno saber de vos y comenzar a trabajar contigo. Me gustó mucho conocerte durante el montaje de nuestra pieza con João y Carolina y, desde entonces, quedé curiosa. Alguna vez tuve ganas de hacerte preguntas sobre cómo trabajás, qué pensamientos tenés en relación a la dirección técnica, a ser mujer, a recibir a otras diseñadoras. En fin, un día de estos quizás me anime y te invite a tomar un café.
Cuestión es que me sorprendió que tu mail estuviera dirigido a mí, siendo una propuesta colectiva. ¿Será que me identificás como responsable por la iluminación de esta futura ocupación? Tiene sentido, si no tenés más información sobre cómo estamos intentando trabajar. Probablemente me sorprendió por su cuota de realidad: un llamado a cómo son las lógicas laborales y a que a veces, en mi entusiasmo de creer que estoy logrando encontrar otras, me olvido dónde, cómo y con quiénes.
Sobre todo lo que me decís relativo a plazos y lo dicho en reuniones, la verdad que no tengo ni idea. Quizás hay un histórico que desconozco, quizás me perdí en la traducción y me quedé durmiendo en mi colchoncito de portunhol.
Es que para serte sincera, Anaísa, no sé cómo va funcionar todo esto, básicamente porque aun no entiendo bien de qué va. Lo bueno es que no me importa mucho, porque si se trata de un encuentro pues desde allí surgirá la situación en sí misma y lo que las relaciones puedan alimentar.
No conozco a casi nadie de quienes van a participar. Ya hemos compartido tiempo de trabajo con Sara y ella me da inmensa curiosidad, me gusta conversar y pensar con ella. Probablemente me gusta cómo yo misma pienso en diálogo con ella. Luego están Filipe y João, compañeros también de este subgrupo inmersivo, a quienes casi no conozco, por lo que todo será descubrimiento. Está Claraluz, que me cae muy bien, y del resto poco sé. En definitiva, ya el encuentro dirá.
No te imaginás, Anaísa, lo mucho que me aburrió pensar en tener que hacer una planta seudogenérica para darle gracia lumínica a estas tres semanas. ¿En base a qué?, ¿con qué pregunta? Y tampoco te imaginás el entusiasmo que me invadió cuando creímos encontrar una lógica relacional que la activara: una planta indeterminista que les dejara el campo abierto a ustedes para hacer prácticamente lo que quisieran.
Me pasé varias horas, debo admitir, imaginando todos los posibles: llegar y que solo hubieran colgado una luminaria en el centro del espacio, que hubieran colgado todo el rider de la sala en una única vara, que hubieran armado una planta de luces perfecta pero iluminando el techo, que hubieran utilizado recortes pero con todas las cuchillas cerradas, o robóticas que no paran de moverse pero no emiten ninguna luz, o —casi la mejor de todas las opciones— llegar y que no hubieran colgado nada.
Un entusiasmo enorme tener que descifrar cuáles gestos y deseos esconde su montaje, que claramente se desinfló con tu mail. Lo que me divierte no tiene por qué interesarles a ustedes, claro. Entonces me quedé pensando en qué responderte, Anaísa, y qué proponerles a mis colegas. Gracias por la posibilidad que sugerís de llamar a alguien externo, pero ya no es suficiente para animarme. El aburrimiento volvió a invadir: el fantasma de una planta de luces genérica acechando desde nuestro futuro cercano.
Pero hoy me desperté y empecé a hacerme amiga de una de las consecuencias que tu respuesta también contiene, la de llegar al espacio y no tener nada. Posibilidad enorme que comienza a darme ánimo conforme van pasando las horas.
En este momento estoy viajando de Porto a Lisboa, feliz de viajar en tren porque en Uruguay ya no hay ni llegué a conocer a los que alguna vez hubo. ¡Qué transporte noble el tren! Parece querer suavizar el pensamiento.
Cuestión que ayer íbamos a filmar una pieza para el Festival DDD, «Cabraquimera» de Catarina Miranda, pero minutos antes de comenzar el corrido un performer se lesionó. Suspendido nuestro estreno digital, hicimos un ensayo general solamente con les tres performers restantes, haciendo un ejercicio de imaginar lo que estaría haciendo Lewis, el compañero lastimado, en el minuto a minuto del ensayo. La ausencia de Lewis nos hacía evocarlo y completarlo.
Pienso que no tener un set-up de luces para Curadura será algo parecido. Nos permitirá pensar todo lo que podría haber sido o todo lo que podría ser: infinitos virtuales esperando a ser activados, una verdadera iluminación de ficción o ciencia ficción, que solo existirá en el virtual de nuestra imaginación. El ánimo avanza, Anaísa. ¡Imaginate todo lo que una situación como esta puede despertar!
Quizás usemos su luz de trabajo durante las tres semanas y esa luz nos haga recordar que estamos trabajando, y la incomodidad visual nos lleve a diseñar la mejor luz de trabajo. O imaginá si esa situación termina por activarnos un pensamiento proletario, si se arma una lucha de clases solamente por haber tenido que sufrir las penurias de una luz de trabajo.
O quizás nos vemos obligades a trabajar a oscuras y pasamos a tener una investigación puramente táctil.
O quizás, no pudiendo usar velas por obvias razones, tenemos que iluminar nuestra zona de trabajo con los teléfonos móviles. Las baterías se van a empezar a acabar pronto, necesitaremos conectar los teléfonos, y como no habrá suficientes tomas, utilizaremos los circuitos de las varas: el grid a altura media, lleno de teléfonos colgando, regalando pequeñas luces pendulares.
O quizás hacemos una asamblea para planear cómo hacer un agujero en el techo para dejar entrar la luz del sol.
O quizás resolvemos salir afuera, al barrio, y usar el teatro solo para guardar nuestras mochilas, preparar café y protegernos de la lluvia, y así terminamos por conocer a algún vecino albañil que nos ayuda a hacer el agujero en el techo del teatro.
O quizás estar en la oscuridad nos da sueño y dormimos siestas infinitas, usando los estrados como camas duras, que dicen que es bueno para la espalda, y terminamos por recuperarnos de los dolores que los otros trabajos y las infinitas horas en la computadora han provocado.
O quizás se nos dé por revisar los archivos de todas las plantas de iluminación que fueron montadas en esa sala y descubrimos que hay un lugar donde siempre una luminaria fue colgada, un punto donde todes les iluminadores coinciden: un atractor extraño que se revela como el Aleph lumínico de ese espacio. ¡Qué descubrimiento increíble sería ese!
Imaginate, Anaísa, ¡todo lo que puede pasar!
De todas las opciones posibles, tu respuesta también contiene la más prometedora de todas.
Abraço,
Chichi
sáb., 24 abr., 12:26
para João, Sara y Filipe
Hola, querides!
Hoy me desperté pensando en nuestro futuro cercano y en alguna respuesta inevitable que demanda la coordinación técnica de «Curadura».
Aún medio dormida le escribí una carta de amor a Anaísa, que nunca voy a enviar. Una carta a Anaísa que en verdad es para mí misma y para ustedes tres.
Lo bueno de todo esto es que sin haber llegado aún a TBA, para mí el trabajo ya comenzó.
En fin, una carta de amor dormida y sin edición, que comparte mis entusiasmos y mis aburrimientos:
Abrazo,
Chichi
mar., 10 ago., 12:16
Quisimos mantenernos en la ausencia de un diseño. Entramos a la caja negra y nos preguntamos dónde está el sol, nuestra primera práctica de observación e invocación. ¿Qué y quiénes no están dentro de esta sala?
Esta posibilidad duró poco. Las actividades y la programación reclamaron una luz que no solo permitiera ver sino que además creara condiciones para ver de cierta manera.
Atravesé las semanas con un deseo cada vez más rabioso: hacer un agujero en el techo del teatro para que el sol entrara. Que el ruido de la pared rompiéndose no nos permitiera hablar. Agujerear un techo para agujerear nuestros discursos, hacer para dejar de producir, hacer con las manos. Abrir la caja.
A las 14 hs., póngase de pie en el centro del escenario.
Intente detectar en qué lugar el sol está golpeando el edificio en este momento.
Una vez encontrado ese punto de incidencia solar, haga un agujero y déjelo entrar.
Un día, una acción colectiva calmó la pulsión de la forma más suave: una cadena humana y de espejos logró que la luz del sol entrara a la sala: cruzó la calle, atravesó el hall, bajó las escaleras, abrió la puerta y un rayo blanco de 4500º Kelvin enmudeció la caja negra.
En ese gesto delicado descubrí que a veces para hacer un agujero es mejor buscar una grieta, un surco. Encontrar una posibilidad que se mantenía silenciosa y vivir en ella, como bajo un techo que nos cubre de la lluvia, regalándonos tiempo y espacio.
Gaya Medeiros Carta para Uma Enguia
Olá!
Eu espero sinceramente que você consiga se aconchegar nestas palavras ordenadas.
Hoje eu sou a Gaya, mas já fui tanta coisa…
E para nossa desilusão, uma das coisas que não sou é escritora. Seja por falta de talento ou por falsa modéstia, me vejo como uma performer, e a palavra me parece coisa boa de performar. Assim como não consigo mais conceber performances só baseadas na expressão do corpo, necessito da palavra, é uma tarefa difícil para mim saber que você está lendo isso sem a minha voz. Me sinto muito nua, me sinto sem controle.
Hoje, mais um dia de descobertas na vida da trans, me apercebi que sou lida diariamente. Lida sem controle. Lida “à queima-roupa”. Na rua, no metrô, no palco, nos lençóis… E essa percepção só se deu por contraste: nos meus dias de menininho costumava ser mais fácil ficar invisível. Eu era um panfleto oferecido na rua, daqueles impressos em preto e branco, que só aceitamos por dó do distribuidor que pinga impaciência debaixo do sol quente. Agora me sinto um calendário erótico como os que ocupam as paredes insalubres das tocas dos mecânicos, objetos que, mesmo inertes, parecem sempre nos provocar uma reação. E, para dar uma apimentada nessa aflita constatação, me vejo negociando com as palavras dos dicionários dos outros. Eu, atrás da minha máscara, vendo as pessoas me lerem com seus vocábulos tortuosos. Nos dias bons, quando a gata está mais corajosa, mostro que também sou leitora. Rujo por detrás da minha máscara, capricho no eyeliner e demonstro minhas habilidades de mergulhadora. Pumba! Pulo dentro do olhar alheio.
Aí estamos nós, no mesmo patamar… em um mar de ninguém, como o Mar de Sargaços, um dos únicos mares localizado entre correntes de água, sem um só pedaço de terra à sua volta. Não há boias, bebê! Esse é para mim o lugar do encontro. Um mar profundo, rodeado por correntes, onde curiosamente as enguias nascem, para onde elas misteriosamente voltam para se reproduzir e, finalmente, morrer.
Entre panfletos, mares e enguias, desejei ser lida também pela minha enguia-mor:
a Senhora Minha Mãe.
A Senhora Minha Mãe não conheceu a Senhora Gaya. Essa enguia-mãe retornou ao Mar de Sargaços, onde deu origem a três larvinhas e partiu para aquele lugar “entre a memória e o esquecimento”. Enguia forte, com mandíbula larga e pele rija. Você sabia que quando a enguia decide se reproduzir ela digere o próprio estômago? Minha mãe digeriu seu apetite pela vida quando descobriu que seu corpo havia decretado estado de calamidade. Justo.
(Aqui insere-se um parágrafo inteiro que descreve as sensações de uma criança sentada no chão ao pé de um sofá. Nesse móvel encontra-se uma mulher imóvel com os olhos cerrados e aparente esforço para cerrá-los ainda mais. Suas mãos estão enfiadas entre as pernas. Ouvem-se gemidinhos quase imperceptíveis. A criança se achata na tomada de consciência de que a impotência é palavra que não está estampada só nos maços de cigarro de seu pai. Impotência é o ralo da alma, é quando só nos resta o choro por não conseguirmos dar vazão à raiva.)
Escrever uma carta que nunca será lida pelo seu destinatário é uma pequena rebeldia doce. Dura mais que uma lágrima. É um grito num campo vasto. É uma garrafa jogada ao mar. Dia 29 de maio, dia do aniversário da enguia, joguei uma carta ao mar na esperança de que ela chegasse a Sargaços:
Oi Lindona!
Quem é que faz anos hoje? Já notou o sotaque, né? Pois rsrsr estou em Lisboa. Tô aqui tentando criar uma cena para um espetáculo, o meu primeiro espetáculo como Gaya. E ainda tem isso, sou a Gaya agora. Nada contra o outro nome que você me deu… bom, ele era levemente sem sal, um bocado comum e que quando eu o dizia as pessoas entendiam “Douglas” kkk Sim, ele até tinha um significado bonito… ok… mas o outro, o segundo nome, eu não absorvi ele muito bem, nunca assimilei a doença que ele propunha antes da tal cura: Raphael — curado por deus. Você é quem deveria ter se chamado Rapha-ela. É isso: Vale o que vale, né?
Olha, outro dia chorei MUITO assistindo uma série e lembrando de você. Não lembrando de você exatamente, mas revisitando a nossa não-despedida. Entretanto, me contento a pensar que talvez seja um privilégio essa possibilidade de se despedir de alguém.
Dizer as últimas palavras…
Ouvir as últimas palavras.
Dizer alguma coisa pela vez mais última.
Very last time.
Nessa vibe de “artistona” fico me valendo do privilégio de dizer-te coisas pela última vez… Porém, é tudo tão mentira que me vejo num looping perseguindo o impossível dessa despedida, como se impossível não fosse. “La maison de ma maison a brûlé” quer dizer “a casa da minha casa queimou”, em francês. Queria que você me ouvisse dizendo essa frase com meu francês bastante tropical.
Mãe, eu tenho inveja das cantoras de blues que gemem sua dor de forma tão bonita.
Hoje eu fui pesada no Tinder. Um cara me disse:
— Ô moça bonita!
Não, ele não disse isso.
Ele disse:
— Queres mamar hoje?
Eu não me lembro de mamar em você, mas vi você amamentar meu irmão.
Também tenho inveja dos irmãos mais novos que mamam pela very last time.
Eles estão no colo pela very last time…
E ele me disse:
— Queres na boca ou na carinha?
— Tás parvo ou o quê? – ela responde. ( Ela é uma garota from Lisboa!)
Mãe, o amor ficou um bocadinho mais raro, mais distante, mais dispensável.
E tenho me acostumado (afinal tem sempre outra pessoa no colo) e isso é uma coisa triste. Curiosamente, o afeto é o que tem me surpreendido. Quando alguém me trata com “Bom dia, senhora” eu fico quase assustada!
Eu cheguei a esse ponto.
Eu fico à espera do tapa,
à espera do não,
à espera do pedido de sigilo,
à espera da despedida.
Eu cheguei a esse ponto.
Eu, deitada numa cama, completamente nua, vendo um homem se vestindo.
É impossível não ficar à espera do ponto…
Desde que você se foi, eu brinco de ser a gaja para quem o feirante grita:
Ô moça bonita! Ô moça bonita…
Mãe, eu fico à espera do ponto.
Do ponto final.
Fico à espera de que alguém me acorde
no ponto final
e diga:
já chegou, pode descer.
Para ouvir esta carta dita por mim:
https://cartaparaumaenguia.coreia.pt
João dos Santos Martins Editorial
Em resposta a um pedido para aprender e apresentar um excerto de uma peça sua, Raimund Hoghe lamentou dizendo: “É muito íntimo (…) e está ligado aos nossos corpos e distintas experiências de vida. Portanto não há como dar a minha coreografia ou partes dela a outras pessoas.” As artes performativas são exímias a garantir a sua irrepetibilidade. Estão conectadas aos sujeitos, físicos e psíquicos, o que põe em causa a sua transmissibilidade. O que acontece quando artistas que carregam o trabalho no seu corpo deixam o espaço material? Há corpos únicos que só esses podem realizar uma ação? Quando artistas entram no espaço sideral, parte da sua obra sume inevitavelmente consigo. Criam-se mitos. Outra parte é incumbida aos seus herdeiros que terão várias formas de interpretar ou de radicalizar o testamento. Outra parte é responsabilidade das instituições que presumem a preservação. E a parte que resta pertence ao colectivo — àqueles que durante anos e anos, não conseguiram mais discernir o que são e o que fazem das experiências sensíveis que perduram nos seus corpos. Esta missão, por vezes invisível e não comunicada, é fundamental para uma comunidade que se cuida além de abraços e que não se deixa equivocar com a virtude do novo. Resta continuar a transportar pedaços da memória para o futuro, reconhecendo a distância crítica que é necessário ativar para se ancorar no presente.
João dos Santos Martins
4
- O meu corpo está on. O meu corpo é mais um evento do que um lugar, não está pausado, está a ocorrer, ativo e em continuidade. Um acontecimento, apesar dos cancelamentos e adiamentos, reagendamentos que se repetem, este corpo está a acontecer, faça chuva ou sol ou pandemia, o corpo está on. O corpo comunica e responde, dirige e coleciona. O corpo está a fazer download e ao mesmo tempo está a chegar lá. Quando caí da minha prancha de surf esta manhã, o meu tornozelo levou com todo o meu peso e quando a dor tomou conta de mim, download feito: só são permitidas aterragens suaves.
- Tenho estado a olhar para os dedos dos pés das minhas daughters a semana inteira, mas hoje, sábado, ela pede-me para não olhar para os seus pés como se eu não tivesse andado a fazê-lo. Verniz rosa nas unhas do pé, a agarrar-se à vida, a perguntar-se quanto tempo mais aguentará sem precisar de ser retocado. Na Austrália é verão e por isso os dedos dos pés andam à mostra. Setenta por cento das daughters na minha house pintam as unhas dos pés, todas, tirando a Taimania, pintam-nas de branco. Eu também pinto de branco. Branco é a escolha segura, a escolha quenga segura, bonita e que assenta ao género feminino. É a cor das gajas iguais a todas as outras. Que passam. Tenho uma flor dourada nos dedos dos pés, nos dedos grandes, os dedos-mãe. Eu sou a mother.
Entre os dedos dos pés e os downloads que faço, ando a pensar sobre este conceito de fadiga da imaginação. Tenho vindo a experienciá-lo e agora, este ano, o ano em que se dá nomes às coisas, diagnostico-o. O meu corpo, em toda a sua glória de Virgem turbinada, bombeada para os deuses com experiência e hormonas, deve esperar que volta e meia lá rebente um fusível, o corpo em off, mas ainda assim, para mim, continua a haver um motivo enraizado que vai para lá da mecânica. A imaginação é espacial, é a ocorrência de matéria manifestada pelas ideias de uma outra pessoa. Adrienne Maree Brown fala sobre isto em Pleasure Activism1: “Sinto muitas vezes que estou presa dentro da imaginação de uma outra pessoa e que tenho de ativar a minha própria imaginação para me conseguir libertar.” Antes de se relacionar com a imaginação do corpo dominante, o perigo e os limites da imaginação branca.
Quando oiço que as minhas sisters se estão a debater com o suicídio, ocorre-me frequentemente esta batalha da imaginação. Quando perco essas girls, penso muitas vezes que sofriam de fadiga da imaginação. Quando quis deixar este mundo, das duas vezes que o tentei fazer, tratou-se de uma incapacidade, de uma falta de visão, de ver o mundo, de imaginar um mundo onde pudesse continuar a existir apesar da visão dominante do meu corpo. E por isso, no que a isto diz respeito, a imaginação é uma corda de segurança, a criatividade é a prática e, apesar de ainda estar a tentar perceber o que se segue, a comunidade e a visão coletiva parecem ser o remédio. - Conheço bem todos os dedos dos pés das minhas 12 crias, até dos boys. Seria capaz de os identificar se fosse preciso. Não é que eu passe muito tempo a olhar para eles, mas reparo neles com mais frequência. Mais do que nas mãos, o que parece uma loucura porque as mãos são o instrumento da diáspora para mulheres como nós. Naaa, para mim são os dedos dos pés. Dizem-me mais, aliás dizem muito. Os dedos dos pés a contarem sempre a história que está por detrás, os dedos dos pés estão escondidos por trás de portas fechadas, mas quando os vemos sabemos exatamente o que está a acontecer. Os dedos da Kilia enrolam-se uns nos outros quando ela está a pensar. Os dedos da Jamaica batem no ar quando ela está contente e a Tashygna parece que os levanta quando se prepara para falar. A Devonne tem uns dedos suaves como as suas mãos e apesar de a Yovanna esconder os seus dedos dos pés, podemos todas imaginá-los como se os víssemos.
Não é fácil imaginar, é preciso disciplina e prática. Consistência e energia. É fácil cair, desligar e desistir. Há o trabalho de parto e há o nascimento. A possibilidade de praticar a imaginação parece por vezes esmagadora. Quero uma performance feita em equipa, imaginar o mundo como house, visões coletivas que nos ajudem a atravessar períodos instáveis. Se o meu ciclo de vida pode ser imaginado, completado, tipo círculo completo, ser mother e envelhecer, por vocês, pelo outro corpo, então deixem-me entrar nessa visão. Se não consigo ver mais nada, deixem-me mergulhar nessa visão. Se não houver mais possibilidades, temos sempre a imaginação. O corpo está on, estendam o novo chão deste mundo, as girls têm de andar. Só são permitidas aterragens suaves.
João dos Santos Martins Editorial
DE MAL A MELHOR
Três anos depois da mudança provisória para as instalações do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL) em Chelas, a Escola Superior de Dança está novamente num limbo de onde, de facto, nunca saiu. Em condições mais higienizadas do que as anteriores, no antigo Palácio Marquês de Pombal, ao Bairro Alto, é certo, mas sem o espírito desse espaço, discentes, docentes e não docentes ocupam agora uma escola em bocados, dispersa por entre as salas vagas dos vários edifícios do ISEL. Não chove dentro, mas era melhor que chovesse. Há coisas que só se resolvem com crises. Desde pelo menos 2007, quando frequentei esta escola, que se fala num prometido novo espaço próprio em Benfica. Infelizmente, o problema não é só o edifício. Há um novo diretor por indigitar há vários meses por alegado vazio legislativo para contratar quem não faça parte do quadro da Escola. Um vazio que demonstra a disfuncionalidade a que instituições públicas, como esta, estão sujeitas. Uma escola de artes vive num equilíbrio entre transmissão e renovação. Deve ser permanentemente pensada e repensada. Não pode ser feita de pedagogos fixos que se dirigem a si próprios em rotatividade. Uma escola de artes tem de estar atenta ao presente. Tem de colaborar com os artistas que praticam. Tem de contribuir para uma interação contínua com o exterior, com a comunidade e as instituições culturais. Não pode estar isolada. A única escola pública de ensino superior para a dança do país vive há anos asfixiada e condenada. E não está só. Ao mesmo tempo que os alunos da ESD se insurgem numa greve para reclamar melhores condições, surge a notícia de que as obras de recuperação da Escola de Dança do Conservatório Nacional estão paradas há mais de um ano por conta de um conflito com o empreiteiro. O mesmo problema. A mesma solução. Uma escola dispersa, sem condições para a prática ou que a condicionam em grande medida. E não se fica por aqui. Trinta anos logrados de funcionamento do Forum Dança e as mesmas contrariedades. Um espaço precário, com infiltrações, humidade, falta de isolamento, um chão instável, ao ponto de os alunos terem de mudar de estúdio durante semanas de trabalho para evitar complicações de saúde.
Os três mais importantes polos de formação em dança do país estão em condições miseráveis. As razões são distintas. As responsabilidades também. Em comum têm a mesma degradação que impossibilita a concretização plena das suas missões.
Esta história não é nova e a narrativa está massacrada. O ensino da dança em Portugal nunca foi fácil. É isso que observamos num dos textos que publicamos, de Madame Britton, pedagoga e fundadora de uma das primeiras escolas de dança privadas para raparigas em Lisboa, em 1924. Britton debatia-se, então, não apenas com o preconceito da sociedade mas com o preconceito da sociedade em relação a si mesma, por dançar, a começar pela vida privada. Das suas memórias, publicamos um episódio de 1916, na então Lourenço Marques, que coloca em jogo a moral dominante da época na relação com a prática da dança. O relato termina em 1918 com o assolo da gripe espanhola, o que nos transporta para hoje e para a inevitável pandemia.
Ao fecho desta edição marcava-se o dia mais contagiante e mortífero da Covid-19 em Portugal, um desfecho dramático depois do enorme esforço para conter as infeções. Com o anunciado II Confinamento, os espaços culturais voltaram a fechar e a produção artística ficou em suspenso, ou em adaptação de suporte, passando ao registo online. Se é certo que não é nos espaços culturais, com as medidas em vigor, que os contágios parecem acontecer, é incontornável que sejam esses os primeiros a fechar. Para a sociedade, a cultura não representa o trabalho dos artistas e agentes culturais – já em si uma despesa para o Estado – mas sim o usufruto dos cidadãos e o seu lazer. Se é certo que os teatros, cinemas e museus proporcionam ajuntamentos informais inevitáveis, o fecho destes lugares que são de culto para os muitos que não encontram na religião a sua fé parece também indicar, aos olhos da boa moral, que a privação de arte é uma espécie de castigo do Estado para o mau comportamento dos seus cidadãos.
Num catálogo de 2011 de Cyriaque Villemaux, publicado entretanto pelas ed.______, um dos capítulos propõe “um ano sem dança e a ver vamos se sentimos a sua falta”. A proposta do autor não tinha em conta o presente contexto dramático, mas – de facto – passou-se entretanto um ano sem dança. Um ano sem sentirmos os corpos uns dos outros. Sem sentirmos a sua massa a suar e os corpos a latejarem uns nos outros. Sobre essa perda e a ressaca de dançar escreve o DJ e curador de festas de inclusividade queer Pedro Marum, na ânsia do ajuntamento. Também observando o espaço vazio deixado pelo contacto físico social, Daniel Pizamiglio convidou, durante o I Confinamento, várias pessoas para o OLHAR COMO SE FOSSE A PRIMEIRA E A ÚLTIMA VEZ. Esse encontro, por um lado, e performance, por outro, seria uma forma de criar um lugar de partilha a dois, o mínimo da experiência comum. Através do olhar atento do médico Miguel Teles revê-se em elegias várias a impossibilidade da relação que a pandemia gerou, colocando em prática um luto coletivo para ultrapassar a dor que a distância obriga.
Se este é um tempo de luto e de luta, também o é de cansaço. Bhenji Ra, artista e mother da House of Sle em Sydney reflete sobre a fadiga da capacidade de imaginação coletiva de outros mundos e futuros como causa maior do desamparo social. Quase a propósito, Bruno Leviron e Ignacio de Antonio fazem um exercício de imaginação para contrariar o seu cansaço político. Num ensaio que tanto tem de teórico como de ficção científica, os dois artistas, brancos, imaginam o futuro da dança sem branquitude, isso é, sem o privilégio e o predomínio que o projeto branco europeu faz perdurar sobre as outras cosmologias.
É também aos olhos deste predomínio e da necessidade da sua crítica que observamos de perto dois processos de transmissão em tudo semelhantes mas com repercussões distintas. Em primeiro lugar, a reinterpretação da peça de 2004 O Samba do Crioulo Doido, de Luiz de Abreu, por Calixto Neto, artista brasileiro de geração distinta, mas com uma história racializada comum. Levada a cabo num momento de imensa complexidade social no Brasil, esse trabalho, apresentado sobretudo na Europa, age hoje mais que nunca como diplomacia internacional para a imaginação política.
Em segundo lugar, a construção de uma nova peça que a coreógrafa Eszter Salamon levou a cabo com a bailarina Vânia Doutel Vaz através do pressuposto da sua peça de 2010, Dance for Nothing. O complexo processo, que levou E. Salamon a decidir não voltar a apresentar a peça depois da sua estreia no Alkantara Festival 2020, é aqui refletido por Rita Natálio em diálogo com Vânia Vaz, evidenciando um conflito fértil entre sujeito e autoridade do trabalho.
Nesta edição abundante em narrativas, biográficas e artísticas, o investigador Jean Capeille escreve a partir da recensão crítica ao trabalho do artista norte-americano James Waring. Figura ausente dos cânones da história da dança, James Waring foi um dos precursores do movimento pós-moderno que produziu uma extensa obra entre a coreografia e as artes plásticas em livre trânsito entre a arte experimental, o vaudeville e o music hall. Neste ensaio observa-se a forma como, em especial, o trabalho de colagem de Waring em dança foi interpretado, discutido e disputado através de conceitos tradicionais muitas vezes pouco operativos.
Num lugar de incapacidade de classificação análogo, a coreógrafa Tânia Carvalho, que se move igualmente por vários suportes, reflete sobre os conflitos entre o que produz e a forma como é vista, de dentro e de fora do meio. Sendo alguém que rejeita por princípio nomear as coisas, a experiência do seu trabalho torna-se fundamental para decorticar o seu discurso. Numa entrevista alongada, meandra-se precisamente nesses lugares do não dito, que remetem para a experiência sensorial das obras e para a sua transmissão.
“O futuro está no que nos escapa e não nos pertence.” É esta a conclusão da frase serpenteante que J. M. Vieira Mendes vai construindo por adição de palavras, a frase que conquista o mundo e se retrai porque afinal o mundo eram muitas outras coisas. E a esta frase escrita em prosa contínua sem parágrafos nem pontuação contrapõe-se, por fim, o poema fonético de Micael Ferreira que ocupa a contracapa do jornal e no qual a grafia se torna um traço por entre as letras sem coreo.
Coreia é o movimento que estão a ver.
João dos Santos Martins
Calixto Neto Luiz de Abreu A Décima Quarta Bandeira ou Um Presente pro Futuro
O espetáculo O Samba do Crioulo Doido, de Luiz de Abreu, foi criado no ano de 2004 e nos uniu em torno de um projeto de transmissão e remontagem para o festival Panorama Pantin, organizado pelo Festival Panorama em parceria com o Centre National de la Danse (Pantin), em dezembro de 2019. Ali começamos o nosso diálogo intergeracional-diaspórico-transatlântico, falando na língua do samba. Ou d’O Samba. Mas essa peça nos uniu pela primeira vez em Recife, em fins de 2005.
Esse primeiro encontro aconteceu no Teatro de Santa Isabel, uma joia de estilo neoclássico cravada no centro da capital do estado de Pernambuco. O teatro ganhou esse nome em homenagem à Princesa Isabel, aquela que assinou uma carta concedendo liberdade a todos os seres humanos vindos de África e seus descendentes mantidos em regime de escravidão para enriquecer a coroa portuguesa e posteriormente a elite instalada no Novo Mundo, num ato que ofuscou as lutas abolicionistas em curso no país e a alçou ao posto de heroína nas Histórias oficiais. O teatro foi inaugurado em 1850, 38 anos antes do tal ato heroico da princesa, e se encontra no que hoje se chama de Praça da República, que só viria a ser proclamada no Brasil 39 anos depois da abertura do teatro. Nessa praça se encontra um dos cinco Baobás da cidade do Recife, uma árvore em torno da qual xs cativxs, antes de cruzarem o Atlântico nos navios negreiros, tinham de dar voltas para deixar para trás suas lembranças, seus laços familiares e sociais — o ritual da árvore do esquecimento. Ali, naquela terra que um dia produziu quase todo o açúcar consumido na metrópole, ali, num teatro que é o retrato mesmo dessa história colonial eternamente atualizada nos sucessivos ciclos de exploração do país, ali, testemunhando nosso encontro, essa peça questionava a história do país a partir de uma perspectiva preta.
O Samba do Crioulo Doido nos uniu naquela noite. De um lado, um homem negro em posse do seu corpo, da sua história, da história do seu corpo. Do outro, um jovem bailarino boquiaberto com a aparição daquela possibilidade. Naquele tempo, não se ouvia falar em genocídio da população negra, não tínhamos números para isso no Brasil. Hoje sabemos que a cada 23 minutos um jovem negro é morto no país. E sabemos disso não porque chegamos a números absurdos, um ápice jamais visto. Até porque esse genocídio começou desde a chegada do primeiro ser humano escravizado no solo brasileiro. Sabemos disso porque durante anos construímos instrumentos para mensurar, dar números e mais dados para o estrago que o racismo estrutural faz na vida da população negra no Brasil. E esses instrumentos foram se consolidando nos anos que se seguiram à estreia d’O Samba. Entre 2004 e os dias de hoje, discursos foram liberados, vozes historicamente abafadas começaram a sair da grande noite. E numa disputa de narrativas em que corpos negros estão na linha de frente, pagando com a vida cada conquista, nos últimos anos a comunidade negra tem amargado a ressaca de maré, o slapback de parte da sociedade brasileira, que finalmente não esconde mais o fracasso do mito da democracia racial no Brasil, quase tão presente no imaginário coletivo quanto a ideia de que houve uma colonização branda, menos violenta do que em outros lugares.
Nesses quase dezessete anos de história, a peça já atravessou vários Brasis dentro do Brasil, dado o dinamismo dos acontecimentos do país. Mas numa lógica estranha, a realidade ao redor vai se adaptando à peça: O Samba não conhece o anacronismo. Talvez porque seja uma mensagem enviada ao futuro. Uma mensagem cujo indício maior é a proposição de uma nova bandeira nacional, a décima quarta bandeira.
“Essa bandeira com buracos, ela significa que a gente pode… é a nossa bandeira e a gente pode criar esses buracos. A gente pode criar esses intervalos dentro dessa coisa dura, fria, longe da gente. A gente pode humanizar essa bandeira. E é no sentido de realmente se perder dentro das fibras desse tecido, desse tecido social que é o Brasil. É de entrar dentro desse tecido, sair de dentro desse tecido, esse tecido entrar em mim. Sou eu, essa bandeira sou eu!”
Nessas palavras de Luiz de Abreu que estão no filme O Samba do Crioulo Doido: régua e compasso (Calixto Neto, 2020) se encontra o anúncio daquilo que consideramos ser uma das possibilidades de olhar pra esse elemento cênico, um dos poucos objetos usados no espetáculo. Essa proposição de bandeira tem 1,90 m x 1,20 m, é estampada simetricamente com pequenas bandeiras do Brasil e, nas linhas que formam esse conjunto de retângulos, losangos e círculos, há buracos estrategicamente pensados para os fins performativos. No espetáculo ela é usada como figurino, num jogo de esconde-e-mostra, ressignificando o olhar sobre um corpo que esteve o tempo inteiro quase nu (exceto por um par de botas prateadas), um objeto para ser performado, como um Parangolé de Hélio Oiticica.
A atual bandeira do Brasil está em vigor desde 1889, ano da proclamação da república. Esse país, batizado com o nome da mercadoria que um dia foi a mais extraída do seu território, é hoje oficialmente representado pela sua décima terceira bandeira. E vez por outra se inventam outras versões, como aquela imaginada por Abdias do Nascimento em sua saudação a Oxóssi, o orixá da caça, do conhecimento, das florestas, uma das divindades representadas nas religiões afro-brasileiras. Ou aquela sugerida pela escola de samba Mangueira em 2019, nas cores de verde, rosa e branco, com os dizeres “índios, negros e pobres” no lugar do original “ordem e progresso”.
A última onda do ufanismo nacionalista no Brasil, em curso desde o golpe democrático contra Dilma Rousseff, se valeu de uma ideia ultrapassada de nação para legitimar a sua necropolítica, nos termos do filósofo camaronês Achille Mbembe. E o símbolo escolhido para representar essa retomada dos “valores nacionais” foi obviamente a bandeira. O verde-amarelo ganhou as ruas em camisas da Confederação Brasileira de Futebol, mesmo que a nossa memória mais curta ligada a esse patrimônio nacional seja o vergonhoso 7×1 contra a Alemanha em 2014.
As bandeiras tomaram as ruas: nos figurinos dos jovens em flashmobs que misturavam dança e cantos de “Fora Dilma, Fora PT” e, posteriormente, em apoio ao presidente Bolsonaro; nos ombros dos “cidadãos-de-bem” protestando na Avenida Paulista, em São Paulo, acompanhados das suas empregadas domésticas vestidas de branco, numa reprodução funesta das imagens coloniais de senhores escravocratas com suas mucamas a tiracolo; nas mãos de deputados que, em nome de deus, da família e da honra, depuseram uma presidenta eleita sem crime de responsabilidade.
Mas essa bandeira não é um signo frio, distante, afastado de nós. Ousamos ter esperança e consideramos a décima quarta bandeira como uma reapropriação desse signo, uma possibilidade de aproximação, de mudança, de retomada. Porque ela é o símbolo de um povo, e o povo, por sua vez, não é uma massa imutável — é dinâmico, está sempre em movimento.
Em 2020 aconteceram as eleições municipais. Foram escolhidos xs prefeitxs, vice-prefeitxs e xs vereadorxs das 5.570 cidades do país para os próximos quatro anos. E pode-se observar que, como na nossa décima quarta bandeira, na política também é possível encontrar buracos, lacunas, portais, passagens, janelas com vistas para outras realidades, outros desejos, outros mundos possíveis, outras lógicas de existir. Nessas eleições, as correlações de forças no país não mudaram radicalmente. Mas algumas pequenas revoluções foram possíveis graças ao trabalho lento, potente e consistente de agentes políticos, na luta dos grupos minoritários que formam a maioria do país. A representatividade alcançada nas eleições ainda está muito aquém do ideal, mas em 2020 houve um número recorde de candidaturas negras e um aumento da presença preta nas câmaras municipais. Mais de 80 vereadorxs LGBTQI+ foram eleitxs pelo país, sendo 25 pessoas trans, 7 delas as mais votadas em suas cidades. Com destaque para Duda Salabert, vereadora mais votada da história de Belo Horizonte, e Érika Hilton, mulher trans, preta e periférica, a mais votada desse ano em São Paulo. E num cenário de descrédito com a capacidade de mobilização da esquerda, assistimos ao sucesso da candidatura de Guilherme Boulos, integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, chegando solidamente ao segundo turno na maior e mais populosa capital do hemisfério sul, São Paulo.
A décima quarta bandeira representa uma revolução lenta. Ela é a única bandeira possível para esse país nos dias atuais porque ela dá espaço a outras possibilidades de corpo: “o corpo marginal, o corpo mendigo, o corpo vagabundo, o corpo prostituto, o corpo bêbado, o corpo criança abandonada, o corpo capoeira, o corpo valentões, os corpos causadores de conflitos sociais e os corpos perturbadores da ordem pública.”
A nova bandeira não apazigua, mas justamente convida a habitar os conflitos nas lacunas. Porque ela é um símbolo de poder. E o poder é como o povo, muda.
Hastearemos a nova bandeira com o corpo, fazendo dela o nosso outfit de runway, nosso vestido curto, nossa roupa de gala, nossa cauda esvoaçante. Nossa caravela, pronta para — agora sim ! — descobrir esse novo país chamado Brasil.
Bruno Levorin Ignacio de Antonio Antón O Futuro É uma Dança Sem Nós
[desejos para a desaparição da branquitudei]
Caro leitor. Não leia. Caro leitor. Baile. Siga pelas margens que estamos propondo, confiando no sentido da água que plantamos.
A dança mudou de nome três vezes desde a crise, assim como ameaçou fazer a fotografia quando deixou de escanteio a daguerreotipiaii no início do século XX. Nos anos 1950, quando a foto doméstica e de consumo se tornam populares, a máquina passa a ser do tamanho das mãos e deixa de ser do tamanho de cabeças.
Chegamos ao século XXI. Somos um coro apocalíptico motivado pela ascensão das câmeras digitais, iphones, xiaomis e galaxies em livre concorrência viral e supreme atenção a cada print de um story qualquer.
Aconteceu com a televisão, filmes, séries, computadores, telas, tudo isso matou o rádio. Embora historicamente estejamos vivendo o momento em que mais pessoas saibam ler e escrever e dedicam mais tempo a essas tarefas, livros e bibliotecas públicas ou privadas estão fadadas ao vazio, ao desaparecimento da presença humana.
Recebemos constantemente mensagens, escrevemos outras. Os idiomas escritos e lidos possuem a plasticidade típica da oralidade. São encurtados, interpretados, misturados com figuras, memes. O pensamento não está nas páginas brancas e nas letras pretas, não está nos milhões de PDFs nem na literatura. Novos códigos são estabelecidos em um fundo de tela que, caso enfeitiçada, racha a película.
Com a democratização dos telefones móveis, a produção de imagens, textos e histórias excede e supera o fim das coisas. E falando sobre a dança, o palco, ao que fazemos e onde criamos sentido – o que mesmo aconteceu com o teatro, as caixas-pretas, desde a pandemia de 2020 até hoje, 2040? A dança é mais dança do que nunca, seguindo suas epistemologias mais radicais, seus vocabulários mais disruptivos e sem nós, coreógrafos brancos. A dança está para além dos dispositivos de representação onde estava inserida, onde nós a inserimos.
É bom lembrar que a dança está no mundo sem ser chamada de dança há algum tempo histórico que antecede e supera a Europa. A França Imperial decidiu dar nome a mover-se de um lado para o outro como danse. Nunca souberam dançar de fato. Já em roubar e sequestrar foram especialistas. Ao acordar e dormir, ao caminhar e gesticular, com mãos e bocas, palavras e pensamentos, ao comer, se vestir, o que inclui desnudar-se, sudacamenteiii se dança. Na ancestralidade que as nossas ancestralidades brancas tentaram apagar, a dança está para curar, para comemorar a passagem das estações, para exaltar a vida em comunidade, para amar e guerrear com respeito, para ninar e fazer futuro. Ela assim permanece em alguns territórios que resistem cotidianamente às coreopolíciasiv, onde a palavra polícia e estado não existem nas línguas originárias. Já no hemisfério norte, que carrega em suas costas centenas de anos de homicídios cometidos por uma gama complexa de vírus epistemológicos e terrorismos de estado – a palavra terror é inaugurada na dita política institucional na França de 1793, quando jacobinos decidiram guilhotinar milhares de franceses naquela revolução burguesa –, a dança tornou-se um pacto de manutenção de poder das elites brancas e pensamento para mover exércitos coloniais. Sim, o mesmo povo que inventou a palavra danse, inventou também a palavra terrorv e uniu as duas em uma etiqueta barrocavi de excelência.
Não era necessário conhecer o coreógrafo estadunidense Steve Paxton para sabermos que o corpo pedestre é um ente coreográficovii. Bastava irmos a um festival de dança, performance, teatro, música e cinema circunscritos pelas suas especificidades raciais, geográficas e sociais para encontrarmos essa compreensão corpórea que parte de outras formas de fazer e pensar. Mas esse regime de inclusão excludente, que aconteceu com frequência durante algumas centenas de anos nos circuitos artísticos, onde existiam contextos brancos que se compreendiam como norma e universais, “detentores” do direito de falarem sobre o mundo, a humanidade, a abstração, o inaugural e qualquer outra coisa que sintam vontade, sustentados e mantidos pelos outros contextos que eram circunscritos naquilo que nós nomeamos como específicos, não nos permitiu encontrar as genealogias dos conhecimentos e pensamentos sobre as histórias “pedestres”.
Nos terreiros de candomblé sempre há pensamento em dança, ao contrário de igrejas onde, no máximo, pode-se encontrar os famosos “dois passos para lá e dois para cá”, com culpa e joelhos no chão. Nas manifestações que lutam por melhores direitos dos trabalhadores, a ação direta exige dançar. No compartilhamento do verbo comer em restaurantes populares erguidos por imigrantes em todas as partes do mundo, não existe mastigar sem gesticular com mãos e garganta. Tudo isso para dizer que foi nas ruas e nessas comunidades que foram subjugadas a partir de suas especificidades que os dispositivos arquitetônicos de representação mais efetivos da dança insurgiram. Tudo isso para dizer que a dança viveu e vive sob a emancipação das políticas da vida e não da morte e do controle.
Em 2020, a dança branca se esgotou. A premissa de que vivíamos sob uma prática e um contexto de dança contemporânea supostamente democrática ruiu. John Maynard Keynes, o estado de bem-estar social, toda a ideia de um capitalismo “feliz” durou o tempo necessário para que as elites wannabe Dinamarca voltassem a ser o que sempre foram, totalitárias, brancas e medíocres. Ficou evidente com a pandemia que as danças somáticas, por exemplo, tornaram-se resquícios radicais dos privilégios brancos, tratando apenas dos “traumas” que esses corpos não racializados desenvolveram para permanecerem vivos em seus berços de ouro e prata, inca e maia.viii Sem contar que, na crise da Covid-19, enquanto artistas brancos decidiram se especializar em yoga, os artistas pretos e racializados permaneceram na resistência e, como sempre, em uma vida dupla para sustentar suas famílias, estavam também nos chamados serviços essenciais, muitos deles em ambientes que marcam o corpo e reduzem a média de vida sem tempo e direito a eutonia, pilates, rolfing e/ou feldenkrais.
A universalidade da dança cantada por Isadora Duncan ajudou a inaugurar no ocidente o American way of lifexix. Depois disso, nem a pós-modernidade foi capaz de abrir mão da sua antropocentricidade branca. Foi doença e desespero ao ver, dia após dia, corpos negros e racializados serem assassinados e, voltando então às câmeras, filmados com os aparelhos celulares, que fez com que a nossa dança branca começasse a discutir vida, raça e entendesse a necessidade de sua própria desaparição enquanto projeto.
Mas não foi assim fácil. Afinal, entender o nosso próprio desaparecimento exige um movimento analítico intenso. Houve artistas no mercado europeu que decidiram colocar nos palcos aquilo que compreendiam esteticamente enquanto “marginal”. É interessante analisarmos essa necessidade “crítica” de afirmar nosso antirracismo e decolonialidade na medida pública do espetáculo. É uma característica estudada no âmbito da psicologia social racial esse comportamento da branquitude de nem sempre, sobre aquilo que aprova e desaprova publicamente, ratificá-lo no seu espaço privado.x Enfim, a culpa é sintoma, já a responsabilidade é falta.xi
Em 2020, nos dizíamos aliados das causas raciais e decoloniais e pensávamos que a representação resolveria os problemas de distribuição. Demorou para entendermos que os teatros onde estávamos nos apresentando e os circuitos em que estávamos inseridos na Europa faziam magicamente com que essa tal “marginalidade” se transformasse em fetiche, norma, exotização, tendência e notas de desculpa branca em forma de aplauso triplo.
Mas não para por aí. O último suspiro branco veio daquilo apelidado de idealização do precário.xii E se em vez de artistas fôssemos pedreiros? Acordamos cedo e vamos ao nosso trabalho representados por uma empresa terceirizada. Ela nos diz que não conseguiu arrumar os materiais e ferramentas básicas para se trabalhar nem equipamentos de proteção. Todavia, justificam que ali no terreno, no meio da sujeira planificada onde nasceria mais um horrível edifício, era possível encontrar algumas coisas e criar de forma improvisada esses equipamentos ausentes. Garanto que se fôssemos nós, artistas brancos em dada situação, hipnotizados pela idealização do precárioxiii, e por amor tóxico, acharíamos lindo a nossa “potência” criativa em levantar um prédio todo usando dois palitos e um pedaço de arame. Sem contar que, se vivos saíssemos dessa situação, em nossas mãos estaria um prêmio chamado: a meritocracia dos “fudidos” com herança S, M, L e/ou XL.
E se fôssemos, em 2021, o ápice do neoliberalismo?
Oxalá
A palavra futurum vem do particípio do verbo sum, esse. Digamos que futuro seja no étimo latino um tridentexiv formado por: aquilo que teria sido/estado presente na experiência mas que não se cumpriu, o que é/está na potência de qualquer ato no presente e naquilo que pode vir a ser/será enquanto possibilidade. É um espectro entre o que teria sido, o ser, o que haverá de ser e o devir, o que pode vir a ser. Evidente que o futuro percebido em nossa branca tradição cultural – quero dizer a católica, monoteísta e transcendental – é um ponteiro que segue por uma única direção, o que costumamos chamar de progresso.
O presente é impossível? Nossa própria capacidade de entender nós mesmos no mundo nos leva a colocar tudo no passado e projetar o possível nas condições de um futuro mais ou menos imediato. A dança que existe fora do projeto da branquitude, material de pensamento e ação, lugar de afetos, problematiza isso e reivindica sua condição presencial. A capacidade de fazer, produzir movimentos, mover-se junto das coisas são questões que habitam a impossibilidade e o desejo do presente em seu potencial político. Portanto, esta dança – e talvez a coreografia – sejam lugares onde podemos realizar as nossas dobras e encararmos de frente as nossas contradições a partir de suas escutas.
O futuro é um constante movimento para os lados, uma aceleração contínua da qual participamos como partículas expansivas em nível microscópico. Ele não é frente e também não é costas. É pó, bando e multidão. O futuro, para nós brancos, é um desaparecimento constante de nós, é deixar de ser junto do tempo para com ele extinguir a disseminação das nossas violências. A dança, não a danse, é o campo de excelência dessa nossa própria extinção enquanto projeto. Instituir a presença para além dos nossos campos de visibilidade pode nos ajudar a barrar as noções de reprodução do capitalismo e desarticular suas hierarquias dessas práticas. Essa ausência pode começar por gerar uma dança branca menor. Uma dança produzida a partir do tátil e de seus próprios limites críticos, um caminho que nos permita ampliar a nossa consciência e potencial político crítico para verticalizar uma conduta ética com tudo que ainda produzimos no mundo.
O futuro é um conjunto de ancestrais que foram mortos por nós e ressuscitaram mais fortes. Negando todo e qualquer tipo de extrativismo, essas entidades protegem um oceano de céu e terra, sustentam e ampliam seus conhecimentos sobre a vida e brincam fazendo piada sobre nós e nossos complexos de salvação. O futuro é um conjunto de aldeias que riem da civilização dançando seus problemas e alegrias.
No futuro não há polícia. No futuro há política.
Oxalá, há mundo e dança sem nós por vir.
i Tratamos aqui da branquitude como um conceito e um projeto ideológico. Para evidenciar nosso ponto de vista, incluímos nesta nota um quadro de 8 tópicos sobre a branquitude, apresentados por Ruth Frankenberg:1. A branquitude é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial.
2. A branquitude é um “ponto de vista”, um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e globais
3. A branquitude é um locus de elaboração de uma gama de práticas e identidades culturais, mas muitas vezes não marcadas e não denominadas como nacionais ou “normativas”, em vez de especificativamente raciais.
4. A branquitude é comumente redenominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de classe.
5. Muitas vezes, a inclusão na categoria “branco” é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e lugares, alguns tipos de branquitude são marcadores de fronteiras da própria categoria.
6. Como lugar de privilégio, a branquitude não é absoluta, mas atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou subordinação relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas modulam ou modificam.
7. Branquitude é produto da história e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos. Nessas condições, os significados da branquitude têm camadas complexas e variam localmente e entre locais; além disso, seus significados podem parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis.
8. O caráter relacional e socialmente construído da branquitude não significa, convém enfatizar, que esse e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e discursivos.Ruth Frankenberg, “A miragem de uma branquidade não-marcada”, em Branquidade: identidade branca e multiculturalismo, org. Vron Ware (Rio de Janeiro: Garamond, 2004), 307-338.
ii Primeiro processo fotográfico a ser comercializado com o grande público nos fins do século XIX.
iii Expressão pejorativa usada na Espanha para identificar e racializar imigrantes latino-americanos que vivem em território ibérico.
iv Conceito elaborado por André Lepecki que compreende coreografia como um lugar para refletirmos as produções de poder e discursos entre as noções estéticas e políticas, nos dá o entendimento, de forma não metafórica mas material, dos modos de agir e pensar dos estados autoritários e da capilarização de seus dispositivos biopolíticos. Ver André Lepecki, “Choreopolice and Choreopolitics: Or, the Task of the Dancer”, TDR/The Drama Review, 57, n.º 4 (2013): 13–27.
v Ver Aline Rabbelo, O conceito de terrorismo nos jornais americanos: uma análise do New York Times e do Washington Post logo após os atentados de 11 de setembro. (Tese de mestrado, Rio de Janeiro, PUC, 2006), 20-21.
vi Ver José Ignácio Roquette, Código do bom-tom: ou regras de civilidade e de bem viver no século XIX (São Paulo: Companhia das Letras, 1997). Publicado originalmente em 1845, teve como objetivo normatizar a vida cotidiana dos brasileiros, “orientando-os” nas suas condutas pessoais e educação gestual. A referência para tais modos eram importadas das nobrezas europeias. A dança dos salões teve um importante papel na manutenção desta ética perversa servindo como ferramenta de educação e contorno colonial.
vii O que está em jogo nessa afirmação que fazemos no texto é: até quando teremos a dança estadunidense branca como referência para a nossa produção de conhecimento? Onde está a literatura, a história e sua devida distribuição para o mundo dos outros intelectuais, bailarinos e artistas do outro hemisfério que trabalham sobre esses conceitos e práticas no mesmo tempo histórico e até mesmo um tempo anterior ao de Steve? Como diz o artista plástico brasileiro Traplev em recente obra exposta na cidade de Salvador, O segredo do futuro tá na história. Sendo assim, se há vontade de pensar no futuro, temos que antes repensar e entender que histórias estamos insistindo em contar.
viii Ficção inspirada pela plataforma Contemporary dance and whiteness: http://danceandwhiteness.coventry.ac.uk/, núcleo de pesquisa situado em Londres, coordenado pelas investigadoras Royona Mitra, Arabella Stanger e Simon Ellis.
xix No capítulo 3, America Makes Me Sick!’’: Nationalism, Race, Gender, and Hysteria, A. Hewitt debate sobre a relação entre a propositiva afirmação gestual de Duncan, produto da ideia de liberdade dos corpos em estado natural de movimento. O autor organiza a importância que a performatividade dos corpos teve para a produção de linguagem e identidade americana no começo do séc XX. “America is not only the medium for the realization of humanity: humanity is the medium for the realization of America.” Andrew Hewitt, Social Choreography: Ideology as Performance in Dance and Everyday Movement (Durham e Londres: Duke University Press, 2005), 124.
x Ver Lourenço Cardoso, “Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista”, Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 8, n.º 1 (2010): 607-630.
xi Vale lembrar como a noção de liberdade nos séculos XVII e XVIII, conceito elaborado e discutido pelo Iluminismo europeu, apresentava-se como eixo fundante daquilo que os filósofos da época organizavam por “humanidade”. Humanidade esta que exclui todas as relações escravocratas estabelecidas nas colônias. Ver David, Dabydeen, Hoggarth’s blacks: images of blacks in eighteenth‐century English art (Athens: University of Georgia Press, 1987 [1985]), 21‐23).
xii “O capitalismo artista tem de característico o fato de que cria valor econômico por meio do valor estético e experiencial: ele se afirma como sistema conceptor, produtor e distribuidor de prazeres, de sensações, de encantamento.” Ver Jean Lipovetsky, A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista (São Paulo: Companhia das Letras, 2015), 43.
xiii O trabalho hiperflexível e a precariedade têm invadido a dança dentro e fora dos palcos, onde cada um é empreendedor de si, um investidor de seu próprio capital simbólico. Ver Bojana Kunst, Artist at Work, Proximity of Art and Capitalism (Charlotte: Zero Books, 2015), 141.
xiv Pedimos licença para a produção de uma relação simbólica entre Exu, orixá da comunicação, porta-voz entre nós e os deuses no candomblé, e a concepção de tempo que estamos desenvolvendo no texto. Ver Reginaldo Prandi, “Exu, de mensageiro a diabo. Sincretismo católico e demonização do orixá Exu”, Revista USP, 50 (junho/agosto de 2001): 46-63.Rita Natálio Vânia Doutel Vaz Diamante
Quanto tempo há para falar e quem tem o lugar de fala? Ser ouvido é por si só um privilégio. Quando alguém sabe ter lugar para falar mas escolhe não o fazer por timidez, estará a tomar uma posição privilegiada? [Guião de Still Dance for Nothing de Eszter Salamon com Vânia Doutel Vaz, 2020]
DIAMANTE
Conversas gravadas por videoconferência entre Vânia Doutel Vaz e Eszter Salamon entre maio e outubro de 2020 foram insumos para processos produtivos nada aleatórios. Destas conversas foi feita a prospeção, a extração e o polimento de um texto original em inglês, que se transformou no fundamento da recriação do solo Dance for Nothing, de Salamon, originalmente estreado em 2010 e atualizado no ano pandémico de 2020 como Still Dance for Nothing, desta vez uma colaboração entre Vaz e Salamon.
O texto contou com o apoio dramatúrgico da poeta, arte-educadora e investigadora de estudos pós-coloniais Raquel Lima e apresenta-se aqui em fragmentos traduzidos para a língua portuguesa por Vaz e revistos por Rita Natálio. Concebido como guião de uma performance oral e dançada, pode-se perguntar o que é um texto de uma performance sem o corpo que o chama. E de quem é esse texto? A utilização breve de pontuações como esta […] ou a presença de várias frases juntas no ajuntamento de um parágrafo contrastam com a experiência desejada da performance, onde nenhum fluxo de pensamento é atravessado pela fronteira gráfica do ponto final ou da vírgula, mas antes expandido pela respiração e o fluxo de movimento sempre aberto.
O texto apresenta (ou representa) motivos importantes da biografia de Vânia Doutel Vaz, marcada por importantes trânsitos coloniais (os seus pais nasceram e viveram por muitos anos em Angola), geográficos (Vaz nasceu em Lisboa, e viveu oito anos em Nova Iorque e dois anos na Holanda) e emocionais (a influência da marcação racial sobre o seu contexto laboral na dança e na sociedade). O texto é a fala invocando e presentificando o corpo não-branco de Vânia, nutrindo o seu corpo em texto, marcando a história. O texto é sempre por tudo e para todes, porque é a vida a desdobrar-se como nexo do corpo que dança, e por isso gera uma interferência contínua no ato de mover-se. Nunca um pretexto.
O solo Still Dance for Nothing estreou em novembro de 2020 no Alkantara Festival, em Lisboa, na Culturgest, e contou com três apresentações com cerca de 75 espectadores em cada dia. A peça consiste numa estrutura dançada e falada em simultâneo por Vânia Vaz a partir do enunciado original da peça Dance for Nothing, de Eszter Salamon. Em 2010, Salamon performava também uma partitura coreográfica e outra textual (no caso, a obra Lecture on Nothing [1949], de John Cage). Em Still Dance for Nothing, Vânia Vaz parte da sua biografia como partitura, ativando elementos da sua identidade e racialidade como “material textual”, enquanto improvisa a partir de um arquivo coreográfico que lhe é próprio, desenvolvido e polido ao longo dos ensaios mas não diretamente conectado ao texto. Embora se trate da mesma estrutura, não é simples a passagem entre a fortuidade e a não-coincidência entre texto e movimento de Dance for Nothing, e o gesto de marcar a coreografia pela performatividade do debate racial em Still Dance for Nothing.
Talvez por se bater num limite nada consensual sobre quem pode ser sujeito ou objeto da representação, Still Dance for Nothing não será mais apresentada por decisão de Eszter Salamon. Considerando que a obra tratou de materializar aspetos da identidade racializada de Vaz como performance, ao mesmo tempo que rememora o trabalho coreográfico de Salamon, esta decisão abre um espaço de reflexão onde é importante desdobrar elementos que constituíram a performance apresentada em 2020, assim como o processo de criação e colaboração. Inicia-se aqui o desejo de expandir e problematizar esse movimento através de um debate amplo sobre a presença, representação e representatividade de vidas não-brancas nas artes performativas, atualizando as formas críticas de fazer e ver performance. (Continua…?)
Nota:
Escrevi este texto, ainda em processo, em diálogo com Vânia Doutel Vaz. Mais do que uma análise crítica e uma posição sobre o trabalho, a publicação deste texto e de excertos da tradução do texto original de Still Dance for Nothing propõe desenrolar um diálogo sobre processos artísticos e extravasa a colaboração pontual de Vaz e Salamon.OBRA DE ARTE
[…]
Eu tenho pensado na minha posição enquanto negra de pele clara e os seus privilégios, assim como o direito à inclusão e a experiência de tokenização. Penso nos privilégios que tinha, e ainda tenho, na complexidade e nas tensões que criam na minha vida. Eu nunca saberei se fui convidada a ingressar numa companhia de dança na Holanda por ter talento ou pela minha aparência. Será que foi “ela tem pele escura e talento”, ou “ela tem talento e pele escura”? Será que a companhia desafiava o status quo do ballet através da inclusão?
A culpa da branquitude. Ou a cumplicidade da branquitude? Numa companhia em que trabalhei em Nova Iorque, a diversidade era amplamente encorajada e respeitada e a pele escura era um motivo de orgulho. Eu senti-me fortalecida; pensei ser um passo avante. Ou tratava-se de uma jaula mais confortável? A questão da raça foi resolvida em troca da estabilidade financeira. A promessa de uma individualidade e aparente autonomia artística. Mas o que eu quero dizer é que o movimento gerado pelos bailarinos foi confortavelmente extraído sem qualquer crédito à sua autoria. Encheu-me o ego e os bolsos. Foi como vender a minha alma ao diabo.
Não é tudo preto no branco; há também tons de castanho.
Identificar onde está o privilégio é mais complicado do que parece. Na minha família há todas as variantes de cor de pele. Eu tenho várias memórias, mas não acredito que me tenham traumatizado. Fui sempre capaz de me distanciar. Como naquela vez, com a minha prima, em que estávamos na sala. Ela tinha a cabeça deitada no colo da irmã que lhe escovava o cabelo, em total agonia. Era tão doloroso. Éramos miúdas e eu devia estar a olhar chocada ao ver a dureza daquele tratamento. Via que estava em sofrimento e isso deixou-me triste. E ela olhou para mim e disse: “Estás a olhar para onde? Tu tens um cabelo bom e toda a gente gosta mais de ti por isso.” Eu fui o alvo perfeito da sua raiva: a prima de pele clara com um bom cabelo, a olhar para ela. Magoou-me, mas foi óbvio que a zanga dela era com o mundo, assim como quando qualquer criança se sente injustiçada. Depois de escovar ainda é preciso puxar o cabelo da raiz para trançar, mais uma longa jornada de dor.
Histórias como esta da minha prima fazem parte da minha memória, e há mais a dizer sobre elas do que a forma como as conto ou as experienciei. São histórias duras, por isso não as quero recontar: são a dor da minha família. A minha família decidiu não passar a dor adiante para mim. E qual é a minha responsabilidade? Não a carregar? Toda a minha vida evitei ir mais fundo em relação ao que sou ou qual a minha responsabilidade nesta sociedade para não tender à vontade de julgar e culpar toda a gente e viver numa ira infinita.
Mas então a voz é fragilizada. Ser bailarina nunca quis dizer ser silenciada. E eu sempre tentei conectar-me com o mundo exterior à dança, ao mesmo tempo que precisava de dominar este corpo sem voz. Decidi trabalhar com o corpo e viver com a minha consciência à parte.
Há uns anos, conheci um grupo de franceses brancos anarcas. Eram piratas que estavam a trabalhar num barco atracado numa pequena cidade da margem sul que a maioria dos lisboetas nem sabe que existe: Sarilhos Pequenos. Enquanto passava dias com eles fui-me fascinando pelo modo de vida Robin dos Bosques que eles levavam. E dei-me conta de que partilhava da mesma revolta contra a sociedade. Mais tarde, quando eventualmente navegávamos rio afora, um deles disse: “Todos temos uma ligação nesta história colonial. A tua família teve de deixar o país onde nasceram e por isso tu nasceste aqui. Temos frentes diferentes na mesma batalha.”
Eu tenho um fascínio por anarcas, ocupas, e entendo que vou construindo a minha subjetividade através das minhas relações com pessoas brancas. Estabelece-se um diálogo quando, na maioria das vezes, tenho de lidar com os problemas dos brancos. Como se os meus problemas fossem invisíveis. Mas é óbvio que eu sofro e me deparo com obstáculos diariamente. Devemos falar de todos os problemas. E esse diálogo é poderoso, informa o quanto essas relações me contaminam, influenciam a minha construção de sujeito e como a posso desconstruir.
Quando vivi em Nova Iorque perguntavam-me “o que tens a dizer?”. E eu comecei a tomar consciência das vozes que escolhia ouvir, de onde recebia as notícias, quem lia, e comecei a questionar essas perspetivas.
[…]
A minha mãe nasceu em Angola.
Os seus pais nasceram em Angola.
A mãe da sua mãe nasceu em Angola e a sua avó, a minha tetravó, nasceu em Portugal.
O pai da minha bisavó nasceu em Angola e o seu pai em Portugal.
O meu pai nasceu em Angola.
A sua mãe nasceu em Angola.
O seu pai nasceu em Portugal, os pais do seu pai, avós e bisavós nasceram em Portugal.
O pai da avó do meu pai nasceu em Angola e a sua mãe na África do Sul. O pai da mãe do meu pai nasceu em Angola.
Hoje em dia, há pessoas em movimentos migratórios pelas mais variadas razões. E nem sempre há um termo exato para cada um desses movimentos. Há várias definições para pessoas que são forçadas a sair das suas casas: imigrantes, exilados, refugiados, requerentes de asilo. E também há o caso dos retornados. Um retornado é uma pessoa que tinha ou recebeu nacionalidade portuguesa para voltar ou ir para Portugal quando os territórios colonizados reconquistaram a sua independência. Dos retornados faziam parte também negros e mestiços, mas só aqueles que conseguiam provar ancestralidade portuguesa.
Quando penso naqueles que voltam para casa, para as suas famílias, propriedades e pertences, também penso naqueles que deixam tudo para trás e chegam a sítios onde nunca estiveram.
Há a história de uma adolescente. Tinha uma mochila nova com um padrão tropa. Ela adorava aquela mochila e mal esperava poder usá-la. Esse dia nunca chegou. Uma vez os soldados entraram-lhe casa adentro e levaram-lhe a mochila assim como outros pertences da família. Ela convenceu-se de que os soldados levaram a sua mochila porque condizia com os seus uniformes. São histórias que contamos e estas formas de re-escrever as nossas memórias são atos de resiliência. Alguém disse: “Ao contrário do caracol, carregamos a casa dentro de nós.”
As minhas memórias de infância têm maioritariamente lugar na casa da minha avó materna. Era um rés do chão. Mesmo em frente havia uma piscina pública de três patamares que no verão se enchia de água e nós brincávamos lá. Do outro lado havia um jardim, um parque, um campo de jogos e um parque de estacionamento.
[…] É na margem sul. Com o passar do tempo, o rio Tejo também se tornou uma barreira psicológica. Estes bairros foram criados para dar casa a pessoas que tiveram de fugir dos seus países para escapar das guerras. Estas comunidades ainda existem na periferia.
A primeira vez que fui a África foi para fazer uma tour de gogo em Marrocos. Convidei uma amiga para ir comigo, formando um duo. Ao fazer gogo senti-me empoderada. Havia uma espécie de reconhecimento naquilo. Sentia clareza no que fazia e o foco era indubitavelmente em mim. Na dança comercial, na qual também trabalhei, os corpos são necessários para tornar o show mais interessante. Estão ali para decoração. Expõem-se corpos como se fossem coisas. Mais tarde, esta mesma amiga convidou-me para ir fazer um show e ser back-up dancer num concerto em Luanda. Ficámos hospedadas na ilha do Mussulo. Como tínhamos viajado de noite, só ao acordar é que nos demos conta de onde estávamos: um paraíso de vegetação tropical! Havia um buffet da mais variada comida e, para meu espanto, era exatamente como a da minha avó materna. Até o detalhe de como se cortavam as batatas. Lembro-me de pensar: “Agora entendo de onde tudo isto veio.” Revi-me na comida e pude conectar-me. […] A caminho do aeroporto, de regresso a Lisboa, o irmão da minha mãe estava lá à minha espera com muita comida para eu levar. Isto foi um marco; eu sabia o que era estar em Portugal e receber toda a comida que nos enviavam de Angola e agora era eu quem a levava! Incrível! Quando aterrei tinha os meus pais de olhos esbugalhados: “Conta-nos tudo!” A tentarem ver o que eu vi, ver o que eu senti – a devorarem a minha experiência. Foi aí que me dei conta de que, enquanto eu tentava encontrar qualquer coisa que me identificasse, eu transportava a minha experiência para eles. Depois desta viagem, eles foram de férias a Angola; foi a primeira vez que lá voltaram.
[…]
Ser alguma coisa faz-me sentir que há uma expectativa ou uma necessidade de reivindicar uma identidade. Sinto-me desconfortável quanto tenho de definir permanentemente qualquer coisa por oposição a outra. Gosto da constante mudança, assim como de observar a evolução da minha mente onde tudo é temporário, algo oposto à ideia de monumento. A propósito, há uma música da Robyn e dos Röyksopp. A última parte é assim: “Faz um molde de gesso do meu corpo. Tira-o para fora para que eu possa ver. Abandona a ideia de como me conhecias. Abandona a ideia do que eu fui. Eu vou deixar este monumento representar um momento da minha vida.” E também esta parte: “Arranja um espaço para o meu corpo. Escava um buraco. Separa e cria espaço. Isto é o que posso controlar. É um molde. O interior que eu esculpo. Este vai ser o meu monumento.”
[…]
Juntar objetos, decidir com que ferramentas trabalhar, questionar a linguagem usada, a forma como se põe tudo em perspetiva. Imaginar também o tempo de forma diferente, congelando-o ou expandindo-o, ver como os pensamentos são transferidos do estúdio para a vida e vice-versa; a prática torna-se uma plataforma de perspetivas e de oportunidades para fabricar o microfone e usá-lo.
Eu sou ballet. Parece-me que tudo se resume a isso; o meu comportamento, as minhas reações, consciência e escolhas. Faço ballet desde os 5 anos. Estaria só a fazer o que me diziam? Ou talvez houvesse vontade própria. É como uma organização que prepara uma máquina e essa máquina é feita para durar eternamente. Poderei não ter de voltar a ir para a guerra, mas fui programada para atingir um fim.
[…]
Eu gostava que soubessem que estão a olhar para a construção da vossa perceção. Sempre que me apresento, eu gostaria que esse fosse o lugar de partida da observação. E assim eu seria livre. Mas eu não me sinto livre. Porque das duas uma: ou sou confrontada a rejeitar alguma coisa ou a seguir a onda. Mas agora é um momento de empoderamento, e eu não o sinto como tal.
A minha utopia tem sido não ter de falar do meu percurso profissional, da forma do meu corpo ou da cor da minha pele. Mas depois vou à manifestação por causa do assassinato de Bruno Candé, um ator negro vítima de um crime motivado por racismo. E fico profundamente triste. E quero aproximar-me das pessoas negras. Afinal, eu também sou negra. No entanto, não tenho construído alianças fortes dentro da comunidade. Será que tenho direito a levantar o meu punho ao seu lado?
Até me ter mudado para Nova Iorque eu não estava a par das questões do racismo. Em Nova Iorque, os afro-americanos encorajaram-me a assumir o meu lado angolano dizendo: “Pelo menos, tu sabes de onde vens.” E nesta troca também ficou evidente quanta negação existe na forma como Portugal lida com o racismo e quanto disso eu carrego em mim.
A minha avó sempre nos disse: “Não se foquem na vossa aparência mas em quem querem ser, porque isso depende de vocês. Foquem-se no que está ao vosso alcance porque nunca vão poder ter controlo sobre como as pessoas vos veem.” Este conselho, que foi um escudo protetor, guiou-me até aqui. E agora tenho de o desmantelar. Tenho a urgência de abandonar esse escudo, deixá-lo para trás, tornar-me uma carcaça, um momento de transição.
Adorava usar o nome da minha avó, Odete. Como não planeio ter filhos, eu podia talvez usá-lo numa situação mais íntima, ocasionalmente, quando me apetecesse. Olá, Eu sou a Odete. Odete Odd.
[…]
Vânia Doutel Vaz, para a peça Still Dance for Nothing.
Carmen Pombo de Brito Páginas da Minha Vida
Espanhola de nascimento (1880) e portuguesa de casamento, Carmen Pombo de Brito era conhecida em Lisboa como Madame Britton, pseudónimo adotado para não ser reconhecida enquanto esposa do seu marido, que em 1916 abandonou por ele não aceitar que dançasse em público. Já o pai a proibira de fazer teatro, razão pela qual estudara Música no Conservatório em Madrid, de onde por vezes escapava para frequentar a Academia de Dança. Após um episódio de violência doméstica, a sua mãe foge com Carmen para Portugal, onde se instalam. Em Lisboa, virá a casar com o comandante português António Júlio de Brito, depois destacado para Moçambique, para onde partem em 1903. Num dos seus raros testemunhos, o diário Páginas da Minha Vida, publicado em 1962, Britton descreve as várias expedições pelo interior da Zambézia na missão colonizadora de ocupação do território e limitação de fronteiras ao serviço da coroa portuguesa, relatando com horror a segregação racial quotidiana e a permanência de um regime de escravatura já entretanto abolido. É em 1911, quando regressa a Lisboa após longa doença e desencanto matrimonial, que Carmen decide viajar sozinha pela Europa e regressa à prática da dança. Passando por Espanha, França e Inglaterra, cruza-se em Itália com Anna Pavlova, que lhe apresenta o mestre de bailado Enrico Cecchetti, com quem estuda. Mantendo a sua atividade de dança em sigilo, sem mesmo que o seu marido soubesse, o episódio da rutura do casal na então Lourenço Marques evidencia o que Britton explica como paradigma cultural do país: “Em Inglaterra, ter um artista na família é uma honra, ao passo que em Portugal é todo o contrário” i . Obrigada a abandonar o lar, inicia então uma carreira como pedagoga de dança, primeiro em Joanesburgo, até 1921, depois em Londres, e finalmente em Lisboa, onde abre, em 1924, a sua Escola da Arte de Representar, à avenida António Augusto de Aguiar. Sustentada no bailado clássico e na ginástica rítmica como cultura física feminina, o seu projeto teria como objetivo a educação das raparigas: a dança “ensina-as a vencer a timidez, a enfrentar as pessoas, habitua-as a moverem-se com elegância, incutindo-lhes, ao mesmo tempo gosto pela música, proporcionando-lhes um entretenimento saudável e de nobres intenções” ii. É aqui, e nas aulas ao domicílio, que Britton se erigirá enquanto estimada professora de dança para a alta sociedade lisboeta e para os descendentes das casas reais europeias, exiladas, na Linha do Estoril, das ondas de republicanismo que assolam a Europa. O seu espírito aristocrata, que lhe fazia distinguir com obstinação a cultura popular do “teatro” da cultura nobre da “arte”, não a impedia ao mesmo tempo de denunciar e de se bater contra o preconceito que imperava nessa mesma classe: “Levei alguns anos até conseguir que os espíritos simpatizantes com o meu trabalho se tornassem convictos do valor educativo da Arte da Dança” iii. O seu trabalho “como professora de Dança educativa e não como escola de bailarinas” cultivou um gosto pela dança através de inúmeras récitas e festas de caridade, como era habitual nos teatros da cidade, com as suas alunas, sem com isso deixar de incomodar generais “cheio[s] de condecorações” que relatavam: “Eu não desgostei, mas isto de aparecerem as pequenas em camisas e sem meias…” iv. É nesta visão de dança livre que as suas alunas ficariam registadas no filme-ensaio experimental A Dança dos Paroxismos (1929), de Jorge Brum do Canto. Dividida para sempre entre uma moral católica e conservadora e um espírito de confronto emancipado, que Daniel Tércio ironicamente sintetiza no título do seu ensaio como “cisne em agonia” v, Britton não esconde a sua admiração por António de Oliveira Salazar numa carta de 1949. É esse espírito ambíguo entre “submissão” e “coragem” que, tendo sido professora de Wanda Ribeiro da Silva ao longo de dez anos, a faz opor-se com relutância à sua ambição de se tornar bailarina: “Pobre criança, não sabe, não, o que isso significa. Que exausto trabalho. Que grandes desilusões. Quantas invejas horríveis, injustiças, ingratidões inconcebíveis, árduo trabalho e ansiedade para fazer compreender a maioria do público; […] enfim, o tempo encarregar-se-á de dar razão a quem a tiver” vi. Ribeiro da Silva seria não só bailarina como uma das figuras fundadoras do Centro Português de Bailado, da Escola de Dança do Conservatório Nacional e da Escola Superior de Dança.
O texto que aqui damos a conhecer é um excerto do livro que a própria Madame Britton publicou pouco tempo antes da sua morte (em data incerta). Apesar dos esforços na busca por quem tenha mantido o seu espólio, até ao fecho desta edição não foi possível encontrar ninguém. Manteve-se a grafia do texto original, salvo revisão de acentuação e pontuação.
PÁGINAS DA MINHA VIDA
A minha Arte na Dança foi o drama da minha vida conjugal.
Um dia ou, por melhor dizer, uma noite, depois do jantar, passámos, como era de costume, para a sala de fumo, onde era sempre servido o café e cigarros aos nossos amigos. Entre eles, nesse dia, encontravam-se Mariano e João Machado e o Tenente Coronel Gomes da Costa (mais tarde Marechal) e entre várias coisas começaram a falar duma festa elegante que ia realizar-se no único Teatro existente, chamado “Varietá”. Era de caridade a tal festa e o grande atractivo dessa noite era o programa a ser executado por Senhoras da nossa primeira sociedade ali existentes. Madame Lomelino, grande pianista, Alda Ribeiro, violino, Sofia Cachi, versos, etc., e dirigindo-se a mim perguntaram-me que parte é que eu podia desempenhar.
O meu pobre Antônio, a quem eu tinha ocultado sempre os meus estudos de dança, na última viagem à Europa, desatou a rir-se, e disse “A minha minha mulher, coitada, caso não seja para puxar a cortina, não pode contribuir com a Festa, pois não possui nenhuma dessas artes”. Podem calcular, os que tinham tido a paciência de me seguir até aqui, como eu fiquei ao ouvir esta frase do meu marido, quando eu, no dizer do meu Maestro Cecchetti, era um verdadeiro talento se pudesse cultivar essa Arte, impossível, é claro, devido à minha situação na sociedade e de mulher casada. Não posso explicar o que senti, somente sei dizer que, esquecendo que meu marido ignorava que todo o tempo que estive na Europa passei-o a estudar, em vez de levar a vida frívola, que outra mulher em minhas circunstâncias levaria, com prazer espiritual de poder mostrar aos outros o que é e o que valem quaisquer artes, respondi ironicamente, rindo da gracinha do meu marido: “Pois muito bem, eu vou executar uma Dança clássica e outra de fantasia”. Não posso explicar a cara de surpresa e contrariedade que o António fez ao ouvir a minha declaração, pedindo aos nossos amigos presentes para não me tomarem a sério, pois ele não me autorizava a fazer o ridículo. Poderia detalhadamente explicar as palavras que a isto se seguiram, mas quero concretizar este assunto no mais importante e, assim, direi que, usando uma correcção quase diplomática, nem o meu marido, nem eu, voltámos a clara no caso. Mas eu continuei na minha ideia e desta forma comecei diàriamante a treinar-me em ginástica e lembrar-me de algumas danças ensinadas pelo velho e querido Maestro, tudo, é claro, feito fora do olhar do António, pois eu tinha a esperança que, não dizendo coisa alguma até ao ultimo momento, tudo correria bem. Como estava enganada…
Finalmente, chegou a noite da célebre festa. Meu marido, já pronto com a farda de grande gala, esperava-me na casa de jantar; apareço toda sorridente e feliz e de repente, olhando para mim, me disse, muito carinhoso, como sempre: “O filha, tu tens toiletes tão lindas e foste escolher para hoje uma, que, falando com franqueza, não tem nada de interessante, até parece uma camisa de noite”. Efectivamente, era uma túnica branca, solta, estilo grego, atada na cintura com uma fita prateada, e, esclarecendo tudo, lhe confessei que era o vestido para dançar o Momento Musical de Schubert, não lhe tendo dito coisa alguma até essa ocasião para evitar contrariedades e desgostá-lo, pois estava segura que, sendo tão amigo como era, à última hora certamente não me negaria aquele prazer inocente.
Que horror! Como ficou desfigurado ouvir isto! Eu nem o conhecia, nunca o tinha visto assim. Com ar cortante, quase ameaçador, perguntou.
– Com quem é que a senhora vai ao teatro?
– Pois com quem há-de ser? Contigo, respondi.
– Está completamente enganada; na minha companhia vai a minha mulher e não uma dançarina.
– E, virando-me as costas, saiu com o seu ar autoritário dos tempos em que comandava os pretos. Fico em pé, de pedra, sem saber o que fazer. Eu não queria desgostá-lo, mas Santo Deus, eu estava num compromisso horrível. Toda a gente esperava por mim. O programa não poderia ser realizado se eu não aparecesse e… nesta luta titânica, cheia de pena, mas num minuto de decisão, mandei chamar a minha dama de companhia e segui para o teatro cheia de angústia e de desespero. Não sei bem o que fiz. Julgo que os verdadeiros passos a adaptar nesse bailado fugiram-me da mente, com o meu desgosto, mas a música embriagava-me e, deixando-me arrastar pela inspiração do momento, fiz nova composição coreográfica, que, no dizer do público, foi maravilhosa, o que me valeu uma estrondosa ovação, tendo que trizar e, de cada vez, diferente, pois eu cheguei a um estado de excitação em que não sabia bem o que fazia.
Passaram-se dois meses. Meu marido, durante este tempo, não voltou a casa. Eu estava desolada com o sucedido e a única consolação era ler e reler os jornais do dia seguinte da festa, onde me faziam os melhores elogios, entre eles, lamentavam não poder ter a oportunidade de voltar a ver essa “Deusa da Dança” que os laços matrimoniais tinham roubado a essa divina Arte.
Não foi surpresa para mim quando, um dia, um criado veio anunciar que o Sr. Comandante tinha chegado e estava no escritório. Sim, porque algum dia teria de voltar. Aquela situação não se podia prolongar para toda a vida. Entrei, estava ou fingia ler um livro que tinha sobre a secretária e eu com todo o meu carinho (e convencida que era o melhor que tinha a fazer) pus diante dos seus olhos e por cima do mencionado livro, a página do jornal que tão grandes e rasgados elogios faziam a minha pessoa, julgando assim poder com o meu sucesso acalmar a sua cólera. Que inocente criança, que eu era nessa ocasião! Ergueu-se novamente, como da última vez que falámos, dizendo-se desonrado, e, tirando duma gaveta da secretária as condecorações Cruz da torre Espada, Aviz, etc., deitou-as aos meus pés num momento de fúria – nunca o tinha visto assim! Fiquei apavorada e confesso que tive medo.
Depois, com grande sarcasmo e olhando para mim com o máximo desprezo, disse:
– Estás cheia de toleima e de vaidade pelo que dizem de ti os jornais, mas és tão imbecil, que ainda não compreendeste que todas essas encantadoras frases são, embora encobertamente, dirigidas a mim, pela minha posição, pela minha fortuna; pois tu podes estar bem convencida que, como mulher ou como artista, não tens valor algum.
– Santo Deus, que injustiça! Senti, como se me tivesse batido com um chicote no rosto, e nessa altura chegou minha vez e esquecendo tudo quanto meu marido significava para mim e todo o nosso passado, num momento de desespero respondi-lhe:
– Pois muito bem, saio agora mesmo desta casa, pois não quero continuar a desonrar-te com minha presença, e saio, – repara bem – só, não levando comigo coisa alguma do que me deste, excepto o teu nome, e juro que nunca mais voltarei, até não poder provar-te que, como mulher e artista, tenho esse valor que os jornais falam e que tu não podes reconhecer!… Até hoje!…
Assim foi que deixei a minha casa, abandonando tudo quanto de bom possuía, fortuna, posição social, nome e aquela santa criatura que se chamava António Júlio de Brito.
Fugi para Johannesburg, com algum dinheiro que pedi emprestado a uma amiga minha e sem formar projectos, pois o meu único desejo era fugir de tudo e de todos; cheguei àquela cidade para mim desconhecida sem saber nem sequer compreender uma única palavra de inglês. O meu estado moral estava fora de toda a classificação, não dando conta do que me sucedia. E vagueava pelas ruas até à hora de recolher ao hotel, onde me era impossível conciliar o sono. Todas as ideias se barafustavam no meu cérebro, a minha vida de sacrifícios no mato durante cinco anos, a minha vida faustosa na Europa e em Lourenço Marques, as minhas filhas, o meu futuro e o maior de tudo, o meu António, que tinha perdido – sabia-o bem –, para sempre, além de que os dias passavam e o dinheiro se esgotaria irremediàvelmente.
Que fazer? Estava decidida a tudo, menos voltar para casa. Eram muitos os anos que tinha vivido ao lado desse homem bondoso ao máximo, mas resoluto e enérgico, o que fez que eu pela primeira vez formasse o meu carácter e a compreensão da vida com uma personalidade muito minha; assim pois, no mar de confusões em que me encontrava, prevalecia sempre uma decisão irrevogável – não voltar para minha casa.
Minha amiga, sem eu pedir, remeteu-me novamente sem libras, suplicando-me que regressasse a Lourenço Marques, pois o António estava como doido e tinha a certeza que ele já estava arrependido do que acontecera. Ele não suspeitava por um momento que eu tivesse tido a coragem de ir para Johannesburg, pois a minha amiga, apesar das apertadas perguntas, nunca o deixou perceber.
O criado do hotel onde eu estava, um dia, ao servir-me o almoço, perguntou-me de que nacionalidade era, e ao responder – portuguesa – ficou encantado, pois ele conhecia alguma palavras e compreendia quase tudo, pois era italiano. Falando eu essa língua, passei a poder entender-me pelo menos no hotel, o que já era qualquer coisa, e, por intermédio dele, cheguei a saber que ali a dança era muito apreciada em qualquer das suas modalidades, sendo muito consideradas e repetidas as pessoas que exerciam essa Arte. Fiquei estupefacta ao ouvir tal declaração, pois seria possível que a tão poucas horas de distância do território português, as pessoas pensassem que ser uma Artista era uma honra, o que em Lourenço Marques era desprezível. Santo Deus! Que mar de confusões, mas era preciso reagir, tomar uma decisão, e assim foi que, enchendo-me de corágem e audácia, apresentei-me no melhor teatro que existia em Johannesburg, dizendo-me consumada artista, que me encontrava ali de passagem e por este motivo o meu reportório, música e vestuário era resumido; mas poderia dar pelo menos dois a três espectáculos e depois do empresário do teatro, ter assistido a um ensaio, ficou assente que eu receberia noventa libras por semana. Como o meu ingles era muito pobre, de momento cheguei a pensar que não tinha percebido bem e tive que recorrer ao criado do hotel para me servir de intérprete e, perante sua afirmativa, fiquei atônita, pois seria possível que eu pudesse ganhar essa importância numa semana! Eu, quando ainda há pouco ouvi dizer ao António, que como mulher e artista, não tinha valor algum. Não, não era possível o António era doido, ou então o empresário, que estava disposto a pagar dessa forma!
Finalmente chega o dia da minha estreia. Nervos, lágrimas, medo. Sim, medo de tudo e de todos. Um mundo e um ambiente desconhecidos para mim. Foi um sucesso. O público, a luz, a música, tudo quanto me rodeava e, talvez mais do que nada, a minha ânsia de vencer, operou em mim tal transformação que, deixando-me levar por um golpe de entusiasmo, consegui arrastar a plateia inteira numa ovação delirante. O empresário, no dia seguinte, veio cumprimentar-me ao hotel e naquele momento fez-me assinar um contrato por três meses.
Pobre de mim… eu não estava preparada para mudar o reportório, pois pouco mais sabia do que os três bailados executados em Lourenço Marques, que foram a causa do meu desgosto na minha casa. Ao assinar o novo contrato, mal me lembrou semelhante coisa. Era natural, poi, com o que me sucedia, eu estava em tal estado, que não dava bem conta da situação. Sòmente uma coisa prevalecia em mim. Tinha triunfado. E eu que, no dizer do António, como mulher e com artista não tinha valor algum, ganhava noventa libras esterlinas por semana, tendo um contrato já de três meses e a seguir o empresário mandar-me-ia para Londres.
No entanto, que se passaria na minha casa? Esta era a pergunta constante que fazia. Não tardei muito em saber tudo, e de uma maneira que eu nunca poderia ter imaginado.
Os jornais de Johannesburg, que ainda estão em meu poder, faziam grande reclame da minha pessoa e minha fotografia em ponto grande à porta do teatro chamou a atenção do nosso Cônsul português, que nesse tempo era Salomão Seruya. Fui por ele reconhecida e, claro, deu-se o inevitável. Ficou admirado perante tudo aquilo, com cara de surpresa e de incredulidade. Pois seria possível? Ela no teatro? O Seruya, julgava-me no meu palacete em Lourenço Marques e de repente apareço num palco.
Não quero perder mais tempo em relatar detalhadamente as cenas a que isto deu lugar.
António veio imediatamente buscar-me, meio furioso, meio arrependido por tudo quanto se tinha passado e aqui começa o meu doloroso sofrimento, que foi luta entre a grande amizade, quase veneração, que sentia por meu marido, e o orgulho de mulher, que era bem a dignidade ofendida.
Muitas vezes, perante os pedidos dele e os conselhos do Seruya, me sentia fraquejar e quase a ceder, mas havia ainda uma outra força de grande alcance: o contrato por mim assinado com a empresa do teatro, o qual, caso não fosse cumprido, teria que pagar três mil libras de multa. A tudo o António estava disposto, pagaria o que fosse, contanto que voltasse para casa, mas eu, embora cheia de pena, compreendi que seria inútil recomeçar de novo a vida em comum, a nossa tranquilidade nunca mais poderia existir, pois tive o pressentimento que em qualquer ocasião e por qualquer motivo se reproduziriam as cenas de Lourenço Marques.
Não, já não poderia voltar à nossa vida antiga. Eu sabia muito bem que se tinha desmoronado completamente e para sempre a nossa felicidade de tantos anos; por isso entre essa luta titânica entre o dever e o querer, enchi-me de coragem e, uma e inúmeras vezes, recusei-me a acompanhá-lo, para voltar à nossa casa de Lourenço Marques.
A empresa do teatro não queria de forma alguma que eu prescindisse do contrato e assim, unindo-se aos meus desejos e a empresa dando-se conta da minha situação social, ficou assente que daria os meus vencimentos para beneficio das tropas aliadas (estavamos em 1916) e para os soldados portugueses e cegos da nossa marinha de guerra, ficando deste modo o meu marido na impossibilidade de reagir perante este procedimento. Foi um golpe de esperteza por partida empresa teatral a tal ideia, e , deste modo, e como o meu marido me estipulou a quantia de dez mil escudos mensais para viver em qualquer parte do mundo que eu quisesse, com a única condição de não mais voltar a dançar no teatro, podendo, se eu quisesse, dedicar-me ao ensino de crianças e mesmo assim mudando de nome, pois com a quantia estipulada de dez mil escudos mensais poderia viver mais as filhas, que ficariam sob a minha responsabilidade, ficando ele, perante os seus companheiros da Armada e mundo em geral, coma satisfação de que, se a sua mulher trabalhava, era por capricho e não por necessidade, e assim fica aqui bem esclarecido como e porquê passei a chamar-me Madame Britton.
A MINHA CARREIRA PROFISSIONAL
Fundei então a minha escola de dança clássica e rítmica em Johannesburg. Adorei o que trabalho desde o primeiro dia, embora o meu coração sangrasse pelo sucedido e pela minha casa. Enfim, o mal estava feito, não podia retroceder. A nossa felicidade estava destruída para sempre.
Havia um abismo entre as suas condecorações e a minha Arte, por isso, com essa luta diária entre a dor e o prazer, comecei a trabalhar com tanta sorte, que, em pouco tempo, consegui grande número de alunos entre as melhores famílias do mundo elegante de Johannesburg. O meu nome era desejado e falado em todos os jornais, com grandes e elogiosas referências (conservo-as ainda), mas eu, que tantas vezes afrontara no mato corajosamente a morte, tremia agora como uma criança ante a nova vida a seguir, completamente desconhecida e muito diferente daquela que estava habituada e que era um grande ponto de interrogação. Tinha momentos de verdadeiro desalento e a mim mesma perguntava onde é que estava a coragem e resolução que eu tinha demonstrado ao abandonar a minha casa.
Como já ficou dito anteriormente, recebi lições do grande Maestro Enrico Cecchetti e, aproveitando-me do seu ensinamento, a minha escola tinha e hoje ainda tem por base o método desse grande Maestro, o que me valeu entrar na vida profissional com grandes conhecimentos e bases sólidas de ensino. Por isso, antes de continuar esta narrativa, desejo patentear ao meu querido e inolvidável Maestro, nestas linhas, todo o meu agradecimento por todos os triunfos que desde o ano de 1916 venho obtendo no meu trabalho.
Continuei por alguns anos em Johannesburg, provando sempre ao meu marido que eu fazia “Arte” e não teatro, pois me dedicava sòmente a ensinar gente de bem, recusando aqueles que queriam ou faziam vida profissional; mas como a glória tem as suas exigências e o seu preço, por causa da celebridade que eu ia obtendo, um dia recebi um convite da Duquesa de Connaught, convidando-me a tomar chá, assim como a meu marido.
O nosso bom e compreensivo Salomão Seruya, que, nessa data, continuava a ser o nosso Cônsul português, foi quem, com seu bom senso e grande diplomacia, salvou a situação, convencendo meu marido de que tinha obrigação de aceitar aquele convite oficialmente. As nossas desavenças conjugais eram uma questão que a sociedade devia ignorar. Assim foi que, depois de tanto tempo, tivemos que nos enfrentar novamente, encontrando-nos dez minutos antes aa hora marcada e saparando-nos uma hora depois, quase sem ter trocado uma palavra. Ele estava mais branco do que as luvas que levava na mão e eu feita pedaços pela minha dor e desespero pelo que se estava passando.
Fiquei novamente só, pois o António regressou a Lourenço Marques depois de ter internado no Park Town School, em Johannesburg, a nossa filha Angelita. A mais velha, a Sarinha, estava interna num colégio ingles em Lisboa e eu fiquei seguindo rumo de vida, que, afinal, me foi imposto pelas circunstâncias.
Durante os primeiros anos, ou seja até 1918, nada de extraordinário tenho a referir, a não ser que, tendo sido atingida pelo flagelo dessa época chamada “pneumónica”, na qual, conforme a estatística de alguns jornais, perecerem 18 milhões de pessoas, isto é, mais 6 milhões que vitimas fizera a Primeira Guerra Mundial. Tive, como tantas outras, que sofrer as suas duras consequências. Para começar, estive, entre a vida e a morte, dois meses de cama, até o ponto de deitar sangue pela boca, e cada vez que vinha o médico visitar-me, dizia-me sempre a mesma coisa: “Não sei se nos tornaremos a ver, pois a minha vez pode chegar e não sei qual será o meu fim, por isso que Deus a ajude”. Morriam às centenas diàriamante, chegando o pânico até ao ponto de abandonar a cidade, indo para os campos, onde sem conforto algum, mas pelo menos ao ar livre, pensava toda a gente que existiria menos contágio, e eu, como o Colégio onde uma das minhas filhas se encontrava interna ia fechar pelo mesmo motivo, fui, quase sem poder suster de pé, procurá-la e com ela fugi como tantos outros para o campo, onde, por um feliz acaso, encontrei num meio-estábulo meio-taberna um quarto com uma mísera cama e com únicos lençóis que ali existiam.
A minha Angelita já vinha também contagiada e lá ficámos uma e outra à espera de morrer.
Numa noite de chuva e trovoada, a febre da pequena chegou a 40 graus e, nesse próprio momento, as outras pessoas, que, como nós, estavam deitadas pelo chão ou como podiam, ouviram o carro dos bombeiros, que se aproximava agitando uma grande campainha, e foram colocar-se no alto dum monte, onde, por ordem do Governo, iam levar-nos víveres e um desinfectante. Eu não podia ter-me em pé para poder chegar até onde eles estavam situados e, por outro lado, não podia deixar só a minha filha, que estava desvairada e todo seu afã era atirar-se da cama e ir para a janela. Finalmente, num momento de desespero, que tanto nos dá morrer como viver, tirei os lençóis da sua cama e rasgando-os em tiras fiz uma espécie de ligaduras e com elas e com a ajuda do dono da taberna, amarrei-a aos ferros da cama. Feito isto, fui como pude até chegar ao posto dos bombeiros, para trazer alguns alimentos e principalmente o tal desinfectante. Desnecessário é descrever a luta que ali se travava entre tanta humanidade para obter em mínima quantidade o que nos era necessário, não respeitando mulheres ou crianças. Era a luta feroz pela existência. Eu não tinha forças, nem podia chegar até lá e menos ainda suportar empurrões por isso deixei-me cair no chão, disposta a voltar sem obter coisa alguma para nós, mas um pobre homem, que me viu naquele mísero estado, compadeceu-se de mim e repartiu comigo os seus escassos alimentos, ajudando-me a levantar e descer o monte, onde os bombeiros se tinham instalado, por ficar assim no alto a bandeira da Cruz Vermelha, para que todos pudesse ver.
Tinha eu andado uns escassos minutos ou por falta de forças ou por ter tropeçado em qualquer coisa, o facto é que me vi novamente no chão e pior ainda com a garrafinha quebrada que continha desinfectante que o pobre homem tão generosamente me tinha oferecido.
Cheguei finalmente junto de minha filha, encontrando-a num estado que não há descrição possível, tendo a cara roxa, e gritando como se tivesse perdido a razão. Sentei-me perto dela, esperando a todo momento que deixasse de existir.
Três meses de passaram, vivendo neste estado, e quando melhorou decidi voltar para a cidade, ou seja, para Johannesburg, onde ao menos existiam os víveres que eram necessários para a nossa existência mas, o que nos faltavam eram pessoas amigas, que tinham desaparecido sem saber como nem quando: uma verdadeira calamidade!
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i Carmen de Brito, Páginas da Minha Vida (Lisboa: Bertrand, 1962), 46.
ii Ibid., 61.
iii Ibid., 71.
iv Ibid., 70.
v Daniel Tércio, “Cisnes em agonia e saiotes de bananas nos anos de 1920”, em Dançar para a República (Lisboa: Caminho, 2010), 275-306.
vi Carmen de Brito, Páginas da Minha Vida (Lisboa: Bertrand, 1962), 120.entrevista a Tânia Carvalho Tem de Existir Tudo
Ao longo de mais de duas décadas, Tânia Carvalho tem procurado na dança uma linguagem de afirmação. A sua aparente aproximação aos movimentos de vanguarda expressionista e surrealista do início do século XX, que privilegiaram práticas de intuição, transfiguração e delírio, não deixa de evidenciar um ténue anacronismo que a própria acata: “Se calhar sou um bocado antiga.” Esse reconhecimento, em conflito com o próprio advento da geração da Nova Dança Portuguesa, da qual é contemporânea, confronta-se com a insistência no trabalho artesanal de transmissão física tão caro à prática coreográfica.
A entrevista que aqui publicamos foi levada a cabo por Rita Natálio e João dos Santos Martins, a convite de Tânia Carvalho, no dia 13 de dezembro de 2019 na Fundação Calouste Gulbenkian, a propósito da sua nova criação, Onironauta, que entretanto estreava na Culturgest, em Lisboa. A ocasião foi aproveitada para falarmos do seu percurso, da Bomba Suicida, da sua obra vista de dentro e de fora, olhando para os processos de trabalho e a relação de intimidade com os bailarinos.
Transcrição: Sara Ramos.
BALLET PARA CORRIGIR OS PÉS
R: Fala-nos do teu percurso desde pequenina…
Eu vim de Viana de Castelo, de Perre, que é a aldeia onde cresci. As primeiras aulas que tive foram de ballet, com cinco anos. Foi o médico que mandou porque eu tinha os pés não sei quê… E aí começou a minha relação com a dança. Depois, na adolescência, o Balleteatro começou a fazer aulas em vários sítios – Viana do Castelo era um desses sítios. Comecei [na dança] contemporâneo para aí com 14 e adorei.
J: As aulas de ballet eram uma coisa regular?
Acho que era duas vezes por semana, e depois passou a três. Com a professora Maria José Araújo, de Braga, que ia lá dar aulas e fazíamos aqueles exames da Royal [Academy of Dance] — eram as aulas que havia nessa altura.
J: Isso foi em que ano? Eram só raparigas?
Por acaso até tive uma turma que tinha cinco rapazes. Sei que andava no ciclo. Devia ter dez, onze anos. 1986, 1987… Era eu e a minha irmã mais velha, Vanessa. Ela era muito boa, tirava 20 a todos os exames, e eu tirava 16. Já começava a inventar um bocado, que é a minha tendência, não fazer as coisas como deve ser.
J: Tu nasceste em 1976, logo após a revolução. Qual era a relação dos teus pais com essa transição política?
Não sei, eles vieram de Angola. O meu pai nasceu lá, a minha irmã mais velha também, a minha mãe foi para lá com quatro anos e voltaram em 1975. Eu não sei bem essa parte política deles, eles não falam muito dessas coisas.
J: O que é que eles faziam?
A minha mãe é médica. O meu pai é engenheiro, reformado. Quando eu era pequena eles ainda eram estudantes, trabalhadores-estudantes. A minha mãe dava aulas, o meu pai trabalhava nos estaleiros de desenho técnico.
J: Então o teu percurso nas artes veio por influência do teu pai?
Talvez, sim. Ele faz desenhos e toca e gosta muito das artes. Nós cantávamos com ele quando éramos pequenas.
SENTIR A COREOGRAFIA DA MÚSICA
O meu pai adora música e está sempre a tocar. Faz coleção de instrumentos, até faz construção de instrumentos agora. E eu adorava e estava sempre a experimentar de ouvido. Quis aprender piano, mas esse o meu pai não tinha, então lá me inscrevi numas aulas.
J: O teu pai era músico clássico?
Não, do que ele gosta mais é de jazz. Ele fez aulas no conservatório de Viana e depois estudou jazz. Toda a vida tocou. Fiz aulas de piano mas depois tive de desistir porque não tinha piano onde estudar. Chegava às aulas e sentia frustração. Mas a música sempre esteve presente.
J: Tocavas o quê?
Tocava flauta e harmónica, mas também experimentava cavaquinho, bandolim, coisas assim.
J: Era uma coisa que aprendias com o teu pai?
Não, era sozinha. Depois foi em Lisboa que voltei às aulas de música quando fiz o Uma lentidão que parece uma velocidade [2007]. Estive nove meses a aprender uma sonata de Mozart com um professor, o João Aleixo, porque queria experimentar sentir a coreografia da música.
R: É aquela peça que estás sempre sentada no piano, depois desces…
Depois saio do piano, uma espécie de fantasma… Eu ainda não tinha muita prática, mas a ideia era perceber quais são os movimentos que tens de fazer para aprender uma peça de piano. Ainda em Lisboa, tive aulas com o Diogo Alvim, aí já de composição, análise de música. Depois fui para Viana e comecei a ter aulas com o Yuri Popov. Depois, o erhu foi só agora para o concerto [Duploc Barulin, 2019]. Eu queria aprender um instrumento onde eu não visse as notas. Para fazeres a nota bem-feita é quase uma coisa psicológica. Não é como o piano, onde carregas no dó e sai um dó. Ali não, para sair a nota ainda demora algum tempo. A minha relação com a música é esta. Fui sempre bastante autodidata.
R: E achas que isso também aconteceu na tua experiência com a dança?
De fazer, foi com o Balleteatro, que na altura era bastante alternativo para o que havia.
J: Quem é que dava aulas?
A Vera Santos e a Manuela Ferraz. As aulas da Vera eram de dança criativa ou clássica. As da Manuela eram de contemporâneo. Tinha de tudo, iam pegar coisas de várias técnicas. Mas para mim na altura era muito novidade. Depois também tinha um lado criativo, eram aulas de sequência e movimento, mas também fazíamos o nosso trabalho e mostrávamos no teatro.
J: Tu ias todos os dias da aldeia para a cidade?
Na primária não, só quando ia fazer as aulas de ballet. Depois no ciclo é que já estava lá e fazia lá. Houve uma altura em que a minha professora se mudou para Esposende, então tínhamos de ir para lá três vezes por semana. Éramos um grupo de raparigas e os pais revezavam-se. Depois fui para as Caldas [da Rainha] e arrependi-me. Não me arrependi, mas senti falta da dança.
TAMBÉM QUERIA SER ESCULTORA
J: Como é que decides ir fazer Artes Plásticas?
Na escola tens de escolher uma área, não é? E eu escolhi Artes. Adorava pintar, desenhar… e eu queria fazer escultura, achava eu. Também queria ser escultora.
J: E era uma coisa normal ir para Artes nessa altura, em Viana do Castelo?
A maior parte das pessoas que estudava Artes ia para arquitetura. Para Artes Plásticas eram poucos os que queriam mesmo arriscar. Havia aquela coisa que ainda há — muitas pessoas acham que são áreas difíceis, que não vão encontrar trabalho.
R: E nessa passagem houve algum tipo de choque cultural?
Eu fiquei feliz, primeiro porque estava farta de Viana. Eu gosto imenso de Viana, mas tinha necessidade de ver mais coisas, queria experimentar mais… Nas Caldas encontram-se pessoas de vários sítios, todas com experiências muito diferentes, que é o que as pessoas experimentam quando vão para a universidade. É uma escola de/para artistas, e isso é muito gratificante, porque aprendes muito. E tens essa autonomia, andas a pé ou de bicicleta, fazes as tuas coisas sozinha, tens tudo perto e vives perto das pessoas com quem estudas. A minha cabeça começou a abrir imenso. Eu em Viana já tinha tido um professor de Artes que nos mostrava muitas coisas que não iam à cidade, o Fernando José Pereira. Levava músicas para ouvirmos… foi ele que me mostrou o John Zorn. E essa professora Manuela Ferraz também me mostrava coisas tipo Meredith Monk. Tudo isso me fez começar a ver outras coisas.
NÃO ESTOU BEM AQUI
J: E nas Caldas começaste logo a fazer uma coisa específica?
Não, no primeiro ano experimentamos tudo. A minha intenção era chegar ao segundo ano e mudar para escultura. Nunca chegou a acontecer porque depois conheci pessoas de Lisboa e mostraram-me a Escola Superior de Dança [ESD]. E eu vi aqueles bailarinos todos a passar e fiquei com imensas saudades. Inscrevi-me numa escola de dança lá nas Caldas. No verão estive em Viana a praticar para as audições da ESD e entrei. Depois, fiz o primeiro ano.
J: Isso foi quando?
1994 [1996]? E eu chumbei no primeiro ano da ESD. Ainda por cima tive negativa às três nucleares. Houve uma série de pessoas que chumbaram, reuniram-nos numa sala e disseram-nos que íamos chumbar o ano.
R: Chumbaram o grupo?
Sim. Mas foi bom, porque assim mudei para o Forum Dança. Às vezes há coisas que acontecem que nos parecem más, mas indicam-nos o caminho a seguir. Eu ainda voltei no segundo ano, mas pensei “não, eu não estou bem aqui…”. E foi na altura em que abriu o primeiro Curso de Intérpretes de Dança Contemporânea [1997], estava meio deprimida e pensei “vou arriscar…”. E aí entrei e foi estranho: na ESD sentia-me mesmo má, que não sabia nada… no Forum Dança comecei a sentir-me integrada, como me sentia nas Caldas.
J: O que é que te fazia sentir mal na ESD?
A não aceitação do meu lado criativo, na verdade. Era o que eu queria fazer, eu queria ser coreógrafa. E perguntavam-me se queria seguir criação ou educação e eu respondia criação, e eles achavam “não, tu tens de seguir educação, tens de ser professora porque para criação não dás”… Mas eu já tinha a certeza de que não queria ser intérprete, queria fazer as minhas criações. Então fui para o curso do Forum — porque queria ser criativa embora quisesse aprender técnica. Não queria que me ensinassem a fazer as peças, isso nunca correu bem comigo.
R: Quem foram os professores com quem tiveste contacto? Estamos a falar dos anos 90, por isso já temos a Nova Dança Portuguesa em processo, não é?
Lembro-me que tive o Wil Swanson, que foi bailarino da Trisha Brown. O Jeremy Nelson, a Ann Papoulis, de dança contemporânea… De ballet era a Cristina Santos, e também tivemos a Hiroko [Nishikawa], japonesa. Tivemos aulas com o André Lepecki, o António Pinto Ribeiro – essas mais teóricas –, o Ezequiel Santos, a Margarida Bettencourt, o Francisco Camacho, que fez a peça no final do curso, o Thierry Baë… Também tivemos aulas com o Rui Nunes, a Vera Mantero… A Cristina tinha esse interesse em formar bailarinos com técnicas fortes. E eu também queria aprender, não queria só ver, queria sentir como é que se faz.
J: E nesses dois anos houve alguma coisa que te marcou mais, de experiências, influências?
Pois, eu conheci o Filipe Viegas e a Clara Sena nesse curso. Foi aí que começou a Bomba Suicida, em 1997. Também a Maria Duarte, que fazia parte do Projecto Teatral e com quem colaborei.
BOMBA SUICIDA
R: A formação da Bomba vem da conveniência de poder criar projetos artísticos ou da vontade de colaborar em coletivo?
A ideia partiu do Filipe, ele tinha projetos que queria fazer e não tinha estrutura. A ideia não era trabalharmos coletivamente enquanto artistas, era ajudarmo-nos uns aos outros a desenvolver as ideias de cada um. E também não foi logo uma via para obter apoios. Por exemplo, eu fazia produção na peça do Filipe, o Filipe fazia figurinos na minha peça — estou a dizer ao calhas… juntávamo-nos, discutíamos ideias. Só mais tarde pedimos o primeiro apoio, quando acabámos o Forum. Acho que foi em 1999, quando fiz o Inicialmente Previsto.
R: Os apoios à dança também são relativamente recentes, não é?
J: Exato, é em 1996 que é criado o IPAE [Instituto Português das Artes do Espetáculo].
Pois, foi no IPAE ainda.
J: Então a Bomba começou durante o curso do Forum. E vocês aí já estavam a fazer peças identificados como Bomba?
A ideia da Bomba já existia antes do Forum Dança, o Filipe já tinha a ideia e já tinha juntado pessoas, mas ainda não a tinha formado. O Pietro Romani, a Cate [Catarina Pereira], arquiteta, entre outros. Depois as pessoas foram mudando. Fazíamos eventos, também com outros colegas, como a exposição 18711, em prédios inabitados…
J: E como é que funcionava esse sistema de cotas?
Não me lembro, mas não era para pagar a ninguém! Era só para termos materiais, folhas para escrever e coisas assim… Depois, com o primeiro apoio é que começámos a comprar mais. Lembro-me que a primeira coisa foi um telefone-fax. E foi sempre em casa do Filipe, ao início. Só mais tarde é que passou para a Interpress.
J: Disseste que trabalhavam nos projetos uns dos outros… mas não colaboravam artisticamente nos trabalhos?
Isso acontecia a nível de intérpretes. Eu entrei em peças do Filipe e da Mónica [Coteriano], a Mónica e o Filipe entraram em peças minhas, o Paulo Brás também trabalhou comigo. É que isto depois tem várias fases. Nessa altura já era uma estrutura, mas mais à frente passou a ser uma estrutura de produção mesmo. O primeiro produtor foi o Nuno Branco, depois o Luís Graça durante muito tempo. Depois ainda foi o Manuel Henriques durante pouquíssimo tempo, depois veio a Rita, e só depois a Sofia Matos, em 2006.
J: Quando entra essa figura do produtor, a ideia do coletivo dispersa-se?
Não, ainda havia um coletivo. Nós tínhamos um espaço, fazíamos programação, fazíamos o Sunday Show, fazíamos as festas, isso tudo era coletivo. O que não era coletivo, e nunca foi, era a criação individual de cada um. Nunca fomos um coletivo artístico, nunca fizemos peças juntos.
J: Então era uma espécie de cooperativa de artistas?
Era o que fosse preciso. Na verdade, estávamos ali para darmos apoio uns aos outros. Essa fase foi muito gira. Sentias “ok, tenho estas pessoas com quem posso contar, posso fazer as minhas coisas e estão aqui para me apoiar”, é mesmo isso.
J: Quando é que achas que isso mudou?
T: Não sei, acho que mudou quando o Filipe saiu. Sempre houve pessoas a sair e a entrar, mas quando o Filipe saiu passou a ser outra coisa completamente diferente. Era mesmo uma estrutura de produção e pronto, não há mais nada.
J: E o Filipe saiu por razões pessoais ou houve alguma coisa?
Não, não houve nada. Acho que foi mais um “já chega, estou cansado disto, quero outras coisas”. Ele foi viver para Itália, parou de fazer peças… Aquilo era divertido, mas era cansativo.
SUNDAY SHOW
J: O Sunday Show, como apareceu?
Começou com um evento que fizemos na sede do PSR [Partido Socialista Revolucionário, atual sede do Bloco de Esquerda], um evento que o Filipe organizou. Ele tinha essa personagem que era a Madunna, que fazia playback… Aliás, fizemos primeiro uma festa em casa de um amigo, depois fomos ao PSR. Lembrou-se que aos domingos não havia nada para fazer em Lisboa e lembrou-se de fazer o Sunday Show. Cada pessoa podia trazer um número… E nós embarcávamos nas ideias uns dos outros, por isso essa foi mais uma, que teve imenso sucesso. Depois cada um ia dando ideias de pessoas para convidar… E aí havia uma organização que era já muito estruturada entre nós. Eu tratava do bar, outro tratava dos bilhetes. Tínhamos uma forma quase natural de trabalhar uns com os outros.
J: Nessa altura era ainda o grupo fundador?
Não, aquilo esteve sempre a mudar. Aí já não estava a Clara, estava a Mónica… Também esteve o Ivo Serra, também passou por lá a Sónia [Baptista], o Tiago Guedes… Mas nessa altura era eu, o Filipe, a Mónica, o Luís Graça também esteve, a Sofia [Matos] e a Rita ainda apanharam Sunday Shows, o Manuel… Aquilo era uma das coisas que se mantinham, todas as pessoas fizeram parte. O Luís Guerra também apanhou, já no final. Depois tínhamos os satélites da Bomba, aquelas pessoas que estavam sempre lá e que nos ajudavam a fazer os cenários, como o Stiga, o Jorge Bragada na maquilhagem, o Aleksandar Protic com figurinos, pessoas que iam ajudar no bar, etc. Era um evento social.
J: E olhando hoje para esse momento, em que havia essa comunidade que circulava à volta do vosso coletivo, sentes falta desse espaço?
Não. Quer dizer, não me importava de ter outra vez essa experiência, mas foi importante e agora acontecem outras coisas, as coisas estão sempre a mudar. Eu percebo o Filipe, aquilo acabou, é preciso também experimentar outras coisas.
J: Mas sentes que, por não haver esses contextos de agregação independentes e geridos por coletivos de artistas, a comunidade agora está mais dependente das instituições?
Eu agora estou menos vezes naquele ambiente de festa com as pessoas, é verdade. Mas também não sinto falta porque eu trabalho com muitos bailarinos, e estamos sempre a fazer residências. Então há espaço para a convivência. Eu sei que as pessoas deduzem e sentem que não há um sítio para estarmos juntos ou não há muita troca de ideias…
J: E olhando desde a partida do Filipe até à desagregação da Bomba, o que é que aconteceu durante esse período como atividade?
Ainda mantivemos o estúdio durante um tempo. E depois passou a ser mesmo uma estrutura de produção, não fazíamos já eventos, não programávamos outras pessoas… Cedíamos o estúdio, estávamos a produzir as nossas peças e mais nada. Depois eu e o Luís [Guerra] decidimos ir para Viana do Castelo, sair de Lisboa durante um tempo, e ficou ainda mais separado.
J: Isso foi quando?
Foi na altura em que fiz Icosahedron e Olhos Caídos, 2010, 2011 e 2012. E aí senti-me mesmo afastada das pessoas, porque a Viana ninguém vai. A Bomba, claro, ficou mais dispersa. Nós reuníamo-nos às vezes, mas não tantas vezes como antes.
J: Nessa altura eras tu, o Luís e a Marlene [Monteiro Freitas]?
Sim. Tínhamos duas produtoras, iam dividindo o trabalho, e eram três artistas. Era só isso, não havia mais nada.
NOVA TÂNIA E TÂNIA ANTIGA
J: O Inicialmente Previsto [1999] é uma peça que tu escolheste para ser a primeira. O que era essa peça?
Essa foi a primeira que foi apresentada como uma peça, para encher uma noite. Era uma peça que começava várias vezes. Por exemplo, fazíamos uma parte de um filme de F. W. Murnau em duplo como se fosse para ver em 3D; fazíamos uma parte que eu fui buscar à Mesa Verde [Kurt Joss, 1932]; uma parte mais boneco japonês… Quando comecei a fazer estes trabalhos, tinha vontade de fazer coisas há tanto tempo que não sabia o que escolher.
J: E todas essas referências que aparecem aí são coisas que já estavam acumuladas?
Eram coisas que eu ia vendo. No Forum tínhamos acesso a algumas coisas que os professores mostravam, e eu também ia muito à Cinemateca. Não fui à procura durante a peça. Durante a peça parece que prefiro parar e deixar a coisa…
J: Mas essa referência à Mesa Verde era uma coisa que tinhas de memória ou que vocês apropriaram?
Usei como referência, vê-se o que é, mas não está copiado. O filme foi copiado. Os movimentos, mesmo. Quem conhecia bem o filme percebia o que era. Mas havia uma voz off. Isso não existe no filme.
J: E depois desta peça que são vários inícios de peças, nas peças seguintes elas tornaram-se uma coisa só?
Não, ficaram por ali. Foi uma experiência.
R: E a New Tan[2001]…?
É Nova Tânia, só que ninguém sabe.
R: Também tem que ver com inícios e trocas e encontros, mas com um elemento de coreografia mais social, digamos. Como se estivesses à volta de uma mesa…
Por acaso lembro-me de uma coisa dos [Peter] Fischli & [David] Weiss que é um contínuo de reações químicas, um vídeo que nunca para. Lembrei-me de fazer uma peça que já tivesse começado antes, em que as pessoas entram e está a acontecer, e não veem o fim, vão-se embora e a peça continua. E esta peça tinha isso. Tinha os bodybuilders que estavam na primeira fila. Quando ainda estava a decorrer a peça e começava uma música em crescendo, que dá vontade de ficar, eles levantavam-se e mandavam as pessoas sair. E algumas não queriam, então eles pegavam nelas ao colo e punham-nas fora da sala. Há muito este movimento “entra e sai”, porque as pessoas são obrigadas a sair – entre aspas, claro, porque a peça acaba ali, mas eu queria mesmo a sensação de que não acaba. Tanto que houve pessoas que vieram falar comigo a dizer “não é justo, eu paguei o bilhete, queria ver a peça toda”.
J: E porque é que era a Nova Tânia?
Eu não sabia que nome pôr e o produtor dessa peça, o Nuno Branco, escrevia sempre “New Tan” e ficou assim. Essa peça tem que ver comigo nessa altura, já não tem.
J: O que era a Tânia nessa altura?
Não sei, era uma Tânia que saía muito à noite. Faz-me lembrar guarda-costas, seguranças de discoteca… Não que na altura o tenha feito a pensar nisso, mas vejo agora que tem muito desse mundo. A música também é mais batida, mais punk, não sei.
J: Isso tem alguma proximidade com a outra peça que era um dueto em que inicialmente vocês dançam a pares, a Direção Oposta[2004]?
R: Chamou-me a atenção nesse trabalho uma certa ligação com o movimento conceptual da dança. E quando estavas a falar da peça com os , fez-me pensar numa certa linguagem desse período, que era pensar a dança com a pergunta “o que é que as pessoas esperam da dança?” ou“quais são as expectativas da dança?”. Havia muito a desconstrução de aceções, tipo “eu não vou dançar como vocês esperam”, “não vou fazer o seria de esperar”, “não vou começar como teria de ser”…E são coisas que depois não vejo tanto nas tuas outras peças de grupo, mais ligadas ao expressionismo e à intuição…
Essa peça tem muito movimento. E na altura sentia que se calhar fazia movimento a mais nas minhas peças. Ainda sinto um bocadinho.
R: Também em relação às pessoas da tua geração?
Sentia isso, mas não havia nada de mal. Ainda estás a crescer, ainda és jovem e ficas a pensar “se calhar sou um bocado antiga”. Mas agora não sinto isso, sinto que sou as duas coisas.
VER E SER VISTA DE FORA
R: Gostaria de pensar esse “sentir-se ou não antiga”; as tuas ligações, afinidades ou repulsas com pessoas que partilharam contigo espaços de trabalho, pessoas com quem consegues ou não conversar…
Eu acho que consigo falar com toda a gente. Porque se eu for a ver temos todos a mesma base… Agora, com quem me identifico mais não sei dizer. Eu tenho muita dificuldade em ver o agora de fora.
R: Mas em relação ao passado, nesses primeiros dez anos, consegues identificar artistas que tinham que ver com o que estavas a fazer ou que não tinham nada que ver…? Quando falas de te sentires “antiga”, isso é em relação a um contexto?
É em relação também à história geral, não só de Lisboa. Tem que ver com eu ainda usar movimentos que são da dança clássica, ou da dança moderna… E também tenho muitas em que coreografei tudo. Claro que depois o intérprete interpreta, mas para grande parte da peça eu levo a coreografia feita, e é por isso que digo que é a forma antiga. Senti que estava desenquadrada. Porque eu trabalhava com pessoas e éramos nós — intérpretes — que pesquisávamos, improvisávamos, íamos à procura das coisas… E eu não me sentia bem a fazer isso. Enquanto intérprete sim, mas enquanto coreógrafa tive dificuldade. Gosto de imaginar, experimentar e depois passar o movimento já mais ou menos feito… Agora faço as duas coisas. Já passou essa fase em que estava mesmo obcecada em marcar tudo. E por isso sentia-me antiga, mas ninguém mo disse. Até porque eu trabalhei com a Vera [Mantero] e gostei, com o Francisco [Camacho] também… com o Projeto Teatral. Eu acho que tem de existir de tudo.
J: Mas, no início dos anos 2000, quem eram as tuas pessoas mais próximas que estavam a produzir dança?
Eu sentia-me próxima das pessoas da Bomba, mas não quer dizer que artisticamente fossem as mais próximas.
J: E havia algumas pessoas ou linguagens que tu rejeitavas?
Não, há linguagens que não uso, mas não quer dizer que ache que as pessoas não o devam fazer. Eu não tenho essa tendência de dizer “isto não deve existir”. Se existe é porque tem de existir. Aquilo que te sentes confortável a fazer é uma coisa, agora ver… eu por mim vejo tudo. Então em dança, mesmo em peças que possa não gostar, gosto sempre de ver os bailarinos, de ver pessoas a dançar.
J: Voltando à necessidade de transmitir vocabulário que tu própria criavas, e à sensação de seres antiga… Isso coincide com o momento em que os teus trabalhos começam a ser apoiados por instituições?
O Inicialmente Previsto foi o primeiro trabalho apoiado, e aí ainda estava com a dúvida sobre como proceder em relação a isso. Porque, na verdade, mesmo quando eu marco eu olho para os intérpretes e tiro imensa coisa deles. Eles dão-me coisas mesmo sem saberem. O meu problema era ir para o estúdio ainda sem as coisas resolvidas. Aí não sabia bem o que fazer.
MODOS DE PRODUÇÃO
R: Todas as tuas peças foram apoiadas?
Eu fui apoiada até a Bomba Suicida acabar [2014]. Às vezes alguns concursos ganhávamos, outros não… Quando a Bomba acabou não tive mais, até agora.
R: Então é só com coproduções que estás a trabalhar agora?
Sim, desde 2014. E também alguns apoios da Gulbenkian, da GDA… Os da DGARTES não têm corrido bem. Eu acho que não sei fazer candidaturas com aquela fórmula. Também me sinto responsável, não é só do lado deles.
J: Como é que sentes que o teu trabalho foi recebido no início?
Isto anda sempre assim às voltas. Acho que começou com algum furor, fui bem recebida. Quando comecei senti que as pessoas “aderiam”. E tinha imensas pessoas que iam ver, não era só meia dúzia de gatos-pingados. Acho que sempre houve interesse no meu trabalho; mesmo que possam não gostar. Quando comecei senti forças opostas, como toda a gente sente quando há gerações diferentes, mas que depois se diluíram.
J: Qual é que era essa oposição?
Por exemplo, quando recebi o primeiro apoio saiu no jornal uma crítica ao facto de sermos apoiados tão “jovens”… E aí senti “ah, que chato”.
J: Foi uma crítica de alguém?
Sim. Os apoios da DGARTES dão sempre barulho. Mas como era a primeira vez que estava a concorrer, ainda não sabia que existiam estas coisas.
J: É curioso porque nesta altura [anos 2000] também o Miguel Pereira, que estava a ter aclamação com o seu trabalho, concorreu e não teve apoio. E o Jorge Silva Melo escreveu um artigo no Público em que dizia algo como “Miguel, vai-te embora” porque havia um problema de reconhecimento do seu trabalho pelas instituições.
Pois, eu percebo que se pensem essas coisas. Isto é um concurso, só concorre quem quer e sabes como é que ele é feito. Sabes que podes ganhar ou podes não ganhar, sabes como é avaliado. Foi chato, mas, quer dizer, tive apoio nessa altura em que ninguém me conhecia e agora não tenho.
J: E de onde é que sentes que houve interesse pelo teu trabalho? Quem foram as pessoas que tentaram puxar, nesse início?
O Gil Mendo e o Mark [Deputter]. Não posso deixar de falar do Espaço Experimental, da Sofia Neuparth. Foi muito importante para mim na altura. Hoje em dia tens imensos sítios, mas na altura as pessoas iam mesmo ver quem estava a aparecer. O Gil Mendo viu-me aí. Foi muito importante. A Madalena Victorino também me deu força, na altura, no Centro de Pedagogia do CCB. Claro que depois apareceram outros, como o Rui Horta…
VER DE DENTRO E VIRAR
R: Estava aqui a pensar no teu percurso. Tenho a sensação de que o Orquéstica [2006] marca um certo salto ou mudança para ti. Pelo menos em termos mediáticos começou a falar-se muito do teu trabalho… fala-se muito da “linguagem Tânia Carvalho”, como se tivesses um estilo muito próprio.
Eu quando falo com amigos e pessoas com quem estou à vontade, a sensação é que não tenho um estilo. Para mim cada peça é muito diferente da outra. Depois olho para trás e consigo encontrar essa coisa… É complicado explicar, porque isto é como o pensamento, vamos pensando…Não tenho um objetivo de fazer uma coisa que só eu é que faço, até porque eu uso coisas muito cliché. O que eu tento é estar atenta àquilo que aparece. Gosto de ir buscar imensas coisas, mas depois no momento de criar tento esvaziar-me para as coisas aparecerem. Não sei explicar como é que as coisas aparecem.
J: O que é que aconteceu nessa peça que se tornou uma viragem?
Foi um bocado polémica, na verdade. Ainda hoje há quem me venha falar dessa peça. Dizem: “A Orquéstica é que foi.” E também há quem diga que foi a pior.
R: A memória que tenho é que “deu que falar”, e foi aí que começámos a ouvir falar da tua forma de construir peças, de estar muito presente uma linguagem “da dança”, de gerir grandes grupos, de ter um mergulho na “expressão”, etc… e, portanto, de teres uma linguagem afirmativa. Nos dois sentidos: havia pessoas que não gostavam nada porque estavam mais na onda do conceptualismo, e pessoas que gostavam imenso porque diziam “ah, isto sim é dançar!”.
Pois, eu estou no meio dos dois lugares, não sei bem onde me pôr e não tenho de me pôr em nenhum. O Orquéstica era um bocado assim, tinha uma parte muito experimental, com imensas caretas e depois as caras iam-se alterando e transformando os movimentos. Mas tinha um lado muito formal de técnica de dança. Deu que falar porque estava no meio, não consegues “classificar”. Agora já consegues, provavelmente.
R: Lembro-me também da peça contigo e com o Luís [Guerra], onde os movimentos eram associados a uma coisa maquinal, quase como ser marionetado pela coreografia. Por um lado era orgânico, por outro lado era maquinal.
De Mim Não Posso Fugir, Paciência foi muito marcante, porque tinha tudo: tinha movimento, tinha momentos de loucura, momentos de circo… O que me dizem muitas vezes é que não conseguem classificar o meu trabalho, e às vezes também sinto isso. Eu gosto tanto de trabalhar com bailarinos clássicos como com pessoas que nunca fizeram dança. Cada um traz coisas diferentes. Mas a Orquéstica também foi a primeira peça em que tive apoio financeiro para fazer uma peça com tempo, e acho que isso se sente, há ali mais maturidade do que nas peças anteriores.
RAZÃO E INTUIÇÃO
R: Estava a pensar que, em algumas entrevistas, e também num dos teus trabalhos mais recentes – Captado pela Intuição [2017] –, a palavra “intuição” parece estar muito presente. Mas como considerar a intuição nos teus trabalhos de maior dimensão, que são muito geométricos e matemáticos? Onde vive a intuição quando constróis o movimento e depois passas essas células de movimento a outros?
É uma coisa muito abstrata. Formas que passam umas pelas outras… E é intuitivo, porque tu imaginas as coisas e elas quase que se mexem sozinhas. Quando eu falo em intuição tem que ver com tentar assentar e ver o que é que aparece. Às vezes estás a escrever um texto e falta-te a palavra certa. Depois relaxas e aparece. É a mesma fórmula. E os esquemas matemáticos, eu adoro fazer. Porque, para mim, os números e as formas trazem muitas emoções, têm energias próprias. Um quadrado tem uma energia, um círculo tem outra, não dá para escapar. É uma comunicação direta de formas. Brincar com isso é como fazer música. [Os bailarinos] parece quase que deixam de ser pessoas, são peças.
J: E essa é a ideia da Orquéstica? Que os bailarinos deixam de ser pessoas e passem a ser essa composição de formas?
Sim, a peça começa de uma forma muito musical. Nós estamos a fazer som com o corpo. O meu trabalho de dança é sempre muito pensado através da dança. A não ser em casos particulares em que me pedem que faça uma peça sobre algo, como foi o caso da Tecedura do Caos [2014]. O meu tema é sempre como é que eu falo com a dança, é como se fizesse uma música sem letra. A Orquéstica era um bocado assim: como é que esse som se vai transformando com as formas da cara a possuírem o resto do corpo.
J: Mas, por exemplo, em peças como De Mim Não Posso Fugir, Paciência ou Captado pela Intuição, eu sinto que há nestes títulos uma espécie de manifesto, que seria não apenas aquilo que tu acreditas que é o teu trabalho, aquilo que tu promoves como uma forma de fazer, mas por outro lado quase uma posição face a um trabalho mais conceptual na dança. Como é que tu te relacionas com isso?
Quando falo da minha forma nunca estou a dizer que é mais eficaz ou melhor ou que é em oposição a alguma coisa. Eu adoro ver imensas coisas que não têm nada que ver com isto. Adoro ouvir pessoas a teorizar sobre arte e eu não gosto de o fazer. Mas não quer dizer que não leia coisas sobre isso, que não ouça pessoas a falar; mas eu falar, dar uma conferência, não me peças porque eu não vou. É a mesma coisa com o trabalho: é a minha forma de estar, mas não é em oposição aos outros, porque eu preciso dos outros diferentes de mim, senão não consigo identificar-me.
R: Para mim é muito conciliável a intuição e a razão, ou a intuição e a teoria. E tenho a sensação de que a forma como falas da coisa é como se já houvesse uma certa oposição, como se houvesse algo que é mais da ordem do movimento e que seria menos texto, menos temático, ou puro som, puro movimento; e depois algo que seria então mais temático, mais textual, mais teórico.
Isso é a forma como as pessoas interpretam as coisas que eu digo. Eu acho que a intuição e a razão vivem juntas… O que eu digo é: quando estou a fazer peças, eu falo sobre as coisas depois de elas aparecerem, e nunca antes. Vem-me uma ideia ou uma imagem e depois começo a pensar sobre ela. Agora, teorizar sobre as coisas, adoro que o façam, adoro ler o que escrevem sobre as minhas coisas, mas escrever não. Por isso é que eu digo: não sei mais do que a pessoa que está sentada a ver. E se for eu a dizer o que é que eu acho que esta peça é, a pessoa que está a ver vai achar que aquilo é 100% certo. Mas eu posso ser uma coisa hoje e outra amanhã, e aquela pessoa só viu a de ontem e vai ficar fechada naquele círculo. Enquanto se for outro teórico a falar sobre a peça, ela sabe: é outra pessoa que está a falar sobre aquilo, isto é uma interpretação.
AS COISAS VÊM DOS BAILARINOS
R: Tendo em conta que já tens mais de 20 peças, dá vontade de perguntar: de onde vêm as imagens; de onde vêm as coisas?
Eu acho que vou buscar muito às pessoas com quem estou a trabalhar. Eu olho para os bailarinos e vejo um possível movimento com aquela pessoa específica. Ou com aquele grupo. E aí há essa comunicação que é sensorial, e a peça vai para um lado qualquer através disso. Eu olho para as minhas peças e vejo, por exemplo, a S [2018] e a Olhos Caídos [2010] e não vejo ali a mesma coisa. A Olhos Caídos foi feita para mim e para o Luís, e a S foi feita para os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado, tem toda uma história do ballet ali… Mas foi por olhar para aqueles bailarinos e ver os espetáculos que eles fazem que as coisas me surgiram. E, por exemplo, com os Dançando com a Diferença [Doesdicon, 2017] chego lá e vejo outro grupo e traz-me uma coisa completamente diferente, e a peça vai para outro sítio.
J: Mas no teu trabalho recorrentemente convidas os mesmos bailarinos. Portanto, também há uma vontade de recuperar algo que conheces desses bailarinos e com o qual te identificas e que vai construindo uma certa linguagem, que não é só tua, também é deles, e que resulta da interação contigo. Ou seja, eles também respondem aos teus impulsos de determinada forma porque eles já são, em certa medida, a tua companhia.
Sim, alguns são. Estás a ver porque é que eu gosto que haja teóricos, porque eles dizem as coisas que tu não consegues dizer. Mas o que é que eles [os bailarinos] têm de específico? Eu acho que são pessoas que conseguem ser muito eficazes, tanto no desenho como na expressão. Imagina, eu marco um movimento, e até pode não estar muito bom, mas eles melhoram sempre a coisa. Gosto tanto de os ver dançar que quando ponho os movimentos neles acho que os movimentos ficam sempre bem. Mas não sei exatamente porquê. Também nunca me debrucei muito sobre porque é que gosto de tudo o que fazem, não consigo perceber quais são as características. O Luís Guerra, a Marta Cerqueira, o Bruno Senune, o Cláudio Vieira e o André Santos, entre outros que me vão faltar aqui…
José Maria Vieira Mendes Coreografia da Frase
No dia em que a frase começou foi vê-la espreguiçar-se e sem hesitação ou vestígio de dúvida expandir-se não parar mais de atuar nunca mais querer acabar não havia ponto final que a interrompesse vírgula ou fim de linha que a travasse e se é verdade que a frase era curta ao princípio não se pode dizer que tímida mas discreta e foge-se à psicologia ainda o dia não tinha nascido e já ela sabia ao que vinha a facilidade com que encadeava e organizava cortando o espaço e estabelecendo-se há quem hoje a acuse de ambição desmedida mas a autoria da medida para medir a desmedida é anónima e portanto vale o que vale é o que responde a frase à crítica e avança e descobre as suas possibilidades e impossibilidades que talvez sejam nenhumas a frase rapidamente encontra soluções para os obstáculos abranda por instantes e logo arranca quando encontra um desvio alternativa e retoma o percurso tem sido assim tudo se vai tornando mais fácil na vida da frase à medida que percebe do que trata o mundo e qual o assunto da vida entre aspas parece-lhe tudo tão compreensível e tão fácil de descrever é só uma questão de tempo ou seja uma questão de se alongar e por isso a frase segue e escorrega em direção ao horizonte infinita como uma serpente a rastejar a prolongar a única forma possível de existir quando se é frase e que é estender-se numa só direção não há volta a dar mesmo que encontre um ponto de interrogação e encontrou e escorraçou alguns quando um parêntese nela se encaixa e pede licença para especificar ou acrescentar um pedacinho de espaço para existir a frase continua e expande-se por todo o lado seja o espaço uma nuvem uma estrada uma aldeia um cano subterrâneo ou uma nota de rodapé nada escapa à capacidade de expansão da frase e rapidamente deixa de haver lugar onde a frase não esteja a atuar cumprimentam-na com o respetivo travessão bom dia como está cara frase tem passado bem conversas de circunstância umas vezes mais longas outras mais de passagem gente a reconhecer a existência da frase que nunca foi só um corpo de passagem mas sempre um que passa fica continua fica vai ali fica fica não abandona fica e ocupa e a frase deixa-se estar no sofá lá de casa no banco de jardim na paisagem e no museu e na gaveta das meias e no espírito das coisas lá está a comunicar a existir foi para isso que nasceu para ser entendida e lida e vista e ouvida e reconhecida quem não a reconhece basta perguntar na rua e a rua responde porque a rua é a frase que entretanto se estendeu rumo a tudo no auge da sua maturidade atuante confiante do seu lugar a frase não hesita um único dia já trata os planetas e galáxias por tu o mesmo com a ancestralidade mais ancestral a do início da vida as primeiras bactérias tudo isto a frase conhece e esta segurança permite-lhe acolher sem exceção e preencher sem falhas o que há para preencher como se todos os lugares estivessem à sua espera todos os corpos e não corpos a frase sente-se feliz embora nunca o afirme mas sabemos que ela está feliz porque nunca receia até ao dia nem ela própria sabe quando foi mas há um dia em que um ponto de interrogação pela primeira vez se consegue fazer notar no mesmo momento em que um ponto e vírgula se atravessa distraidamente pelo caminho e talvez tenha sido esta combinação ou apenas uma inevitabilidade do tempo porque pode fazer parte da idade da frase chegar o dia em que alguma coisa corre mal a frase sentiu-se incompreendida aquela sensação de se afirmar uma coisa repetidamente e o entendimento ser outro e não há maneira de bater certo não bate certo e a frase queria tanto que tudo batesse certo porque sempre bateu certo não há que enganar esta sou eu pensava a frase quando se via ao espelho mas naquele dia olhou-se ao espelho e afinal não abre aspas o que era aquilo que via fecha aspas perguntou-se sem acesso ao ponto de interrogação e a pergunta não vale fica a meio o reflexo no espelho tornou-se irrespirável a frase vacilou pela primeira vez na sua história e viu no seu reflexo uma busca obstinada para indagar a profundeza da escuridão noturna medir as intermitências da luz da escuridão sempre em busca de um sinal que atravesse a noite porquê esta obsessão perguntou-se a frase com todos os pontos de interrogação que entretanto se aproximaram e se plantaram em seu redor um canteiro de interrogações a olhar cada palavra daquela frase serpente milenar e o olhar iluminava toda a ignorância que a frase desconhecia ai de mim pensou ela entre aspas e pela primeira vez não o escreveu coisa estranha uma frase não escrita o que quer isto dizer perguntou mais uma vez ai de mim que gesto é este que agora faço o que é isto sou eu uma catadupa de perguntas a frase julgara-se eterna e pela primeira vez ao olhar o horizonte pensou em fim nunca antes essa palavra lhe ocorrera quanto mais a ideia mas agora tudo mudava e a frase estremeceu com estas três letras a frase perdia força a frase sentia-se a definhar que absurdo não faz sentido e por isso não se conformava e resistia mas o destino da frase está traçado a frase perdia a cada tentativa de a frase perdia perdia deixou de saber e deixou eu era só uma frase pensava procurando convencer-se da humildade da vida tornada natural depois de já ter sido sábia tentar agarrar-se ao que tem para que o mundo não lhe escape a frase sentia a fissura entre ela e o chão perdia perdia perdia o sentido no intervalo que se abria espaço entre linhas vazio convertido em nada foi a única ocupação que a frase encontrou para tanto branco que se interpunha pior que os parênteses de antigamente carregados de palavras que cuspiam quando abriam e se esquecia quando fechavam já esta ausência toda era de outra espécie trazia consigo um desligamento afastamento uma autonomia incógnita a frase perdia os filamentos ou nervuras perdia perdia perdia raiz ai de mim que me sinto a não pensar não parece razão não faz sentido não tem continuidade perdeu a aderência do mundo ao mesmo tempo que não havia leito por onde correr nem estrada para seguir perdi a direção ai de mim a orientação escorrego e a forma sobretudo a forma a ordem desequilíbrio permanente um chorrilho de queixas da boca da frase para fora e sem aspas a pontuação à solta e por conta própria vai bailando traquinices de liberdade a frase olha-se ao espelho e vê-se a envelhecer ela que sempre se achou livre é agora agora agora soluços afetam a frase descontinuidade perdi capacidade de atuação passeio pela desordem estou a frase não chega ao fim mas retoma para mostrar que está viva sopros de desespero esta opção talvez não seja a adequada não seria mau deixar-se ir e perceber o que encontrou mas a frase não nos ouve terá de fazer o seu luto para aceitar as fraturas e com o tempo irá reconhecer que o futuro está no que nos escapa e não nos pertence não em mim mas lá fora no que a frase não vê nem sabe descrever a vida não está só na vida há reticências e etcéteras e a frase sem se aperceber vai-se sentindo preparada e fica mais próxima de um relaxamento que lhe pode devolver os dias mesmo sabendo que não será para sempre nada é para sempre os livros também acabam e só nos resta recomeçar e podemos não ser nós a recomeçar é o mais provável tudo tem o seu fim querida frase ai de mim suspira mas sorri também com o suspiro porque afinal de contas não está para breve nunca irá estar para breve mesmo que esteja o final não se anuncia será sempre fabulosamente surpreendente fim.
Jean Capeille Entre as Linhas das Colunas: James Waring, a colagem e a acreção
PT
Em dezembro de 1956, a revista estadoudinense Dance Magazine i abre o seu número com uma rubrica – News of Dance and Dancers – em que dá conta de acontecimentos de todo o género (notícias matrimoniais, anúncios institucionais, boletins de saúde) relacionados com intérpretes da época. Por ocasião do aniversário de Mary Wigman, Rudolf Laban escreve um texto que a redação resolve publicar nas “Cartas dos leitores”. To Mary partilha a página com um requerimento de Tina Miruzzi que pede à revista para informar os leitores sobre eventuais oportunidades profissionais que libertem “as aspirantes a bailarinas clássicas” da frequência dos palcos televisivos e da off-Broadway. Talvez por puro acaso editorial, as páginas que precedem este apelo dizem respeito à interação entre a dança, a televisão e o cinema. As seguintes, consagradas a “bailarinos que pintam”, parecem contradizer o seu desejo de autonomia. A publicação reproduz uma colagem de James Waring acompanhada de um breve comentário: “Este bailarino e coreógrafo, de uma qualidade pessoal única, há 15 anos que produz ‘imagens, muitas das vezes colagens, porque é disso que gosto’. [E conclui…] Tal como a maior parte dos bailarinos, acha isso relaxante”iii. No que a isto diz respeito, a prática não se dissocia nem do tempo nem da matéria do seu emprego: “O trabalho de Waring, no serviço de correspondência do Time & Life Building da Rockefeller Plaza – no turno da manhã, o que lhe deixava o resto do dia para coreografar, ensaiar e dar aulas –, fornecia algum do material para as suas obras”4. Por uma estranha coincidência, a Dance Magazine também se interessou por um filatelista que acumulava representações de dança em selos. Como poderia James Waring reler o título desse artigo, “A dança faz serviço postal”v, sem o relacionar com a sua própria situação?
A sua colagem, Sem Títulovi (1963), evidencia e contesta a linha que separa o pessoal do público. A colagem junta uma tipografia anónima ao traçado singular de uma escrita. Coloca lado a lado o tempo convencional (a que faz menção o carimbo postal) e o tempo subjetivo da composição. Deixa transparecer o nome do autor e corta-o com uma forma oblonga que atravessa o envelope. As descrições canónicas da história da colagem chamam a atenção para o encontro entre superfícies estranhas a si próprias. A unidade das composições parece assim ameaçada pelo “confronto” entre “materiais heterogéneos”; a sua planura ferida pela “mistura” de texturas; os fragmentos que se agregam são “empréstimos”, “recortes” ou “subtrações” de outras realidades. Essa incompletude do fragmento encontra o seu equivalente coreográfico numa outra coluna da Dance Magazine, na qual Doris Hering comenta as peças do autor de colagens:
James Waring desenvolveu um estilo coreográfico único. Tem a qualidade fragmentária delicada da colagem. E cada bailarino parece envolvido por uma aura invisível, apenas com uma voz longínqua como companhia. A música, os outros bailarinos, o público, estão todos no exterior dessa aura. Esta imagética é pouco comum e poderia ser emocionante se o projeto estético do Sr. Waring fosse mais claro. […] Enquanto duas silhuetas deslizavam silenciosamente para a frente e para trás no palco […] era como se presenciássemos um ritual misterioso que estava de certa forma ligado ao nascimento do movimento. Mas assim que a música começou, os bailarinos foram cada um para seu lado e instalou-se uma esterilidade emocional. […] Como se dançasse numa caixa insonorizada, uma rapariga girava intensamente enquanto um rapaz, a olhar para o público, enchia as bochechas de ar. […] Em Ornaments [1957] e na reposição de Intrada [1955], o Sr. Waring regressou aos seus queridos palhaços e ragamuffinsvii pintados, que tremem isolados antes de se juntarem para um pequeno brilhareteviii.
A voz distante do partenaire ausente, o silêncio que envolve a bailarina ou a solidão dos palhaços: tudo isto contribui para abstrair os intérpretes do palco e lamentar, no registo da “esterilidade”, um encontro que não acontece. Os seus movimentos são autossuficientes e ocorrem num espaço onde, tal como numa colagem, coabitam realidades heterogéneas. A recear uma realidade escondida. Para criticar a opacidade da peça (o “projeto estético” não é “claro”), será que o artigo não recorre, na sua descrição, ao próprio artista, que, num texto publicado dois anos antes no Village Voiceix, escreve: “Se as danças de [Merce] Cunningham têm ‘histórias’, elas acontecem provavelmente fora do palco, longe dos olhos do público”x? Uma outra colagem suaxi justapõe um palco e o seu inverso. No topo de uma composição em forma de fotograma, James Waring coloca duas bailarinas cujos movimentos parecem restringidos aos limites da moldura. A imagem deslavada torna as suas presenças fantasmagóricas. Por baixo, três secções (cujos círculos dentro de quadrados evocam o invólucro de um preservativo) repetem, com uma serialização aproximativa, sinais que indicam a saída: “EXIT; EXIT; EXIT.” Wayne Koestenbaum associa o espírito da colagem às subjetividades das “opera queens”, esses amadores de ópera fechados no corpo bidimensional das suas divas de papel: “Para fazer uma colagem: recorto as imagens que me excitam, que revelam o meu passado, que contam os meus segredos”xii. Na sua relação com a imagem, as opera queens contestam a narrativa das epopeias formalistas, na qual a materialidade da colagem (volume/superfície) abriga um dilema existencial (ilusão/realidade). Elas singularizam fragmentos que, desde logo, já não se resumem à sua falta.
Será esta a preocupação que resulta do encontro entre a dança e a colagem e que leva a que o crítico Clive Barnes se refira, no New York Times, a uma duplicidade intrínseca em James Waring? Escreve Barnes: “No interior deste coreógrafo de vanguarda estava, como eu já suspeitava, um clássico não arrependido a tentar sair [struggling to get out]”xiii. Se a expressão ”get out”, em lugar de ”come out”, deixa pouco espaço para a ambiguidade, já a perturbação, instituída pela vanguarda como facto público, que associa a dança clássica a uma pulsão dissimulada, dramatiza a oposição entre culturas coreográficas dentro do registo confissão/dissimulação. Uma outra “Carta dos leitores” na Dance Magazine aponta para a problemática destas metáforas. Eis a intervenção completa de David Vaughan:
Um crítico demasiado literal
A ideia de que comunicar é a função primeira da dança é certamente uma invenção da crítica de espírito literal, como a que é praticada pelo Sr. Sorell, que, na sua recensão de maio à peça de James Waring, Dances Before the Wall [1957-58], se refere a uma “linguagem do movimento” e a uma “partilha da experiência”. O movimento não é uma linguagem, é movimento. A experiência que o bailarino partilha com o público é a experiência da dança, e não de uma outra coisa qualquer produzida num outro lugar e num outro tempo… Há um tipo de dança para o qual o que conta é o que se vê e não o que é suposto significar. Em outras artes, na pintura ou na música, a abordagem não-eloquente é já bastante respeitada, mas na dança, apesar de Balanchine, o preconceito literário não morre. Suspeito que se trata de vestígios do Puritanismo: a dança por si só continua a ser considerada frívola, indecente, e portanto é preciso torná-la uma arte honesta atribuindo-lhe Sentido. Só que às vezes os artistas não estão a tentar comunicar, estão a criar um mundo… Dances Before the Wall é uma das composições de dança mais belas, mais excitantes, mais civilizadas e mais enriquecedoras que tive a oportunidade de ver…xiv
Contra o desvelamento dos significados escondidos, David Vaughan ridiculariza a ideia de comunicação que revela uma determinação para fazer falar a dança. Esta sua carta faz parte de um debate estético, é certo, mas ela também ataca o “Puritanismo” e o modo como se associa a abordagem “não-eloquente” ao imaginário da “frivolidade” e da “indecência”. Expõe-se assim uma divisão em que a “arte honesta” é colocada do lado da procura intempestiva (e maiuscular) do “Sentido”, cujas projeções colocam a visão dentro do armário. A entrada da pintura na polémica torna a ambivalência do formalismo problemática. No mesmo período, o fascínio de uma arte por aquilo que a constitui pode, por um lado, passar por uma procura do absoluto no expressionismo abstrato e, por outro, por servir uma amálgama na qual a autorreflexividade coreográfica alberga o narcisismo. Em Dance Observer, a própria Jill Johnston problematiza uma minúcia alienante, fazendo uso de termos psicofisiológicos: “Há, em tudo isto, vitalidade e esterilidade. A mão responsável é honesta, original e, por vezes, um pouco perversa na sua precisão”xv. Criticando uma circularidade inapta, Louis Horst traduzirá no corpo do texto a sua angústia com a repetição: “Peripateia [1960], com uma duração superior a uma hora, produz monotonia, monotonia e mais monotonia”xvi; isto antes de lamentar a ausência de uma “experiência comunicável”. No final dos anos 1950, o filão crítico que se ia formando em redor de James Waring aglomera significantes que giram em torno “do que não se vê”, “do que não é dito”, “do que se esconde por detrás” e/ou “do que não é partilhado”.
Não deixa de ser assinalável que algumas das clivagens que Eve Kosofsky Sedgwick recenseou em Epistemologia do Armárioxvii (nomeadamente privado/público; canónico/não-canónico; conhecimento/ignorância) se reencontrem no seio de outras polaridades, muitas vezes associadas à obra do coreógrafo (high/low; gesto/movimento; amador/profissional; abstrato/significante; vanguarda/tradição). Na relação entre biografia artística e pessoal (ao contrário do “armário imposto” aos artistas gay durante o episódio da paranoia homofóbica da “ameaça lavanda”xviii ), Jonathan Katz confere ao “silêncio queer de John Cage” uma ética da coexistência: “O silêncio era o agente que ‘unia as coisas que se pensavam contrárias’”xix. Neste silêncio emancipador, James Waring chama a atenção para a importância de um limite para a apreensão “em surdina”: “As pessoas julgam que as emoções advêm da violência. Olham para uma coisa e dizem ‘isto aqui não tem emoção’. Mas as emoções estão lá sempre, só que presentes num nível mais abaixo do que aquele a que estão habituadas […] Não é preciso nomear um sentimento ou uma emoção, porque é bem possível que não haja palavras para o fazer. É raro eu sentir uma coisa que possa nomear”xx.
Sem se deixar iludir, o próprio artista reconhece as consequências de tal processo na economia da sua visibilidade: “Eu não tenho um estilo único. O problema de ter ou não ter um estilo não é um problema meu. O estilo resulta de um processo artístico, não interessa por si só. O estilo é o processo”xxi. Num período marcado por intensos debates sobre a noção de copyright em coreografiaxxii, esta recusa de uma paternidade estilística motiva apropriações livres de movimentos de repertórios gestuais muito variados (clássicos, modernos e vernaculares) aos quais James Waring se entrega, rejeitando que sejam colocados em concorrência. Se entendermos o estilo como a matriz de inteligência de uma obra, compreenderemos facilmente a capitulação de Clives Barnes, quando escreve, a propósito das combinações de Northern Lights (1966): “Trata-se de uma obra bizarramente difícil e eis-me a andar à volta dela sem nada a que me agarrar […]. Com as nossas belas distinções, afundamo-nos viscosamente num mar semântico”xxiii. Lúcido relativamente ao perigo das taxonomias, são precisamente as tais “belas distinções” que arrastam o crítico para as profundezas dos fundos semânticos (imerso numa viscosidade que não deixa de evocar a colagem). Num dos seus textos, o coreógrafo sublinha um problema imprevisível na receção das suas construções: “O facto de eu combinar tipos tão díspares de movimentos não era compreendido pela maior parte das pessoas. […] O que não era compreendido é que eu procurava combinar estes movimentos em frases”xxiv. Segundo James Waring, o problema (que D. Vaughan classifica como “método-colagem de fazer dança”xxv) reside não tanto na variedade dos materiais quanto na sua junção. O antagonismo habitualmente atribuído às justaposições da colagem (os “lado a lado” e “face a face”) tornava impossível a perceção de movimentos díspares na frase. Recorrendo a um vocabulário da astrofísica, James Waring refere-se em seguida a um “estilo de movimento por acreção”, evocando a formação de estrelas, planetas ou de um volume em construção composto por diferentes objetos. A acreção agrega mais do que separa. Usando as palavras de Sally Banes (que recorre à analogia da gravidade): “Esta mistura permite que as danças não caiam em nenhuma categoria”xxvi.
Se o artista, o coreógrafo, o autor de colagens, relacionava as primeiras receções da dança experimental com o problema das projeções literárias e/ou significantesxxvii, a clivagem assimetria/unidade, que é alvo de crítica nas suas coreografias (por certo uma crítica que se deve às expectativas dramatúrgicas falhadas), advém também da sua relação com a colagem. Antes da democratização do conceito intermedia (de Dick Higgins, que não esconde o seu ceticismo sobre a capacidade da imprensa de dar conta de tais fenómenosxxviii), os media adotam uma atitude de cruzamento de medium. Não se contentam, à maneira da Dance Magazine, em assinalar uma “tendência” do campo coreográfico (“os bailarinos que pintam”), mas participam ativamente na encenação de divisões que animam e ultrapassam a relação entre dança e colagem. Se, entre as linhas das suas colunas, este intermedia se deixa afetar pelas suas projeções e apanhar pela armadilha dos seus dualismos ninguém vê nisso a desrealização das relações cénicas. Já em 1958 Allen Ginsberg escrevia, a propósito de Dances Before the Wall: “Por vezes a impressão de uma tela de [Paul] Klee que ganha vida, acontecimentos idiossincráticos em miniatura que são justapostos e se movem independentes uns dos outros num mesmo tempo e espaço”xxix. Eis a importância de recusar a oposição entre singularidade e coletividade: “Coisas que se desenrolam em diferentes direções em simultâneo. Felizes”xxx.
Traduzido do original francês por J. M. Vieira Mendes.
i A Dance Magazine é uma revista mensal, publicada nos Estados Unidos desde 1927, que se ocupa da atualidade de uma variedade de práticas e debates relacionados com a coreografia.
ii Pedi emprestada esta expressão a Alwin Nikolais, “No Man from Mars”, texto publicado em Selma Jeanne Cohen, ed., The Modern Dance: Seven Statements (Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1965), 63.
iii James Waring citado em “Dancers Who Paint, a Holiday Season Exhibition”, Dance Magazine, 30, n.° 12 (dezembro de 1956): 25.
iv Gerard Forde, “Poet’s Vaudeville: The Collages of James Waring”, publicado a propósito da exposição “James Waring”, patente de 11/09/2013 a 12/10/2013 na Galerie 1900-2000, em Paris. v “Dance Does Postal Service”, Dance Magazine, op. cit., 40, 41 e 62. vi James Waring, Sem Título, 1963, Colagem sobre cartão, 20x14cm, Galerie 1900-2000, Paris.
vii Expressão inglesa que se refere a figuras andrajosas ou vagabundos [N. do T.].
viii Doris Hering, “Choreography by James Waring, Master Institute April 23 and 24, 1957”, Dance Magazine, 31, n.° 6 (junho de 1957): 87.
ix Criado em 1955 por Norman Mailer, Dan Wolf e Ed Fancher, o Village Voice é um semanário norte-americano lançado no bairro de Village que comenta e participa na atualidade cultural e política.
x James Waring, “Merce Cunningham: Maker of Dances in a Style Eloquentely his Own”, Village Voice, 2 de janeiro de 1957, 6.
xi James Waring, Sem título, 1962, colagem sobre cartão, 27,8 x 7,7 cm, Galerie 1900-2000, Paris.
xii Wayne Koestenbaum, The queen’s throat: opera, homosexuality, and the mystery of desire (Nova Iorque: Poseidon Press, 1993): 64.
xiii Clive Barnes, “Dance: Classy Classicist”, New York Times, 13 de fevereiro de 1968.
xiv David Vaughan, “Letters from our readers”, Dance Magazine, 32, n.° 6 (junho de 1958): 21.
xv Jill Johnston, “James Waring and company. Henry St. Playhouse, December 7, 1958”, Dance Observer (janeiro de 1959): 10.
xvi Louis Horst, “James Waring and company. Fashion Institute of Technology, December 17, 1960”, Dance Observer (março de 1961): 42.
xvii Eve Kosofsky Sedgwick, Epistemology of the Closet (Berkeley: University of California Press, 1990).
xxviii Ver David K. Johnson, The Lavender Scare: The Cold War Persecution of Gays and Lesbians (Chicago: University of Chicago Press, 2006).
xix Jonathan D. Katz, “John Cage’s Queer Silence; or, How to Avoid Making Matters Worse”, GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 5, n.° 2 (1 de abril de 1999): 239.
xx James Waring, citado a partir de uma transcrição retirada da lição “100 questões sobre dança”, gravada na Judson Church em fevereiro de 1968, Pacifica Radio Archives, Los Angeles, Califórnia.
xxi James Waring, “The Paradoxes of James Waring”, Dance Magazine, 42, n.° 11 (novembro de 1968): 64.
xxii Anthea Kraut, Choreographing Copyright: Race, Gender, and Intellectual Property Rights in American Dance (Nova Iorque: Oxford University Press, 2015).
xxiii Clive Barnes, “’Northern Lights’ Manhattan Festival Ballet Performs Unusual New Work by James Waring”, New York Times, 10 de janeiro de 1967.
xxiv James Waring, “My Work”, Ballet Review, 5, n.° 4 (1975-1976): 111.
xxv David Vaughan, “James Waring: A Remembrance”, Performing Arts Journal, 5, n.° 2, American Theatre: Fission/Fusion (1981): 108.
xxvi Sally Banes, “James Waring Festival Judson Memorial Church, April 21-30”, Dance Magazine, 52, n.° 8 (agosto de 1978): 31.
xxvii James Waring, “100 questões sobre dança”, op.cit., “[Durante os anos 1950] os críticos começaram a olhar para a dança como se se tratasse de uma peça de teatro, de um texto literário, de uma história ou de um drama e criticavam-na com base nisso.”
xxviii Dick Higgins, “Intermedia”, Something Else Newsletter, 1 (fevereiro de 1966).
xxix Allen Ginsberg, “James Waring & Co”, Village Voice, 17 de dezembro de 1958, 7.
xxx Ibid.FR
En décembre 1956, la revue états-unienne Dance Magazine s’ouvre sur une rubrique – News of Dance and Dancers – qui chronique des évènements en tout genre (annonces matrimoniales, aléas institutionnels, bulletins de santé) liés aux interprètes de la période. À l’occasion de l’anniversaire de Mary Wigman, Rudolf Laban adresse un texte que la rédaction affecte au « Courrier des Lecteurs ». To Mary partage sa page avec une requête de Tina Miruzzi demandant au magazine de renseigner son lectorat sur d’éventuelles opportunités professionnelles qui émanciperaient les « danseuses de ballet en devenir » de la fréquentation des plateaux de télévision et de l’off-Broadway. Hasard éditorial, les pages qui précèdent sa demande concernent les interactions entre la danse, la télévision et le cinéma. Les suivantes, consacrées aux « danseurs qui peignent » semblent contredire ses vœux d’autonomie. La publication reproduit un collage de James Waring et l’accompagne d’un court commentaire : « Ce danseur et chorégraphe d’une qualité personnelle, unique, a, depuis 15 ans, ”réalisé des images, la plupart du temps des collages, parce que j’aime ça” [et le texte de conclure] Comme la plupart des danseurs, il trouve ça relaxanti ». Pourtant, le concernant, la pratique ne se dissocie ni du temps ni des matériaux de son travail : « le boulot de Waring aux services du courrier Time & Life Building de la Rockefeller Plaza – dans l’équipe du matin, ce qui lui laissait le reste de la journée pour chorégraphier, répéter et enseigner – fournissait certains matériaux de ses œuvresii ». Par une étrange coïncidence, Dance Magazine s’intéresse aussi à un philatéliste thésaurisant des représentations de danses sur timbre. Comment James Waring pouvait-il relire l’intitulé de cet article – « La danse au service postaliii » – en rapport à sa propre situation ?
Son collage, Sans Titreiv (1963), anime et conteste la ligne de partage qui sépare le personnel du public. Il assemble une typographie anonyme au tracé singulier d’une écriture. Il met en présence le temps conventionnel (dont la marque postale fait mention) et subjectif de la composition. Il laisse apparaître le nom de l’auteur et le scinde d’une forme oblongue qui traverse l’enveloppe. Les descriptions canoniques de l’histoire du collage mettent en scène des surfaces étrangères à elles-mêmes. L’unité de leurs compositions semble menacée par la « confrontation » de « matériaux hétérogènes » ; leur planéité meurtrie par la « mixité » des textures ; les fragments qui s’y agrègent « empruntés », « découpés » ou « soustraits » à d’autres réalités. Cette incomplétude du fragment trouve son équivalent chorégraphique dans une autre colonne de Dance Magazine dans laquelle Doris Hering commente les pièces du collagiste :
James Waring a élaboré un style chorégraphique unique. Celui-ci a la qualité délicatement fragmentée d’un collage. Et chaque danseur semble enveloppé dans une aura invisible avec une voix lointaine comme seule compagnie. La musique, les autres danseurs, le public : tout le reste est à l’extérieur. Cette imagerie est inhabituelle, elle pourrait être émouvante si le projet esthétique de M. Waring était apparent (…) Alors que deux silhouettes glissaient silencieusement d’avant en arrière sur la scène (…) nous semblions assister à un rite mystérieux lié, d’une certaine manière, à la naissance du mouvement. Mais lorsque la musique a commencé, les danseurs ont pris des chemins séparés et une stérilité émotionnelle s’est installée (…) Comme si elle dansait dans une chambre insonorisée, une fille tourne intensément en rond tandis qu’un garçon fixe le public et gonfle ses joues. (…) Dans Ornements [1957] et la reprise d’Intrada [1955], M. Waring revient à son ensemble préféré de clowns et autres ragamuffins peints tremblants dans l’isolement avant d’être enfin réunis pour un éblouissement instantanév.
La voix distante du partenaire absent, le silence qui abrite la danseuse ou la solitude des clowns : tout concourt à abstraire les interprètes de la scène ; déplorer, dans le registre de la « stérilité », une rencontre qui n’advient pas. Leurs mouvements se déploient en autarcie dans un espace où, à l’instar d’un collage, cohabitent des réalités hétérogènes. Craintes d’une réalité soustraite à la vue. Pour critiquer l’opacité de la pièce (le « projet esthétique » n’est pas « apparent ») le texte n’emprunte-t-il pas sa description à l’artiste lui-même qui – dans un papier publié deux ans plus tôt dans le Village Voice – écrivait : « si les danses de [Merce] Cunningham ont des ”histoires”, celles-ci se déroulent peut-être au-delà de la scène, hors de la vue du publicvi » ? Un autre de ses collagesvii superpose une scène et son envers. Au sommet d’une composition en forme de photogramme, James Waring place deux danseuses dont les mouvements semblent restreints par les limites du cadre. L’image délavée rend leurs présences fantomatiques. En dessous, trois autres sections (dont les ronds encadrés évoquent l’enveloppe de préservatifs) répètent les signes du départ avec une sérialité approximative : « EXIT ; EXIT ; EXIT ». Wayne Koestenbaum associe l’esprit du collage aux subjectivités des « folles lyriques » ; ces fans d’opéra enfermés avec le corps bidimensionnel de leurs divas de papier : « Pour créer un collage : je découpe des images qui m’excitent, qui réveillent mon passé, qui disent mes secretsviii ». Dans leur rapport à l’image, les folles lyriques contestent le récit des épopées formalistes où la matérialité du collage (volume/surface) abrite un dilemme existentiel (illusion/réalité). Elles singularisent des fragments qui, dès lors, ne se résument plus à leur manque.
Est-ce seulement le trouble issu de la rencontre de la danse et du collage qui conduit le critique Clive Barnes à formuler, dans le Times, l’idée d’une duplicité intrinsèque à James Waring ? Il affirme ainsi : « [qu’] à l’intérieur du chorégraphe d’avant-garde se trouvait, comme je l’ai déjà suspecté, un classique non repenti luttant pour sortir [struggling to get out]ix ». Si l’emploi de ”get out” au lieu de ”come out” ne ménage qu’une mince ambiguïté, le renversement – qui institue l’avant-garde comme fait public et associe la danse classique à une pulsion dissimulée – dramatise l’opposition de cultures chorégraphiques dans le registre aveu/dissimulation. Un autre « courrier des lecteurs » de Dance Magazine situe l’enjeux de ces métaphores. Voici l’intégralité de la réponse de David Vaughan :
Critique trop littéral
L’idée que la fonction première de la danse est de communiquer est, certainement, l’invention d’un critique à l’esprit littéral comme celui de M. Sorell, qui, dans sa critique de mai, de la pièce de James Waring – Dances Before the Wall [1957-58], parle de “langage du mouvement” et de “partage d’expérience”. Le mouvement n’est pas un langage : c’est du mouvement. L’expérience que le danseur partage avec le public est l’expérience de la danse, et non de quelque chose d’autre qui se serait produit ailleurs et dans un autre temps… Il existe une sorte de danse dans laquelle ce qui compte, c’est ce que vous voyez, et non ce qu’elle est censée signifier. Dans d’autres arts, en peinture ou en musique, l’approche non-signifiante [non eloquent] est maintenant tout à fait respectée ; mais dans la danse, malgré Balanchine, le préjugé littéraire n’en finit pas de mourir. Il s’agit là, je l’imagine, d’un vestige du puritanisme : la danse pour elle-même est encore considérée comme frivole, voire indécente, et il faut donc en faire une forme d’art honnête en lui donnant du Sens. Parfois, les artistes ne veulent pas communiquer, ils veulent créer un monde… Dances Before the Wall est l’une des compositions de danse les plus belles, les plus excitantes, les plus civilisées et les plus enrichissantes que j’ai eu la chance de voir…x
Contre le dévoilement du sens caché, David Vaughan tourne en dérision la communication qui relève ici d’une injonction à faire parler la danse. Sans doute, son courrier appartient à un débat esthétique ; mais il attaque aussi le « puritanisme » visant à instruire le procès de l’approche non eloquent dans l’imaginaire de la « frivolité » et de « l’indécence ». Émerge ici un partage dans lequel « l’art honnête » est renvoyé du côté de la recherche intempestive (et majusculaire) de « Sens » dont les projections mettent la vision au placard. L’irruption de la peinture dans la polémique rend problématique l’ambivalence du formalisme. Dans la même période, l’attrait d’un art pour ses constituants peut à la fois passer pour une recherche d’absolu dans l’expressionisme abstrait et servir un amalgame où l’autoréflexivité chorégraphique abrite un narcissisme. Dans le Dance Observer, Jill Johnston, elle-même, problématise une méticulosité aliénante en usant de termes psycho-physiologiques : « Il y a, dans tout cela, à la fois de la vitalité et de la stérilité. La main responsable est honnête, originale, et, parfois, un peu perverse dans sa précisionxi ». Critiquant une circularité inepte, Louis Horst traduira dans le corps du texte son angoisse de la répétition : « Peripateia [1960] qui a duré plus d’une heure, produisant de la monotonie, de la monotonie et encore de la monotoniexii » ; avant de déplorer l’absence « d’expérience communicable ». À l’issue des années 1950, le filet critique qui se forme autour des pièces de James Waring contracte des signifiants liés à « ce que l’on ne voit pas » ; « ce qui n’est pas dit » ; « ce qui se cache derrière » et/ou « ce qui n’est pas partagé ».
Il est frappant de lire que certains des clivages qu’Eve Kosofsky Sedgwick a recensés dans son Épistémologie du Placardxiii (notamment privé/public ; canonique/non canonique ; savoir/ignorance) se retrouvent au sein d’autres polarités constamment associées à ses chorégraphies (high/low ; geste/mouvement ; amateur/professionnel ; abstrait/signifiant ; avant-garde/tradition). Dans un rapport entre biographie artistique et personnelle (à rebours du motif du « placard imposé » aux artistes gays durant l’épisode de paranoïa homophobe de la peur violettexiv) Jonathan Katz confère au « silence queer de John Cage » une éthique de la coexistence : « l’agent de ‘réunion des choses que l’on pensait opposées’ c’était le silencexv ». À cet endroit d’un silence émancipateur, James Waring situe, lui aussi, l’importance d’un seuil de perception « en sourdine » : « Les gens pensent que les émotions relèvent de la violence. Ils regardent quelque chose et disent : ‘il n’y a pas d’émotion ici’. Mais les émotions sont toujours là ; seulement présentes à un degré plus bas auquel ils ne sont pas habitués (…) nul besoin de nommer un sentiment ou une émotion, aucun mot ne pourrait s’en charger. J’éprouve rarement un sentiment que je saurais nommerxvi ».
Sans équivoque, l’artiste expose les conséquences du processus dans l’économie de sa propre visibilité : « Je n’ai pas un style unique. Ce n’est pas mon problème d’avoir ou non style. Le style résulte d’un processus artistique, il n’est pas intéressant en lui-même. Ce qui l’est : c’est le processusxvii ». Dans une période marquée par d’intenses débats autour de la notion de copyright en chorégraphiexviii, ce refus d’une paternité stylistique motive les libres appropriations de mouvements issus de répertoires gestuels bigarrés (classiques, modernes et vernaculaires) auxquelles s’adonne le collagiste ; contestant ainsi leur mise en concurrence. Si le style est pensé comme la matrice d’intelligibilité d’une œuvre, on comprend dès lors la déroute d’un Clives Barnes lorsqu’il commente les combinaisons de Northern Lights (1966) : « c’était un travail bizarrement difficile, et me voilà en train de roder autour sans trouver de prises pour m’y accrocher (…) Avec nos belles distinctions, nous coulons, collants, dans une mer sémantiquexix ». Lucide sur le péril des taxonomies, ce sont bien leurs « belles distinctions » qui entrainent le critique dans les profondeurs de ces fonds sémantiques (immergé dans une substance collante qui n’est pas sans évoquer le collage). Dans l’un de ses textes, James Waring soulève un problème inattendu dans la réception de ses constructions : « mes combinaisons de types de mouvements disparates n’étaient pas comprises par la plupart des personnes (…) Ce qui n’était pas compris, c’est que je cherchais à faire des phrases à partir de ces combinaisons de mouvementsxx ». Selon lui, le problème (de ce que D. Vaughan qualifie de « méthodes-collage de fabrication du mouvementxxi ») réside moins dans la variété des matériaux mobilisés que dans le geste visant à les unir. Un antagonisme attribué aux juxtapositions du collage (les « côte à côte » et « face à face ») rendrait impossible la perception de mouvements disparates en phrase. Dans le vocabulaire de l’astrophysique, il nomme ensuite un « style de mouvement par accrétion » ; évoquant la formation d’étoiles, de planètes ou d’un volume en devenir composé d’objets divers. L’accrétion réunit plus qu’elle ne disjoint. Pour le dire avec Sally Banes (qui filerait ici l’analogie spatiale de la gravitation) : « cette mixture empêche les danses de tomber dans une catégoriexxii ».
Si l’artiste, le chorégraphe, le collagiste ont lié les premières réceptions de la danse expérimentale au problème des projections littéraires et/ou signifiantesxxiii : le clivage disparité/unité – critiqué dans ses chorégraphies (et certainement lié aux attentes dramaturgiques qu’elles déçoivent) – relèvent aussi de leur rapport au collage. Avant la popularisation du concept d’intermedia par Dick Higgins – qui s’affirme pourtant sceptique sur la capacité de la presse à rendre compte de tels phénomènesxxiv – les médias prennent acte d’une attitude à la croisée des médiums. Ils ne se contentent pas, comme Dance Magazine, de relever une « lubie » du champ chorégraphique (« ces danseurs qui peignent ») mais participent à mettre en scène des partages qui animent, et débordent, le rapport entre la danse et le collage. Si, entre les lignes de leurs colonnes, cet intermedia se laisse affecter par leurs projections, piéger dans leurs dualismes ; toutes n’y voient pas la déréalisation des relations scéniques. Dès 1958, Allen Ginsberg relate, à propos de Dances Before the Wall, : « l’impression qu’une toile de [Paul] Klee s’anime : des événements idiosyncrasiques en miniature juxtaposés et se déplaçant indépendamment les uns des autres et, en même temps, dans un seul espacexxv ». Il y va de l’importance à refuser l’opposition entre singularité et collectivité : « des choses se déroulent dans différentes directions simultanément. Heureux.xxvi».
i James Waring cité dans « Dancers who Paint, A Holiday Season Exhibition », Dance Magazine, vol. 30, n°12, décembre 1956, p. 25. [« This concert dancer and choreographer with a personal, unique quality, has, for about 15 years, “made pictures, mostly collages, because I like to.” Like most dancers he finds it relaxing »]
ii Gerard Forde, « Poet’s Vaudeville: The Collages of James Waring » (mis en ligne par G. Forde), publié à l’occasion de l’exposition « James Waring » du 11/09/2013 au 12/10/2013 à la Galerie 1900-2000, Paris [« Waring’s job in the mail room at the Time & Life Building at Rockefeller Plaza – an early morning shift that left him the remainder of the day to choreograph, rehearse and teach – supplied some of the materials for his artworks »]
iii « Dance Does Postal Service », Dance Magazine, op. cit., p. 40, 41 et 62.
iv James Waring, Sans Titre, 1963, Collage sur carton, 20 x 14 cm, Galerie 1900-2000, Paris.
v Doris Hering, « Choreography by James Waring, Master Institute April 23 and 24, 1957 », Dance Magazine, vol. 31, n°6, juin 1957, p. 87. [« James Waring has evolved a unique choreographic style. It has the delicately fragmented quality of a collage. And each dancer seems enveloped in an invisible aura whose only other occupant is a faraway voice. The music, the other dancers, the audience, all are on the outside. This imagery is unusual, and it could be moving if Mr. Waring’s esthetic purpose were also apparent (…) As two silhouetted figures glided silently back and forth across the stage (…) we seemed to be witnessing a mysterious rite in some way connected with the birth of movement. But when the music began, the dancers went separate ways, and emotional sterility set in. (…) As though dancing in a soundproof chamber, a girl gyrated intensely while a boy stared out at the audience and puffed his cheeks (…) In Ornaments and in the repeat of Intrada, Mr. Waring reverted to his favorite set of clowns and painted ragamuffins trembling in isolation and finally brought together for a flashing instant »]
vi James Waring, « Merce Cunningham: Maker of Dances in a Style Eloquentely his Own », Village Voice, 2 janvier 1957, p. 6. [« If Mr. Cunningham’s dances have “stories”, they perhaps take place beyond the scenery out of view of the audience »]
vii James Waring, Sans Titre, 1962, Collage sur carton, 27,8 x 7,7 cm, Galerie 1900-2000, Paris.
viii Wayne Koestenbaum, Anatomie de la folle lyrique, trad. de l’anglais (États-Unis) par Laurent Bury, Paris, La Rue Musicale, 2019, p. 106.
ix Clive Barnes, « Dance: Classy Classicist », New York Times, 13 février 1968 [« inside this avant-garde choreographer, was, as I at times suspected, an unrepentant classicist struggling to get out»]
x David Vaughan, « Letters from our readers », Dance Magazine, vol. 32, n°6, juin 1958, p. 21. [Too Literal Critic. The idea that the primary function of dance is to communicate is an invention, surely, of literal-minded critics like Mr. Sorell, who, in his May review of James Waring’s Dances Before the Wall, discusses “movement language” and “sharing experience.” Movement isn’t a language, it is movement. The experience the dancer shares with the audience is the experience of dancing—not something else that happened somewhere else, some other time…There is a kind of dancing in which what matters is what you see, not what it is supposed to mean. In other arts, in painting, in music, the non-eloquent approach is quite respectable by now; but in dancing, in spite of Balanchine, the literary prejudice dies hard. I suspect this is something left over from Puritanism — dancing for its own sake is still considered frivolous, if not indecent, so you must make an honest art form of it by giving it Meaning. Sometimes artists do not try to communicate, they simply create a world . . . Dances Before the Wall was one of the most beautiful, exciting, civilized and life-enhancing dance compositions I have ever been lucky enough to see . . .]
xi Jill Johnston, « James Waring and company. Henry St. Playhouse, December 7, 1958 », Dance Observer, janvier 1959, p. 10. [«There is vitality and sterility both in all this. And the hand behind it is honest and original, if occasionally a bit preciously perverse»]
xii Louis Horst, « James Waring and company. Fashion Institute of Technology, December 17, 1960 », Dance Observer, mars 1961, p. 42. [« Peripateia, that went on for over an hour, producing monotony, monotony and more monotony »]
xiii Eve Kosofsky Sedgwick, Épistémologie du placard (1990), trad. de l’anglais (États-Unis) par Maxime Cervulle, Paris, Éditions Amsterdam, 2008.
xiv Voir David K. Johnson, The Lavender Scare: The Cold War Persecution of Gays and Lesbians, Chicago: University of Chicago Press, 2006.
xv Jonathan D. Katz, « John Cage’s Queer Silence; or, How to Avoid Making Matters Worse », GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, vol. 5, n° 2), 1 avril 1999, p. 239. [« The agent of that “coming together of things which were opposed was silence. »]
xvi James Waring, cité à partir d’une transcription tirée de la lecture « 100 Questions about Dance » enregistrée à la Judson Church en février 1968, Pacifica Radio Archives, Los Angeles, Californie. [« People think of emotion as being violent emotion they look at something and they say “well there’s no emotion in it” it’s because there is emotion but its feeling on a lower level than they are accustom to (…) There is no need to name a feeling or an emotion because they may very well be no name for it, I hardly ever have a feeling I could name »]
xvii James Waring, « The Paradoxes of James Waring », Dance Magazine, vol. 42, n°11, novembre 1968, p. 64. [« I don’t have a single style. I don’t worry about having a style. Style is a result of the artistic process, and not interesting in itself. What is interesting is process. »]
xviii Anthea Kraut, Choreographing Copyright: Race, Gender, and Intellectual Property Rights in American Dance, New York: Oxford University Press, 2015.
xix Clive Barnes, « ‘Northern Lights’ Manhattan Festival Ballet Performs Unusual New Work by James Waring », New York Times, 10 janvier 1967 [« it was an oddly difficult work, and now I find myself prowling around it, trying to find a place to grasp (…) We sink stickily into a semantic sea with our fine distinctions »]
xx James Waring, « My Work », Ballet Review, vol. 5, n°4, 1975-1976, p. 111. [« My combining in my choreography of such disparate kinds of movement was not understood by most people (…) What was not understood was that I was working to combine these movements in terms of phrases: my movement style of accretion seemed arbitrary to critics and audiences. »]
xxi David Vaughan, « James Waring: A Rememberance », Performing Arts Journal, vol. 5, n°2, American Theatre: Fission/Fusion 1981, p. 108. [« His collage-like method of making dances »]
xxii Sally Banes, « James Waring Festival Judson Memorial Church, April 21-30 », Dance Magazine, vol. 52, n°8, aout 1978, p. 31. [« The mixture prevents the dances from falling into anyone category »]
xxiii James Waring, « 100 Questions about Dance », op.cit., [«critics began to look at every dance as if it was a play, or was literary, or was a story, or was a drama and criticized it on those grounds »]
xxiv Dick Higgins, « Intermedia », Something Else Newsletter, n°1, février 1966.
xxv Allen Ginsberg, « James Waring & Co », Village Voice, 17 décembre 1958, p. 7. [« At times impression of an animated Klee painting, miniature idiosyncratic events juxtaposed and moving independently of each other at the same time in one space »]
xxvi Ibid. [« Things going in different directions simultaneously. Happy. »]Pedro Marum Insaciável Ressaca de Dançar
24 DE OUTUBRO DE 2020
Foi há 15 anos que organizei a minha primeira festa sem estar sob a alçada de adultos. Uma festa de Halloween com um monte de adolescentes de 16 e 17 anos com as hormonas aos saltos, do sul rural de Portugal, cuja noção de desobediência era fazer cosplay e comer cereais de pequeno-almoço com Malibu em vez de leite. Tinha na grande maioria amigas, e a minha melhor amiga/namorada faria o seu come-out como lésbica no ano seguinte. Para a festa, gravámos alguns CD com seleções ecléticas de eurodance, mellow-cheesy trance, UK trip hop, músicas de compilações que vinham com revistas de tuning que o meu pai comprava e algumas descobertas aleatórias no Soulseek. ATB, Faithless, Paul Oakenfold, Orbital. Independentemente do que se possa dizer do nosso gosto musical, havia sem dúvida uma batida. E nós estávamos sob o seu efeito. Longe de qualquer cultura club convidativa para pessoas queer, tínhamos de organizar as nossas próprias festas. Aqui não me refiro a queer como o gesto político de exploração da sexualidade e do género, mas sim à experiência de crescer com vergonha e a reprimir os próprios desejos sexuais e expressão de género. Nem sequer se falava sobre isso. A festa como pedra filosofal, a transformar a vergonha em comunhão e a pulsão de morte num desastre utópico, sedento de vida. Não me lembro de dançar, mas certamente que dançávamos. Era tímidx mas tinha sede de batidas. Mal sabia eu que festejar era um ensaio premonitório do que acabaria por se tornar um pilar fundamental na minha vida.
14 DE NOVEMBRO DE 2020
Hey Steph, acabei de regressar de Portugal. Foi uma experiência agridoce mas importante. Desde a morte da minha amiga que sentia falta de estar com aquelas pessoas. Visitar as minhas origens lembra-me experiências infelizes, mas dá-me algum conforto. O sol e o ar seco do sul, sinto-os como revigorantes e melancólicos. No Algarve, fico com a sensação de estar a viajar no tempo, o que é libertador nos dias que correm. Lembro-me de que tudo se torna eventualmente parte do passado. Imagino que seja difícil estares longe de casa neste momento, mas, mesmo que estivesses aqui, terias de dançar sozinhx. As ruas estão desertas e o vírus causa um pânico que paira sobre nós. A previsão do futuro não me parece auspiciosa. Estamos cansadxs de navegar online num mar de desgraças, do trajeto rotineiro da cama para o trabalho, sem nunca sentirmos uma brisa. Como é que aqueles sem voz praticam atos de dissidência, se não nos é permitido dançar nas ruas?
Acordo, faço exercício, estudo alemão online, oiço e toco música, assisto a uma palestra, vejo vídeos no Youtube, porno, leio um livro. Hoje voltei a não sair de casa. O tempo a morder a sua própria cauda. Quero intoxicar-me até ao nirvana.
26 DE NOVEMBRO DE 2020
A música tem-me acompanhado ao longo da vida. A melhor companhia que poderia imaginar. Durante a minha adolescência, queer e solitária, comecei a ouvir música vorazmente. No caminho para a escola, durante os intervalos, no carro com os meus pais, enquanto dormia. Não necessariamente consciente da sua história, dos géneros ou biografias, tinha acesso a downloads ilimitados sem o risco de ser punidx pela lei ou pela minha consciência ética. Este consumo obsessivo manteve-me a cabeça e os ouvidos ocupados, numa altura em que sentia as minhas relações com outras pessoas e o mundo como insatisfatórias ou hostis. Fim da analepse. Isoladx no meu quarto sob uma pandemia mortal, privadx da abundância de corpos – clubs suados, novelos de carícias ou outros encontros carnais –, os kicks de baixa frequência e as notas agudas das minhas colunas são os principais elementos que me fazem suar e ofegar. A minha própria cúpula bacteriana. Oiço música para viagens erógenas quase solitárias, na companhia de brinquedos sexuais.
15 DE DEZEMBRO DE 2020
É difícil escrever sobre o ano que passou. Foi-nos recordado de forma violenta e repetida que a vida é precária e que as nossas condições materiais podem mudar numa fração de segundos. A ilusão de uma vida confortável e alinhada com os astros, de um futuro previsível, foi tomada de assalto. Para algumas pessoas, a complexidade caótica dos acontecimentos resultantes do aparecimento de um novo vírus mortal só pode ser explicada com teorias de complexidade equivalente. No entanto, eventos de igual magnitude acontecem a todo o momento, mas imiscuem-se no tecido da realidade sem que a maioria de nós dê por isso. Mutações genéticas, blocos de matéria a viajar a altas velocidades pelo espaço, uma curva mal dada, a colisão com a pessoa errada. A vida está constantemente a recalibrar-se de catástrofes transformadoras e de possíveis mortes.
Torna-se cada vez mais difícil escrever na sequência da morte de uma importante parte de mim. Sinto-me presx numa sucessão sem fim de luto mal ou não-remunerado. Palestras, palestras, grupos de leitura, ensaios, mixes. Nunca soube o que dizer quando me perguntam o que faço. Artista? DJ? Curadorx? Estudante? Entretanto, sinto que nos tornámos de repente historiadorxs. Recitando interminavelmente as nossas próprias mitologias.
2 DE JANEIRO DE 2021
Entre amigxs comentávamos como a pandemia provou de quão poucos bens precisamos realmente para viver. Precisamos de acesso a cuidados de saúde, Segurança Social, direito ao protesto e à reunião. Bens de luxo podem ser atirados pela janela, mas, tal como as personagens das ficções de Octavia Butler1 que atravessam calamidades apocalípticas, vital é estabelecer relações simbióticas de camaradagem, amizade e amor. O papel social das festas queer era, para muitxs, o de organizar encontros, convívio e ajuda mútua, dentro e para além da pista de dança. E agora, Octavia, o que nos resta? Temos de continuar a nossa dança, sem fim.
12 DE JANEIRO DE 2021
No outro dia vi uma performance de rua em Kottbusser Tor, mesmo junto ao meu apartamento. Parecia uma personificação sinistra da barata humanoide kafkiana, umx artista vestidx com sacos de lixo e antenas. Sob um céu cinzento, rastejava no topo da entrada do metro enquanto se ouvia o que soava ser Aphex Twin. Uma pequena multidão pasmava, incerta se entretida ou enojada com a figura. Depois de tantos meses sem ver qualquer performance no espaço público, a imagem permaneceu na minha mente como uma boa representação da atual hauntology de muitxs artistas queer. Criaturas pestilentas que habitam nas fendas desta cidade, fazendo raras aparições, lembrando a todxs que muitxs de nós que ainda aqui estamos, precariamente vivxs, resilientes que nem baratas, causando terror e inspiração. Somos evocações repulsivas de práticas asséticas, agora tidas como ainda mais perigosas, proibidas e desejadas. Em drag, pegajosxs, trashy, suadxs, mutantes anárquicxs, o terror das famílias, dxs piores inimigxs da polícia, sem saber onde começa ou acaba, manifestantes inventivxs, auto-organizadxs, fazendo raves das ruínas. Foi breve, mas aqueceu-me o coração. Não pretendo delirar com a nossa própria miséria poor-nográfica mas, ye, sinto falta das festividades imundas e de dissipar energia numa dança eterna.
Mariana, sinto a tua falta.
Bhenji Ra Fadiga da Imaginação
Fadiga da imaginação, um ponto de partida.
House of Sle. Dezassete corpos na house, doze children, cinco grandchildren. Eu sou a mother. Sle significa Sisters Liberating Eachother (Manas a Libertarem-se Mutuamente).
Este texto foi escrito nas terras roubadas do povo Djiringanj da Nação Yuin. A autora agradece a todos os anciãos do passado e do presente, assim como à resiliência constante dos cuidadores originais desta terra. Nunca se abdicou da soberania e a Austrália foi e sempre será terra aborígene.
Traduzido do original inglês por J. M. Vieira Mendes.
Miguel Oliva Teles Daniel Pizamiglio Elegia Porvir
Em 2019 surge uma ameaça que põe em causa não só cada um de nós mas também aquilo que nos define e entremeia: a relação. Perante um vírus que se propaga usando como veículo os nossos afetos e o âmago do nosso viver em comunidade, controlá-lo – ou viver com ele – é refrear esses mesmos afetos, suprimir essa vivência comunitária, sanitizar a relação. Em tal estado de contingência, além dos entes queridos que partem, das desigualdades que se adensam e da maior precarização das vidas, há ainda uma outra perda: a forma como nos relacionávamos não é mais possível. A pandemia persiste. Mas já vai sendo feita a incómoda pergunta: mesmo que receda, não permanecerá algum deste pudor, algum deste recato, algum deste receio que assombra o nosso viver-junto? Há, por isso, uma perda. E um luto?
“Se a tristeza admite companhia, revejam as vossas dores contemplando as minhas”i. É Margaret, rainha anciã em Ricardo III, que, sentando-se com as outras rainhas, o diz. Nesta tragédia, Ricardo, cego pelo poder da coroa, distribui morte, dor e traição por todos à sua volta. As dores e as perdas são múltiplas, a violência ininterrupta e o luto – como o que estas rainhas partilham – converte a dor em ira, revolta e vingança. Às feridas abertas reagem com dor, repulsa e agressão. Sentam-se juntas, mas o olhar está virado para dentro de cada uma. Há, tantas vezes, nas tragédias e no mundo, uma tentativa ensimesmada de fechar a ferida, de resgatar uma existência íntegra, impermeável, sustentável apenas por si.
De facto, a dor e a perda realçam, de forma violenta e abrupta, a nossa vulnerabilidade. Talvez até seja por isso possível, como supõe Judith Butler, “apelar a um nós, porque todos temos alguma noção do que é ter perdido”ii. Mas, perante a perda – e não fazendo a dor útil –, não poderá a perceção desta vulnerabilidade aflorar afinal os laços que nos unem, a nossa interdependência fundamental, a nossa existência em relação? Perante a perda – e não fazendo a dor fútil – não poderá o luto ser uma resposta em que essa vulnerabilidade (diferentemente vivida e distribuída) seja protegida e cuidada? Fazer o luto seria assim ficar na ferida, “insistindo na linha que tem de ser caminhada entre cuidá-la e tentar diminuí-la”. “Procurando uma base para a comunidade nestas condições”ii. Talvez Creonte reconhecesse esta força política quando proibiu, às portas da sua cidade, certas cerimónias de luto. Talvez também por isso não o ouviu Antígona.
Entre abril e junho de 2020, logo após o primeiro confinamento em Portugal, Daniel Pizamiglio iniciou uma série de encontros. Chamando amigxs, colegxs e conhecidxs, encontrou-se com cada pessoa (no total, vinte e nove) em vários lugares de Lisboa: um estúdio de dança, os jardins arejados da cidade, as suas casas, a calçada de uma rua pouco movimentada e o interior de um carro estacionado. Como espectadores: o rio, os pássaros, o mofo de uma parede ao canto, as crianças num parque. Os intervenientes: Daniel e xs outrxs, cada um abrindo a sua ferida, abrindo-se um ao outro, abrindo o encontroiii. Precisamente quando este era tanto uma ameaça como aquilo que estava ameaçado, o que se pretendia era resgatar os afetos constrangidos pelas medidas sanitárias. Olhando para trás, parecia haver neste convite algo como no de Margaret: vem, senta-te comigo, que a tristeza admite, sim, companhia. Uma dissidência como a de Antígona: não deixemos esta perda calada, que ela reverbera demasiado grave. E ainda uma outra insistência: no comum, no encontro e no cuidar de uma vulnerabilidade que se entende conjunta.
“Fazer o luto.” É assim que o dizemos, deixando explícito que é um processo. Mas há algo mais nesta formulação: o luto, como vivência de uma perda, não é só um ato, nem meramente um processo psíquico que acontece por si. É um fazimento, um acontecimento que se performa. Desde a Antiguidade até aos nossos dias, mostram-no as carpideiras, derramando todo o seu pathos em choro sobre o corpo do defunto. Pepe Espaliú, artista espanhol que viveu com VIH-SIDA – outra pandemia na qual as perdas são desiguais e na qual o preconceito e o nojo desumanizam tanto as vítimas como as dores dos que sobrevivem – realizou, em 1992, uma performance em que o próprio artista é levado pela rua, sentado nos braços unidos de amigos, conhecidos e demais pessoas. Pepe era assim carregado e cuidado – Car(ry)ing –, a sua perda ressignificada, politizada; os olhos postos na ferida, na sua vulnerabilidade e na de todos os que o carregavam. Um luto liberto do estigma, vivendo a dor de forma aberta e compartida.
Também para Jacques Derrida o luto é algo que se performa e que nos orienta para o futuro. Segundo o filósofo, fazer o luto não é “trazer o passado à memória”, não é isolar o que perdemos numa cripta fechada, cristalizando o perdido num retrato ao qual voltamos numa rememoração nostálgica, passiva e solipsa. Ao invés, o luto é abrigar em nós, numa cripta de portas e janelas abertas, os traços ou os vestígios do que se perde. É ficarmos num diálogo contínuo com o que remanesce. Numa rememoração afirmativa e para fora, criativa, como um rastro-lastro que nos engaja não com o que passou, mas com o porvir. Ativar esta memória instiga-nos a agir, a falar o que perdemos. Ou a deixar que o que perdemos fale por siiv. Era desta forma que Derrida enlutava a perda de cada amigo, colega e mentor que partia, relendo publicamente os seus textos, retendo os traços das suas vidas e dos seus pensamentos, fazendo deles um novo pensamento-texto-leitura: uma performance-elegiav.
Nessa série de encontros intitulada “POR FAVOR, OLHAR COMO SE FOSSE A PRIMEIRA E ÚLTIMA VEZ”, o Daniel propunha, como ponto de partida, pensar e ativar um olhar primeiro e último. Ficar nessa estranha contradição duma despedida que se espanta e duma curiosidade que já aceita um fim. O que é uma primeira vez? “Abrir espaço às (im)possibilidades de um outro”? Desconhecer? “Uma aproximação lenta e às escuras”? E a última? Um certo “sentido de agonia: a angústia de uma perda” […] [Apercebermo-nos] a cada momento do que não fica”?vi. A partir do pensamento e ativação deste olhar, seguia-se um exercício em que as mãos exploravam a insistência num toque que se tornara interdito. Em que as extremidades meditavam na tensão entre a distância necessária e uma proximidade que se busca. Em que a polpa dos dedos suportavam, juntas, um vazio.
No final de cada encontro, o Daniel voltava a casa, sentava-se e contava-me. Como se haviam encontrado aquelas mãos, que tensões as mantinham e as afastavam. Depois, outras vezes só mais tarde, abria o caderno em que anotara impressões, frases, materiais, imagens e hipóteses rascunhadas. Os traços de um encontro. Juntos, agora, encaramos este pensamento-ativação e este esforço das mãos e do olhar como o trabalho da ferida, a performance do luto. Vemos procura e ressignificação, uma insistência no encontro, um sentar juntos. Como se tivessem sido feitas as perguntas: “O que perdemos?” “E o que resta?”. Ativar, ler e sustentar estes restos é continuar o luto. Assim, da memória da experiência, das imagens captadas em vídeovii e dos apontamentos no pequeno caderno surgem estes traços que levantamos juntos. São estas as nossas elegias viradas para o futuro:
O OUTRO É GRAVIDADE A QUEM O CORPO ENTREGA O PESO
(com Julián Pacomio)
NÃO HÁ PROJETO SENÃO ESTE: SUPORTAR E DEIXAR ABERTO
(com Alina Ruiz Folini)
ATENÇÃO MELANCÓLICA: CONTEMPLAR SEM POSSUIR
(com Tiago Mansilha)
AS MÃOS COMO PEDRAS E ENTRE ELAS UM TORNADO
(com Ana Rita Teodoro)
TENTAR TRANSPORTAR O FOGO
(com Acauã El_Bandida Sereya)
NÃO VEJO DIFERENÇA ENTRE UM APERTO DE MÃO E UM POEMA
(com Gisela Casimiro)
RECUPERAR UM FIM É ABRIR O FUTURO
(com Paolo Gorgoni)
PALÍNDROMO: A POTÊNCIA INICIADORA DO FIM
(Sílvia Pinto Coelho)
O TOQUE NÃO DEPENDE DO TOQUE
(com Gabriela Giffoni)
O ESPANTO E O MEDO
(com Telma João Santos)
OS OLHOS DAS MÃOS VAGUEIAM ENTRE O DENTRO E O FORA
(com Sónia Baptista)
RECONHECER A ÚLTIMA VEZ LEVA À PRIMEIRA
(com Matheus Martins)
TATEANDO OS INTERVALOS DO NÃO-SABER
(com Liliana Coutinho)
NO ENCONTRO SURGE A TERCEIRA IMAGEM
(com Joana Levi)
A IDEIA DO FIM NUNCA É COMO NO FIM
(com Jessica Guez)
A ÚLTIMA VEZ NÃO COMO UM EVENTO, MAS COMO UM MISTÉRIO QUE DURA
(com Leonardo Mouramateus)
COMO SE DEIXA UMA LEVE AUSÊNCIA?
(com António Alvarenga)
COMO FABRICAR UM “JAMAIS VU”?
(com Isis Andreatta)
FAZER DA ÚLTIMA VEZ VERBO
(com Rafaela Cardeal)
RECONHECER A SOMBRA DA NOSSA PRESENÇA
(com Carlos Manuel Oliveira)
ACABAR COM A PRESSA E CONSTRUIR A ESCUTA
(com Carolina Campos)
ANSIAMOS QUE FIQUE ANSIAMOS QUE PASSE
(com Mauro Soares)
ENTRE O PRINCÍPIO E O FIM: A EXPERIÊNCIA DA FALÉSIA
(com João Fiadeiro)
NADA VENCE NADA
(com André e. Teodósio)
COMO DEMORAR NO QUE PASSA?
(com Felipe Ribeiro)
MEDITAR GASTANDO O GESTO
(com João dos Santos Martins)
COMO MATAR UM SISTEMA EM NÓS SEM QUE ISSO NOS MATE?
(com Fernanda Eugénio)
A TERNURA ÀS VEZES ULTRAPASSA O MEDO
(com Duarte Bénard da Costa)
ABRIR MÃO E ACOLHER
(com Alexandre Pereira)
i William Shakespeare, Richard III, ed. Rafael Buffel (New Haven: Yale University Press, 2008), tradução livre.
ii Judith Butler, “Violence, Mourning, Politics”, em Precarious Life (Londres e Nova Iorque: Verso, 2004), tradução livre.
iii Ver O encontro é uma ferida (excerto da conferência-performance Secalharidade de João Fiadeiro e Fernanda Eugénio), https://ladcor.files.wordpress.com/2013/06/o-encontro-c3a9-uma-ferida.pdf.
iv Ver Joan Kirkby, “Remembrance of the Future: Derrida on Mourning”, Social Semiotics, 16 (2006): 461-472.
v Ver Jacques Derrida. The Works of Mourning, ed. Pascale-Anne Brault e Michael Naas (Chicago: University of Chicago Press, 2003), livro que edita o conjunto destas elegias.
vi Excertos do convite enviado pelo Daniel a cada participante.
vii Estas imagens foram montadas num filme apresentado em live-streaming no evento Recolher Obrigatório, nos dias 18 e 19 de dezembro de 2020, organizado pelo Teatro do Bairro Alto (Lisboa).Micael Ferreira A Primeira Fonética
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João dos Santos Martins Editorial
No justice
no peace
no futureÀ Mariana Nobre Vieira
Começo a escrever este editorial enquanto estou preso, em quarentena, num quarto de hotel há onze dias. No mesmo dia em que explodiu uma quantidade inimaginável de nitrato de sódio na Baixa de Beirute, provocando uma devastação sem precedentes. Não era por aqui que queria começar, mas é difícil saber por onde começar. A última edição do Coreia incluía dois artigos que testemunhavam a violência política e policial na revolução civil em curso no Líbano. O jornal foi para imprimir no dia 10 de março de 2020 para ser lançado a 13. Um dia depois, a 11, a Câmara Municipal do Porto cancela os eventos públicos locais e, em poucas horas, as mesmas medidas alastram a todo o país. Fecham os teatros, os museus, as escolas, as bibliotecas, as piscinas, cancela-se o lançamento e, em questão de dias, é declarado o Estado de Emergência. Ninguém sabia o que aí viria, além do imaginário longínquo do alvoroço causado pela pandemia na China e das notícias fatídicas que chegavam de Espanha e Itália.
Não saber acarreta dois estados de espírito que se confundem. Por um lado, a ansiedade, a impossibilidade de prever, a incapacidade de planear e vislumbrar o futuro. Por outro a expectativa, o desejo, a potência que faz emanar do presente a possibilidade e a utopia. Quem pôde fechou-se em casa, na incógnita do dia depois de amanhã. Quem não pôde, continuou o rumo da sua vida. Xs trabalhadorxs mais reprimidos pelo sistema capitalista tornaram-se essenciais. Xs invisíveis e inviabilizadxs, empregadxs de limpeza, varredores de rua, ‘caixas’ de supermercado, cantoneirxs, trolhas, cuidadorxs formais e informais, quem se ocupa da cidade e dos vulneráveis para que a cidade continue a funcionar sem que se dê por isso, não puderam ficar em casa. A partir do filtro do “essencial”, descobrimos que todas as atividades que nos implicavam, consumíamos e consumiam, eram “não essenciais”.
Quando, em 1969, a artista judia norte-americana Mierle Laderman Ukeles propõe como exposição uma ‘Arte de Manutenção’ trazia para o discurso artístico a necessidade de cuidar do pessoal, do social e do planeta. Para Laderman Ukeles, cujo manifesto “CUIDAR” aqui publicamos em português pela primeira vez, a proposta não é moralizar sobre esses cuidados. É, sobretudo, tornar visível o invisível. O trabalho tão indissociável da vida que deixa de o ser quando vitimado pela capitalização da organização da vida em torno da reprodutibilidade. Sobre o seu legado e o que dá que pensar hoje do ponto de vista do ecofeminismo e da luta de classes contemporânea escreve a historiadora de arte Elisabeth Lebovici, reconectando a obra inicial de Laderman Ukeles com o trabalho artístico e comunitário que desenvolve, desde os anos 1970, com as equipas sanitárias da cidade de Nova Iorque. Um trabalho igualmente invisível que acontece nos meandros que orbitam as instituições de arte e que se ocupa em cuidar do dia a dia de milhões de pessoas.
O dia a dia nunca terá sido tão vivido como neste momento incerto em que cada dia é só mesmo um dia de cada vez. Do registo desse presente diarístico, publicamos uma série de posts poéticos da cantautora Lula Pena que coincidem com a série de eventos políticos e sociais que acompanharam a vida pública portuguesa, vista de dentro de casa. Em paralelo, o coreógrafo e bailarino Henrique Furtado escreve um diário de quarentena que agrega no seu todo questões sobre o estatuto do artista independente na cena da dança europeia, e de todas as contradições que os tempos auguram perante a inversão da economia e da ecologia social, quando o ganha-pão da performance não é uma certeza.
Desde há décadas que uma das questões centrais na esfera dos processos coreográficos coletivos é a ideia de ‘como estar junto’. A sociabilidade da dança enquanto prática comunitária faz com que os artistas se procurem nessa ambição, criando modelos que replicam relações e que levam a imaginar outras formas de reunião e de colaboração. Desbloquear a distância entre os corpos e os espartilhos do dia a dia passa muitas vezes pela sua fusão, pela sua manipulação, pela quebra de barreiras, pela nudez, pela proximidade, pela sensibilidade, pela impertinência. É uma prática transversal à dança e que qualquer bailarinx ou espectadorx experiencia. Partindo da sua experiência de assistir à peça de Daniel Pizamiglio, PRESTE ATENÇÃO EM TUDO A PARTIR DE AGORA, e da sua atividade como médico que tem vivido na pele e nos hospitais a crise da Covid-19, Miguel Teles escreve sobre as relações marcadas pela ideia de imunidade. E retira dessas observações a contradição que o corpo de um bailarino encerra num momento em que o corpo é o agente da transmissão virulenta.
Numa entrevista a Félix González-Torres, vítima da crise da SIDA nos EUA, o artista cubano dizia que queria “ser aquele que se parece com outra coisa para se infiltrar, a fim de funcionar como um vírus”. Continuava: “O vírus é o nosso pior inimigo, mas também deve ser o nosso modelo […] para que nos possamos colar às instituições que sempre existirão […]. Se estivermos anexados a elas como um vírus, replicaremos juntos com elas.”i
O imponderável como única certeza fez com que um grupo de artistas das mais diversas áreas se organizasse num movimento solidário de apoio de emergência a agentes das artes vítimas da falta de proteção social. Essa comunhão na desgraça viu-se transformada num movimento político de relevância, com capacidade para agregar sindicatos e estruturas associativas, e estabelecer uma estratégia para denunciar a precariedade da classe artística e reivindicar os seus direitos laborais. Desse movimento, denominado Ação Cooperativista, publicamos um testemunho que denota a interseccionalidade das suas causas e ambições, prova de que, num momento em que é impossível estar-se junto, foi possível agregar uma comunidade e fortalecê-la, através de uma noção de inclusividade e justiça.
Óbvio é que a metáfora do vírus tanto serve para o bem como para o mal. E que tanto os movimentos políticos progressistas que renovam a esperança por um mundo mais justo por vir, como os da violência, da marginalização, da discriminação, que anseiam o retrocesso (se não pelo menos o status quo), têm uma capacidade exponencial simétrica. O ator negro Bruno Candé foi brutalmente assassinado por um supremacista branco com uma arma da guerra colonial que guardava em casa há mais de quarenta e cinco anos. Este evento projetou, a partir do sentimento do intolerável, a concretização de um dos maiores movimentos antirracistas de sempre em Portugal, replicando a indignação de outros eventos e gatilhos locais e internacionais. Melissa Rodrigues, artista e investigadora, é ativista do movimento antirracista e foi recentemente ameaçada por um grupo extremista neonazi português por denunciar a violência sistémica que perpetua o racismo em Portugal. Meses antes, a artista desenvolvera uma performance cujo processo, em quarentena, fora testemunhando os movimentos de insurreição antirracista. Resultado disso chega-nos um texto-manifesto com a exigência de um futuro de emancipação coletiva no reconhecimento das chagas do colonialismo.
É necessário mudar as instituições para que a sociedade as acompanhe. As duas coisas têm necessariamente de acontecer e na maioria das vezes não acontecem em simultâneo. É por isso que a reprodução do vírus é tão essencial. É preciso continuarmos a reproduzirmo-nos com as instituições, não só para as transformar. Mas para mudar com elas. É de uma experiência como esta, de reclusão e resistência institucional, que nos fala o curador Miguel Wandschneider em conversa com Christophe Wavelet a propósito do novo lugar que irá abrir em Lisboa em outubro, Parterre — uma livraria e um projeto expositivo independente, amadrinhado pela artista Ana Jotta. Nesta troca, discute-se sobre o condicionalismo das instituições e das tutelas, o domínio das tendências, sobre o fazer projetos porque se acredita neles e porque se creem necessários, sobre ética profissional e a forma como a insistência do desejo pode tornar a potência em realidade.
Na sequência de textos-manifestos-testemunhos vários artistas escrevem-nos a partir dos posicionamentos do seu corpo de trabalho. Volmir Cordeiro rejeita por princípio a ideia de propriedade, apropriando-se do impróprio, da margem, para reclamar um ex-corpo que procura legitimidade para ir comer ao corpo dos outros. Diana Niepce fala de um processo de experiência do corpo através da sua própria escuta, em contraposição à adequação à imagem idealizada do corpo na dança. A artista sul-coreana Min Kyoung Lee guia-nos pela sua performance de longa duração em que durante dois anos da sua vida buscou a conquista de iluminação espiritual. São três olhares sobre o corpo e a sua imanência enquanto sujeitos políticos implicados pela agência no mundo. E é com essa consciência política que, num contexto em que a coexistência do corpo na sociedade está em risco, abrimos esta edição com um texto reivindicativo do reconhecimento pelo Estado português das práticas da dança contemporânea que se veem cada vez mais condenadas à efemeridade e ao desaparecimento. Numa iniciativa coletiva da qual fazem parte três dos principais agentes da denominada Nova Dança Portuguesa — Vera Mantero, João Fiadeiro e Francisco Camacho —, a investigadora Liliana Coutinho e eu próprio, aqui se lançam as premissas de uma reflexão que se quer abrir a todos os que celebram a dança e a performance como vitais ao questionamento do corpo na sociedade. É necessária uma iniciativa estatal de salvaguarda do património e de garantia da prosperidade das práticas coreográficas contemporâneas no nosso país. Só assim, congregando um movimento social de emancipação, de luta por direitos e pela inclusão, poderão os portugueses ter um corpo.
Vera Mantero João Fiadeiro Francisco Camacho João dos Santos Martins Liliana Coutinho Por um Centro Nacional para a Dança Contemporânea em Portugal
Por um Centro Nacional para a Dança Contemporânea em Portugal i
Introdução
Este documento foi elaborado a partir de correspondência mantida com o Ministério da Cultura durante o ano de 2019, na preparação (e na sequência) de uma reunião com a ministra Graça Fonseca ocorrida a 11 de Julho de 2019. A intenção inicial foi defender as ideias-chave deste documento junto do Governo, advogando ainda a sua inscrição no programa do Partido Socialista para as eleições que então se aproximavam.
Não só esse objectivo saiu gorado como a única menção que a dança contemporânea obteve no programa eleitoral se resumiu a uma curtíssima referência sobre “formas organizadas de experimentação de música e dança” nos Estúdios Victor Córdon da Companhia Nacional de Bailado. É uma frase que nos escapa (na formulação) e desconcerta (na associação entre dança e música), mas é sobretudo reveladora da forma como a dança contemporânea, aos olhos do poder, é ainda subsidiária e dependente do “bailado”.
Não é razoável o Estado continuar a ter o ballet como único referente ao nível dos grandes investimentos, como se nada se tivesse passado entretanto na história desta forma de arte no nosso país. A dança contemporânea tem de ser tratada pelo Estado com o mesmo grau de atenção, cuidado, interesse e recursos que coloca nas outras áreas artísticas contemporâneas. O investimento que se faz na dança via Companhia Nacional de Bailado não resolve essa disparidade. Antes pelo contrário: a disparidade aumenta na proporção exacta do crescimento e projecção da dança contemporânea portuguesa.
Isto é algo que muitos responsáveis pela pasta da Cultura ainda não perceberam, ao defenderem que o Estado já cumpre o seu papel de apoio à dança através do investimento que faz na Companhia Nacional de Bailado. É um facto que esta instituição é uma estrutura de iniciativa estatal que tem a dança como objecto. Mas por ser uma “companhia” (com elenco fixo) de “bailado” (associada sobretudo à dança clássica ou neo-clássica), não representa mais de três décadas de intensa produção artística da nova dança e da dança contemporânea portuguesas.
Aliás, a ideia de que a utilização do corpo como instrumento de trabalho nos torna automaticamente parte de uma mesma “categoria” representa uma espécie de “equívoco original” que dificulta em muito a definição de políticas culturais que se adequem à nossa especificidade. Muitos dos protagonistas da dança contemporânea em Portugal estarão mais próximos — do ponto de vista da partilha de conceitos, questões e métodos — de práticas que vêm das artes visuais, da música contemporânea, do cinema ou da literatura do que da dança clássica ou neo-clássica. E não estamos com isto a renegar a herança de movimentos que nos precederam. Estamos a reivindicar que a dança contemporânea tem de ser reconhecida, através de um investimento inequívoco, por parte do Estado. Algo que não acontece neste momento.
Para combater essa invisibilidade (e insensibilidade) crónica do Estado em relação à dança contemporânea, este posicionamento torna-se ainda mais urgente.
Premissas
Por considerarmos haver uma disparidade de investimento por parte do Estado em infra-estruturas ligadas à dança contemporânea, pensamos ter chegado o momento de o mesmo colmatar esta lacuna e dar início à construção de uma iniciativa de escala nacional, em articulação com todos os agentes directamente ligados a esta área (autarquias, ministérios, fundações, etc.), que tenha em consideração a linguagem e herança tão singular da dança contemporânea no panorama das artes, quer a nível nacional quer internacional.
Esta falta é ainda mais gritante quando comparamos o investimento feito na dança contemporânea com aquele que é feito nas demais manifestações contemporâneas de outras áreas artísticas. Com efeito, ao contrário do teatro, que conta com dois Teatros Nacionais (que neste momento centram grande parte da sua programação na dramaturgia e encenação contemporâneas); da música, que tem a Casa da Música com um foco transversal quer em termos de épocas como de géneros; ou das artes visuais contemporâneas, que têm o Museu Nacional de Arte Contemporânea e diversos outros museus do Estado ou com a sua participação directa; a dança contemporânea não conta com qualquer estrutura, instituição ou espaço que se ocupe e preocupe com o seu legado, a sua memória futura e, sobretudo, a sua produção presente.
Essa falta de investimento não reflecte a influência, a riqueza e a complexidade do movimento da dança que emergiu em Portugal no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990 e que teve a denominação inicial de Nova Dança Portuguesa (herdeira dos movimentos análogos Franceses e Belgas, da dança-teatro Alemã e do pós-modernismo Norte-Americano).
Missão
O “Centro Nacional para a Dança Contemporânea” deve ser um projecto de desígnio nacional, pensado de forma estruturada como um projecto de futuro. Deve ser construído com (muitos) pés e (muitas) cabeça(s) e por isso deve ser objecto de trabalho de uma comissão de estudo, ou similar, que apresente uma proposta ao Ministério da Cultura. Esta terá necessariamente de ter a contribuição da comunidade da dança contemporânea na sua construção e, como em iniciativas congéneres europeias, deve ser alvo de concurso para o projecto da sua direcção, devendo ter a sua missão desenhada tendo em conta objectivos fundamentais como:
— reflectir a riqueza e a complexidade do movimento que emergiu em Portugal no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990, criando olhar e consciência sobre a dança contemporânea, tanto histórica como em torno da actualidade;
— incentivar e promover o pensamento, o questionamento e a reflexão em torno da forma de arte que, no nosso país, mais intensamente questiona o corpo e o seu lugar na sociedade;
— promover o estudo e a investigação da diversidade das práticas e métodos da dança contemporânea e a sua transmissão;
— criar e proporcionar espaços de trabalho em condições condignas e compatíveis com as necessidades físicas da prática;
— instigar uma dinâmica atenta à experimentação e às questões contemporâneas emergentes, privilegiando a transdisciplinaridade, modos de organização inclusivos e a transversalidade às várias gerações;
— promover uma prática de edição permanente através da publicação de originais e de traduções em português de obras pré-existentes, ensaios académicos, livros de autor, documentários, registos de espectáculos, entrevistas, etc.;
— construir e preservar um centro de documentação próprio com biblioteca actualizada, e acolher e preservar espólios de artistas que se dedicam às práticas coreográficas.Espaço
É fundamental que o lugar onde se venha a alojar o “Centro Nacional para a Dança Contemporânea” tenha as condições necessárias (e condignas) para a criação e produção em dança contemporânea; para o arquivo e reactivação da memória em torno do património acumulado nesta área em Portugal desde há mais de 30 anos; para ciclos/colóquios/debates que criem ligações e sinergias entre profissionais, e entre profissionais e públicos; para o incentivo à dança na sociedade em geral (dança social, tão necessária e tão negligenciada); enfim, para a promoção teórica e prática de uma consciência em torno do corpo, do espaço e do tempo, e do que isso implica em termos de uma compreensão de si, de nós e do mundo. Em suma, um pólo que congregue, estimule, divulgue, crie sinergias e parcerias, valorize, faça ver e conhecer, inscreva a dança contemporânea no território nacional e na sua realidade artística e cultural.
Não há um modelo concreto da forma que deveria tomar uma estrutura deste género, até porque — tal como o seu nome — deve resultar de um diálogo alargado à comunidade de artistas, especialistas, técnicos, etc. Mas modelos como o Centre National de la Danse, em Paris, ou as Fábricas de Creación, em Barcelona, são iniciativas que consideramos de referência para um projecto desta natureza, seja ele centralizado ou não.
A ideia em Portugal não é nova: Rui Horta começou por chamar Centro Coreográfico ao Espaço do Tempo em Montemor-o-Novo e já teve um projecto para um centro coreográfico no Príncipe Real, em Lisboa; Paulo Ribeiro coordena o projecto de uma Casa da Dança em Almada; e o Teatro Rivoli, dirigido por Tiago Guedes no Porto, é um verdadeiro ‘Teatro para a Dança’ com o sucesso que se lhe conhece, para citar apenas alguns exemplos de maior amplitude.
Mas, por muito mérito que tenham (e durante muito tempo foi via iniciativas individuais que se foi construindo o tecido artístico actual), a dança contemporânea atingiu uma maturidade que já não pode depender de projectos de autor que terminam quando esses mesmos autores se retiram dos seus cargos. É necessário um projecto de iniciativa estatal, robusto e de futuro, que seja sustentável, que se prolongue no tempo e dê frutos.Conclusão
A disciplina da dança já sofre bastante com o carácter efémero da sua actividade. Se a sua existência e desenvolvimento depender exclusivamente dos apoios concursais circunscritos no tempo (também eles efémeros, erráticos e insuficientes) que visam responder a propostas e iniciativas pontuais, sem qualquer obrigação (ou possibilidade) de se pensar a médio e longo prazo (tanto na direcção do futuro como na direcção do passado), a dança contemporânea tenderá a fragilizar-se, a dispersar-se e a sua inscrição, como se tem verificado até aqui, ficará refém da volatilidade dos ciclos democráticos.
Está na hora de a dança contemporânea ter um lugar à altura da sua história.
i Percebemos que é uma contradição de termos falar-se, num texto como este, de “Centro” e de “Nacional” (e mesmo de “Dança” e até de “Contemporânea”). São palavras extremamente carregadas e que podem representar o contrário do que defendemos. Os centros são obsoletos, e a dança quer-se expandida e internacional. Mas é necessário colocarmo-nos, de forma inequívoca, lado a lado com outras instituições “nacionais” que pretendemos como congéneres. Ou seja, o nome, neste contexto, serve sobretudo para chamar a atenção do Estado (numa linguagem que eles entendem) para aquilo que está em jogo. Não obstante, a primeira missão de um qualquer grupo de trabalho que terá a seu cargo a implementação de um projeto desta natureza será pensar o seu nome.Ação Cooperativista Lutamos pela mudança e pela liberdade: esta é a luta da Cultura
Lutamos pela mudança e pela liberdade: esta é a luta da cultura
Penso que os movimentos, os movimentos feministas e outros, se tornam verdadeiramente poderosos quando começam a afetar a visão e a perspetiva das pessoas que não se identificam forçosamente com eles. [Angela Davis, A Liberdade é uma Luta Constante]
Nada está conquistado. Antes mesmo da pandemia nada estava garantido – no que diz respeito a matérias elementares de justiça social, de liberdade e de direitos fundamentais de cada pessoa. A Cultura como direito essencial e dever do Estado, salvaguardado na Constituição da República Portuguesa, estava já em situação de calamidade. A crise de saúde pública que desencadeou uma crise económica só veio dar mais visibilidade à vergonhosa inação do Governo português nesta matéria. Foi neste contexto, e neste espírito, que a Ação Cooperativista nasceu em abril de 2020.
Quando assistimos ao ressurgimento de políticas de ódio , torna-se evidente a presença da violência, física e psicológica, no quotidiano, como ameaça do retrocesso civilizacional que atualmente enfrentamos. Quando lutamos pela Cultura e pelas Artes estamos a lutar por uma ideia de sociedade mais solidária, justa, honesta, empática e humana.
A Cultura e as Artes são um território de pertença de uma causa fundadora que urge defender, em nome do respeito por toda e cada pessoa e em nome de uma sociedade em que queiramos, e nos seja permitido, com dignidade, liberdade e respeito pela outra individualidade, viver. Que estes princípios fossem tomados como prioridade por qualquer Governo seria uma expetativa elementar. Infelizmente não é isso que constatamos. E temos consciência do perigo permanente de dissolução das linhas de fronteira entre a desconsideração da Cultura e das Artes e a sua instrumentalização enquanto armas de propaganda e entretenimento políticas.Angela Davis interroga o que podem, hoje em dia, os movimentos conquistar. É urgente despertar a consciência de que, tal como nas décadas de 1960 e 1970, os movimentos de massas podem, de facto, gerar uma mudança sistémica. Foi com essa convicção que lançámos a petição “Subsídio Vitalício para a família de Bruno Candé Marques”. Importa o facto de Bruno Candé ser ator. Importa a revolta perante o o horror de um assassinato gerado por uma mentalidade racista. “A petição, para além da reivindicação de uma elementar reparação de justiça social de salvaguarda dos recursos mínimos de subsistência da família de Bruno Candé, é também uma forma de manifestação de repúdio inequívoco a qualquer ato de discriminação.”
Nos anos de que fala Angela Davis, as conquistas passaram pela aprovação de leis fundamentais, como a Lei dos Direitos Civis ou a Lei do Direito de Voto, que sublinha: “Nada disso aconteceu porque um presidente deu passos extraordinários. Aconteceu porque as pessoas se manifestaram e se organizaram.” É essa a nossa obrigação: não ficar passivamente à espera de atitudes de quem governa, que diz que nos representa, porque é provável que, em muitos casos, a defesa dos nossos direitos não seja prioritária.Estamos num momento-chave e muito delicado. O tempo é de ação cooperartivista [sic] para salvaguardar a conquista de liberdades e direitos das últimas décadas como a não discriminação — em razão do sexo, credo ou cor da pele —, o direito elementar e constitucional à habitação, a garantia da manutenção da justiça social, onde a distribuição dos bens essenciais por todas as pessoas seja assegurada, a par de uma diminuição das desigualdades sociais e de uma mudança de paradigma relativamente às alterações climáticas.
A luta da Cultura e das Artes está profundamente ligada a todas estas esferas, que constituem a vida em sociedade e pensam o futuro a partir do presente. Por isso, o que nos mobiliza é uma mudança de mentalidades, na qual a solidariedade e o diálogo franco com lugar ao contraditório e à diferença coexistam. É no reconhecimento e valorização desse ser único que somos e no permanente exercício de nos tentarmos encontrar, em conjunto, na nossa singularidade e diferença, que a Ação Cooperativista tem vivido, consciente da permanente aprendizagem do desconhecido e da imensidão das questões de fundo que “ainda” não domina. E, semana após semana, experimenta o exercício da partilha e da luta não hierarquizada.
Talvez a nossa maior sabedoria provenha precisamente do tecido orgânico frágil que nos compõe, que se coloca sempre num lugar de profunda vulnerabilidade e exposição ao erro, porque esse é o lugar da permanente interrogação. Também nesse sentido, afirmamos a fundamental importância da arte, no seu estado íntimo de prática experimental, de um humanismo irredutível.Quando nos mobilizamos pela Cultura, estamos a mobilizar-nos por um todo que a transcende.
Quando resolvemos colocar as redes sociais a branco, queríamos defender esse direito à Cultura fundador da cidadania que a Constituição portuguesa, de modo extraordinário e possivelmente inédito no mundo, instituiu desde a sua primeira redação, em 1822.
Quando nos propusemos intermediar o diálogo entre várias estruturas formais representativas do setor (sindicatos, associações, cooperativas, grupos informais), o que levou ao surgimento do manifesto #unidospelopresenteefuturodaculturaemportugal, guiou-nos o propósito de em “união” defendermos esta causa.
Quando, mais tarde, viralizámos as redes com fotos de profissionais das artes, umas pessoas conhecidas e muitas mais anónimas, com o #unidospelopresenteefuturodaculturaemportugal, o princípio orientador foi o mesmo.
Quando afirmámos o “Pacto de Compromisso para o Futuro, do Governo com a Sociedade Civil”, o repto foi no mesmo sentido. “Todas as pessoas têm o direito e o dever de serem agentes de mudança: mais solidárias e menos individualistas. É urgente lutarmos contra a desigualdade social. A Ação Cooperativista compromete-se com esses princípios e vem, a 25 de maio de 2020, propor um pacto ao Governo para com a Sociedade Civil. Consideramos que vivemos um momento inédito de fragilidade, precariedade agravada e incerteza a nível nacional, que muito afetou as pessoas menos contempladas pela proteção social: quem tem uma atividade profissional independente.”Neste verão quente em que, em cima da catástrofe de saúde pública e de crise económica, vivemos a calamidade de um país que arde, achámos de mau gosto um programa lançado pelo Ministério da Cultura com o nome “Não brinques com o fogo”. Ainda sorrimos a pensar que seria um ato de guerrilha criativa, com humor, que visava o gabinete de Graça Fonseca. Afinal revelou-se real. Já tínhamos alinhado contra o perfil de ministra da Cultura, que descobriu que gostava de programar e inventou um tal de TV-Fest. A recusa de comentar a calamidade em que vivem as pessoas que trabalham na Cultura e nas Artes e convidar jornalistas para um “drink de fim de tarde” no final de julho atinge um grau de distanciamento inadmissível. Não há sentido de humor que resista.
Não aceitamos as comunicações públicas de valores disponibilizados para a Cultura e para as Artes, que se sucedem, numa prática vã e descuidada com que se aprovam muitas leis no Parlamento – sem a salvaguarda dos mecanismos que garantam, com transparência, a aplicação correta do que é propagado.
Existimos já num tempo que é diferente. Surgimos com a pandemia, em confinamento e em vida quotidiana online, numa sujeição pela intermediação radical de um ecrã de computador ou de telemóvel. Mas esta condicionante também nos abriu um novo espaço de encontro. Sabemos que a missão a que nos propusemos não terminará tão cedo, que para além das questões imediatas que nos levaram a agir, há muitas outras em que queremos tomar posição.
Na Ação Cooperativista somos de vários pontos do país, de várias áreas artísticas (escusado será dizer que repudiamos qualquer atividade fundada no sofrimento animal), das mais variadas sensibilidades políticas, (exceção clara para políticas de ódio e intolerância, que incitam à violência e discriminação contra a diversidade humana), sem filiações partidárias, somos de vários géneros (somos mais mulheres, curiosamente, e gostávamos de ter mais diversidade na representação das identidades de género), somos de várias etnias e origens geográficas. Em tudo isto que somos, gostávamos de ter ainda mais diversidade na presença dessa pluralidade. Há um longo caminho para percorrer, já somos bastantes a percorrê-lo em união, mas, como dizia Zeca Afonso, é sempre bem-vinda a pessoa que vier por bem.Texto elaborado por (ordem alfabética): Ainhoa Vidal, Ana Borralho, Ana Rocha, Bruno Alexandre, Bruno Rodrigues, Carlota Lagido, Catarina Requeijo, Claudia Galhós, Filipa Francisco, Filipe Baracho, Joana Castro, Léa Prisca Lopez, Marta Jardim, Marta Silva, Mónica Talina, Nuno Labau, Pedro Gonçalves, Renan Oliveira, Rita GT, Ruy Malheiro, Sílvia Real, Susana Domingos Gaspar, Teresa Coutinho.
Nota: Este texto foi escrito ao abrigo da Linguagem Neutra de género.
Melissa Rodrigues CORONAS IN THE SKY, Not a Manifesto! um ensaio sobre Afrofuturismo e Libertação
Estar em residência artística no meio de uma pandemia é um delírio criativo e uma tentativa constante de (re)conexão com a realidade envolvente.
Lá fora o mundo gira. A próxima grande crise aproxima-se silenciosa e cruel devastando vidas já antes marcadas pela desigualdade racial, de género, social e económica.
Lá fora há silêncio e o som das sirenes molda o espaço outrora habitado por uma cidade.i
Há algum tempo – talvez tenha sido ontem – alguém escreveu Vivemos Tempos Estranhos, outrxs vaticinaram Vivemos Tempos Perigosos, académicxs, curadorxs, programadorxs, artistas, pesquisadorxs de todas as áreas debruçavam-se sobre a singularidade dos nossos tempos, sobre o perigo de um retrocesso coletivo, profetizava-se uma ideia de futuro hipotecado, distópico, enquanto as praças se enchiam de corpos vibrantes em resistência, o lugar de fala era reclamado, as ruas eram nossas, a assembleia a casa, aquilombávamo-nos. Afinal era hoje.
A inquietação feita grito preso na garganta liberta-se no mesmo instante que o ar é expirado… Quem tem medo de quem?Falemos de 2020… Cancelamentos em torrente, a incerteza viva e latente nos rostos familiares que nos observam atentamente do outro lado do ecrã, o não-futuro, o desamparo, a vida em suspenso, o vírus que afinal não é democrático — que nunca fora. Falemos dos corpos que tombam, da violência não filtrada no feed de notícias, do ódio aberrante que escorre das caixas de comentários das redes sociais, falemos de Cláudia Simões, Breonna Taylor, Luís Giovanni, Ahmaud Arbery, falemos de Miguel Otávio Santana da Silva, João Pedro, Guilherme Silva Guedes.
George Floyd e Bruno Candé.
Falemos da História. O silêncio cúmplice complacente mata.
A negação do óbvio não o faz desaparecer, apenas o invisibiliza e legitima a violência simbólica, epistémica e estrutural sobre os corpos construídos e imaginados como ‘o outro’. O padrão é o mesmo, o ponto de partida mantém-se, o sujeito branco como norma, medida e referência de análise e pensamento do mundo. O Ocidente como o mundo.
Falemos de racismo.
A quem convém a falácia de um país não-racista? A quem ainda convém uma História seletiva? E a quem convém o discurso de um país multicultural?
Falemos sobre branquitude.
Olhemo-nos ao espelho. Analisemos as nossas redes de afinidades, amizade e trabalho.
Blackout Tuesday. O quadrado negro. A comoção seletiva, enquanto as estruturas de poder se perpetuam.
A diferença entre aliados e cúmplices é abismal. O lugar de escuta não é compreendido. A aliança torna-se num exercício performativo de poder e protagonismo. Cansaço e repetição.
A violência continua, o racismo é negado ou espetacularizado até à exaustão. O delírio é coletivo, branqueia-se a História, glorifica-se o agressor, inventam-se polémicas, aponta-se o dedo à vítima, descredibiliza-se a luta dxs sujeitxs políticxs racializadxs pela inscrição da sua existência na História. Repetição e cansaço.
Não é ignorância, é o privilégio de não ter de saber. É preciso saber a quem dar a mão.
A resistência desenha-se a cada fôlego, a cada gesto, é coletiva de base, efetiva-se pelo ato primordial do cuidar, pelo (re)conhecimento da História, da ancestralidade. A resistência é antiga e vem de longe como os nossos passos.See you Yesterday. Coroas ao alto!
Odôyá
Iemanjá
Sonhei que me afogava,
mais uma vez
Sonhei que me afogava
num mar de chamas
The Old Ship of Zion
ainda ouço os cânticos
Não consigo respirar
A água alcança-me os pulmões
Não consigo respirar
Lembras-te do massacre de Zong?
E de São José-Paquete de África?
Os corpos que enchem comboios
e autocarros
em tempos de quarentena
são os mesmos que enchiam os navios negreiros
as plantações
são os mesmos corpos que limpam a porcaria do mundo
É o corpo da minha mãe
do meu pai
Não consigo respirar
Contra o esquecimento
A contra-memória
Onde figuram na tua História
as mulheres e os homens
que combateram pela liberdade?
pela independência?
pela autoderminação
dos seus territórios ocupados
contra o teu colonialismo?
a quem interessa um discurso único
bacoco, datado
de glorificação e branqueamento?
Tenho a memória de uma imagem
de um soldado
que pontapeia uma cabeça decapitada
de um homem negro
”Estamos a jogar futebol” disse
enquanto se riam
Não consigo respirar
Desvanece-se a noção de tempo e espaço
Não há nada
Silêncio
O eterno vazio
Le fond d’air est rouge
E a imensidão é bela e negra
Como a tua pele
Angst essen Seele Auf
biopolítica, necropolítica
Sistemas de controlo
Vigilância
Destruição
E repete
É tudo sobre Poder
Tenho saudades do tempo em que era bicho
Estou demasiado cansada de morrer
não morro mais
Não és de cá, pois não?
Dark Matter Moving at the Speed of Light
Oxalá
Future and space are no longer a foreign concept, but a way of life
alastra-se como bolor
apropria-se
invade e domina
o teu nome é doença
podridão, pestilência
chaga
violência
é o teu nome
eugenia
fragilidade branca
mais de 12 milhões
e falta contar-nos
corpos escravizados
amordaçados
marcados a ferro
tens sangue nas tuas mãos
repetição, repetição, repetição
ainda sinto o fedor
as larvas
a apoderarem-se da carne
podre.
Queda e
decadência
desumanização
é o teu nome
são sempre os mesmos corpos a morrer
o vírus
o outro
o estrangeiro
a anormalidade
o fruto estranhoAno passado eu morri
este ano
Eu não morro
Não permitiremos que nos apaguem
que nos eliminem
Estamos aqui
Os nossos caminhos são antigos
Somos organismos vivos
vibrantes
Resistimos
como ontem
e desde o início dos tempos
Nossos passos vêm de longe
Repetição e Diferença
O algoritmo foi alterado
Eles combinaram de nos matar,
nós combinamos de não morrerO algoritmo foi alterado
Sou o amanhã
O depois, o devir
A potência e a semente selvagem
A floresta nua
A torrente de sangue
A serpente
Sou o teu medo
morte e destruição
sim, sou o futuro
depois de ti
a evolução da espécie
o amanhã
a matéria transcendental
a máquina perfeita
a criação divina
here we are now
e viemos para ficar
seremos resistência
a voz que não se silencia
o rosto do amanhã
a fome, o livro, a cantina
a raiva a crescer nos dentes
o grito de revolta
seremos a alegria e a primavera solar
orgulho e cosmos
filhas do fogo, da terra
dos ventos e das águas
apontamos as nossas coroas ao céu
celebramos a memória dos nossos corpos
A nossa ancestralidade
Celebramos a dança
E resistimos
Eles combinaram de nos matar,
Nós combinamos de não morrerMierle Laderman Ukeles Manifesto para uma Arte de Manutenção, 1969! Proposta para uma exposição: “Cuidar”, 1969
I. IDEIAS:
A. O Instinto da Morte e o Instinto da Vida:
O Instinto da Morte: separação, individualidade, vanguarda por excelência; seguir o seu próprio caminho até à morte – fazer as suas coisas, mudanças dinâmicas.
O Instinto da Vida: unificação, o eterno retorno, a perpetuação e a MANUTENÇÃO da espécie, operações e sistemas de sobrevivência, equilíbrio.
B. Dois sistemas básicos: Desenvolvimento e Manutenção. O amargo de boca de todas as revoluções: depois da revolução, quem vai apanhar o lixo na segunda-feira de manhã?
Desenvolvimento: pura criação individual; o novo; mudança; progresso; avanço; excitação; voar ou fugir.
Manutenção: manter o pó afastado da criação individual pura; preservar o novo; apoiar a mudança; proteger o progresso; defender e prolongar os avanços; renovar a excitação; repetir
o voo.mostrar o trabalho — mostrá-lo de novo
manter o museudeartecontemporânea fantástico
manter a casa de péOs sistemas de desenvolvimento são sistemas com um retorno parcial e com muito espaço para a mudança.
Os sistemas de manutenção são sistemas com um retorno imediato e com pouco espaço para serem alterados.C. A manutenção é uma chatice, ocupa a merda do tempo todo (literalmente).
Fica-se com a cabeça confusa e cansada pelo aborrecimento. Culturalmente os trabalhos de manutenção gozam de um péssimo estatuto social = salário mínimo, donas de casa =
remuneração zero.limpar a secretária, lavar a loiça, limpar o chão, lavar a roupa, lavar os dedos do pé, mudar a fralda ao bebé, acabar o relatório, corrigir as gralhas, reparar a vedação, dizer ao cliente que tem razão, deitar fora o lixo pestilento, cuidado, não enfies coisas no nariz, o que é que eu visto, não tenho meias, pagar as contas, não mandar lixo para o chão, não gastar tudo, lavar o cabelo, mudar os lençóis, ir à mercearia, acabou-se-me o perfume, repete lá isso — ele não percebe, volta a fechar — ainda verte, ir trabalhar, esta arte está cheia de pó, levantar a mesa, telefonar-lhe outra vez, despejar o autoclismo, manter-se jovem.
D. Arte:
Tudo o que digo que é Arte é Arte. Tudo o que faço é Arte que é Arte. “Nós não temos Arte, tentamos fazer tudo bem.” – ditado balinês.
A arte de vanguarda, que reclama pleno desenvolvimento, está contaminada por várias ideias de manutenção, atividades de manutenção e materiais de manutenção.
— A arte processual sobretudo reclama um desenvolvimento e uma mudança puras e no entanto emprega quase em exclusivo processos e modos de manutenção.E. A exposição de Arte de Manutenção, “CUIDAR”, levará até às últimas consequências a pura manutenção, exibi-la-á como arte contemporânea e gerará, por oposição absoluta, uma clareza em relação a tais assuntos.
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II. A EXPOSIÇÃO DE ARTE DE MANUTENÇÃO: Três partes: Pessoal, Geral e Manutenção da Terra.
A. Parte Pessoal:
Eu sou artista. Sou mulher. Sou esposa. Sou mãe (ordem aleatória).
Passo demasiado tempo a lavar, limpar, cozinhar, renovar, apoiar, preservar, etc. Além disso (e até agora estes dois mundos estavam
separados), “faço” Arte.
Agora vou só fazer estas atividades quotidianas de manutenção, tornando-as conscientes, expondo-as como Arte. Eu vou viver no museu tal como costumo viver em casa, com o meu marido e o meu bebé (exato, mas se não me quiserem no museu à noite, regresso todos os dias) durante o tempo todo da exposição e farei tudo isto como atividades de arte pública: vou varrer e encerar o chão, limpar o pó a tudo, lavar as paredes (ou seja, “pinturas de chão, trabalhos com pó, esculturas de sabão e pinturas de parede”), cozinhar, convidar pessoas para comer, limpar, arrumar, mudar as lâmpadas. É possível que faça aglomerações e disposições com todo o material excedente funcional. A área da exposição poderá parecer “vazia” de arte, mas será mantida para que o público a possa ver.O meu trabalho será o trabalho.
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B. Parte Geral: Toda a gente faz um rol de trabalhos de manutenção fastidiosos. A parte geral da exposição consistirá em entrevistas de dois tipos.
1. Entrevistas previamente realizadas a umas 50 classes e tipos de ocupação diferentes que cobrem um largo espectro de “homens” da manutenção: empregado doméstico, técnico de higiene urbana, carteiro, sindicalista, trabalhador da construção civil, bibliotecário, merceeiro, enfermeiro, médico, professor, diretor de museu, vendedor, jogador de basebol, criança, criminoso, banqueiro, presidente de câmara, estrela de cinema, artista, etc., sobre o que acham que é a manutenção; como se sentem por passarem uma parte da sua vida em atividades de manutenção; qual é a relação entre manutenção e liberdade; qual é a relação entre manutenção e o que sonham para a vida.
Estas entrevistas serão transcritas e exibidas.
2. Sala das entrevistas — para os visitantes da Exposição:
Uma sala com secretárias e cadeiras onde entrevistadores profissionais (?) entrevistarão os visitantes da exposição com uma lista de perguntas semelhante à das entrevistas em exposição (referidas no ponto 1.). As respostas devem ser pessoais.Estas entrevistas são gravadas e exibidas por toda a área da exposição.
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C. Manutenção da Terra:
Todos os dias serão entregues no Museu recipientes com diferentes tipos de excedente: 1) o conteúdo de um camião do lixo; 2) um recipiente com ar poluído; 3) um recipiente com água poluída do rio Hudson; 4) um recipiente com terra devastada. Ao chegar à exposição, cada recipiente será tratado: purificado, despoluído, reabilitado, reciclado e conservado, com recurso a procedimentos técnicos (e\ou pseudo-técnicos), por mim ou por cientistas.
Estes procedimentos serão repetidos enquanto durar a exposição.
Traduzido do original inglês sob o título MANIFESTO FOR MAINTENANCE ART, 1969! Proposal for an exhibition: “CARE”, 1969, com autorização da autora, por Patrícia da Silva e José Maria Vieira Mendes. Escrito em outubro de 1969 em Filadélfia, PA, EUA. © Mierle Laderman Ukeles, Cortesia da artista e da Ronald Feldman Gallery, Nova Iorque.
Élisabeth Lebovici Às trabalhadoras e aos trabalhadores
PT
Este texto foi escrito durante os dias e noites de confinamento em Paris, entre 16 de março e 11 de maio de 2020. Decidi que os meus posts no blog (http://le-beau-vice.blogspot.com) deviam resultar da experiência coletiva que vivemos em tempo de Covid-19 e da ressonância emocional que encontrava em certas obras de arte ou exposições. Foi assim que Mierle Laderman Ukeles, cuja exposição retrospetiva visitei em 2016, no Queens Museum, foi convocada a 3 de abril de 2020.
Em 1972 ocorreu a quinta edição da exposição Art in Process na ala contemporânea do Finch College Museum em Nova Iorque (East 75th St) — que fechou em 1975 – organizada sem grandes meios financeiros, como era hábito em muitas das manifestações dos anos 1970 que supostamente representavam a “desmaterialização da arte” ou, como demonstra Patricia Falguières i, “rematerializações”, porque precisavam de papéis, textos, registos, contratos, cartas, catálogos, fotocópias, fotografias, vídeos, etc. Neste caso, foi uma súbita falta de fundos que levou a curadora Elayne Varian a pedir aos artistas Allan D’Archangelo, Ken Dewey, Robert Indiana, Sol Lewitt, Dorothea Rockburne e Andy Warhol para criarem obras in situ. Estas seriam acompanhadas pela documentação fotográfica do seu processo de produção.
Warhol aparece com uma caixa de cartão com um aspirador por estrear da marca Eureka, abre-a e coloca o eletrodoméstico a funcionar. De seguida, mete mãos à obra. Passa com o aspirador e limpa toda a carpete cinzenta da galeria. No final da performance, retira o saco do aspirador e assina-o. Tanto um como o outro, o saco num pedestal e o aspirador ao seu lado, ficam. Estes objetos são acompanhados por fotografias de Warhol a trabalhar, por vezes acompanhado por uma pessoa da equipa de limpeza do museu.
Interessa-me nisto duas coisas. Primeiro, a exposição e a sua economia. Faz parte do legado pedagógico do museu Finch. De acordo com os Archives of American Artii, as exposições neste espaço propunham-se a desmontar um suporte (pintura, escultura, colagem, arte conceptual, instalação, projeção, etc.) e relatavam o processo de fabricação no interior do espaço e o tempo dedicado à demonstração. Por exemplo, na exposição intitulada Documentation [1968], toda a circulação de uma obra, incluindo a sua compra e conservação, era exibida na exposição.
Nestes tempos de confinamento (estamos em abril de 2020), a “matéria” das instituições culturais foi desaguar à Internet. É esse o lugar onde se anunciam os cancelamentos tal como a curva ascendente de desemprego, em paralelo com um anúncio permanente e cada vez mais ameaçador de paralisação económica. É também aí que se esboçam as perguntas sobre o futuro pós-coronavírus — se é que esse futuro existe. A agulha disponibilizada pela pandemia fará explodir a bolha? Não é suficiente lamentarmo-nos pela quantidade de manifestações que contribuíram para a construção de um “porto franco” da arte contemporânea feito à medida do modelo circulatório do capitalismo masculinista financeiro. Nem denunciar a espiral infernal de uma desmultiplicação de investimentos, de deslocações, de comunicação e de resíduos no campo da cultura (incluindo quando as produções expostas questionam realidades geopolíticas e ambientais, essas mesmas em que tão bem encaixa a pandemia de Covid-19).
De entre os “interruptores da globalização” (Bruno Latour iii) que gostaria que fizessem parte da conversa, penso no texto de Natasa Petresin Bachelez iv, publicado em 2017, em que apela a que se pense em instituições lentas, seguindo os termos de Fred Moten: “So we have to slow down, to remain, so we can get together and think about how to get together. What if it turns out that the way we get together is the way to get together? […] Come get some more of these differences we share. Are differences our way of sharing? Let’s share so we can differ, in undercommon misunderstanding” v. Nestes tempos em que a velocidade (de produção, de testes, de ventiladores, de máscaras, de tratamentos) conta o quádruplo, impõe-se esta lentidão para a nossa vida quotidiana.
A segunda coisa que me interessa é a limpeza. Warhol a passar o aspirador acompanhado por outras pessoas (nas fotografias só se veem homens), gente invisível da instituição museológica. Funções há muito executadas em França por trabalhadores externos. A subcontratação equivale aos maus-tratos, como não nos deixam esquecer as numerosas greves de empregadas de limpeza, de auxiliares de limpeza, de empregadas de quarto dos hotéis Ibis vi. Quanto mais se afasta da esfera doméstica, mais a atividade de limpeza está sujeita a violências de género e raça, sem contar com os riscos, decorrentes dos produtos utilizados, para a saúde dos que a praticam e para o ambiente. As fotos de Warhol não tratam muito a realidade destas pessoas mas ajudam a lembrar que se trata de um trabalho que deve ser reconhecido pela sua utilidade social, que é necessário para todas as formas de trabalho, inclusivamente no seio da instituição cultural.
É isso que afirma Mierle Laderman Ukeles, desde 1969. No seu projeto de exposição CARE, de que faz parte o seu Manifesto! Maintenance Art, propõe, por um lado, tratar a ocupação do espaço da exposição como uma exposição e, por outro, dar visibilidade aos empregados que executam as tarefas relacionadas com limpeza e tratamento de resíduos, tanto no espaço público como no espaço doméstico. O Wadsworth Atheneum vi foi o primeiro museu a aceitar esta proposta. Ocorrem então quatro performances no espaço de dois dias. A célebre série de fotografias-textos Washing/Tracks/Maintenance: Outside (1973) documenta uma dessas performances, durante a qual Laderman Ukeles limpa com uma esfregona, muita água e lixívia os degraus das escadas da entrada do museu, bem como o átrio interior em mármore. As outras três ações têm lugar no interior das instituições expondo a hierarquia entre as tarefas. Vemo-la nas salas, de gatas, no meio dos visitantes (Washing/Tracks/Maintenance: Inside, (1973)). A limpeza da vitrina de “A Múmia” é um grande momento: a artista constata a existência de uma hierarquia institucional nas tarefas e nas qualificações que nos tornam habilitados a limpar a vitrina ou a múmia. Assim que se torna “guardiã das chaves”, substituindo-se xs 19 seguranças do museu, vemo-la a correr de sala em sala para colocar avisos ao público, fechar portas, verificar se o alarme funciona e fazer os movimentos e o caminho inversos. É assim que a matéria “cinzenta” do museu, a sua ocupação do espaço e do tempo, o seu ecossistema, passa pelo crivo destas quatro ações
Até 1976, ao longo de 13 performances, Laderman Ukeles esfrega as ruas do SoHo e das galerias que a convidam. Mas antes disso a artista começou por limpar a instituição da família nuclear. As Private Performances of Personal Maintenance (1970-73) documentam, com notações meticulosas, cada quarto de hora do trabalho de esposa, mãe, artista, sendo esta última função permanentemente perturbada pelas duas primeiras. Aqui não se pode “separar a obra do homem” viii, o espaço doméstico em que o patriarcado define o lugar das mulheres (e onde Warhol talvez também se situe, ele que era in