• Sobre

      • PT

          Coreia é uma publicação fundada em 2019 de carácter experimental, crítico e discursivo a propósito das artes em geral, firmada numa relação umbilical com a dança. De tiragem semestral, o jornal pretende ser um forum independente e internacionalista focado no discurso produzido pelas obras e pelos artistas, preocupado em divulgar formatos vários como partituras, manifestos, entrevistas, crónicas, ensaios, críticas e reflexões em língua portuguesa.

          Coreia é impresso em papel e distribuído gratuitamente em Portugal e na CPLP em colaboração com o Camões — Instituto da Cooperação e da Língua. A cada nova edição, é disponibilizada online a edição anterior.

      • EN

          Coreia is a publication of experimental, critical and discursive nature about the arts in general, with special affiliation to the medium of dance. Published twice a year in Portuguese, Coreia intends to be an independent and internationalist forum focused on the discourse produced by the works and artists, while it is concerned with disseminating various formats such as scores, manifestos, interviews, chronicles, essays, reviews and reflections. Coreia is printed on paper and distributed for free in Portugal. With each new edition, the previous edition is made available online.

           

      • Estatuto Editorial

           

          COREIA é um projeto independente feito de afinidades várias, autores, géneros, gerações e cosmovisões, tendencialmente inclusivas e democráticas, em sintonia com uma perspetiva plural e multivocal, de abrangência local, mas global.

          COREIA é um jornal semestral de carácter crítico e experimental que produz conteúdos a partir e a propósito das artes em geral, com especial incidência numa reflexão sobre as performativas e, particularmente, as coreográficas, numa relação umbilical com a dança.

          COREIA tenta participar na construção de um espaço comum no meio das artes em geral e da dança em particular, e contribuir para uma permanente reactualização dos discursos que possam estimular esse espaço.

          COREIA está focado em divulgar formatos vários como partituras, manifestos, entrevistas, crónicas, ensaios, críticas e reflexões, assim como na tradução e publicação de textos seminais de artistas de dança nunca publicados em língua portuguesa.

          COREIA é uma contribuição para uma partilha crítica dos modos de ver e fazer dança em Portugal, que se querem expandidos.

           

           

      • Lançamento

          #11

          Lançamentos

          21 set 16h30 Vila do Conde

          Jardim do Centro de Memória, Circular Festival

          22 set 18h Lisboa

          Kunsthalle Lissabon

          9 nov Lagos

          Festival PEDRA DURA

          11 nov 18h Coimbra

          Embaixada (Largo da Freiria, nº5) Festival Linha de Fuga

           

          #10

          Lançamentos + Performance de Nome de Filme por Bibi Dória

          2 mar 17h Montemor-O-Novo

          O Espaço do Tempo

          3 mar 16h Coimbra

          Auditório Salgado Zenha | Centro de Estudos Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra/Linha de Fuga

          4 mar 19h Lisboa

          Espaço Parasita

          9 mar 16h Vila do Conde

          Centro de Memória, Circular Associação Cultural

           

           

          #9

          Lançamentos + Performance de Claralinda, Juliana, Inês, Irene, Isabel por Luísa Saraiva

          26 set 18h30 Coimbra

          Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha/Linha de Fuga

          28 set 19h Setúbal

          A Gráfica – Centro de Criação Artística, Setúbal

          29 set 19h Almada

          Casa da Dança

          30 set 18h Vila do Conde

          Capela da Nossa Senhora do Socorro/Circular Festival de Artes Performativas, Vila do Conde

          4 out 18h30 Beja

          Festival das Marias/CADAC – Companhia Alentejana de Dança Contemporânea, Beja

           

          #8

          23 mar 20:30 Lisboa
          Culturgest — Maratona para o Gil — com João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda e Pedro Pinto

          4 abr 18:30 Coimbra
          Salão Brazil/Linha de Fuga — com João dos Santos Martins e João Polido

          7  abr 16:30 Lagos
          Festival Verão Azul (Clube Artístico Lacobrigense) — com João dos Santos Martins e João Polido

          16 abr 16:30 Loulé
          Festival Verão Azul (Sul, Sol e Sal) — com João dos Santos Martins e João Polido

          18 abr 18:30 Vila do Conde
          Conservatório de Música, Teatro e Dança de Vila do Conde/Circular Associação Cultural — com João dos Santos Martins e João Polido

          24 abr 18:30 Braga
          Livraria Centésima Página — com João dos Santos Martins

           

          #7

          Lançamentos + Performance de Submission Submission (unplugged) de Bryana Fritz

          21 set 19:00 Coimbra
          A Fábrica/Linha de Fuga

          22 set 19:00 Lisboa
          Espaço Alkantara

          24 set 18:30 Faro
          DeVIR CAP

           

          #6

          A Parasita e a Circular disponibilizarão esta edição do Coreia para envio ao domicílio após os eventos de lançamento. O jornal é gratuito. Os portes de envio ficam a cargo do requerente. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          Lançamentos + Performance de um capítulo de She gave it to me I got it from her de Clara Amaral

          08 mar 18:00 Lisboa
          Galeria Zé dos Bois

          09 mar 14:00 Porto
          ESMAE

          09 mar 19:00 Vila do Conde
          Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude

          10 mar 17:00 Coimbra
          Laboratório Chimico/Linha de Fuga

          11 mar 19:00 Ponta Delgada
          vaga

           

          #5

          A Parasita e a Circular disponibilizam esta edição do Coreia para envio ao domicílio. O jornal é gratuito. Os portes de envio ficam a cargo do requerente. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          Lançamentos + Performance Ehera Noara de Hwayeon Nam com Ji-hye Chung

          22 set 18:00 Lisboa
          Atelier Museu Júlio Pomar

          23 set 18:00 Coimbra
          Museu Nacional Machado de Castro/Linha de Fuga

          24 set 19:00 Faro
          DeVIR CAPa

          25 set 17:30 Vila do Conde
          Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas

           

          #4

          Dadas as extraordinárias circunstâncias actuais, a Parasita e a Circular disponibilizam agora esta edição do Coreia para envio gratuito ao domicílio. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          18 fev 15:00 Santarém — Cancelado
          Teatro Sá da Bandeira

          20 fev 11:45 Vila do Conde — Cancelado
          Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde

          22 fev 18h30 Lisboa — Cancelado
          ZDB

           

          #3

          Lançamentos + Performance de Preste atenção a tudo a partir de agora de Daniel Pizamiglio

          11 nov 18:00 Gafanha da Nazaré
          Fábrica Ideias – 23 Milhas

          19 set 18:00 Vila do Conde — Com Melissa Rodrigues
          Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas

          27 set 18:00 Lisboa
          Espaço Alkantara

           

          #2

          Dadas as extraordinárias circunstâncias actuais, a Parasita e a Circular disponibilizam agora esta edição do Coreia para envio gratuito ao domicílio. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          13 Mar 18:45 Vila do Conde — Cancelado 🦠
          Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde

          13 Mar 21:30 Porto — Cancelado 🦠

          Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural

          14 Mar 18:00 Lisboa — Cancelado 🦠
          Estúdios Victor Córdon no âmbito do evento Navegar é preciso? Sentidos para a internacionalização da dança

           

          #1

          Lançamentos + Performance

          21 set 18:00 Vila do Conde — Com Luísa Saraiva
          Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas

          26 set Lisboa — Com Joana Sá e Sorour Darabi
          Estúdios Victor Córdon

          4 out Cartaxo — Com Marta Cerqueira
          Ponto de encontro do Festival Materiais Diversos

           

          #0

          Lançamentos + Performance de Orifice Paradis de Ana Rita Teodoro

          21 Fev 17:00 Porto
          Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

          22 Fev 17:00 Coimbra
          Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (Auditório do Círculo Sereia)

          23 Fev 16:00 Vila do Conde
          Vila do Conde – Biblioteca Municipal José Régio

          23 Fev 18:30 Braga
          Livraria Centésima Página

          24 Fev 18:00 Lisboa
          Rua das Gaivotas 6

           

      • Ficha Técnica

          #11

          CONTRIBUIÇÃO COREIA #11 x FESTIVAL SÂLMON Alex Baczyński-Jenkins, Blanca Ulloa, Carolina Mendonça, Tórtola Valencia, Dana Michel & Michael Nardone, Denise Ferreira da Silva, Dina Mimi/دينا الميمي, Eleonora Fabião, Eduardo Abdala & Caldino Perema, Isabel de Naverán & Ola Maciejewska, Leticia Skrycky & Carolina Campos, María García Ruiz, Mahmoud Bichtawi/محمود البشتاوي, Paz Rojo, Quim Pujol, Pedro Lemebel, Valentina Desideri & Stefano Harney DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins COEDIÇÃO Andrea Rodrigo, Clara Amaral, João dos Santos Martins, Néstor García DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena, Paula de Álvaro TRADUÇÃO Amilcar Packer, Andrea Rodrigo, Claire Savina, Gemma Deza, la correccional (serveis textuals), Joana Frazão, Pedro Cerejo, Pedro Morais REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Marta Alonso-Buenaposada del Hoyo COPRODUÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural, Sâlmon Festival de Artes Vivas de Barcelona 2024 APOIO AOS LANÇAMENTOS Kunsthalle Lissabon, Centro de Memória de Vila do Conde, Festival Pedra Dura (Lagos), Linha de Fuga (Coimbra), Sâlmon Associació Cultural (Barcelona) APOIO À DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua AGRADECIMENTOS Marta Lança, Fernanda Salgueiro, Elianna Kan da Regal Hoffmann & Associates LLC

           

          #10

          CONTRIBUIÇÃO #10 Alaa Abu Asad, Alina Folini, Bibi Dória, Célio Ucha Dias, Filipa César & Sónia Vaz Borges, João Pedro Soares, Julián Pacomio, Marlene Monteiro Freitas, Mickaella Dantas, Raquel André, Tadáskía, Talles Lopes, Yvonne Rainer TRADUÇÃO Joana Frazão, Pedro Cerejo, Pedro Morais REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena COLABORAÇÃO DESIGN GRÁFICO Nuno Maio APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua CO-PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural

           

          #9

          CONTRIBUIÇÃO #9 Alaa Abu Asad, Daniel Lühmann, Dori Nigro & Paulo Pinto com Georgia Quintas, Giulia Damiani, Janeth Mulapha, João Bento, Katarina Lanier, Lior Zisman Zalis, Luísa Saraiva, Projecto Decorporeidades (Daniel Moraes & Filipa Cordeiro com Gio Lourenço & Angelo Custódio), Projecto Indíralo (Andreia Neves Marinho, o Centro Ciência Viva de Alviela, Andreia Sofia Cardoso Lima, a floresta, Patricia Conde, Fernando Pedro dos Santos, João Henriques, a gruta, Valentina Parravicini, Cristina Fuentes Ávila, o rio Alviela, Francisco Weber Ruiz, Gustavo Vicente, María Jerez, Quim Pujol e os espíritos), Teresa Fabião, Tiran Willemse, Vicente Escudero, Zia Soares TRADUÇÃO Patrícia da Silva, Pedro Cerejo REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Fátima Ribeiro, Mariana Rezende DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena COLABORAÇÃO DESIGN GRÁFICO Joana Lourencinho Carneiro APOIOS NO LANÇAMENTO Casa da Dança (Almada), CADAC – Companhia Alentejana de Dança Contemporânea (Beja), A Gráfica (Setúbal), Linha de Fuga (Coimbra) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Maria Ángeles e Julio César Fraile Sandonis, sobrinhos-netos de Vicente Escudero, Arquivo fotográfico Museo Reina Sofia, Pedro G. Romero

           

          #8

          CONTRIBUIÇÃO #8 Ahn Vo, Ana Rita Teodoro & Valérie Castan, Chloe Chignell, Davi Pontes, Diana Niepce, Estelle Nabeyrat, Gil Mendo, Guilherme Valente, Inês Zinho Pinheiro, João Polido, Myriam Goufrink & Wilson Le Personnic, Pope.L, Rogério Nuno Costa, setareh fatehi, Silvia Federici, Tiago Amate TRADUÇÃO Joana Frazão, Marinho Pina, Patrícia da Silva, Pedro Morais REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral EDITORES COREIA GIL João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda, Pedro Pinto DESIGN GRÁFICO #8 Isabel Lucena DESIGN GRÁFICO COREIA GIL Nuno Beijinho APOIOS NO LANÇAMENTO Culturgest (Lisboa), Escola de Dança do Centro municipal de Juventude de Vila do Conde, Festival Verão Azul (Lagos, Loulé), Linha de Fuga (Coimbra), Livraria Centésima Página (Braga) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Galeria Mitchell-Innes & Nash, Pope.L, Myriam Gourfink, Thomas J. Lax, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Albert E. Dean, Gisela Casimiro, Ariana Furtado, Journal ADC, Anne Davier, Michèle Pralong, Dançando com a Diferença AGRADECIMENTOS COREIA GIL Ana Bigotte Vieira, Cristina Peres, Cláudia Galhós, Dora Fonseca, Duarte Bénard da Costa, Francisco Camacho, João Fiadeiro.

           

          #8 PARA O GIL

          Este caderno especial do Coreia integra a homenagem a Gil Mendo realizada  na Culturgest, em Lisboa, de 23 a 25 de março de 2023, e organizada por um grupo alargado e voluntário de pessoas da comunidade da dança contemporânea em Portugal. TEXTOS Gil Mendo, entrevistas com Ana Bigotte Vieira, Cristina Peres, Madalena Perdigão e Pina Bausch EDITORES João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda, Pedro Pinto DESIGN GRÁFICO Nuno Beijinho CAPA João Penalva PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, Cláudia Galhós, Cristina Peres, Dora Fonseca, Duarte Bénard da Costa, Francisco Camacho, João Fiadeiro

           

          #7

          CONTRIBUIÇÃO #7 Amit Noy, Beverly Emmons, Bryana Fritz, Clarissa Sacchelli, Edna Jaime, Eduardo Batata, Leonor Lopes, Ves Liberta & Vitor Grilo Silva, Germaine Acogny, Joana Levi, Janaína Moraes, Nikita Kadan, Paula Rosa Pinto, Renan Marcondes, Romain Beltrão, Sabine Macher, Viktor Ruban TRADUÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários), Joana Frazão, Patrícia da Silva REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Fátima Ribeiro TRANSCRIÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários) PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena APOIOS NO LANÇAMENTO Alkantara (Lisboa), Linha de Fuga (Coimbra), Devir-Capa (Faro) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua AGRADECIMENTOS Archivio Carol Rama, Helmut Vogt, Marcela Levi e Lucia Russo, Peter Angelo Simon.

           

          #6

          DIRECÇÃO EDITORIAL E EDIÇÃO João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ángela Millano & Julián Pacomio, André Lepecki, Andrei Bessa, Giovanna Monteiro, Leonor Mendes, Roberto Dagô & Vicente Ramos, Carla Fernandes, Chiara Bersani & Diana Niepce, Clara Amaral, Emiliano Aversa, Guilherme Figueiredo, Isabel Cordovil, Jan Ritsema & Jonathan Burrows, Miguel Pipa, Miguel Teles, Piny, Renan Marcondes, Vânia Gala TRADUÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários), Joana Frazão, Pedro Cerejo, Paula Caspão, Sara Santos REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann TRANSCRIÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários) PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde, ESMAE (Porto), Galeria Zé dos Bois (Lisboa), Linha de Fuga (Coimbra), Vaga (Ponta Delgada) AGRADECIMENTOS Alkantara, Eleonora Fabião, Maus Hábitos

           

          #5

          DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Alice Dusapin & Christophe Wavelet, Anna Halprin, Bruno Zhu, Dani Issler & Frédéric Sayer, Gaya Medeiros, Henrique Neves, Hwayeon Nam 남화연, Leandro Souza, Leticia Skrycky, Min Kyoung Lee 이민경, Paula Caspão, Raimund Hoghe, Sara Graça, Sara Wookey TRADUÇÃO Joana Frazão, José Maria Vieira Mendes, Patrícia Silva, Sara Godinho REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Mariana Monne, Leonor Courtoisie TRANSCRIÇÃO Cyriaque Villemaux EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Atelier-Museu Júlio Pomar, Devir Capa, Linha de Fuga, Residências Artísticas Polo Cultural das Gaivotas Boavista AGRADECIMENTOS Heaju Kim, Ji-hye Chung, Luca Giacomo Schulte, Ricardo Valentim, Stephanie Earle

           

          #4
          DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Bhenji Ra, Bruno Levorin & Ignacio de Antonio, Carmen de Brito, Calixto Neto & Luiz de Abreu, Jean Capeille, José Maria Vieira Mendes, Micael Ferreira, Miguel Teles & Daniel Pizamiglio, Pedro Marum, Rita Natálio & Vânia Doutel Vaz, Tânia Carvalho TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Suiá Ferlauto EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Teatro Sá da Bandeira — Santarém, ZDB, APOIOS Teatro Sá da Bandeira — Santarém, ZDB, Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, Carlos Manuel Oliveira, Daniel Tércio, Filipe Viegas, Luísa Carles, José Carlos Duarte, Maus Hábitos, Pedro Antunes, pepe cobo y cía, Sara Ramos, Vicente Trindade, Vítor Brotas, Vanessa Carvalho

           

          #3
          DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ação Cooperativista, Christophe Wavelet, Diana Niepce, Elisabeth Lebovici, Francisco Camacho, Henrique Furtado, João Fiadeiro, Liliana Coutinho, Lula Pena, Melissa Rodrigues, Mierle Laderman Ukeles, Miguel Teles, Miguel Wandschneider, Min Kyoung Lee, Vera Mantero, Volmir Cordeiro TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Patrícia da Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Duarte Bénard da Costa EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Alkantara AGRADECIMENTOS Duarte Amado, José Carlos Duarte, Matheus Martins, Mierle Laderman Ukeles, Ronald Feldman Gallery (Nova Iorque)

           

          #2
          DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Pi, Clara Amaral, Diego Bagagal, Filipe Pereira, Hélio Oiticica, Miguel Castro Caldas, Rita Natálio, Teresa Castro, Tom Engels, Vânia Doutel Vaz, Vânia Rovisco, Zeina Hanna TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Patrícia da Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Sónia Baptista, Pedro Cerejo EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Centro Municipal da Juventude de Vila do Conde, Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural, Opart/Companhia Nacional de Bailado/Estúdios Victor Córdon AGRADECIMENTOS André e. Teodósio, Ariane Figueiredo e César Oiticica do Projecto H.O., Claraluz Keiser, Daniel Pizamiglio, Donatella Cacciola, Duarte Amado, ESMAE, Frank-Manuel Peter, Sebastian Bardin-Greenberg, Sergio Zalis, Vânia Rodrigues

           

          #1
          DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Jotta, Carlos Manuel Oliveira, Carlos Azeredo Mesquita, Christophe Wavelet, Dasha Birukova, Duarte Nuno Amado, Joana Sá, Luísa Saraiva, Poorna Swami, Rita Natálio, Valeska Gert, Sergei Eisenstein, Sílvia Pinto Coelho, Sorour Darabi TRADUÇÃO Ana Matoso, Joana Frazão, José Maria Vieira Mendes, Larysa Shotropa, Patrícia da Silva REVISÃO Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Duarte Bénard da Costa, Cyriaque Villemaux EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Circular Associação Cultural WEBSITE Sara Orsi APOIOS Associação Parasita, Opart/Companhia Nacional de Bailado/Estúdios Victor Córdon, Festival Materiais Diversos

           

          #0
          DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Rita Teodoro, Christophe Wavelet, Cyriaque Vilemaux, Carlos M. Oliveira, Duarte Amado, Eros404, Felipe Ribeiro, Marcelo Evelin, Moriah Evans, Takashi Morishita, Tatsumi Hijikata, Rita Natálio TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Daniel Lühmann, Marta Morais, Patrícia Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Carlos M. Oliveira EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Circular Associação Cultural CO-PRODUÇÃO Associação Parasita WEBSITE Sara Orsi APOIOS Biblioteca Municipal José Régio – Vila do Conde, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Livraria Centésima Página, Rua das Gaivotas 6 AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, André e. Teodósio, Christine Greiner, Cyriaque Villemaux, David Cabecinha, Hugo Dunkel, José Carlos Duarte, Kazuki Fujita, Patrick De Vos, Pierre-Louis Denis (William Klein Studios), Sabine Macher, Takashi Morishita (Centro de Arte da Universidade de Keio, Japão), Tomo Kosuga (Masayuki Fukase Archives)

           

          ISSN 2184-4461
          Direção: João dos Santos Martins
          Periodicidade: semestral
          Distribuição gratuita
          Depósito legal: 452179/19
          ERC: 127238
          Impressão: FIG — Indústrias Gráficas, SA — Coimbra
          Tiragem: 3000 exemplares
          Fontes: Glossy Display, F Grotesk

           

          Proprietário: Circular — Associação Cultural. Sede da redação/Sede do editor: Praça Luís de Camões, 9 – 1.º, 4480-719 Vila do Conde. NIF 507590767

           

          A Circular Associação Cultural conta com o Alto Patrocínio da Câmara Municipal de Vila do Conde e é uma estrutura financiada pela República Portuguesa/Cultura, Direcção-Geral das Artes.

  • Edições

      • 11

          محمود البشتاوي Mahmoud Bichtawim Spice Boys

          Valentina Desideri Stefano Harney Uma conspiração sem trama, 2013

          Carolina Mendonça Algo se aproxima

          Pedro Lemebel Em forma de sinopse, 2008

          Carmen Tórtola Valencia La Serpiente, c. 1915

          Denise Ferreira da Silva Sobre diferencia sin separabilidad, 2016

          Isabel de Naverán Ola Maciejewska The Second Body

          Dana Michel Michael Nardone Yellow Towel: a score (uh, a parte da previsão meteorológica)

          Paz Rojo Para preparar la salida (adentro), 2019

          Alex Baczyński-Jenkins Federico

          Eduardo Abdala Caldino Perema Retornar e partilhar

          Quim Pujol Poema Contorcionista

          Maria Ruiz Arquitectura moviente (palacios destituyentes)

          Pedro Lemebel Manifesto (Falo pela minha diferença), 1986

          Leticia Skrycky Carolina Campos matéria leve

          دينا الميمي Dina Mimi دينا الميمي Hombre: a menudo considerado un loco

          Eleonora Fabião seis notas para pensar e fazer performance

          Blanca Ulloa Mechanical Grace

      • 10

          João dos Santos Martins editorial

          Sonhei que tinha caído de uma ribanceira. Do lado de lá da colina havia um gradeamento em arame. Não percebi como passei para o outro lado, mas não era possível voltar para cima. Comecei a descer uma estrada de terra sem saber onde estava nem para onde ia. Era uma paisagem rural. Falo com pessoas que encontro e pergunto-lhes como regressar. Em algum momento, apercebo-me, no sonho, de que estou em Israel, e que do outro lado é a Palestina. Não reconheço os lugares por onde passo. Na vida acordado nunca estive em Israel nem na Palestina. As imagens que tenho são de desertos, muros de betão, arame farpado. Não correspondem às imagens do sonho. Por que razão acho que estou em Israel? Pergunto a uma senhora com olhar assustado como voltar para Gaza. Um momento de consciência atravessa o sonho e diz-me que não poderia estar em Gaza pois aí está-se em guerra, um massacre, está tudo destruído, e não foi esse o lugar de onde vim. Corrijo a pergunta e digo, como voltar para a Cisjordânia? Ela indica-me um caminho, em frente e depois à direita. Tudo me parece suspeito e duvido se vou conseguir voltar. Atravesso ruas com ar medieval, becos escuros com pocilgas e galinheiros, estreitos com poças de água e lama. Finalmente alcanço o caminho que me levará à fronteira. Chego e sou recebido por um militar. Ele tem uma espingarda na mão que me obriga a tocar por breves instantes. Indica-me que, para passar, primeiro tenho de me registar. Dirijo-me ao posto, pedem-me a minha identidade e pago uma taxa. Tenho uma botija de gás na mão. Dizem que tenho de a colocar num atrelado à parte e que será entregue do outro lado. Dirijo-me à saída, acordo.
          É um lugar de privilégio poder sonhar e não viver esta realidade. Aliás, é um privilégio poder dormir e sonhar.

          É raro lembrar-me dos meus sonhos. Mais raro ainda sonhar com algo que não conheço, com pessoas que não conheço. E ainda mais raro é sonhar com o “mundo”. Acordado pergunto-me por que razão este sonho. Passei os últimos dias, as últimas semanas, os últimos meses, os últimos anos a ler notícias de guerra. Não é raro o dia em que leio quatro jornais diferentes à procura de entender o que está a acontecer. Dias antes tinha reencontrado uma pequena publicação de Michikazu Matsune1, que relata um episódio no aeroporto de Tel Aviv, em 2008, em que o bailarino afro-americano Abdur-Rahim Jackson, membro da companhia Alvin Ailey, foi parado no controlo de passaportes. Começando por ser interrogado por suspeitas em torno do seu primeiro nome, árabe, ele acabou por ser forçado a dançar em frente aos agentes de segurança para provar a sua profissão e identidade. Matsune conta esta história conectando-a com a sua experiência de emigração nos EUA, examinando o lado paranóico e abusivo de definição de perfis e de vigilância que a globalização comporta.

          Por mais estranho que me pareça a realidade entrar no meu sonho, o facto é que esta realidade, apesar de longínqua, está totalmente emaranhada no meu quotidiano. Em 1968, Yvonne Rainer escrevia “o meu corpo continua a ser a realidade duradoura”, tentando articular como as imagens da Guerra do Vietname a serem transmitidas na TV lado a lado a anúncios publicitários produziam um estado de choque em si. O mesmo se passa agora, no entanto, as imagens disseminam-se não só na televisão mas também nos nossos telefones, onde quer que estejamos, destruição e morte intercalam-se com imagens de cães e gatos de amigos, publicidade a produtos para a queda de cabelo e anúncios de viagens. Como é que esta violência é digerida? Yvonne Rainer, — de quem aqui publicamos uma série de escritos e documentos — reflete que é o peso do seu corpo que se torna presente no trabalho que faz. E se esse peso toma uma forma política, ela não é literal mas concreta na própria forma do corpo.

          A vontade de ser literal, de falar, de dizer de que lado estamos é uma força tanto emancipadora quanto repressora. A abolicionista Ruth Wilson Gilmore dizia, numa marcha pela Palestina em Lisboa, que “devemos mostrar, de todas as maneiras possíveis, a nossa solidariedade recusando a autorrepressão”. Fez uma ligação com as forças nazis nos anos 1930, que, eleitas democraticamente, frisou, democraticamente, começaram por reprimir pouquíssimo, mas com efeito em muitos. Os que não eram diretamente reprimidos, dizia, autorreprimiam-se por medo. Este sentimento regressa quando assistimos a colegas artistas e investigadores na Europa e nos Estados Unidos a terem os seus trabalhos e colaborações cancelados por se manifestarem antiguerra, contra o genocídio, solidários com uma Palestina livre e pelo cessar-fogo em Gaza. Nas palavras de Fred Moten, perante a compulsão para falar, “precisamos de ser capazes de fazer uma distinção entre fazer declarações e a prática ética de pensar e estudar juntos face à doença comum com que somos confrontados”2. Para Moten, mais do que “expressar solidariedade para com a Palestina e para com a prática anticolonial palestiniana, trata-se de juntar forças para com a anticolonialidade” 3.

          Muitos dos textos que compõem esta edição do Coreia poderiam ser entendidos desta forma. Praticar a anticolonialidade não apenas como uma luta de libertação, mas como uma postura contra a ideia de que uns podem dominar outros, de que um estado é a condição suprema para a existência de um povo, contra um pensamento estreito que divide tudo, que retira humanidade a uns, que separa a natureza do humano e vice-versa. Tal é o caso da contribuição de Alaa Abu Asad que narra a diáspora de uma planta japonesa trazida pelos europeus para a Europa e que se tornou uma espécie considerada “invasora” pelos próprios e, portanto, indesejável. Partindo da botânica e da sua relação de resistência ao colonialismo, em particular o português, Filipa César e Sónia Vaz Borges levam-nos pelos mangues guineenses para refletirem sobre como estes ecossistemas permitiram construir novos lugares de imaginação face a uma velha força agressora. Sobre mundos velhos sedentos fala ainda Talles Lopes elaborando uma minuciosa análise da cartografia colonial portuguesa e especulando como esses tratados foram incorporados pelo projeto modernista brasileiro que preconiza a conquista do interior do território e das formas de vida indígenas.

          Trabalhando a partir do território mas atravessando o corpo, Alina Ruiz Folini escreve sobre a sua visita às minas da Panasqueira, no concelho do Fundão. A herança do extrativismo, que coloniza as terras para fazer riqueza, as exaure e deixa ao abandono, é aqui refletida no sentido de politizar a relação com o ar que respiramos e a responsabilidade entre entidades do cosmos. Sobre cuidado da terra olhamos também para o filme Os Curadores da Terra Floresta, de Morzaniel ƚramari Yanomami, que documenta um ritual de xamãs yanomami para curar a floresta amazónica. Ao focar-se neste filme, João Pedro Soares traz uma reflexão sobre a relação entre cinema e imagem e a dimensão da visão yanomami nessa brutal missão de cura. A capacidade de ver outramente obriga a pensar o filme não apenas pela sua imagem mas pelo gesto que o constitui.

          A transferência da imagem para o gesto ressoa com a transferência de ver e recontar que Bibi Dória traça do seu processo de memorizar um filme. Num momento em que ardeu, em 2021, parte da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, resultado do desprezo institucional do governo de Bolsonaro, Bibi Dória insurge-se como um corpo que se torna transmissor de um filme. Perante a destruição da memória dos arquivos, Bibi é simultaneamente receptáculo e transmissor de uma obra numa outra medialidade que é a sua fala, a sua própria memória, o seu corpo. Reverberando com esta transferência, Raquel André interroga noções de media numa carta endereçada a Sophie Calle, artista que ao longo da sua carreira tem esbatido as fronteiras entre vida e arte. Raquel André questiona se a vida da artista pode ser considerada a obra em si mesma e, nesse caso, concretizar o que Rosalind Krauss chama de “verdade” como um meio em si. Ou seja, será a obra a vida no corpo de alguém?

          O judoca olímpico Célio Dias, que encontrámos em performance nas ruas do Chiado e do Camões no outono passado, escreve um testemunho sobre a relação que ocupa o seu corpo não normativo entre a prática do judo e a da dança contemporânea. E sobre o lugar de encontro entre línguas e linguagens fala-nos Marlene Monteiro Freitas numa longa entrevista a partir da sua encenação da ópera Lulu, de Alban Berg, em Viena. Ao longo desta entrevista reflete sobre a forma como o seu trabalho opera na criação de uma nova linguagem mediada pelo encontro, seja com novos intérpretes, bailarinos e colaboradores, seja na relação que estabelece com o público. Este deslocamento da língua que permite criar uma nova língua através do encontro, insurge-se como uma ética de trabalho que contraria a ideia de imposição e reafirma a necessidade de reinvenção coletiva.

          Perante um mundo em guerra permanente e novas ordens mundiais imanentes, perante o confronto com “a urgência feroz do agora”4, importa continuar a renovar hábitos de reunião, a renovar os nossos hábitos de estar junto. Como lia num artigo de Constança Viegas Martins, “o melhor que temos a fazer pelo povo palestiniano é lutar contra as instituições aqui”5. É contra o fascismo que nos movemos. É contra o fascimo que vemos ressurgir diariamente em todos os cantos, cinquenta anos depois do 25 de abril. E ainda que nos possamos adaptar às trevas — parafraseado Julián Pacomio, num texto que pensa o sol e a sua presença (ou ausência) na arte e na literatura — a luta continua, é contínua. Como diz o título da contribuição gráfica de Tadáskía, de trégua, é dia.

          João dos Santos Martins

          p.s. Ao fecho desta edição soubemos da partida demasiado cedo da bailarina Mickaella Dantas, de origem brasileira e radicada no Porto, que ao longo da última década dançou intensamente por toda a Europa. Para a homenagear incluímos um testemunho seu, de 2021, no qual reflecte sobre a relação com um novo corpo que integrou, uma prótese, compondo uma nova fisicalidade.

          1 Michikazu Matsune, Dance, If You Want to Enter My Country!, 2008. Publicação independente.
          2 “Fred Moten on Palestine and the Nation-State of Israel”, 25/10/2023, https://www.youtube.com/watch?v=vWnzkjUAZnQ&t=21s, consultado a 12/02/2024.
          3 Ibidem.
          4 Martin Luther King Jr.’s I Have a Dream, 1963, consultado em https://www.npr.org/2010/01/18/122701268/i-have-a-dream-speech-in-its-entirety
          5 Jornal Punkto, Edição 2/40, Outono 2023, Palestina Mon Amour.

          Tadáskía de trégua, é dia

          Grafite sobre papel, diptico, 2023

          Julián Pacomio Toda a luz do meio-dia

          TODA A LUZ DO MEIO-DIA1
          (Apontamentos sobre o sol, alguma escuridão e muito poucos crepúsculos)

          Splendor Solis, códice. Conservado em 1582. Biblioteca Britânica, Londres, Inglaterra.

          “Não somos criaturas da luz. Somos animais sem sombra, de movimentos fugidios e reverberações ténues, como são ténues as nossas resistências. A luz denuncia-nos, expulsa-nos”, escreveu Camila Sosa Villada no seu romance Las Malas (Barcelona: Tusquets Editores, 2020).

          Se lançarmos uma olhadela a Madrid e a Barcelona, as cidades que, tirando Lisboa, mais percorri nos últimos anos, damo-nos conta de uma temática pujante nas suas exposições, publicações, peças de teatro, seminários e ciclos de reflexão: a noite. “Dance this mess around”; “Estudios de la noche”; “Querer parecer noche”; “Todos los conciertos, todas las noches, todo vacío”, no CA2M (Madrid, Móstoles); “YOU GOT TO GET IN TO GET OUT”, em La Casa Encendida (Madrid); “Las periferias de la noche”, de Apichatpong Weerasethakul, no Fabra i Coats (Barcelona); as publicações “Historia universal del after”, de Leo Felipe, e “Raving”, de McKenzie Wark, pela Caja Negra; ou “EDIT”, de Sonia Fernández Pan, com a Caniche editorial; “Article 6: Pensar la noche”, no quadro das edições de Sant Andreu Contemporani (Barcelona), para dar conta de apenas alguns casos.
          Penso que, no contexto lisboeta, a noite aproxima-se mais da festa do que de outras das suas aceções. Seguramente, com um eco clubber berlinense, mais jovem e mais queer. Pensemos, por exemplo, no Planeta Manas, nas Festas Mina, em bares como o Damas, clássicos como o Lux, sítios underground como o Desterro e toda a onda de proliferação do international dj, raves, residentes e guests, que também têm o seu quê de hipsterização da cultura moderna e do novo digital nomad. Tenho de reconhecer que me fascina, ao mesmo tempo que me cansa tanta admiração pelo noturno.
          “A luz, que foi condenada a descer do sol e que acabou a combater contra os corpos humanos, aqui na vida”, escreveu Manuel Vilas no seu romance Ordesa (Madrid: Alfaguara, 2018).
          Pergunto-me sobre o dia e sobre o sol e pergunto-me onde acabarão aquelas exposições, artistas, livros e filmes que se centram na luz e se afastam da noite. Será que as margens, os mistérios, o oculto, o periférico, o estranho, o outro e tudo aquilo que sai da norma apenas pode acontecer de madrugada? Intuo que não.
 Pergunto-me pelas razões deste abandono e pelo porquê de o que é luminoso ter deixado de ser menos importante do que o que acontece por trás das sombras. Não existem, por acaso, escuridões em plena luz do dia?
          “Vontade de obscurecer tudo? Não: vontade de iluminar – com luzes de sol ou de artifício – as zonas obscuras”, escreveu Alejandro Zambra em No leer (Madrid: Anagrama, 2018), sobre o romance Toda la luz del mediodía, de Mauricio Wacquez (Santiago: Editorial Zig Zag, 1965).
          Estamos acostumados a pensar que é na noite e na madrugada que surgem os mistérios e os fantasmas. No entanto, no mundo antigo, especificamente na Grécia clássica, não é com a chegada da escuridão que deuses e demónios se mostram, mas sim ao meio-dia, quando o sol está no seu zénite e não há sombra alguma, é este o único momento em que podem ser identificados com total claridade. Roger Caillois conta-nos, no seu livro Los demonios del mediodía (Madrid: Siruela, 2020), que, na tradição da mitologia mediterrânica, a hora do meio-dia era o único momento em que o ser humano ficava exposto a todos os perigos e a todas as tentações. Não só é a hora dos mortos, quando os mortos querem estar sozinhos, como também é a hora da própria morte. De facto, as sereias, tal como outras figuras mitológicas como as esfinges, as lâmias, as harpias, as erínias, as nereidas e as ninfas foram, na sua origem, representações de demónios, de almas mortas e de almas dos mortos que, como os vampiros, apenas podem ser vistos aquando da hora imóvel e calorenta do meio-dia. Embora se saiba que o meio-dia é o momento em que há luz suficiente para a viagem da alma até ao Paraíso também há um duplo sentido que desvela a sua contradição, é a hora dos mortos, dos seres sem sombra, a hora do meio-dia tanto salva como assombra.

          “Farei com que o sol se ponha em pleno meio-dia”, profetizou Amós (Amós, 8:9).

          Já com Homero, na Ilíada, o decorrer completo de um dia seria dividido em três: “Chegará a manhã, o crepúsculo e o meio-dia!” (Ilíada, VIII). No entanto, durante muito tempo, a hora do meio-dia também foi o momento mais fácil de medir – o verdadeiro meio-dia será sempre o momento da longitude mínima da sombra de um objeto vertical espetado no solo; já a hora da meia-noite continuava a ser mais difícil de calcular, e até a própria palavra media nox não chegou a ter uma ressonância tão forte como a palavra meio-dia.

          “O sol é o que alegra o dia
          pela manhã quando nasce.
          Ai de nós que seria
          se o sol um dia faltasse?”
          , pergunta a letra de um fado operário do Alentejo.

          Além de toda a mitologia associada, o meio-dia continua a ser importante para a cultura popular e rural. Há um momento muito concreto para os trabalhadores do campo denominado “a sesta do carneiro”, também conhecida como “sesta do burro” ou “sesta do cabrito”, muito popular no Mediterrâneo e no interior da Península Ibérica, especialmente na Estremadura espanhola e na Andaluzia. Hoje está associado ao ato de passar pelas brasas antes da hora do almoço, mas originalmente fazia referência ao descanso dos trabalhadores que, depois de terem acompanhado e alimentado o gado pelos montes, depois de terem lavrado e cultivado a terra, decidem procurar uma sombra por baixo da copa de uma árvore próxima para dormirem um pouco. Descansar quando o sol vai alto era uma máxima, proteger-se do momento mais quente do dia (o meio-dia), no lugar mais quente (o campo), no trabalho mais esgotante (o trabalho agrícola). Além disso, o meio-dia é também a hora que menos vento oferece, a falta de sombras na intempérie e o cansaço associado à lavoura colocaram este momento diário como o mais perigoso e propício a apanhar uma insolação.
          ~

          A colheita. Pieter Brueghel, o velho. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA. 1565.


          A sesta. Vincent van Gogh. Musée d’Orsay, Paris, França. 1889.

          A hora do meio-dia tornou-se popular na mitologia grega e eslava, mas também existem palavras muito específicas para nomear o nascer e o pôr do sol: lubricán, que significa algo como “nem lobo nem cão” ou “meio lobo meio cão”. É uma palavra usada para os crepúsculos, tanto matutinos como vespertinos, e que provém do latim: lupus, “lobo”, e canis, “cão”. Lusco-fusco é outro sinónimo, neste caso usado mais concretamente para a hora do anoitecer. É um substantivo popular em Portugal, também usado na Galiza e em outras latitudes espanholas. Lusco-fusco designa exatamente o instante em que desapareceram todas as cores quentes no céu e em que as tonalidades cinzentas estão prestes a cair, convertendo o céu em noite profunda e cerrada. Lubricán e lusco-fusco são um “já não, ainda não”, um momento “quase”, um instante de transição da luz solar. O meio-dia, como instante suspenso, é quase impercetível se não se der conta da ausência de sombras. Ao invés das mudanças rápidas dos estados crepusculares, o meio-dia é uma pausa, é o momento em que o sol está mais alto no firmamento, marcando a sua ascensão e descida em relação à linha do horizonte e dividindo o dia em dois. Esta imagem é um instante que se converte numa dobra, o dia a metade, o centro, o ponto concreto intermédio entre dois extremos. O meio-dia é a medida.

          “Mete-me medo a luz,
          o quieto da luz,
          o osso da tua têmpera
          contra o meu”,

          declama Olvido García Valdes no seu poema Ella, los pájaros (Soria: Diputación de Soria, 1994).
          A noite aguarda terrores, seria um erro negá-lo, mas o sol dói mais e os seus raios, como é evidente, queimam. É sabido que quando se permanece algum tempo na escuridão, as pupilas se dilatam, os olhos acostumam-se e chegamos a ver coisas que era impossível intuir num primeiro momento. Digamos que uma pessoa se adapta às trevas. Todavia, durante o dia as pupilas contraem-se e precisamos de lentes escuras para nos protegermos e não ficarmos cegos. Necessitamos de algo como não ver para podermos ver. É sabido que não se pode olhar diretamente para o sol e para a morte durante um tempo demasiado prolongado sem se sofrer danos. Nunca nada doeu mais ao ser humano do que uma imagem luminosa e absolutamente radiante.

          1 Título da peça dirigida por Julián Pacomio e co-criada com Bibi Dória e Bruno Brandolino, segunda parte da “Trilogia do sol”, que estreou n’O Espaço do Tempo em 2023.

          Texto traduzido do original em espanhol por Pedro Cerejo.

          Yvonne Rainer Declaração (1968), Street Action (1970), Trio A (2011)

          DECLARAÇÃO
          (Não é necessário ler isto antes da observação.)

          As escolhas no meu trabalho baseiam-se nos meus próprios recursos peculiares — obsessões da imaginação, poderíamos dizer — e também numa discussão contínua com a dança, no meu amor e desprezo por ela. Se a minha raiva contra o empobrecimento das ideias, o narcisismo e a exibição sexual disfarçada da maior parte da dança pode ser considerada como moralismo puritano, também é verdade que eu amo o corpo — o seu peso, a sua massa e a sua fisicalidade não aperfeiçoada. No geral, tenho interesse em mostrar as pessoas enquanto estão ocupadas em vários tipos de atividades — sozinhas, com outras pessoas, com objetos — e em pesar a qualidade do corpo humano em relação à dos objetos e longe da superestilização dx bailarinx. Interação e cooperação, por um lado; substancialidade e inércia, pelo outro. A invenção de movimento, ou seja, a “dança” em sentido estrito, é apenas um de vários fatores no trabalho.
          Embora as preocupações formais variem em cada secção de THE MIND IS A MUSCLE [A Mente É Um Músculo], podemos fazer uma declaração geral. Estou frequentemente envolvida em mudanças que são confrontadas com uma ou mais constantes: pormenores executados no contexto de um contínuo de energia (Trio A, Mat); frases e combinações realizada em uníssono (Trio B); movimentos interativos e mutuamente dependentes realizados num padrão espacial particular (Trio A1); padrões espaciais variáveis e configurações de movimento realizados por um grupo que se movimenta como uma só unidade (Film, Horses); mudanças numa configuração de grupo que ocorrem em torno de uma área central de foco constante (Act); e justaposições mais óbvias que envolvem verdadeiras separações no espaço e no tempo.
          A condição para a realização das minhas coisas reside na continuação do meu interesse e da minha energia. Tal como as questões ideológicas não têm influência no tipo de trabalho, também o teor das condições políticas e sociais não tem influência na sua execução. O mundo desintegra-se à minha volta. A minha ligação com o mundo em crise permanece ténue e distante. Posso antever um tempo em que esse distanciamento terá necessariamente de terminar, embora não consiga prever exatamente quando ou de que maneira as relações mudarão, ou que circunstâncias irão incitar-me a um diferente tipo de ação. Talvez apenas o recrutamento militar universal feminino afetará a minha função (o ipso facto da preparação física das bailarinas irá torná-las nas primeiras vítimas); ou um apelo a uma suspensão universal das funções individuais, para incluir o fim do genocídio. Esta declaração não é uma apologia. É uma reflexão de um estado de espírito que reage com horror e incredulidade ao ver um vietnamita a ser morto a tiro na televisão — não à visão da morte, contudo, mas ao facto de a televisão poder ser desligada mais tarde como depois de um mau western. O meu corpo continua a ser a realidade duradoura.

          Yvonne Rainer,
          Março de 1968

          Este texto constitui parte da folha de sala da peça The Mind Is a Muscle (1968), de Yvonne Rainer.

          Traduzido do original em inglês por Pedro Morais.


          Trio A

          Quando está certo
          nada se lhe compara
          as peças
          encaixam-se
          nenhuma espécie
          de dúvida
          estraga o movimento
          do braço
          para a anca
          para o joelho
          para o chão
          depois o centro
          contraído em triunfo
          todo o mecanismo
          as suas disposições discretas
          não impedem
          o impulso para a frente
          da prática
          do objeto
          não há ritual aqui
          o peso do corpo
          é prova material
          de que o ar é matéria
          e a mente casa com o músculo

          Yvonne Rainer
          Publicado originalmente em Poems (Nova Iorque: Badlands Unlimited, 2011).


          “Na primavera passada [1970] – incitada pelos assassínios nas universidades dos EUA e pela invasão do Camboja – usei o M-Walk (assim chamado porque foi inspirado numa sequência de Metropolis, de Fritz Lang) como protesto contra estes acontecimentos. Quarenta pessoas, usando braçadeiras pretas, aglomeraram-se em três colunas no meio da rua Greene, logo abaixo de Houston (na Baixa de Manhattan). Balançando em uníssono de um lado para o outro com a cabeça baixa, serpenteámos pela Greene, a oeste na Prince (onde fomos parados momentaneamente por um polícia e instruídos a subir ao passeio; ninguém falou ou parou de se balançar durante essa interrupção), a sul em Wooster, a este na Spring, depois a norte na Greene de volta ao ponto de partida inicial. Durou uma hora; no final, a maioria dos participantes tinham-se ido embora, e apenas cinco de nós permaneceram.
          ​​Durante o verão continuei a pensar em integrar alguma forma de protesto contra — ou pelo menos em referência — os horrores perpetrados pelo governo americano. Durante um período de três semanas como professora na Universidade George Washington, em Washington, D.C., insisti que uma enorme placa fosse pendurada no ginásio durante esse período, que dizia “Porque estamos no Vietnam?” Em diversas ocasiões dei aulas no Ellipse, em frente à Casa Branca. Pendurámos a placa na cerca do outro lado da rua em frente de uma longa fila de pessoas que esperavam para visitar a Casa Branca. Quando um guarda exigiu a sua remoção, nós obedecemos.”

          Yvonne Rainer
          Publicado em Work 1961-73 (Halifax e Nova Iorque: The Press of the Nova Scotia College of Art and Design e New York University Press, 1974).

          Na primeira fila, da esquerda para a direita: Yvonne Rainer, Douglas Dunn e Sarah Rudner, 1970.

          Alaa Abu Asad Na ausência da invasora

          Meditando sobre a história da planta chamada sanguinária-do-japão, podemos inferir que a questão da “origem” não é tão importante hoje em dia. Podemos também permitimo-nos experienciar realidades diferentes em vez de as vermos como um problema e, é claro, especular sobre um futuro comum. Meditando sobre o percurso histórico da nobre e ornamental sanguinária-do-japão, que está a ser hiperdemonizada nos dias de hoje, e é considerada invasora, indesejada, abominável e problemática, podemos ver como esta planta deu o mote à ecologia de invasão, à sua linguagem ofensiva, à etnobotânica, à vegetação urbana e a este texto. 

          Sejam bem-vindos a uma reconstituição em três actos da carreira tumultuosa da sanguinária-do-japão, desde uma medalha de ouro em 1847 nos Países Baixos, passando por uma proscrição na Lei da Vida Selvagem e Meio Rural de 1981 no Reino Unido, até a um conjunto de reflexões sobre um futuro comum, e mais ainda.

          ACTO I

          Questionar a história

          1. E se Guilherme II dos Países Baixos não tivesse estado indirectamente envolvido na história da planta exótica sanguinária-do-japão?
          2. E se os Países Baixos não tivessem sido o único país do Ocidente (para além da China, no Extremo Oriente) a manter relações comerciais e a fazer algumas viagens para o Império do Japão, de 1641 a 1853?
          3. E se a ilha artificial Dejima, ao largo da costa de Nagasaki, não tivesse sido construída pelos portugueses e, mais tarde, tomada pelos holandeses?
          4. E se Philipp Franz von Siebold não tivesse sido destacado para trabalhar na missão comercial holandesa na ilha de Dejima, em Nagasaki, tendo chegado ao Japão em 1823?
          5. E se o médico Philipp von Siebold não pudesse praticar a sua medicina junto da população local japonesa?
          6. E se o médico von Siebold não coleccionasse plantas, sementes, livros, artefactos e mapas no Japão?
          7. E se o médico Von Siebold não fosse presenteado com ferramentas, sementes, livros e quadros por parte da população japonesa local, em troca dos seus tratamentos médicos ocidentais?
          8. E se os presentes que o médico von Siebold recebeu dos seus doentes no Japão não constituíssem a base da sua colecção etnográfica?
          9. E se o médico von Siebold não se tivesse apaixonado por Kusumoto Taki, a mulher com quem ficou e estabeleceu uma relação clandestina?
          10. E se Kusumoto Taki, a companheira secreta do médico von Siebold, não tivesse dado à luz a filha deles, Kusumoto Ine, no Japão?
          11. E se os japoneses não ficassem ofendidos por descobrirem que von Siebold coleccionava mapas do seu Império, entre outras coisas como livros, plantas, sementes e artefactos?
          12. E se os japoneses não suspeitassem que von Siebold era um espião russo porque coleccionava mapas do seu Império, entre outras coisas como livros, plantas, sementes e artefactos?
          13. E se os japoneses não tivessem demitido von Siebold devido ao facto ofensivo (segundo eles) de ele coleccionar mapas do Império, entre outras coisas como livros, plantas, sementes e artefactos?
          14. E se o médico von Siebold, a sua mulher Kusumoto Taki e a sua filha Kusumoto Ine pudessem regressar à Europa e viver juntos nos Países Baixos?
          15. E se Kusumoto Ine, filha do médico von Siebold, não se tivesse tornado a primeira mulher médica a praticar a medicina ocidental no Japão?
          16. E se o médico von Siebold não pudesse regressar com a sua colecção de plantas a Antuérpia e, depois, a Leiden?
          17. E se o médico inglês Nathaniel Bagshaw Ward não tivesse popularizado um terrário primitivo, conhecido como “caixa de Ward”, para transportar plantas vivas e angiospérmicas?
          18. E se o médico von Siebold não tivesse trazido do Japão um espécimen feminino vivo de sanguinária-do-japão numa caixa de Ward?
          19. E se o médico von Siebold não tivesse introduzido e reintroduzido na Europa, juntamente com a sanguinária-do-japão, outras plantas ornamentais de jardinagem como a hosta, a hortênsia, o rododendro, a forsítia, a rosa-rugosa, a magnólia e a ginkgo?
          20. E se o espécimen feminino da sanguinária-do-japão, que foi trazido do Japão numa caixa de Ward, não se reproduzisse vegetativamente desde 1825?
          21. E se a sanguinária-do-japão, que foi trazida em 1825 e pode ser encontrada actualmente no Hortus Botanicus de Leiden, não fosse a MÃE hipotética de todas as sanguinárias-do-japão que crescem actualmente no Noroeste da Europa e no Norte da América?
          22. E se a sanguinária-do-japão não tivesse ganho o primeiro prémio na Sociedade de Agricultura e Horticultura de Utrecht, em 1847, como a planta ornamental mais interessante e valiosa do ano?
          23. E se a planta ornamental de jardinagem sanguinária-do-japão não tivesse sido recebida a 9 de Agosto de 1850 nos Reais Jardins Botânicos de Kew “como parte de um grande lote de plantas do Sr. Siebold de Leiden”?
          24. E se “o viveiro de Siebold em Leiden, onde a planta era activamente vendida e fortemente promovida, ao ponto de ser oferecido um desconto de 25% aos jardins botânicos, não fosse considerado o local inicial do clone da sanguinária-do-japão que tão eficazmente invadiu grande parte da Europa”, como afirmam Bailey e Conolly na sua breve história da planta?
          25. E se a Rainha Vitória não admirasse as plantas ornamentais que eram trazidas “para casa” vindas das colónias ultramarinas e plantadas nos jardins botânicos, entre as quais se encontrava a sanguinária-do-japão?
          26. E se a sanguinária-do-japão, planta ornamental de jardinagem, não fosse tão cobiçada, popular, nobre e frequentemente comercializada durante a era vitoriana?
          27. E se a sanguinária-do-japão encontrasse hoje o seu inimigo natural – para além dos seres humanos e dos cidadãos dedicados – nos Países Baixos da actualidade?
          28. E se a sanguinária-do-japão pudesse ensinar-nos mais sobre nós próprios enquanto seres humanos, membros de grupos, sociedades e cidadãos de Estados nacionais do que sobre si própria enquanto espécie exótica invasora?
          29. E se a sanguinária-do-japão, planta exótica invasora, pudesse dar-nos a oportunidade de olharmos para a nossa realidade, para a nossa vida quotidiana e para o nosso passado de uma perspectiva diferente?
          30. E se a sanguinária-do-japão pudesse ensinar-nos a abrandar, a contemplar, a tomar o tempo necessário e a resistir sempre que for preciso?
          31. E se a sanguinária-do-japão pudesse, de facto, aliviar a vossa e a minha dor?

           

          ACTO II

          Questões jurídicas

          Sou uma planta política.

          Chamada sanguinária-do-japão em português, Fallopia Japonica em latim (e anteriormente Reynoutria japonica, Polygonum multiflorum α [alpha], Polygonum pictum, Polygonum cuspidatum, Polygonum sieboldii e Polygonum reynoutria). No Japão, porém, sou conhecida como Itadori, que se pode traduzir como “alivia a dor”. Na China, chamam-me pau-de-tigre, devido ao padrão avermelhado e sarapintado com o de um tigre nos meus caules. Também cresço nas Coreias e em Taiwan, mas no Ocidente associam-me apenas ao Japão. Isto deve-se à dinâmica política tanto no Extremo Oriente como na Europa, que enformou as nossas realidades actuais. Embora nem sempre consiga aliviar a dor, posso curar a alma, como Derek Jarman escreve nos seus diários sobre o seu jardim em Prospect Cottage, perto da Estação Nuclear de Dungeness. A propósito do seu estado de saúde e da morte dos amigos devido ao vírus HIV nos anos oitenta do século passado, escreve: “Planto o meu horto de plantas medicinais como se fosse uma panaceia, leio sobre todas as dores que as plantas curam – e sei que não vão ajudar. O jardim como farmacopeia falhou. No entanto, ainda há uma emoção em ver as plantas a brotar que me dá esperança.”

          Juntamente com muitas outras irmãs, fomos trazidas vivas numa caixa de Ward. Um recipiente de vidro, selado e fixado com traves de madeira ao longo das suas superfícies, com uma abertura de um lado e outra no topo – onde duas folhas de vidro se encontram e formam um prisma triangular. Terrarium vivarium. Muitas destas irmãs são hoje aclamadas como plantas ornamentais de jardinagem, tais como a glicínia, a hosta, a hortênsia, o rododendro, a rosa-rugosa, a Malus floribunda, a ginkgo, as bagas de goji, a bérberis, o Acer sieboldianum, o marmeleiro-da-china e muitas outras.

          Mas eu tornei-me uma das foragidas dos jardins vitorianos porque…

          Sou uma planta política.

          A lei foi embutida em mim. A minha existência e o meu crescimento estão implicados. Por isso, sou uma planta altamente política. Sou a estrela dos meios de comunicação social e dos cabeçalhos das notícias, deixo os ambientalistas perplexos e apareço em processos judiciais.

          Num processo judicial, datado de 2 de Fevereiro de 2017, no condado de Cardiff, no País de Gales, afirmou-se que:

          • Bastam 0,7 gramas do meu rizoma (o que equivale a 10 mm de comprimento) para produzir uma nova planta regenerada em 10 dias.
          • O meu rizoma pode permanecer latente durante longos períodos, possivelmente durante vinte anos.
          • É necessário um plano de acção para fazer face aos danos e incómodos contínuos que posso causar em propriedades privadas.
          • Se eu estiver a menos de 7 metros de um espaço habitável, exige-se que isso seja registado num relatório de avaliação do imóvel.
          • A minha presença pode afectar o valor recreativo e de mercado de propriedades privadas.
          • A minha presença pode causar dificuldades quanto à possibilidade de venda de propriedades privadas.
          • Também se fez referência a outro caso mais antigo, em que se traçou uma analogia entre a minha presença e uma casa de prostituição, pois aparentemente eu poderia “interferir sensivelmente no gozo confortável e conveniente da residência do homem, onde vivem com ele a sua mulher, o seu filho e os seus criados”, como foi afirmado no processo judicial.

           

          Roundup. Em suma.

          Sou uma planta política.

          Muitas são as formas de me controlar.

          G é de genocídio e gastos anuais

          L de libertina

          I de insistente e imunda

          F de fealdade

          O de obscena

          S de sodomia

          A de agonia e de atrevida

          T de Triffid e terror

          O de odiosa

          Tudo junto, glifosato. 

          Roundup. Em suma.

          O glifosato é um herbicida sistémico de largo espectro e um dessecante de culturas. Trata-se de um composto organofosforado que actua inibindo a enzima EPSP da planta. É utilizado para matar as ervas daninhas, sobretudo as ervas daninhas anuais de folha larga e as gramíneas que competem com as culturas. O glifosato é o ingrediente activo do Roundup, o produto de marca da Monsanto, que a Bayer adquiriu em 2018. É o herbicida mais utilizado nos Estados Unidos.

          “Num dia de sol, uma pulverização de glifosato numa folha de sanguinária-do-japão faz com que ela seque em poucos minutos”, afirma um soldado do Estado contra a sanguinária-do-japão no País de Gales.

          No entanto, a exposição da pele e dos olhos a formulações concentradas de glifosato prontas a usar pode causar irritação, dermatite de fotocontacto, e a inalação da névoa de pulverização pode causar irritação no nariz e na garganta. A ingestão de produtos com glifosato pode provocar um aumento da saliva, queimaduras na boca e na garganta, náuseas, vómitos e diarreia. Vários estudos científicos relacionam a utilização do glifosato com a doença de Parkinson. Estes estudos indicam igualmente que o glifosato pode ser cancerígeno. No entanto, o glifosato é infelizmente promovido como o melhor herbicida para o controlo da sanguinária-do-japão, visto que outros métodos físicos, como 

          cobrir o solo,

          cortar a planta,

          arrancar,

          aparar,

          podar,

          desenraizar

          desenterrar,

          queimar,

          pôr ovelhas / porcos / cabras a pastar,

          despejar água a ferver,

          deitar água salgada,

          congelar as raízes,

          electrocutar,

          termo-electrocutar,

          encharcar o jardim com gasóleo,

          importar insectos e inimigos biológicos,

          plantar espécies autóctones competitivas,

          monitorizar os locais infectados,

          e utilizar câmaras de aquecimento simplesmente não funcionam.

          Estou a pensar no que Tao Orion escreve em Beyond the War on Invasive Species: A Permaculture Approach to Ecosystem Restoration: “A presença de espécies invasoras não é necessariamente um problema a resolver, mas sim um convite para aprofundar a compreensão da complexa dinâmica do ecossistema ao qual estão intrinsecamente ligadas.” E não posso deixar de referir o que ela enumera: “Cidades e subúrbios, bairros-de-lata, esgotos, lixeiras, zonas mortas, currais de engorda, centros comerciais e monoculturas. Pesticidas, plásticos e poluição orgânica persistente. Carvão e cumes desaparecidos. Petróleo e as guerras que dele derivam. Alterações climáticas, subida do nível do mar, deslocamento cultural e ecológico, extinção.”

           

          ACTO III

          Insistir num futuro possível

          O mel que foi retirado às abelhas, que me sugaram pétalas e sorveram o néctar das flores em Setembro e Outubro passados, quando já quase nenhuma outra planta conseguia produzir flores, e quando eu tive de receber todos os insectos, acolhendo-os em cima e em baixo dos meus caules e folhas, esse mel tinha um sabor doce. Escuro, rico e robusto.

          O papel, que servia de capa ao livro e de espaço para registar as vossas palavras, era prático. O papel foi feito com pedaços cortados de caules secos que, quando vivos, eram eu. Mas ainda estão vivos. A música, que foi tocada numa flauta feita com um dos meus caules secos, também sou eu. A música era suave e doce.

           

          Agora,

          exaurimos este planeta, 

          ao contribuirmos durante séculos para a redução dos seus recursos de forma desleal.

          A Mãe Terra tornou-se uma expressão agonizante de tristeza.

          E nós? Nós somos só cómicos.

          Como se costuma dizer: os ricos ficaram mais ricos, os pobres são considerados criminosos como sempre foram, e os que estão a meio caminho vão ficando mais pobres; mas todos estão desesperançados, assustados, perdidos, cansados, indecisos e hesitantes. 

          Vou recorrer ao que Helen Macdonald conta em Vesper Flights sobre uma avestruz fêmea que, depois de ter enfiado uma pata na cerca de uma quinta no oeste do País de Gales e de a ter partido ao tentar libertar-se e, apesar de ter sobrevivido, acaba por ser eutanasiada para lhe poupar o sofrimento. Relembrando o incidente, escreve Helen: 

          “Pensei na crueldade do sistema em que esta criatura tinha sido apanhada. E depois pensei no dia em que corri atrás dos bois na colina e tudo se resolveu com perfeita clareza. Pois eu tinha-me visto como um desses bois, mais um elemento num rebanho selvagem de que ninguém cuida, a gozar a vida no meio do nada, sem pensar no que aconteceria no futuro, e sem grandes preocupações quanto a isso, mas sabendo lá no fundo que um dia haveria de ir parar ao matadouro. Não haveria como escapar do alto-mar para a costa. E a minha correria e os meus gritos não eram gratuitos. Tinham sido uma tentativa incipiente de os arrancar àquela compostura satisfeita. Tinham sido um aviso para eles se pirarem dali para fora, porque o vale em que estávamos todos era escuro e profundo e não podia acabar bem.”

          *

          Sou uma sanguinária-do-japão. 

          Ainda estamos nesse vale profundo e escuro.

          Sou uma sanguinária-do-japão; sou uma planta política, ambivalente, resiliente, duradoura e perene; e uma desordeira, como qualquer outra planta, mas sou a vossa planta companheira para um futuro verde. 

          Se estamos a ser conduzidos para o abismo, então façamos a viagem juntos.

          Ultrapassemos os outros passageiros todos para chegar à dianteira, assumir o controlo e pegar no volante para nos desviarmos.

          Digamos que isto já tinha acontecido e que tínhamos flutuado para longe do vazio; ainda assim eu continuaria a ser a vossa planta futura de eleição.

          Se enfiassem o dedo nesse futuro e o lambessem, o sabor seria provavelmente amargo. Mas se pousarem em mim a mão e contemplarem as possibilidades que podemos desenvolver juntos, o sabor pode ser melhor, e talvez se torne doce.

          Como comentar a história, tentando queerificá-la a partir deste lugar, quando não se é holandês, nem britânico, nem europeu? Porquê desafiar a história em geral e encorajar as pessoas a pronunciarem-se, a fazerem perguntas, em vez de tomarem as coisas como garantidas – ou pior, consumirem o que é produzido em massa? Porquê conceber um futuro melhor e não desistir dos direitos, das necessidades e de vidas dignas? “Nenhum de nós suporta demasiada realidade”, escreve Helen. Devíamos ser criativos enquanto comunidade, usar a imaginação e sermos capazes de pensar no que fazer a seguir, “para tomar a decisão certa face ao mau tempo que se aproxima”.

          Identifico-me muito com o que Olivia Laing escreve na sua introdução aos diários de Derek Jarman, Modern Nature, de 1989-1990. Na edição de 2018, escreve: “Jarman preocupava-se com o aquecimento global, o efeito de estufa, o buraco na camada de ozono. Será que vai haver futuro? Estará o passado irremediavelmente destruído? O que fazer? Não percas tempo. Semeia alecrim, lírio-tocha, santolina; transfigura o terror em arte.” 

          No seu livro de 2020, Funny Weather: Art in an Emergency, Olivia escreve:

          “Era verdade. A jardinagem situa-nos num tipo de tempo diferente, a antítese do presente estonteante das redes sociais. O tempo torna-se circular, não cronológico; os minutos transformam-se em horas; algumas acções demoram décadas a dar frutos. O jardineiro não está imune ao desgaste e à perda, mas é confrontado diariamente com as boas notícias constantes da fecundidade. Uma peónia regressa, rebentos cor-de-rosa alienígenas brotam do solo nu. O funcho auto-semeia-se; há uma abundância de cosmos que vem do nada.”

          E Olivia continua, perguntando: “Será que a arte é resistência? Pode-se plantar um jardim para parar uma guerra? Depende da maneira como se pensa o tempo. Depende do que se pensa que uma semente faz, se for lançada para um solo fértil.” Partindo daqui, pergunto-me quase todos os dias: de onde vem esta insatisfação? Haverá uma razão / uma vontade de seguir em frente / continuar a lutar / resistir? Um enxame invisível de desânimo paira à minha volta enquanto me sento na minha cadeira, inspirando e expirando – contemplando. Então aparece o sol, brincando com o meu rosto, e olho para o telemóvel, abrindo um canal de comunicação para receber notícias da minha família distante, e ouço uma mensagem de voz da minha avó de quase oitenta e cinco anos a perguntar-me, com a sua voz brusca mas cheia de vida e amor, se eu por acaso sei onde é que ela pode encontrar uma certa planta, porque leu algures que fazia bem a isto e àquilo, e podia precisar dela. E eu sorrio. Sorrio para o ecrã que tenho na mão, para mim próprio e para a árvore que está encostada à minha janela há já uma década, duas ou dez décadas, e digo a mim próprio: SIM! Qualquer coisa para além do meu telemóvel, para além do meu pequeno físico, para além do vidro da janela e da velha árvore merece que eu viva a minha vida, merece a minha resistência. E a nossa resistência colectiva. 

          Contra o fascismo.

          Escrito originalmente como uma leitura performativa, este texto faz parte de uma investigação em curso intitulada “The dog chased its tail to bite it off”. Traduzido do original em inglês por Joana Frazão.

          Filipa César Sónia Vaz Borges Educação Militante e o Mangue

          Filipa César (F) e Sónia Vaz Borges (S)

          F: Começamos aqui porque não há um ponto de partida único para iniciar uma conexão com as condições intrincadas vividas por alunos e professores nas escolas das zonas libertadas. Esta conversa pendular parte de uma investigação aprofundada sobre o sistema educativo militante que o Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC) desenvolveu durante o processo de libertação, a luta armada de onze anos (1963-74) contra a ocupação colonial portuguesa e um interesse recorrente no imaginário do tarafe – a palavra crioulo para mangal.1

           

          S: Marcelino Mutna partilhou comigo: “Nós estudámos na lama. Quando a água chegava até aqui (apontando para um pouco acima do tornozelo), nós continuávamos lá até terminar a lição. Depois descíamos e caminhávamos pela água para ir para casa. Vivemos e estudámos no mangue durante quatro anos (1966-69), era o nosso refúgio contra os bombardeamentos”2

           

          F: A geografia da Guiné-Bissau carateriza-se por uma ecologia de aluvião com a maioria do território abaixo do nível do mar e sendo a costa sujeita a marés e ocupada por uma das mais densas florestas de rhizophora mangle (mangue-vermelho) conhecidas em todo o mundo. Num dos seus discursos aos militantes, Amílcar Cabral disse: “Na Guiné, a terra é cortada pelos braços do mar a que chamamos rios.3 Mas em termos de profundidade não são rios”. Rio era um conceito português — Cabral quis abordar a importância do conhecimento proveniente da especificidade da terra em si mesma, ao invés daquele imposto pela ordem colonial.

           

          S: No segundo ano da guerra que eclodiu em 1963, o movimento liderado por Amílcar Cabral já lançara os pólos educativos militantes perto de aldeias e bases de guerrilha. Nos anos seguintes, este número cresceu para 164 escolas espalhadas por todas as zonas libertadas. Nos últimos anos de guerra, em 1971-72, segundo as estatísticas do PAIGC, havia 14.531 alunos e 258 professores distribuídos nas Zonas Libertadas da Guiné-Bissau e países vizinhos, como a República do Senegal e a República da Guiné.

           

          F: O ecossistema dos mangues abarca uma tecnologia natural de conectividade, proteção e resistência a qualquer tipo de cultura monolítica. Natasha Ginwala e Vivian Ziherl escreveram: “O mangal é um lugar onde a terra parece sobrenatural. É aqui que os vestígios humanos não podem sobreviver como uma forma duradoura, pois esta ecologia costeira tropical é um local de refiguração contínua: nem mar nem terra, nem rio nem mar, nem de água salgada nem doce, nem à luz do dia nem na escuridão”4. Sob as condições mais hostis, o mangal cresce nas margens do Atlântico, entre a terra e o mar, entre água doce e salgada, numa condição de vida anfíbia permanente.

           

          S: Um dos principais desafios das escolas da floresta era resolver as exigências arquitetónicas – como proteger alunos e funcionários dos ataques aéreos e emboscadas dos portugueses. As escolas tinham que ser acessíveis a pé para crianças de dez anos e, simultaneamente, estarem suficientemente escondidas e inacessíveis para não se tornarem alvo de ataques tugas. Algumas escolas da selva, como a de Mutna, foram construídas por cima e por dentro dos manguezais, tornando-as intransitáveis, conectivas, como parte da natureza intrincada que Édouard Glissant descreveu como “raízes que se entrelaçam, se misturam e se assistem  mutuamente”5.

           

          F: O mangue-vermelho, circundando as zonas costeiras da Guiné-Bissau, desenvolve raízes longas que surgem do tronco ou dos ramos e crescem em direção ao solo, onde a raiz irá desenvolver um sistema subterrâneo. Quando a raiz do galho atinge a água em vez do solo, esta cresce debaixo de água em direção ao leito do oceano ou braço de mar.

           

          S: Os mangues crescem frequentemente na lama ou no lodo, que quase não fornecem oxigénio. As raízes longas têm a capacidade de permitir a troca de gás em sedimentos pobres em oxigénio. As raízes arqueadas têm inúmeras lentículas que fornecem a troca de gás. Os próprios mangues estão preparados para ambientes hostis, protegendo-se e criando abrigo para outros seres, incluindo os alunos ameaçados pelas forças colonialistas.

           

          F: Os gérmenes da planta de mangue podem flutuar por mais de um ano antes de criarem raízes. O gérmen boia, plana sobre a água do mar, flutuando à deriva, quando se aproxima de água mais fresca, passa para uma posição vertical, de modo a que as suas raízes apontem para baixo. Depois de se alojar no lodo, a plântula projeta rapidamente raízes adicionais para o solo. Os mangues armazenam água fresca em folhas espessas e suculentas. O revestimento na superfície das folhas, chamado suberina, é uma substância cerosa inerte e impermeável presente nas paredes celulares do mangue que serve para selar a água e minimizar a evaporação. A partir da viagem de uma única semente, pode florescer um ecossistema rico.

           

          S: As raízes aéreas do mangue assumem formas diferentes – algumas criam arcos e laçadas em torno do tronco e ramos inferiores, outras são largas com raízes onduladas que se afastam do tronco. As raízes aéreas alargam a base da árvore e estabilizam o sistema de raízes pouco profundo no solo mole e solto. Um ramo pode criar raiz ou bifurcar-se num outro ramo, um cresce para baixo, outro para cima. Como é que o algoritmo que define o crescimento do mangue decide quando é que a próxima brotação vai evoluir como raiz ou como ramo?

           

          F: Alguns mangues crescem com raízes em forma de lápis, que se erguem do solo denso e húmido como tubos de mergulho. Estes tubos respiratórios, chamados pneumatóforos, permitem à planta lidar com as inundações diárias das marés, de modo a inalarem oxigénio. Isto não acontece quando os mangues ficam submersos por muito tempo.

           

          S: Isto faz-me lembrar o que Lassana Seidi disse: “Naquela época, não havia mesas. Nós estávamos na floresta. Procurávamos árvores, cortávamos ramos e algumas palmeiras e fazíamos mesas com elas, nas clareiras da floresta. O quadro era pendurado numa árvore e era assim que o professor dava as aulas. No início, não havia material escolar. Quando estávamos a aprender o A-B-C-D, um lápis normal era cortado em dois, às vezes até em três, de acordo com o número de alunos. Nessa altura, procurávamos papel, ou mesmo cartão. Nesses pedaços de cartão, o professor escrevia o alfabeto e nós repetíamos e copiávamos”6.

           

          F: Os mangues prosperam apesar de serem inundados duas vezes por dia pelas marés. Crescem onde terra e água se encontram e suportam o embate de tempestades e furacões oceânicos. Quando surge uma tempestade tropical com toda a sua força, atinge primeiro os mangues, antes de todos os outros seres – plantas, animais e humanos. Os manguezais são resilientes e protegem a costa de muitas maneiras, também da penetração dos navios coloniais.

           

          S: A luta constante do mangue, com a sua condição de resiliência rizomática, ecoa as palavras de Cabral: 

          “Reprimido, perseguido, traído por alguns grupos sociais que estavam em ligação com a cultura colonialista, o africano [e a africana] sobreviveram a todas as tempestades. Refugiando-se nas aldeias, nas florestas e no espírito das gerações que foram vítimas do colonialismo. […] Os valores universais da cultura africana são hoje um facto incontestável; no entanto, não se deve esquecer que os africanos, cujas mãos, como dizia o poeta «colocaram as pedras dos alicerces do mundo», desenvolveram a sua cultura frequentemente, se não constantemente, em condições adversas: dos desertos à floresta equatorial, dos pântanos costeiros às margens dos grandes rios sujeitos a inundações frequentes, apesar de todo o tipo de dificuldades.”7.

           

          F: Os mangues em terra também nos ensinam como as fronteiras são uma construção artificial e dão-nos a prova material de que as fronteiras são, ontologicamente, significantes flutuantes. A lama acumula-se em torno das raízes emaranhadas e os lodaçais rasos acumulam-se. Os mangues crescem e mudam, produzindo novos solos, sempre em movimento, territorializando, desterritorializando, redefinindo topografias – o seu sistema de raízes cria arquiteturas que, capazes de sustentar mudanças de terra constantes, desafiam conceitos de território e propriedade.

           

          S: No ensaio intitulado Rizoma, Félix Guattari e Gilles Deleuze opõem a raiz da árvore ao rizoma e propõem uma crítica da epistemologia ocidental imaginando o livro-raiz como a árvore do conhecimento, partindo do um que dá origem a dois – implicando uma origem sempre rastreável. Para Frantz Fanon, esta lógica é a do colonialismo, uma perspetiva branca versus negra que se enraíza em fantasias de origem, onde o um naturalmente domina os dois – com o um que é sempre o ponto de referência para o que é e como deve ser. O livro conta esta narrativa. A narrativa épica, uma história de origem. Uma história que regressa sempre a uma pátria. O livro faz um conto de violência.

           

          F: Poderíamos pensar num livro-mangue, contra esta figura do livro-árvore, um livro que não se relaciona com uma origem, mas que é feito do conhecimento adquirido por uma constante semeadura ou por uma tentativa recorrente de alcançar os vizinhos circunvizinhos, projetando novas raízes que se prendem ou não, um conhecimento que evolui a partir das relações estabelecidas e não de algum tipo de reivindicação em função de onde ele vem.

           

          S: A aprendizagem no ambiente de uma zona entre-marés ensina alternativas à raiz única, e que a fixidez no lugar e na terra é a origem tanto de mitos identitários violentos como de mitos nacionalistas aterradores. Para Édouard Glissant, a sua experiência histórica, mapeada perfeitamente pela geografia arquipelágica caótica, é rizomática e nómada. Como poderiam os movimentos de desterritorialização e os processos de reterritorialização não ser relativos, sempre conectados, embrenhados um no outro? Crioulizado, o espaço arquipelágico é definido pelo seu caos criativo e fragmentado, mais do que pela fixidez e continuidade.

           

          F: A condição fugitiva dos estudantes guineenses nas zonas libertadas encontra abrigo nas escolas de mangue, uma relação que forma um rizoma em si. A sobrevivência dos mangues é naturalmente resistente às ocupações offshore externas. O ambiente de aprendizagem do tarafe é um espaço crioulizado e arquipelágico – tudo é colocado à deriva, mas tudo ainda liga, um sítio em qualquer lugar, uma condição nómada.

           

          S: Nómadas e rizomas substituem casas e raízes, gerando assim uma reviravolta decisiva e convincente na revolucionária reinvenção da terra como no espaço do movimento e contacto relacional com o lugar.

           

          F: O rizoma coloca o termo “raiz” sob crise – radical vem de raiz. Na enumeração das caraterísticas do rizoma, Deleuze e Guattari mantêm o caráter aporético à vista quando escrevem: “Qualquer ponto de um rizoma pode estar ligado a qualquer outro, e deve estar. Isto é muito diferente da árvore ou raiz, que traça um ponto, fixa e ordena”8.

           

          S: Nos pensamentos nómadas de Maria da Luz Boal, esta contou que “alguns [estudantes] eram órfãos. Outros, os pais estavam na frente de guerra. […] E constantemente recebemos a notícia de que o camarada foi e ficou [morreu]. E, assim, havia este ambiente de viver a luta, e a vontade de ser livre. Era tão forte que aqueles miúdos desenhavam aviões, espingardas, bombardeamentos. Era esse o mundo deles. […] Tinha que explicar por que razões o povo decidiu lutar, para ser livre da opressão colonial… A política estava tão presente que eles tinham de saber e compreender”9.

           

          F: Como semente nómada, os propágulos podem sobreviver à dessecação e permanecer adormecidos por mais de um ano, até chegarem a um ambiente adequado. Quando um propágulo está pronto para enraizar, a sua densidade altera-se e a forma alongada passa a flutuar na vertical, em vez de horizontalmente. Nesta posição, é mais provável que se aloje no lodo e crie raiz; caso contrário, pode alterar a sua densidade e derivar novamente em busca de condições mais favoráveis.

           

          S: Como estes rizomas, Marcelino Mutna e outros estudantes são portadores de arquivos nómadas. Por mais de quarenta anos, as histórias e experiências de educação militante relacionadas com o PAIGC foram lembradas apenas em pequenos grupos privados, como um lembrete e um processo nostálgico compartilhado entre aqueles que fizeram parte dele. Durante este tempo, reconstruíram as suas vidas na Guiné-Bissau, em Cabo Verde ou em vários outros países, viajaram e trabalharam em diferentes campos, reconstruíram os seus ideais e memórias sobre a luta de libertação, esqueceram-se de pormenores importantes em torno da luta. Neste processo de vida, tornaram-se arquivos ambulantes, ou seja, um arquivo que não está alojado num lugar e cuja informação não é constante ou fixa no tempo, e cujas memórias precisam de ser constantemente trazidas à vida pelas perguntas e curiosidade de quem está interessado.

           

          F: A prática fragmentária desta rememoração, trazendo de volta aos membros experiências passadas desafiadas da voz para o corpo, anuncia a fluidez e a construção fictícia de histórias. Glissant escreveu,a noção do rizoma mantém, portanto, a ideia de enraizamento, mas desafia a de uma raiz totalitária. O pensamento rizomático é o princípio por detrás daquilo a que eu chamo a Poética da Relação, em que toda e qualquer identidade é estendida através de uma relação com o Outro”10.

           

          S: O termo de educação militante não é muito recorrente nos arquivos do PAIGC. O termo utilizado foi educação política – para alunos do terceiro ao quinto ano. Foi apenas em 1978 que a noção foi utilizada como conceito, como forma de caraterizar o sistema pedagógico desenvolvido durante a luta.

           

          F: Enraizada na sua comunidade, a escola foi o local privilegiado onde militantes armados, agricultores e jovens estudantes se reuniram e aprenderam entre o povo e a sua vida quotidiana tudo o que podia ser útil para o progresso da luta.

           

          S: Localizadas perto das aldeias, as escolas devem ser construídas num local relativamente seguro devido à situação de guerra e não muito longe de uma fonte de água. A estrutura da escola não era permanente devido às circunstâncias da guerra que obrigavam a ter uma espécie de vida e estrutura itinerantes. Construídas com materiais fáceis de transportar, a fim de serem reconstruídas noutra região. Folhas de árvores, troncos de árvores e ramos. O ambiente florestal proporcionou uma proteção natural para o reconhecimento escolar dos aviões militares de reconhecimento. A floresta e o material que forneceu, assim como as caraterísticas da luta de libertação, ditaram a arquitetura e as condições da escola.

           

          F: Neste campo de suspensão e afinidades, uma zona afetada de impasse coexiste com a tecnologia de passagem. O mangue é também um local natural de proteção para muitas espécies, nutrindo a reprodução. No âmbito desta arquitetura flutuante, o conhecimento militante estava a ser produzido e transmitido contra todas as probabilidades em função dos ciclos das marés. Estas estratégias foram apoiadas por um esforço pedagógico permanente de autoemancipação, empregando o que Paulo Freire cunhou como codificação da linguagem através de um processo situado de consciencialização11.

           

          S: Educação militante é um termo que defino como um processo educacional engajado e consciente, comprometido com princípios anticoloniais e descolonizadores, focados num amplo conceito de libertação. Está enraizado e apoiado nas realidades e necessidades da comunidade e cujo papel pedagógico combina três aspetos: aprendizado político, treinamento técnico e formação de comportamentos individuais e coletivos. Estudantes e militantes foram orientados para o desenvolvimento de si mesmos como um cidadão africano liberado, cuja tarefa era dar a sua contribuição consciente para o desenvolvimento sustentável do novo país libertado independente, integrado ao entendimento internacionalista do mundo.

           

          F: Sob a condição de opressão colonial, particularmente desta guerra de libertação, a catástrofe segue-se à sobrevivência, depois outro começo, outro devir – a re-territorialização após a desterritorialização. A educação nestas circunstâncias é um corolário deste modo de sobrevivência intrínseco do mangue.

           

          S: Marcelino Mutna estudou numa escola construída num mangue em que o solo era inundado duas vezes por dia. Quando ele diz “descer”, refere-se a como a escola foi construída – cadeiras e mesas foram construídos com pernas mais altas, a fim de evitar que os pés ficassem submersos na água; outra estrutura foi construída para que os alunos pudessem descansar os pés durante as aulas. Mutna descreve como as marés estavam imbricadas no processo de aprendizagem.

           

          F: Maré alta e maré baixa, inalação de conhecimento e exalação de vida, ao ritmo de uma natureza militante. A respiração da maré a oxigenar um conhecimento de resistência numa situação de resistência pelo conhecimento.

           

          S: Como os mangues, a educação militante é uma condição de vida no limite. Com um pé em terra e outro no mar, estes anfíbios botânicos ocupam uma zona de calor dessecante, lama asfixiante e níveis de sal que matariam uma planta comum em poucas horas.

           

          F: O mangue como arquitetura natural aérea, onde, embora os seres humanos aparentemente não possam deixar vestígios, a memória ainda flutua através de suas redes radiculares de maré. Aqui, impõe-se encontrar um imaginário que entrelace diferentes dimensões convergentes, a epistemologia do rizoma como situada por Édouard Glissant, conceitos de educação militante e política desenvolvidos pelo PAIGC e posteriormente sistematizados por Paulo Freire, e noções botânicas da engenharia dos mangues com os arquivos nómadas.

           

          S: As escolas de mangues não são uma metáfora para uma teoria da resistência, mas sim o próprio organismo materialista de partilha e produção de conhecimento que evoluiu a partir de uma luta anticolonial e que toma o próprio ecossistema rizomático como lugar de luta permanente, anexando raízes/desprendendo raízes, aprendendo/desaprendendo, a condição militante é um devir latente.

          1 Luigi Scantamburlo, Dicionário do guineense (Lisboa: FASPEDI, 1999), 601.
          2 Sónia Vaz Borges, Militant Education, Liberation Struggle, Consciousness. The PAIGC Education
          in Guinea Bissau (Berlim: Peter Lang, 2019).
          3 Amílcar Cabral, Unity and Struggle. Speeches and Writings of Amílcar Cabral (Londres: Monthly Review Press, 1979).
          4 Natasha Ginwala e Vivian Ziherl, “Sensing Grounds: Mangroves, Unauthentic Belonging, Extra-territoriality”, in E-flux #45, (2013), disponível em https://www.e-flux.com/journal/45/60128/
          sensing-grounds-mangroves-unauthentic-belonging-extra-territoriality/, acedido a 21 de fevereiro de 2020.
          5 Édouard Glissant, Poetics of Relation (Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1997).
          6 Borges, Militant Education, 79.
          7 Cabral, Unity and Struggle, 49-50.
          8 Gilles Deleuze e Felix Guattari, A Thousand Plateaus. Capitalism and Schizophrenia (Londres: University of Minnesota Press, 1987).
          9 Borges, Militant Education, 155.
          10 Glissant, Poetics of Relation, 11.
          11 Ver Paulo Freire, Pedagogy in Process: Letters to Guinea Bissau (Nova Iorque: Bloomsbury, 1978) e
          John Reader Jackson, The Mangrove and Its Allies (Kew: Museum of the Kew Royal
          Botanical Gardens. 1900).

          Talles Lopes Engolindo o Velho Mundo

          Já faz alguns anos que tenho dedicado parte da minha prática artística a pensar a cartografia como linguagem, preocupado em como esse modo de representação não somente sintetiza, mas constrói visões de mundo. Foi durante um desses processos, buscando por cartografias do Brasil na plataforma David Rumsey Map Collection, que me deparei com o mapa das “Explorações Portuguesas do Continente Sul Americano no Século XV”, mapa que destaca a área do atual Brasil evidenciando a ocupação do território americano por Portugal. As Capitanias Hereditárias, áreas administrativas portuguesas, são destacadas no mapa em diferentes cores e matizes, colorindo desde o litoral atlântico até o limite do Tratado de Tordesilhas (1494), acordo concebido como divisão colonial do Novo Mundo entre os impérios hispânico e português. 

           

          O mapa é parte de um documento de nome gigantesco, o Atlas de Portugal Ultramarino e das Grandes Viagens Portuguesas de Descobrimento e Expansão (1948), produzido pelo Ministério das Colônias e pela JMGIC (Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais). Lendo Luís Miguel Moreira1, soube logo que apesar da atenção dada ao tratado de 1494 e a uma ex-colônia portuguesa independente desde 1822, na realidade a publicação enfoca a propaganda colonial e exploração cartográfica de outros territórios que ainda no século XX permaneceram sob o domínio português. 

           

          O atlas apresenta territórios como Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e demais colônias através de dados geográficos, etnográficos, botânicos e outras informações distribuídas em 110 mapas coloridos. O conjunto impressiona pela qualidade gráfica dos desenhos, em que a precisão dos traços, cores, padrões e formas parece ultrapassar seu sentido técnico. Por vezes me parecendo que a violência existente na linguagem cartográfica supostamente universal e neutra se converte em um exercício estético de abstração formalista. 

           

          Atlas de Portugal Ultramarino. Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1948. Fonte: David Rumsey Map Collection

          Atlas do Brasil. Brasília: IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1959.

           

          Há pouco tempo lia em Fernando Lara2 que “a abstração é a forma mais difundida de privilégio”, o que fez sentido nos mapas, na medida em que a capacidade cartográfica de projetar-se fora do mundo para vê-lo, estando dentro dele, é provavelmente a ação padrão que precede qualquer dominação efetiva desse mesmo mundo. Ao passo que enquanto quem projeta – o homem branco – está do lado de fora da representação, os demais tornam-se passíveis de serem reduzidos a objetos nas representações. De maneira que não impressiona que a violência colonialista secular tenha se reafirmado através de abstrações cartográficas que soam tão inofensivas. Nem impressiona o resgate temporalmente remoto do Tratado de Tordesilhas como afirmação das qualidades expansionistas portuguesas 454 anos mais tarde, ferramenta para legitimar o império colonial português diante da conjuntura mundial em meados do século XX.

           

          Por outro lado, me impressiona como esse resgate colide com outra representação que me é bastante familiar, o mapa “Expansão Territorial do Brasil” (1958), publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que novamente resgata e destaca o Tratado de Tordesilhas mais de 400 anos depois no tempo. Chama minha atenção não tanto o simples destaque dado ao Tratado num período longínquo, o que é frequente em mapas escolares, mas precisamente o fato do mapa expansionista marcar a introdução de uma importante publicação estatal em pleno processo de modernização do país, o Atlas do Brasil (1959)3, publicado durante a construção da capital Brasília no interior do país e sua jornada modernizadora de integração nacional no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961).

           

          Como apresenta o Atlas do Brasil, enquanto os bandeirantes e as cidades coloniais surgidas da exploração do outro “simbolizam o devassamento e a posse teórica” dos territórios adjacentes ao Tratado de Tordesilhas, a construção de Brasília seria a “esplêndida realidade da ocupação efetiva”. Os bandeirantes foram exploradores de São Paulo, geralmente de descendência portuguesa, responsáveis pela anexação das áreas hispânicas do Tratado de Tordesilhas, o que faziam através das bandeiras – incursões ao interior do continente em busca de ouro e da escravização de povos originários. Do mesmo modo, Paulo Tavares 4faz ver que a celebrada pintura Primeira Missa no Brasil (1861), feita por Victor Meirelles (1832-1903) e inspirada na carta de Pêro Vaz de Caminha (sc. XV) sobre a chegada portuguesa no Brasil, foi a imagem conscientemente reencenada na missa da fundação de Brasília, assim a nova capital modernizante já apontava um futuro de volta ao passado colonial.

           

          Se no atlas português o Tratado de Tordesilhas é resgatado como ato fundacional colonialista, no atlas brasileiro a menção à superação de seus limites pelas bandeiras paulistas é forjada como o primeiro ato colonialista essencialmente brasileiro. Foi indagando sobre esses paralelos que iniciei uma série de trabalhos onde contraponho representações do Brasil entre si e também com outros territórios, pensando que esse simples exercício de colidir imagens poderia desvelar a internalização de lógicas coloniais dentro de uma noção de “brasilidade”. Como sugere a relação que pude construir entre a capa do livro brasileiro S. Paulo é Isto! (1932)5 e o cartoon britânico The Rhodes Colossus (1892)6 na aquarela “Pra inglês ver” (2023), enquanto a Europa operava o colonialismo em diferentes territórios ultramarinos, no Brasil nostalgicamente se fantasiava o bandeirante paulista como uma versão interna da “era dos descobrimentos”. 

          Pra inglês ver (2023), Talles Lopes. Aquarela e nanquim sobre papel, 56 x 76 cm.

          (Fotos: Paulo Rezende)

           

          A violência do binômio metrópole e colônia aparece com frequência eufemizada no mito de uma unidade homogênea formada por explorador e explorado, como na capa da revista Paris-Match (n° 326, 1955) com um jovem negro supostamente saudando a bandeira francesa. Tal episódio foi apontado por Roland Barthes7 como exemplo de um regime de exploração material e simbólica que é velado na ideia conciliatória de um grande império onde “todos os seus filhos, sem distinção de cor, a servem fielmente sob a sua bandeira”. Na leitura de Barthes facilmente caberia também a capa da edição da revista brasileira Vida Doméstica (n° extraordinário, 1940), que promove a ideia de “guarda as terras do Brasil” como uma suposta colaboração entre o exército nacional e os povos originários do território dito brasileiro. Ao me apropriar de tal capa quando produzi a aquarela Antropofagia (2023), pude contrapor a peça gráfica com o cartaz do programa nacional de colonização chamado Marcha para o Oeste (1937-1945), cujo os vetores de colonização mais lembram o mapa de uma guerra interna, levantando questionamentos sobre o aparente concílio ilustrado em Vida Doméstica.

          Antropofagia (2023), Talles Lopes. Aquarela e nanquim sobre papel, 56 x 76 cm.

          (Fotos: Paulo Rezende)

           

          Igualmente, o famoso cartaz “Portugal não é um país pequeno” (Exposição Colonial do Porto, 1934) trouxe a representação cartográfica das colônias portuguesas junto à metrópole como uma extensa unidade territorial, como se o colonialismo fosse não um exercício de poder, mas uma união fraternal entre esses diferentes territórios. A capa de S. Paulo é Isto!, citando o historiador português Joaquim Pedro de Oliveira Martins, “de S. Paulo poude sahir a raça que fez o Brasil”8, soa como essa mesma ficcionalização absurda de unidade fraternal sob supremacia racial. As aquarelas que produzi na série Parte pelo todo (2023), testemunham que o cartaz português me recordava uma série de mapas do Brasil feita a partir do estado paulista ao longo do século XX, que informados pela nostalgia bandeirante, me faziam ver sem grandes esforços semiológicos algo delirante como a paródia “São Paulo não é um país pequeno”, na relação gráfica entre São Paulo e Brasil, metrópole e colônia. 

           

           

          Parte pelo todo n1 (2023), Talles Lopes. Aquarela e nanquim sobre papel, 56 x 76 cm.

          Parte pelo todo n2 (2023), Talles Lopes. Aquarela e nanquim sobre papel, 56 x 76 cm.

          (Fotos: Paulo Rezende)

           

          Na série que eu pude desenvolver em 2023, chamada Linguagem universal para apagamentos locais, é possível observar um jogo cromático em aquarela com formas geométricas circulares de diversas dimensões, criadas a partir da sobreposição manual dos gráficos dos diferentes mapas do território brasileiro presentes no Atlas do Brasil de 1959. Apesar de não apresentar os contornos do país, a soma dos desenhos originalmente dedicados a temas como população, economia, transporte, minérios, exportação e importação permite perceber uma diferença óbvia entre leste e oeste do Brasil, distinção que coincide exatamente com a divisão leste/oeste esboçada pelo Tratado de Tordesilhas. O primeiro surge destacado pela grande quantidade de gráficos quantitativos e qualitativos, enquanto o segundo parece pouco visível devido à pouca presença dos mesmos tipos de gráficos. 

           

          Linguagem universal para apagamentos locais (2023), Talles Lopes. Aquarela e nanquim sobre papel, 70 x 70 cm.

          (Foto: Cortesia Lamb Gallery)

           

          Nessa perspectiva, me parece que o Atlas sistematiza conscientemente uma confirmação técnico-científica do mito cuidadosamente construída na introdução da publicação com o mapa “Expansão Territorial do Brasil”, que a partir do Tratado de Tordesilhas mitifica um Brasil conquistador, o leste, e um Brasil conquistado, o oeste. Diferentemente da distinção entre América e América Lusófona presente no Atlas Português Ultramarino (1948), o mapa “Expansão Territorial do Brasil” traz um Brasil dividido em dois, fazendo lembrar que a ideia de expansão supõe um Brasil anterior ao Brasil, ou como sugerem os vetores de colonização de cartazes estatais reproduzidos em Subdesenvolvimento Linear (2016), um Brasil colonizado pelo próprio Brasil, um país com sua própria projeção interna de Velho Mundo e Novo Mundo.

           

          Subdesenvolvimento Linear (2016), Talles Lopes. Aquarela e nanquim sobre papel, 61 x 61 cm.

          (Foto: Isabella Matheus / Cortesia MASP Museu de Arte de São Paulo)

           

          Por fim, vale questionar mais uma vez a neutralidade da linguagem universal adotada pela cartografia, na medida em que os dados e gráficos, supostamente imparciais, transformam-se em uma versão cartesiana das figuras mitológicas ilustradas nos mapas das grandes navegações, que com frequência serviam à estigmatização e animalização dos povos não-brancos e seus territórios. Suspeitando que o mesmo ocorre quando os dados dos mapas do Atlas do Brasil de 1959 incorporam a dita codificação de mundo entre Europa e não-Europa anunciada por Aníbal Quijano9, projetando no território brasileiro as categorias leste e oeste como equivalentes aos dualismos “primitivo-civilizado, mágico/mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno”. 

           

          Vivendo em Goiás, no interior do Brasil central, espaço exaustivamente mapeado e mitificado como uma espécie de terra prometida ou El Dorado da América portuguesa desde as incursões bandeirantes, passando pelo processo de modernização com a construção de Brasília e alcançando a atualidade com a alta especulação do potencial agrícola da região, me pareceu relevante “fazer o caminho de volta” em torno desses mitos. Prática em parte testemunhada neste texto, tenho me proposto um exercício de coletar, organizar e me apropriar dos mapas responsáveis por reiterar tais mitos e violências coloniais, para assim quem sabe desestabilizar suas narrativas históricas e desnaturalizar seus apagamentos massivos, se é que isso é possível. Vivendo na barriga dessa criatura, que segue digerindo um Velho Mundo sem ânsia de regurgitar, parece-me que um caminho possível ao menos é tornar esse processo indigesto.

           

          1 Luís Miguel Moreira, “Forjar um Império”, Terra Brasilis [Online], 17, 2022. Disponível em , acesso em 29 de dezembro de 2023.
          2 Fernando Luiz Lara, “Abstraction is a Privilege”, PLATFORM – Provocative Timely Diverse. Disponível em , acesso em 29 de dezembro de 2023.
          3 Divisão de Geografia do Conselho Nacional de Geografia (org.), Atlas do Brasil (geral e regional), Rio de Janeiro: IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1959.
          4 Paulo Tavares, “A Capital Colonial”, Revista ZUM, Rio de Janeiro: IMS, 2020.
          Disponível em , acesso em 29 de dezembro de 2023.
          5 Antoine Renard. S. Paulo é Isto!, São Paulo: 1933.
          6 Revista Punch, or the London Chaviravi, Londres: 1892.
          7 Roland Barthes. Mitologias, 4a ed., Rio de Janeiro: DIFEL, 2001.
          8 Antoine Renard, S. Paulo é Isto!, São Paulo: 1933.
          9 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 200

          Bibi Dória Ensaio sobre o Nome de um Filme

          Verão de 2021, meados de agosto, início de um processo criativo no Palácio Pancas Palha em Lisboa. O Palácio é enorme, estilo colonial, lindas salas de ensaio com um dos jardins mais incríveis da cidade. Eu entro em uma sala de reunião com a produção do Palácio, a sala tem afrescos florais nas quatro paredes. Eu digo que a minha única necessidade técnica era uma mesa e uma cadeira onde eu pudesse me sentar e assistir a filmes. Me levam para uma sala pequena com equipamentos de ginástica, três esteiras fixas, dois equipamentos de musculação, uma estante de metal com pesos e bolas de pilates. A sala tem três janelas altas com vista para uma ponte que eu não sei o nome e o Rio Tejo mais ao fundo. Vejo que colocaram uma mesa em frente à primeira janela, entre os dois equipamentos de musculação, e deixo o meu computador em cima da mesa, conectado à tomada. Era o meu primeiro dia de residência e eu chegava com um HD externo cinza que guardava quatro filmes do Cinema Marginal Brasileiro, filmes que eu nunca tinha visto e sempre quis ver, tinha: Sem Essa, Aranha (1970); A Mulher de Todos (1969); Matou a Família e Foi ao Cinema (1969) e Copacabana Mon Amour (1970). // Estou sentada na Cinemateca Portuguesa, em uma das mesas do terraço, conversando com a Gabi, que já tinha o cabelo todo platinado, enquanto a gente toma uma imperial. Eu conto para ela que aceitaram a minha proposta de decorar um filme, que em breve começaria esse projeto e que mesmo sem saber ao certo como seria feito, a única certeza que eu tinha era de que o filme que seria escolhido teria que ter alguma relação com a Cinemateca Brasileira, que eu tentaria decorar um filme que realmente estivesse correndo risco de ser esquecido. // Estou no meu quarto em Cacilhas. O quarto tem paredes amarelas, é espaçoso, facilmente o melhor quarto que já tive em Portugal. Estou deitada na cama, scrolling no celular, até aparecerem vários vídeos do galpão da Cinemateca Brasileira em São Paulo pegando fogo. Me lembro das chamas no Museu Nacional, sinto tristeza, decepção e impotência. A pandemia no Brasil rolando firme, e o governo Bolsonaro queimando forte. // Mesa da Cinemateca, conto para Gabi: “Gabi, acho que tem algo na atuação da Helena Ignez que me atrai muito, tenho a sensação de que preciso começar assistindo a algum filme que tenha uma personagem dela”, ela me responde: “Amiga, mas leva várias opções, não precisa escolher agora, vai vendo um por dia até você decidir”. // Sala de Ginástica, decido começar com Copacabana Mon Amour. // São Paulo, recreio da minha escola, um menino cinéfilo da minha turma comentava para um grupo de amigos que tinha assistido a Copacabana Mon Amour e que era um filme foda. Essa foi a primeira vez que ouvi esse título e guardei-o comigo, sem nunca ter assistido na época. Não sei se guardei na memória porque eu gostava do título, da ideia de também ser cinéfila ou, pior, do menino. // Sala de Ginástica, antes de dar play no filme, olho as máquinas de exercício entre as mesas ao meu lado e penso no curioso fato de ter sempre detestado fazer musculação, mas que desta vez o esforço que faria (eu, uma Bacharel em Dança) não teria nada a ver com meus músculos (ou com a falta deles). // Tela Preta // “Restauração 2013, Copacabana Mon Amour teve inúmeras versões, algumas montadas pelo seu autor e outras baseadas no material remanescente da obra. Os negativos originais foram encontrados em avançado estágio de deterioração, com fungos em todos os rolos de imagem. A presente restauração, baseada em uma cópia de preservação 35mm localizada na Cinemateca Brasileira, busca ser o mais fiel possível à última versão realizada em vida pelo seu diretor, Rogério Sganzerla.” // Metade do filme, durante uma cena de beijo lésbico entre Sônia e Laura, dou uma pausa no computador quando alguém bate na porta da sala de ginástica. Me levanto para abrir, era Connor. Essa foi a primeira vez que nos vimos, tivemos uma conversa banal sobre a residência. Enquanto isso, o filme seguia pausado no beijo da tela, com a janela atrás e o Tejo ao fundo. // Fim do filme, estou perplexa, não quero ver nenhum outro, o filme será esse e não tinha como não ser. Reconheço no filme o Brasil que me faz tanta falta, cheio de excessos, emoções e absurdos. Esse mesmo Brasil que em 1970 foi censurado é o que mais me daria prazer hoje, morando em Lisboa, em poder revelar. O tanto que tem de ficção também tem de documental, o que me parece perfeito para descrever e para fazer imaginar. Faço meu primeiro exercício de relato: gravo no celular o áudio da primeira vez que contei o filme em voz alta, a gravação dura 26 minutos. No meu caderno preto de capa dura, escrevi que “um filme contado é muito diferente de um filme assistido”. // Quarto de Cacilhas. Já tem uma semana que estou assistindo a Copacabana Mon Amour todos os dias. Estou cada vez melhor e me lembrando de cada vez mais detalhes. Penso como seria se o filme tivesse passado no cinema na altura em que foi feito. Penso na ditadura militar. Penso na performance, que não quero que seja a minha interpretação do filme, que não é uma narração, que será a minha memória ao vivo. Cada apresentação é uma tentativa em si mesma, a performance não é sobre decorar o texto ou o roteiro, é sobre ver o filme dentro da minha própria cabeça, ou melhor, é sobre ver alguém vendo um filme dentro da cabeça. Uma memória que vai da minha imaginação para a sua e de quem me assiste. Vou dormir pensando no filme, pensando nas sobras da Cinemateca, pensando no fogo que foi feito de vilão, no medo dos negativos terem se perdido, no medo de ir atrás dessa informação oficial e sentir um luto ainda maior por tudo o que se perdeu. Será que esse filme censurado vai passar novamente por um apagamento? Penso nas personagens, na Sônia Silk e na atriz Helena Ignez. Vou dormir acompanhada da ficção delas. // Ponto de ônibus na Penha de França, passei a tarde ensaiando com a Gabi e agora já estava na etapa de tentar decorar as letras das canções. Coloco para tocar um samba do Noel Rosa sobre um coração partido e vou cantando baixinho para mim mesma enquanto espero o autocarro 706. // Palácio Pancas Palha, já decorei e contei o filme Copacabana Mon Amour no mínimo umas 14 vezes. É oficial: decorar um filme longa-metragem inteiro é impossível, sempre vai ter algo que me escapa, uma cena, uma trilha, um diálogo, uma narração, uma cor. Em todos os momentos de esquecimento, eu entro em pausa, tenho a sensação de não estar ali, de estar dentro da minha memória, dentro do filme, buscando onde foi que eu parei, onde foi que eu me perdi, assistindo às cenas de novo internamente, enquanto um furacão passa dentro da minha cabeça e o resto do meu corpo se mantém ali, pausado. Uma vez o Bruno me falou que esses são seus momentos favoritos, que ele pode me ver buscando longe, como se meus olhos estivessem virados para dentro do globo ocular, invertidos e brancos. É como habitar um branco, ou uma branca, como se diz em Portugal. Mas é nessa branca que o tempo se dilata, enquanto eu procuro na memória, eu mesma me acalmo e digo para mim mesma que não sou uma máquina, que não sou uma tela, que não sou um projetor e que não sou um filme. Aqui, eu faço jus à parte “viva” das noções de arquivo, da memória viva, do arquivo vivo e da potência da tradição oral como formadora de conhecimento e de cultura. Aqui eu sou, literal e metaforicamente, só memória. // Fim da residência no Palácio, assisto ao filme pela última vez antes de apresentar a performance agora nomeada como nome de filme e me dou conta de que existe uma cena que eu nunca decorei. É uma cena curta, cuja descrição nunca saiu pela minha boca, acho curioso, até porque é a cena com a fala da Sônia que mais me atravessa, ela diz: “Tenho sonhado com homens-leopardo, homens-cobra, cão de sete patas e outros monstros.” Chocada com o meu próprio esquecimento, decido que justamente essa fala irei guardar como um segredo, um segredo só meu e da Sônia. São os sonhos dela e isso me parece muito valioso. // Quarto de Cacilhas, eu acordo e lembro do meu sonho: caminhávamos pelas ruas de Copacabana, Helena e eu, assim como na cena que eu sempre me esqueço. Sonhei com o sonho dela dos monstros, dos homens e do cão de sete patas. Será que fui eu que entrei no sonho de uma personagem ou a personagem que invadiu o meu inconsciente? Nessa altura já não sabia mais responder o que era memória e o que era imaginação, o que era filme e o que era ficção, o que era da Sônia, da Helena, ou meu. // Tela Preta // FIM.

          João Pedro Soares Como num sonho acordado: Curadores da Terra Floresta (2014)

          Somos humanos apenas no contacto, e convivialidade, com o que não é humano.

          David Abram in The Spell of the Sensuous

           

          Hoje em dia debatemo-nos por conceções linguísticas e ideológicas que contemplem o mundo natural nas suas variadas formas, temos dificuldade em unificar domínios de relação para com a natureza. Separamo-nos entre aquilo que é natural, aquilo que é artificial e aquilo que é sobrenatural. Distantes de uma visão ecológica do mundo enquanto teia de ligações, onde tudo se encontra conectado; ao invés disso, contemplamos a existência em várias bolhas de atuação, “hiperseparados” – parafraseando Val Plumwood – do que é mais-que-humano1.

          É neste sentido que a crescente presença do cinema ameríndio se torna fundamental para o estabelecimento de novas relações com a esfera natural e renovadas maneiras de fazer mundo. Tudo isto é encapsulado em Urihi Haromatimapë: Curadores da Terra Floresta (2014), de Morzaniel ƚramari Yanomami, um documentário que pensa e vive um sistema terrestre mais harmonioso.

          O filme surge a partir de um evento criado por Davi Kopenawa – xamã e reconhecido líder político yanomami – e documenta um encontro de xamãs yanomami em Watorikɨ, com o intuito de curar a floresta amazónica. Inicia-se com um plano geral aéreo da floresta, e de imediato somos confrontados com a imensidão do esforço que a comunidade yanomami carrega sobre si para proteger a sua casa, uma área florestal imensa. Será possível iniciar um projeto de cura da Amazónia? Talvez se possa começar pela dimensão de um gesto. A floresta pode ser curada com muitos gestos: os cumprimentos, a comunhão em torno do mingau de pupunha, a busca por yakõana, a árvore de onde se extrai o pó alucinógeno que possibilita a prática ritualística, a preparação dos xamãs ao pintarem as suas faces e os seus corpos, a forma como se posicionam pelo espaço, as palavras que proferem e a dança que praticam. Aqui, compreendemos que a chave para curar o mundo natural é participar nele. Mas uma participação alicerçada num entendimento profundo sobre as formas e ritmos do mundo natural. Tal como Davi Kopenawa indica:

          Uma vez que tenhamos morrido após o uso da yakõana vemos as árvores tornarem-se seres humanos, com olhos e boca. Também ouvimos as vozes dos animais da floresta a falar exatamente como eu estou a fazer agora. Nós entendemo-los muito claramente2.

          Com efeito, Curadores da Terra Floresta é um filme sobre o ritual xamânico com yakõana, e sobre isto retoma-se a ideia de gesto: a decisão de filmar um ritual por parte de um cineasta yanomami é um gesto que traz ao visível toda uma cosmogonia que – “aos brancos” – é desconhecida, invisível. Os xamãs, auxiliados pela yakõana, conseguem ver os xapiripë, tal como Davi Kopenawa informa:

          Os espíritos xapiripë dançam para os xamãs desde o primeiro tempo e assim continuam até hoje. Eles parecem seres humanos, mas são tão minúsculos quanto partículas de poeira cintilantes. Para poder vê-los deve-se inalar o pó da árvore yãkõanahi muitas e muitas vezes. Leva tanto tempo quanto para os brancos aprender o desenho de suas palavras. O pó do yãkõanahi é a comida dos espíritos. Quem não o “bebe” dessa maneira fica com olhos de fantasma e não vê nada3.

          O recurso à câmara de filmar torna-se um gesto para trazer ao visível o universo espiritual yanomami. Intangível, pois os xapiripë encontram-se na dimensão super-visível, tal como Eduardo Viveiros de Castro refere: “A luminosidade intensa dos espíritos indica o caráter super-visível destes seres, que são «invisíveis» ao olho desarmado pela mesma razão que a luz o é — por ser a condição do visível”4. Mas, no entanto, o filme torna possível um vislumbre deste espaço visual através de uma cinematografia direta, sem artifícios de foco, sem utilização de diferentes lentes, numa aproximação aos atores sociais, nos longos planos que capturam a performance xamânica: ao observarmos os xamãs a gesticularem para os céus, ou a dirigirem-se verbalmente para entidades invisíveis, vemos outra dimensão do olhar. Este olhar “desterritorializado” convida-nos a repensar a forma como interpretamos a realidade. Como num sonho acordado.

          O encontro xamânico em Curadores da Terra Floresta (2014) [00:23:50]

          Os longos planos que acompanham o ritual xamânico convidam o espectador a imaginar os xapiripë. A colocar-se também fora de si, a participar no ritual. Entende-se esta alteração do olhar como uma troca de lugares, uma abertura para uma mediação entre corpos, fauna e flora, e elementos naturais como o fogo, o relâmpago e a água. Deste modo, a performance xamânica enquadra o humano enquanto um ser em relação, incorporado no todo que o rodeia, como refere Viveiros de Castro:

          Um espírito, na Amazônia indígena, é menos assim uma coisa que uma imagem, menos uma espécie que uma experiência, […] o fundo que vem à tona no xamanismo, no sonho e na alucinação, quando o humano e o não-humano, o visível e o invisível trocam de lugar5.

          A performance xamânica configura-se nesta troca de lugar. É neste sentido que a metafísica indígena desafia as conceções ontológicas ocidentais, sobretudo face ao mundo natural. Para os xamãs não existe separação entre o mundo humano e o mundo natural, tudo pertence ao todo, o qual se rege mediante – para parafrasear Viveiros de Castro – uma diplomacia cósmica.

          A dimensão do gesto performativo xamânico encontra-se numa união de domínios, na incorporação de espíritos ancestrais, de animais ou de forças naturais, por onde se canalizam as energias da floresta para o centro da aldeia. De repente, a floresta está ali, incorporada na figura do xamã, ela dança, grita, desabafa e questiona, e a restante comunidade yanomami escuta, atenta, a sua voz.

          Deste modo, tornam-se pertinentes as questões que João Mário Grilo coloca acerca de concebermos um cinema feito de gestos, ao invés de imagens: “Podemos gesticular um filme em vez de visualizá-lo? Se sim, o que significa gesticular um filme? Para ambas as questões, penso que a resposta deve ser eminentemente política […]”6. Pensemos nestas questões em três momentos:

          1. Gesticular um filme ao invés de visualizá-lo implica, necessariamente, descodificar um filme através de gestos. Quer isto dizer que os gestos num filme que documenta um ritual são carregados de um caráter simbólico e performativo, de tal modo que suplantam a importância de uma mise-en-scène que se dirige ao olhar. O gesto assume-se enquanto forma cinematográfica. A performance, neste caso xamânica, é a mise-en-scène.
          2. Poderia significar também, o gesticular um filme, como entendê-lo enquanto estrutura corpórea, no sentido em que os corpos fazem o filme, criam imagens, elaboram uma narrativa através dos gestos que praticam. Poderia inclusive significar um filme animado, na medida em que a câmara não se preocupa com enquadramentos precisos, escalas, zooms ou travellings. A câmara procura ganhar uma corporalidade, expressando-se num sentido quase animista.
          3. Pensar sobre um filme composto por gestos pressupõe tentar compreender a origem, ou o curso, desses gestos. De onde surgem, por onde passam, para onde vão e, sobretudo, a quem se dirigem. Gesticular um filme compreende os corpos e as mãos como guias, fontes de liberdade não possessivas. Um gesto liberto é, sem dúvida, político, ainda mais quando é produzido por uma comunidade indígena, sobre forte ameaça das pressões capitalistas e expropriativas, das grandes indústrias madeireiras e de mineração. O xamanismo e os gestos que o constituem tornam-se, por isso, ferramentas cruciais da luta política indígena:

          A performance xamânica, enquanto conhecimento incorporado, tornou-se o principal meio para o envolvimento de recursos e alianças externas, criando e transmitindo conhecimento ao mesmo tempo que expressa identidade num ambiente violento pós-colonial7.

          Num âmbito de ecologia política, Curadores da Terra Floresta evidencia o cinema indígena enquanto força de combate à violência ecológica. Documentando a comunidade yanomami na sua ação reparadora face ao mundo natural. E, acima de tudo, alertando para uma reconfiguração de gestos, de um renovar da atenção para com o que nos rodeia, seja isso humano ou mais-que-humano. O gesto xamânico é de abertura, mediação e compreensão face ao todo do sistema terrestre, um sonho lúcido de cura.

           1 O conceito de “mais-que-humano” é conceptualizado pelo filósofo e ecologista David Abram no seu livro The Spell of the Sensuous. Em síntese: o termo procura reconhecer a cultura humana inserida num espaço mais vasto (maior que ela própria); sendo que, ao mesmo tempo, o uso do aumentativo pretende reconfigurar uma nova reverência, por parte da humanidade, para com tudo aquilo que está para lá de si, neste caso, o mundo natural.
          2 Tradução do autor. Davi Kopenawa citado em Bruce Albert, “The Polyglot Forest”, em The Great Animal Orchestra (Paris: Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, 2016), 320-324.
          3 Davi Kopenawa citado em Eduardo Viveiros de Castro, A floresta de cristal (São Paulo: Cadernos de Campo, 2006), 2.
          4 Ibidem, 19.
          5 Ibidem, 11.
          6 Tradução do autor. João Mário Grilo, “Propositions for a Gestural Cinema: On ‘Ciné-Trances’ and Jean Rouch’s Ritual Documentaries”, em Cinema and Agamben: Ethics, Biopolitics and the Moving Image, editado por Henrik Gustafsson e Asbjorn Gronstad (Londres: Bloomsbury, 2014), 134.
          7 Tradução do autor. Esther Jean Langdon, The Performance of Diversity: Shamanism as a Performative Mode (Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2016), 34-35.

          Marlene Monteiro Freitas Qual é o deslocamento da língua que vamos fazer para podermos construir uma nova língua juntos?

          O trabalho de Marlene Monteiro Freitas, coreógrafa cabo-verdiana, residente em Lisboa desde a década de 2000, tem-se afirmado internacionalmente como renovador de um modo de estar na dança. Insistindo em conceitos como intensidade, abertura e impureza, a sua prática passa por um detalhado processo de colagem de imagens, gestos e tensões que deslocam cada intérprete para o lugar de uma figura em atravessamento. Nesta entrevista, realizada no rescaldo da sua encenação da ópera Lulu, a mítica obra inacabada de Alban Berg, escrita em contraciclo com a ascensão do nazismo e da perseguição à população judaica, Marlene Monteiro Freitas abre em detalhe o seu processo, fazendo uma retrospetiva do seu trabalho recente e o lugar que este ocupa num mundo em disputa e de injustiça permanentes.

           

          João dos Santos Martins: Acabaste de encenar a tua primeira ópera, Lulu, de Alban Berg, para o Festwochen em Viena. Qual foi o processo que estabeleceste para este projeto?

          Marlene Monteiro Freitas: Quando comecei a trabalhar em Lulu, foi a música que me tocou primeiro, só depois o libreto. Foi por isso que quis de imediato colocar a orquestra em palco e ter o maestro bastante presente. Foi também a compreensão da música que me permitiu, aos poucos, ter uma perceção mais profunda do libreto. Para mim, em Lulu, a música está relacionada, mais do que com a história, com o subtexto da história, com o não dito, com as entrelinhas. Tanto o texto como a música têm uma densidade extrema e só trabalhando aos poucos em cada detalhe é que conseguimos ter a perceção verdadeiramente vertiginosa da peça. De início, a obra parece uma montanha lá longe e quando se começa a subir percebe-se que essa montanha afinal é um monte de pequeníssimas pedras, areia, etc., que tudo é importante e contribui para a sua forma.

          Porque querias trazer esse elemento, que normalmente está escondido, para fora? Que subtexto é esse que te interessava?

          Ter a orquestra em cena, em oposição ao público, numa espécie de imagem e o seu reflexo, permitiu-nos, por um lado, uma aproximação à ideia de espelho muito presente nesta ópera; por outro lado, uma aproximação a diferentes espaços de representação como o circo, o estádio de desporto, o teatro… Uma espécie de teatro dentro do teatro, uma matrioska. Acredito que uma ilustração da história afastar-nos-ia da leitura que fiz da ópera. Lulu, não como femme fatale, abusada e abusadora, mas como um vetor de forças plurais, contraditórias e, logo, intensas. Com uma capacidade de refletir imagens conscientes e inconscientes que sobre si se projetam; é um espelho, é um ser para além do género, para além do reino animal, para além do reino dos deuses, é um ícone, é uma obra de arte. 

          É uma história complexa e nada linear. Aliás, é difícil não ficar completamente perdido.

          Por um lado, culpa minha, apaixonei-me pela obra na sua complexidade; por outro, acredito que há uma intenção explícita de desorientação e confusão por parte de Alban Berg. Tudo acontece em grande velocidade: um casamento, duas mortes e uma série de informações muito parciais sobre as relações entre os personagens, levantando questões que apenas encontram resolução no 2.º ato. Portanto, a própria estrutura da peça faz com que se siga confuso por um tempo significativo. Esta sensação começa a dissipar-se na 3.ª cena do 1.º ato, que se passa no camarim de um teatro, onde Lulu dança uma composição de Alwa, que é um possível duplo de Alban Berg. É neste espaço que o compositor sonha e canta a sua projeção desta ópera. Aqui parece que a ópera sonha consigo própria, ouve-se uma orquestra de jazz, aplausos vindos de um público que assiste à performance de Lulu. Pedi ao maestro que fossem os músicos da orquestra que não estivessem a tocar a aplaudir. Por vezes podia pensar que era o maestro, com os seus gestos, que incorporara Lulu e a sua dança.

          É uma ideia recorrente no teu trabalho recorreres a espaços que são múltiplos, entre um laboratório ou um lugar de desporto com a omnipresença de objetos como toalhas para limpar o suor que se transformam noutras coisas.

          Sim, o que nos dá a leitura do espaço são vários aspetos: a luz, a transformação dos adereços e a sua disposição, mas também a relação que os performers estabelecem. As transformações possíveis são infinitas. Desde o início que tive a perceção de que em Lulu seria necessário construirmos uma situação que nos permitisse obter uma autonomia do ritmo da performance perante o ritmo da ópera – ou seja, em cena haveria a música, a história, mas também o ritmo próprio da performance, e o espetáculo seria o resultado da coabitação destes três vetores.

          Foi neste sentido que tentámos dois processos de deslocação: traduzir e multiplicar. Por exemplo, no lugar de um divã, usámos um banco de desporto com um selim de cavalo; em vez de um camarim de um teatro, um camarim de desportistas, já que são ambos espaços de recolhimento em relação à performance, espaços para vestir-se e despir-se, de prólogos e epílogos… Quanto às indicações físicas do libreto (gestos, movimentos, intenções, trajetos, etc.), que são inúmeras, originalmente dirigidas apenas aos cantores, foram por vezes ativadas unicamente pelos bailarinos ou por ambos. Fomos procurando soluções concordantes ao libreto e à performance que estávamos a escrever de raiz. É como um jogo, quantas interpretações podemos dar a uma mesma indicação? Infinitas, se calhar!?

          É isso que queres dizer com multiplicação?

          Sim, mas não só, em cena há os personagens e os seus fantasmas, há um gesto isolado e esse mesmo gesto em série. É como se tivéssemos um espelho infinito que multiplicasse as imagens aí refletidas. 

          Há uma ideia coreográfica que usas em Lulu que é o bailarino a seguir o cantor, e vice-versa, com a mão sobre o ombro. Isto seria um exemplo dessa ideia?

          Sim, uma vez um deles disse: “Ah! Agora já sabemos o caminho, não precisamos do outro.” Eu disse: “Mas vocês são a mesma pessoa, são duas metades do mesmo.”

          Alan Berg definiu à partida que alguns cantores são atravessados por mais do que um personagem. Esta é uma estratégia familiar do teu trabalho, na medida em que cruzas imagens e referências que são incorporadas pelos bailarinos. Sentes que há aqui uma simbiose entre o teu processo e o de Berg?

          A Figurinista e o Estudante são personagens desempenhados pela mesma cantora; o Empregado e o Príncipe, pelo mesmo cantor. Este tipo de desdobramentos acontecerá ao longo da peça. As estratégias que Alban Berg usou abriram-nos portas para fantasiarmos possibilidades. Por exemplo, Dr. Goll, o Professor que normalmente entra em cena, diz três frases, morre e desaparece; no nosso caso, é um árbitro no Prólogo, um comentador de desporto na 1.ª cena, morre, permanece em palco até ao início da 2.ª cena e sai como cego — sabemos que a sua relação com Lulu era essencialmente voyeurista. Durante os ensaios, eu dizia: “Alban Berg was a free man and so shall we.”

          Mas, em geral, no teu trabalho coreográfico essa vontade é muito extrapolada. 

          Não sei se estou certa, mas havendo uma história escrita, cuja duração e ritmo está pré-definida numa partitura musical, isso faz com que estes arquétipos se aproximem naturalmente mais de personagens do que de figuras. Com mais tempo de ensaio talvez conseguisse uma transformação mais profunda de personagens em figuras. Ainda hoje acordo assombrada com ideias, aspetos, estratégias que poderia ter melhorado, usado, etc. O meu processo de aprendizagem continua, a mente continua a trabalhar de noite como se não tivesse terminado a peça. 

          Qual é a linha de separação que defines entre figura e personagem?

          A ópera tem um destino. O que tentei com o “ritmo autónomo da performance” foi criar uma tensão entre o instante e o destino. A música e a história são correntes ininterruptas, que escorrem, jorram, vazam até secar e reside aí a sua força. Com a performance tentámos criar uma corrente sem destino, sem programa e, portanto, uma ameaça às correntes vizinhas. A possibilidade de transformação e de sobrevivência de figuras sobre outras está sempre latente, mas no nosso caso ela acontece essencialmente pelo ritmo. Em Lulu, cada cantor detém uma margem mínima de microrritmos, enquanto que uma figura tem a possibilidade de alterar totalmente o contexto ou o curso de um sentido narrativo sem ter que se justificar nem ser catalogada como estranha, marginal ou disruptiva. A figura cria e recria a sua própria história. 

          Nesta ópera tiveste um processo bifurcado, primeiro um período de trabalho com um grupo de bailarinos e só depois com os cantores e músicos. De que forma é que este processo difere do que fazes normalmente? 

          No processo de criação, sobretudo nos ensaios, no número de decisões tomadas com bastante antecedência, no acompanhamento dos espetáculos. Quis trabalhar primeiro com os bailarinos, porque não me vejo capaz de fazer uma criação em quatro ou seis semanas com pessoas com quem nunca trabalhei, com limitações e regras que nem sempre são coerentes ao projeto. Nessa fase, a pesquisa coreográfica seguiu o seu curso habitual. Numa segunda fase, já com os cantores, os ensaios foram acompanhados por um pianista, ou seja, passou-se a trabalhar sobre uma redução para piano da obra. O que a versão para piano produz enquanto força motora de imaginação, sensações, vibração, energia ou imagens é muito diferente daquilo que a versão orquestral produz. Forçosamente, altera o modo como se vê e reage àquilo que se está a escrever, aspeto que foi preciso contrariar. A meu ver, paradoxalmente, foram os ensaios menos musicais e mais teatrais, porque na ausência da música na sua potência está-se mais próximo do libreto. No palco, que é quando vem a orquestra pela primeira vez, os ensaios passam a ser dirigidos pelo maestro, portanto tudo o que se faz é aproveitar brechas. Assim que ele interrompia a música, corria para o palco para dar uma nota aqui ou ali, mas tudo muito rápido e quase em segredo. Durante os espetáculos, não há ensaios com cantores e as notas são dadas durante a maquilhagem ou no corredor. Porém, com os bailarinos continuámos a trabalhar como habitualmente, a ensaiar, reunir para fazer ajustes, etc.

          Nunca consideras uma peça fechada?

          Normalmente, há um momento em que sinto um relaxamento qualquer em relação a uma peça, ela ocupa-me menos e isto quer dizer que a considero fechada. Isto pode levar anos ou meses após a estreia. No entanto, não quer dizer que não continue, eu e a equipa, a desafiá-la. Estou sempre a acrescentar ou a alterar detalhes, há coisas que descubro ou que vejo de um modo diferente. Aproveitamos o facto de as peças serem formas vivas com quem podemos dialogar, trocar, nos relacionar. Mas em Lulu não haverá essa chance, há apenas um condensado de conhecimentos que se extrai e que se aplicará nas próximas experiências.

          Tu sabias ler música?

          Não, mas o Cláudio Silva, trompetista com quem trabalhei anteriormente, acompanhou-nos sempre. Por vezes, mesmo sem saber ler, há coisas que sentimos. Por exemplo, depois da morte de Dr. Schön, sentia falta de uma pausa mais longa, e não apenas uma suspensão como ouvia nas versões gravadas. Quando começámos a ensaiar, verificámos na partitura e vimos que havia uma fermata, isso permitiu-nos um momento de silêncio que já não dependia unicamente do maestro mas também do cantor. Foi uma alegria!

          Isso advém da leitura da partitura em si?

          A partitura musical enforma o libreto e vice-versa. Há uma estrutura musical da ópera que é em espelho. A meio da peça há o Filmmusik, dura cerca de três minutos, é o momento em que Lulu é levada a julgamento, seguido da sua prisão que dura ano e meio, e depois foge de um hospital com doentes de cólera. Este momento tão breve é uma espécie de prólogo às cenas seguintes. Muito interessante é que, estando a meio da obra, metade deste tema é num sentido e a outra metade é exatamente a mesma música invertida, como que a andar para trás, avança recuando. Berg também usa formas clássicas, como sonata, valsa, ragtime… Isto está longe de ser percetível ao ouvido. Sem um acompanhamento profundo da partitura não se consegue compreender a complexidade desta obra, ainda que a cada audição se vá aos poucos descobrindo.

          Sentiste que estavas a coreografar a música? Qual era o lugar de tensão entre música e coreografia?

          É impossível seguir só a música, até porque nunca o fiz noutros trabalhos. Se isso acontecesse perderia completamente a orientação, a obra ter-nos-ia passado ao lado. O interesse de se trabalhar nesta ópera é a montagem vertiginosa de microelementos por vezes escondidos ou distantes, que depois resultam numa coisa grande, encaixada, massiva. Penso que avançámos sempre entre dois polos: de um lado, a angústia e o fascínio perante a imensidão; do outro, a extrema concentração e o prazer do trabalho minucioso, do passo a passo. A obra propõe uma relação entre música e indicações físicas no libreto, quase como pantomima ou cinema mudo, em que a música e o gesto coincidem minuciosamente. E fomos seguindo obedientemente.

          No prólogo de Lulu há um Domador que introduz os personagens como animais de circo. Lulu é uma cobra, e ao longo da ópera os bailarinos são, por vezes, remanescentes de outros animais. Há também uma Contorcionista que está sempre presente, do início ao fim. Qual é o seu papel?

          A Contorcionista, a dado momento, é também um árbitro, uma estatueta grega, um carregador de quadro-pintura, um cadáver num carro de hospital, um boneco, um cliente de barbearia, modelo de pintura, uma sereia, etc. Um corpo que se dobra e desdobra é um reflexo dos desdobramentos da música, do libreto, dos personagens, mas também da flexibilidade e do extremismo do canto lírico. Às vezes faço ligações muito simples e diretas: por exemplo, se o animal associado à Lulu é a serpente, estamos no circo, porque não procurar um corpo que consegue enrolar-se sobre si próprio? 

          Por outro lado, a ginasta é também uma figura que ressurge noutras peças tuas, por exemplo em Guintche, o que ressoa com a tua história pessoal como ginasta.

          Lulu não foi uma peça que eu tivesse escolhido fazer, foi alguém que pensou em mim, mas por alguma razão terá sido… Lulu reflete muitas imagens: bailarina, ginasta, palhaço, prostituta, mulher casada, amante, criança abusada, ladra, protegida, prisioneira, serpente, pássaro do paraíso, doente de cólera, frágil, forte, etc. Confesso que não pensei em Guintche, mas de facto percebo a analogia.

          Parece haver uma recorrência de imagens e de figuras que transitam entre trabalhos. Em Lulu há uma sequência em que os bailarinos exploram uma figura com dois braços a saírem por uma manga da t-shirt. Esta figura, nesta ópera, fez-me lembrar uma foca, mas vem do teu solo Idiota (2022).

          Nós chamamos sereias. Transitam porque são formas vivas e, portanto, migram livremente. Por vezes dão-nos a ilusão de que a sua origem e vida se circunscrevem num espaço-tempo restrito e sequencial, mas nem sempre é assim. Tanto Lulu como Idiota têm na sua génese, entre outros elementos, o mito de Pandora. Idiota, apesar de ter estreado um ano antes de Lulu, foi um projeto construído após as minhas primeiras incursões à obra de Alban Berg. De um modo geral, por se tratar de imagens sobredeterminadas, podem abarcar um número ilimitado de associações segundo os diferentes contextos onde se inserem, gozando de uma grande mobilidade. 

          Existe também um foco no isolamento de partes do corpo. Há cotovelos isolados, mãos, pés, marionetas e, no final, há uma figura, dançada por ti, que parece uma boneca com o braço amputado. De que forma são invocados corpos não normativos dentro deste trabalho?

          Um dos performers, o Henri “Cookie” Lesguillier, teve um acidente de bicicleta após o segundo espetáculo e partiu o braço; o braço que tem dentro da camisa, de facto, estava imobilizado. Quanto ao vocabulário, não tem limites, não faço distinções entre corpos normativos e não normativos, e evoca ideias distintas simultaneamente: pode ser uma mutilação ou uma metáfora para uma impotência ou algo em potência, aberto a novas possibilidades. No caso da boneca, na suite final, o braço ajudava a enfatizar a sua natureza de boneca — pela dimensão dos seus membros —, que estava a ser cosida, a ser terminada, assim como Lulu é uma peça interrompida, inacabada. No entanto, há um lado de corpo fragmentado, desmembrado ou como fantasma de emoções dos personagens ou dos homicídios do Jack the Ripper. Os figurinos tinham, inicialmente, um sentido de coisa contínua que perdia partes, desmembrava-se, desintegrava-se, isso não consegui desenvolver totalmente e, assim, a ideia acabou por passar para os corpos. 

          Entre 2020 e 2022 trabalhaste com o grupo Dançando com a Diferença, na Madeira, composto por bailarinos com deficiência, e criaram a peça ÔSS. O trabalho com esta companhia transformou, de alguma maneira, a tua forma de coreografar?

          Trabalho com pessoas de idades muito diferentes, músicos, bailarinos, atores, cantores, amadores, profissionais, em contextos freelance, companhias profissionais, etc. Trabalho com pessoas na sua singularidade, daí que criação de ÔSS significou trabalhar com a Sara, o Bernardo, o Rui, a Bárbara, a Mariana, etc., do mesmo modo que a criação Lulu significou trabalhar com a Vera, o Bo, a Ina, o Khyle, etc. A questão é sempre a mesma: como comunicar? Que deslocamentos a língua de cada um fará para que juntos inventemos uma nova língua? Língua esta que, em última instância, resultará numa forma de espetáculo. Diria que, em ÔSS, a comunicação foi em profundidade, uma espécie de língua de mergulho, e que, em Lulu, a comunicação foi em corrida de maratona, uma espécie de língua de resistência. Na primeira, comunicou-se numa lógica de prazer, desprazer, desejo, sonho e na segunda comunicou-se numa lógica de velocidade, controlo de riscos e poesia. São ambas línguas muito fortes, muito interessantes e que adorei aprender.

          Foi isso que fizeste também com o bailaor Israel Galván na peça Ri-te, que encerrou a tua retrospetiva no Festival d’Automne, em 2022? Esse trabalho parecia materializar precisamente um diálogo em cena, uma confrontação entre formas de comunicar.

          Pode ser, empurrámo-nos um ao outro, é a língua do faz tu, vai tu! Com o Israel Galván, a comunicação é instantânea, quer seja a dançar ou somente a rir, como foi por ocasião do nosso primeiro encontro em 2015. Acho que temos formas de afrontar a timidez muito semelhantes.

          É como se a timidez levasse a uma ironia ou a uma caricatura de vós próprios?

          Caricatura, não sei, nós gozamos connosco próprios, desafiamo-nos e temos prazer em fazê-lo.

          O ritmo da peça é pontuado por um olé. Há um olé que custa a sair da boca, que não se sabe muito bem o que é que vai sair, e depois há uma cuspidela, e isso leva a um novo encontro entre os dois. 

          Foi-se encontrando esta estrutura… Adoro o “olé” no flamenco, o meu “olé” não é irónico. No Ri-te, digo-o de várias maneiras e, numa delas, como alguém com gaguez. A suspensão e a expetativa que esta qualidade cria no outro, a meu ver, é como uma música, em que a partitura aponta para uma resolução, mas o tempo é indeterminado. O Israel tem gaguez e ambos gostamos muito do ritmo que isso produz. 

          De um modo geral, uma performance pode conter, dependendo da sua complexidade, pequenas doses de ironia, vestígios de caricatura, assim como de vários outros aspetos. Como não procuro formas “puras”, admito que possam haver, aqui e ali, microinstantes, salpicos que me escapem. Contrariamente, o olhar do público pode decidir ver uma situação apenas pela lente da ironia ou da caricatura, mas isso não tem que ver com as minhas escolhas, tem que ver com o olhar do público.

          Talvez ironia não seja a palavra certa.

          Eu e o Israel fazemos escolhas contraintuitivas e isso provoca o riso, como se ri de um palhaço. Rimo-nos de nós próprios, o público ri-se de nós enquanto possivelmente se ri de si próprio. Há ordem, gasto, gozo e prazer. 

          Mas tu nunca vês isso como caricatura? Pensei nisso porque é mesmo uma figura ambígua, tal como o palhaço é uma figura ambígua que também aparece muito no teu trabalho. 

          O Guintche também é um palhaço, agora que falas nisso… O palhaço é uma figura que pode oscilar entre extremos e é sobretudo isso que me interessa. É engraçado porque digo sempre que nas minhas escolhas não há uma busca da ironia ou sarcasmo. O que procuro são situações de que sinceramente gosto, contraintuitivas, tensas. O palhaço é a transformação em potência e os seus estados-entre. Talvez entre o palhaço e o trabalho que fazemos estejam a importância da gestualidade, a atenção ao detalhe e ao ritmo, a relação do corpo no espaço. A caricatura parece-me ser um processo mais estático, como se adivinhasse um fim preciso, limitado, circunscrito. 

          O palhaço não tem moral, é um veículo por onde passam muitas infrações, inscrições e contrastes, e ao mesmo tempo é um espelho do mundo. Mas se fosse uma caricatura de vocês próprios seria quase um autorretrato, o que é muito diferente de fazer caricaturas de outros… 

          Mas quantos iguais a mim existirão? Penso que esteja mais próxima da figura ambígua do palhaço do que da caricatura.

          Em Lulu trabalhaste com um intérprete que é palhaço.

          Em Lulu evocam-se pelo menos dois palhaços, Pierrot e Augusto. Abrimos uma audição para contorcionistas e o Rui Paixão, que é palhaço, candidatou-se. Adorei. 

          Conecto a figura do palhaço também à da marioneta, que é recorrente nestes trabalhos, e que, para mim, materializa relações de poder. Por um lado, há uma mecanização do movimento, os bailarinos são quase soldadinhos num ambiente muito controlado. Por outro, há um lugar de fantasia, como se fossem marionetas dentro de marionetas, e daí surge, por exemplo, uma cena com um capuz, que parece uma cabeça, que se transforma em alguém, ao colo, a ser cuidado…

          É, simultaneamente, um corpo a ser cuidado como um doente acamado e um falo. Esta condensação de imagens surge num momento da ópera em que o vetor erótico é intensificado. Num ambiente de uma epidemia de cólera, Lulu consegue a sua fuga da prisão/hospital. Alwa, que intimamente sempre a desejou, recebe-a em casa. No momento em que Alwa finalmente verá consumado o seu desejo, Lulu lembra-lhe que ela foi a razão da morte da sua mãe, por envenenamento, do seu pai, por tiro, e que o divã onde se encontram foi o lugar onde o corpo do pai se esvaiu em sangue. A informação não é nova para Alwa, mas a combinação do desejo com estas memórias intensifica exponencialmente o sentido erótico da situação. Entre desespero e desejo, Alwa enterra a cabeça no colo de Lulu. Daí o corpo-falo.

          Em Idiota também tinhas múltiplas marionetas, uma das quais era apenas três dedinhos a escorregarem no vidro.

          São imagens sobre as quais podemos projetar um grande número de ideias e de emoções. Terá que ver com um hábito de infância? 

          Insistindo com a ideia do controlo: é muito diferente ver um corpo relaxado ou um corpo que é comandado com uma linguagem que se reconhece, de soldados, de robot…

          De boneco, de animal… um corpo desresponsabilizado, livre talvez. 

          É quase uma ideia paradoxal porque, esteticamente, esse corpo aparenta ser o oposto de um corpo livre.

          É um deslocamento que ocorre. No mito de Pandora, os Homens, a dado momento, são separados do reino dos outros animais e do reino dos deuses, e a questão é que de cada vez que o Homem se tenta aproximar em demasia dos outros reinos produz-se uma tragédia. Então, o Homem toma consciência da sua condição, das suas limitações, das regras da sua existência e sobrevivência. 

          O corpo que está em cena desloca-se em direção a diferentes “reinos”, sabendo que daí não advirá tragédia alguma, tudo o que pode acontecer é reenviar-nos fantasmas dos aspetos essenciais à existência e sobrevivência humana. A força que o move é a força da ficção, da invenção, de um mundo imaginário, do sonho. Ainda que ajude o público a projetar sensações e emoções, o bailarino não é um robot, nem um militar. A cena é também um espaço de operações do inconsciente, intensas, livres e descontroladas, porque implicam sempre o olhar do público. A criança brinca com um boneco, concede-lhe voz, emoções, uma história; ao carro atribui-lhe, com a voz, um motor e, com o gesto, movimentação. Enquanto público projetamos ideias, imagens, significados, sensações ao que vemos. Aqui não é a realidade daquilo que vemos que está em questão, mas a realidade do nosso olhar.

          Mas é como se isso evidenciasse também uma violência que é colocada sobre o corpo. 

          Nós temos muitíssimo prazer em fazer aquilo que fazemos, mesmo que por vezes o público projete tristeza, melancolia, violência, etc. Em caso de violência real sobre o corpo, a minha imaginação bloquear-se-ia, tornar-se-ia estática. A tensão física, a concentração, a atenção são trabalhadas em ensaios bastante relaxados, enérgicos, criativos. Em cena queremos continuar a acrescentar detalhes, a tentar novas escolhas que intensifiquem a performance e para isso é preciso treino. Se há programa é o da invenção! Imagina que o teu próprio reflexo num espelho imaginário te guia, decide por ti, faz-te agir, ele inventa e tu segue-lo, invertem papéis. Mas quem é este reflexo que te comanda senão tu próprio?

          Quando assisti a Idiota, num contexto muito particular, no Palácio de la Porte Dorée, em Paris, construído para a exposição colonial nos anos 1930, foi muito impactante ver uma caixa de vidro exposta contigo dentro, numa sala repleta de murais exotizantes, de pessoas e territórios que foram colonizados. O facto de colocares esta peça ali, estás conscientemente a dar este tipo de projeção: um corpo dentro de uma caixa, mesmo que de Pandora, é um corpo que está altamente subjugado, reduzido ao seu espaço e violentado, de certa forma.

          Violentado e livre. O palácio foi o único espaço que propus. Percebo que possa condicionar a leitura da peça, mas ali a escala e a arquitetura, a beleza e o horror são excecionais. Idiota é uma peça para ser apresentada em espaços muito diferentes, como um quadro numa exposição coletiva. A caixa do Idiota é ao mesmo tempo uma casa, uma plantação, uma cabine telefónica, um espaço altamente seguro, uma prisão, um espaço de recolhimento, mas também de ultraexposição, é um teatro portátil e, portanto, aberta a todas as contradições e figuras que queiram lá entrar ou serem sobre si projetadas. 

          Nos últimos anos tens estado implicada na causa palestiniana e fazes parte do coletivo (un)common ground, em Lisboa, que investiga a inscrição artística “do conflito que opõe autóctones e colonos quanto à pertença, posse, controlo e poder no território de Israel/Palestina”. Publicaram vários livros, fizeram exposições e procuram divulgar artistas e autores palestinianos. Consideras esse trabalho de curadoria uma extensão do que fazes coreograficamente?

          Eu talvez não olhe para esta situação da mesma maneira que as pessoas que estão noutros setores olham. Mais do que uma causa palestiniana, vejo uma questão de condição humana. Há, por um lado, uma tragédia e, por outro, uma elaboração artística intensa sobre esta tragédia, em que artistas e pensadores elaboram sobre perda, sobrevivência, trauma, uma zona de ferida de que pouco ou nada sabemos.

          Quando te aproximaste deste conflito geopolítico e social houve uma mudança na forma como abordas o teu trabalho?

          No meu caso, o político está intrinsecamente ligado ao estético e estritamente ligado à minha sensibilidade, em como vejo o mundo. No entanto, tenho que aceitar que me deparei com uma situação chocante; a viagem a Israel/Palestina foi transformadora, causou um sobressalto, quebrou algo em mim. Mas continuo a fazer o mesmo tipo de operações quando crio; o meu trabalho foi sempre uma tradução de inquietudes, talvez para mim, uma forma de compreensão e em última instância de sobrevivência.

          Há algo que muda quando somos confrontados com um sentimento do intolerável?

          Talvez tenha havido, a dado momento, um questionamento desta língua — a coreografia –, mais precisamente do modo como trabalho e o encontro desse modo com o público, mas rapidamente me apercebi de que, mesmo que tentasse, não conseguiria fazer de outra forma. 

          Estava a pensar na tua peça Mal — Embriaguez Divina (2020), que invoca diferentes formas do mal. Ao ver essa peça fiz um paralelismo com o Mesa Verde (1932), de Kurt Jooss, criado no rescaldo da I Guerra Mundial. Na primeira parte, há uma série de políticos à volta de uma mesa verde a decidirem estratégias de guerra aquém da população. Esta cena fez muita ressonância com o momento do Mal em os bailarinos estão numa bancada, ou parlamento, com folhas de papel branco que são utilizadas para construir fantasias, brincadeiras, que são comidas, mastigadas, coladas. É uma cena que traz uma dimensão da incapacidade da burocracia e da jurisprudência para lidar com a realidade do mundo.

          Nessa peça debruçámo-nos sobre as várias faces do mal e uma delas, a burocracia/justiça nas suas diferentes variantes, impôs-se como um dos nossos grandes diabos. Aquele que incorpora as mais diversas formas de violência e de coerção que acompanham sistemas de grande injustiça, nomeadamente coloniais. A arquitetura vertical da bancada, a tribuna, de onde se vê melhor e melhor se é visto, de onde se testemunham e se escrutinam os factos, foi uma das primeiras ideias que tive para o projeto. Mais tarde seguiu-se-lhe o papel e o seu estatuto em diferentes contextos, o que aí é exposto, omitido, o que é ambíguo, o que chega às mãos do destinatário, o que se perde pelo caminho, etc. Paralelamente, interessámo-nos por formas coreográficas, protocolares, que ocorrem em tribunais, paradas militares, contextos educacionais, religiosos, etc.  

          A justiça é algo que te move?

          É um aspeto que consegue vencer a minha timidez, os meus medos e fazer-me agir. Situações de injustiça sempre me levaram a posicionar-me, ainda que à minha maneira… Tem que ver com o meu sentido íntimo de justiça.

          Entrevista realizada no dia 12 de junho de 2023, no Espaço Parasita, em Lisboa, ao fim da tarde. Publicada em parceria com a revista octopus notes 11, 2024

          Célio Dias Makongos: a Problemática da Mente e do Corpo

          A palavra makongo deriva de um dialeto angolano e significa “problema”. O que é a nossa existência senão um problema cósmico? Quando um makongo me é apresentado nas suas formas plurais, respiro e observo-me. Quando era mais novo apenas uma mentira me foi soldada ao corpo como um paletó, cuja gravata não deixa de fazer, inoportunamente, desastre, incómodo e bagunça: “Tu não podes ser tudo o que queres, tens que escolher o que queres para a tua vida!” — balbucia a matriarca da família, fumando-se num pensativo cigarro e olhando-se na televisão que decorava, instruía e alegrava as nossas tardes e serões.

          Penso que as melhores respostas são aquelas que são vigiadas no silêncio, curadas pela mágica deambulação dos caminhos internos que nos guiam em viagens de introspeção. Cresço no Bairro Branco do Monte da Caparica, nasço no Hospital Garcia de Orta, no qual também já tive quatro internamentos compulsivos devido ao meu distúrbio bipolar diagnosticado após os Jogos Olímpicos de 2016. A Margem Sul é “margem” certa ou errada? Penso que isso pouco importa, ou nada importa. O Bem e o Mal estão sempre associados a um contexto sociocultural e a uma civilização dos quais não podem ser dissociados, assim como a história não pode ser entendida fora dos seus períodos e fenómenos circunstanciais. Para mim, o importante é que nasci na Margem Sul. Sou adotado em criança por uma família de refugiados de Angola (brancos) com oito ou quinze dias. Muitos dos meus questionamentos existenciais tais como “de que forma reconcilio a mágoa que sinto do colonialismo com o orgulho de ser português?” encontram aqui o seu vértice na dicotomia branco/preto. Ficou tudo somatizado, e o medo e o trauma do abandono são reais e canibalizam-me as entranhas ao ponto de perder a lucidez.

          Existem três paixões que absorvi da minha família: a dança, visto que as minhas irmãs mais velhas eram bailarinas; o desporto, pois o meu pai foi jogador do Benfica em Angola; e o fado, pois o meu pai e a minha mãe assistiam a esses dolorosos espetáculos na sua terra natal. Naturalmente, e sem imposição, o judo surge aos 13 anos, idade em que começo também a escrever poesia como forma de me alienar da dureza do bairro e das suas dinâmicas de vida-morte. O judo, devido à sua filosofia e consciência moral, regra e disciplina, permitiu-me trazer ordem e rigor a um mundo interno contaminado e poluído por uma dor e revolta que não encontrava momentos de paz e respiração. O judo responsabilizou-me. Foi por ser judoca que nunca criei nenhuma narrativa de ilusão da minha psique com uma vulnerabilidade psiquiátrica, por exemplo. Esta arte marcial também me permite conjeturar hipóteses e definir as estratégias para que os meus objetivos se operacionalizem no mundo real e concreto. Resumindo: sempre que me encontro perdido, volto ao momento da minha primeira aula de judo, em que sinto um espaço plural, de todos e para todos, ocupado por uma pluralidade de corpos, sem distinção entre peles; onde para o ocupar apenas temos que possuir um rigor comportamental, moral e ético.

          Nesta arte marcial regida e criada por princípios oriundos do Japão, encontro uma reconciliação com a minha ancestralidade tribal. O judo tem uma fisicalidade imensa e, adicionalmente, tem que se afinar o corpo para “apanhar” os tempos das técnicas a serem executadas do Gokyo. Um desporto duro que se aproxima imenso da dança contemporânea, sobretudo no que ao trabalho de chão diz respeito, Ou seja, a lesão está sempre mais próxima e imanente do que o desejável. Se pensar com algum cuidado, ser judoca é muito lógico e uma escolha muito intuitiva: para os povos africanos, tal como acontece na capoeira brasileira, a dança é simultaneamente um espaço de fraternidade, alívio, convívio, mas, acima de tudo, de cura. No judo, o momento do combate (randori) é simbólico e significa que eu estou refletido no corpo e nos olhos do meu parceiro.

          O judo e a dança contemporânea complementam-se e exatamente encorajado por esta complementaridade, foi assim que ganhei coragem para ocupar as ruas do Chiado e do Largo de Camões. Performar nestes espaços é bastante desafiante tendo em conta a carga simbólica como poeta: Luís de Camões e Fernando Pessoa estão nestes locais representados através das suas icónicas estátuas. Lembro-me da primeira vez que entrei na Brasileira. Estava a tremer. Poetizar no cântico volumoso de tantas pessoas, diferentes energias, densidades, nuances e pátrias deixou-me com uma inusitada ansiedade e despertou-me ataques intensos de pânico. Na lembrança de um conselho de Maya Angelou (poetisa norte-americana) encontrei um ritual e um local de proteção. Angelou diz-nos que todos nós devemos ter um lugar onde ninguém habita, um lugar sagrado, onde não permitimos a entrada de nada nem ninguém, excetuando aquilo que considerarmos que nos vai adicionar energia e vitalidade. Assim, visito esse lugar antes de cada performance. É um lugar com areia de praia, uma magnólia a arder, que nunca se consome, e um banco de madeira. Converso acerca das minhas inquietudes, medos, ansiedades e tranco-me naquele momento, no presente daquele espaço. Quando começo este ritual, ocorre uma mudança. A confiança, a doçura e a coerência começam a chegar paulatinamente, no seu ritmo, ligando os elementos da minha dança e, por vezes, não consigo distinguir se estou a fazer judo ou a dançar, sempre consciente de que sou um poeta, no Camões, no Chiado e no mundo. É uma energia maravilhosa e que me preenche o coração e as raízes da minha magnólia incandescente.

          No judo, a emoção é muito contida e circunstancial, contrariamente à dança contemporânea, na qual a dimensão psicoafetiva faz o deleite do intérprete e da sua audiência. No judo, o Célio é um “protótipo de homem forte e masculino” (seja lá o que isso possa significar) e na dança, o que me faz também amá-la, é o arsenal de mensagens não-verbais nas quais posso sustentar o meu movimento. A dança exibe um espectro de mensagens que enriquece, adiciona e valoriza a minha capacidade interpretativa. O judo, contrariamente, é um desporto machista, tóxico e exageradamente preconceituoso. As pessoas LGBTQIA+ são completamente canibalizadas com comentários que metralham os nossos talentos, carreiras, objetivos e nos levam ao afastamento precoce das nossas carreiras desportivas. Mas eu sou bairrista, não desisto e vou continuar a lutar com os meus valores de berço e de justiça social.

          Na excelência de ambos os desportos (na minha perceção, falar nestas artes e expressividades do corpo é narrar as vicissitudes de dois desportos devido ao rigor, disciplina e fisicalidade exigidas), o judo e a dança convergem num trabalho de exploração de noções corporais que apelam aos cinco sentidos, do mais denso ao mais subtil, de acordo com os ditames energéticos e de género que a minha psique lhes associa. O ponto forte do judo e da dança, ou seja, o seu sintagma, é a crua e por vezes brutal fisicalidade. O meu corpo, vive numa fisicalidade com desafio, incorporada e com substância nos meus “makongos”, nos meus desafios e problemáticas, que são a protuberância do real: no judo encontro a disciplina e o rigor que pautam as notas harmónicas da dança contemporânea.

          Raquel André Querida Sophie

          Querida Sophie,

          Tenho várias histórias contigo, nem sei bem por onde começar… Talvez pela mais recente… Então não é que te vi ao vivo? Assim quase lado a lado, estavas com a Laurie Anderson, eu nem queria acreditar. Fiquei nervosa, dei uns risos miudinhos e tirei-te fotografias às escondidas.

          Eu sei que isto não se faz, tirar fotografias às escondidas, mas bom, Sophie, tu já fizeste isso, aliás tu já perseguiste um desconhecido até Veneza, e não só o perseguiste afincadamente, ligando para hotéis, esquadras da polícia, pedindo a pessoas desconhecidas para ires às suas casas e fotografá-lo das suas janelas, ainda te apaixonaste por ele, fizeste um livro e exposições com toda a documentação que criaste a partir desta perseguição (Suite Vénitienne, 1979). Tudo isto para te dizer que tirei uma fotografia tua, às escondidas, no Festival de Avignon em 2023, onde te vi ao vivo, estavas na mesma fila que eu, para entrarmos no espetáculo Welfare de Julie Deliquet. Nessa noite estava tão emocionada por vos ver ao vivo que não tive coragem de vos falar. Mas o que mais me emocionou foi ver o teu nariz, conheci-o no teu livro Histórias Reais (2009 [1994]), na página 11 contas esta história:

          Tenho outra história contigo que poderia ser mais uma das tuas performances. Algures em  2016, tive uma relação com um rapaz no Rio de Janeiro. Ele alugava um quarto na casa de uma amiga que tinha participado no programa de televisão “Querido mudei a sala” – pessoas amigas inscreveram-na para mudar a sua sala, sem ela saber, e em muitos poucos dias redecoraram a sala, ficando a parecer uma daquelas salas de capa de revista. Então, quando cheguei a casa desse rapaz, fui recebida nessa sala nova-chique e, como é hábito para muitas de nós, imagino que faças o mesmo, quando há livros por perto começamos a espreitar os títulos  dos livros, e nesta sala-nova-chique havia apenas um livro, enorme, de capa dura. Aproximei-me e de repente li: Sophie Calle: Take Care of Yourself, um livro editado em 2007, no qual dizes:

           

          Recebi um e-mail a dizer que estava tudo acabado. Eu não sabia como responder. Era quase como se não tivesse sido para mim. Terminava com as palavras “cuida-te”. Segui esse conselho à letra. Pedi a 107 mulheres (além de duas marionetas e um papagaio), escolhidas pela sua profissão ou aptidão, que interpretassem a carta. Que a analisassem, comentassem, dançassem, cantassem. Que a dissecassem. Que a esgotassem. Que a entendessem por mim. Que respondessem por mim. Foi uma forma de tomar tempo para a separação. Uma forma de cuidar de mim.

           

          Digo ao tal rapaz que este livro é incrível, ele comenta qualquer coisa, diz que nunca tinha reparado no livro, que tinha sido deixado como objeto de decoração pelo “Querido mudei a sala”, e que nenhum deles lá de casa sequer o tinha folheado… Imagina, estavas lá no móvel da sala como um objeto de decoração, entre uma jarra de flores e um bibelô em forma de gato branco. 

          Sophie, a Coleção de Amantes – trabalho em que me encontro com pessoas desconhecidas em apartamentos desconhecidos onde temos que tirar pelo menos uma fotografia que comprove uma certa intimidade – é um projeto que se inspira no teu trabalho. Ficava sempre surpreendida com o facto de eu ter começado estes encontros em 2014 e tu teres começado estas travessias de realidade-ficção nos anos 1970. As perguntas que eu me fazia nessa época, já tu as cozinhavas há décadas: quais os limites entre ficção e realidade no fazer performativo? Existe diferença entre ficcionar uma intimidade e viver de facto uma intimidade? Como se coloca a barreira entre ficção e realidade num ato performativo? Para uma performer existe arte separada da vida?

          Às vezes fico com inveja dos anos 1970, da performance art, do que vocês andavam a experimentar com vinte e poucos anos. Sabes, uma das coisas que admiro no teu trabalho são os diferentes meios e linguagens com que trabalhas, o hibridismo dos meios e linguagens com que trabalhas: fotografias, livros, performances, exposições. No teu trabalho, Sophie, nunca sabemos se o que nos mostras é a tua obra ou a tua vida, ou seja são híbridos os meios e é hibrido o trabalho. Em 1979, antes da explosão da imagem digital já andavas a seguir pessoas desconhecidas, a usar a imagem como prova, a registar percursos tal como o Google Maps. Em 1994 editas o Des Histoires vraies [Histórias Reais], onde partilhas uma tensão entre texto e imagem, textos curtos que são suficientes para sermos testemunhas das tuas inquietações pessoais. Propões que sejamos cúmplices dessa relação entre arte e vida, como se inventasses um terceiro espaço, aquele onde esta oposição vacila, treme, fica desfocada. Porque, afinal, o que nos interessa nas histórias pessoais de alguém? 

          No mesmo festival em que te vi, assisti ao espetáculo A Noiva e o Boa Noite Cinderela – capítulo 1 da Trilogia da Cadela Força, de uma amiga do Rio de Janeiro, a Carolina Bianchi. No início do espetáculo, a Carolina fala de várias artistas da performance art que colocaram os seus corpos a manifesto, que puseram precisamente em causa esses limites da arte/vida. Ela fala de Tania Bruguera, quando na Bienal de Veneza, em 2009, lê um manifesto enquanto realiza uma roleta-russa, com uma arma de verdade carregada com uma bala real (Self Sabotage). Fala de Ana Mendieta e da sua Série de Silhuetas (1973-1980), de como os seus trabalhos falam sobre corpo e violência, a partir da sua experiência como mulher cubana. Fala de Marina Abramović, que trabalha os limites do seu corpo na relação com a audiência em tempo real. E fala de Pipa Bacca, artista italiana que, em 2008, foi para o Médio Oriente com a sua companheira Silvia Moro realizar o projeto Noivas em Viagem [Sposa in Viaggio, 2008], um programa-performativo que consistia em apanhar boleia de pessoas desconhecidas atravessando vários países vestidas de noiva, com o objetivo de mostrar a paz no mundo, como um ato de fé nas pessoas. Um dia, na Turquia, as duas discutem porque Silvia não se sente confortável para entrar no carro de um dos homens que pararam para as levar até Istambul, as duas têm uma discussão: Pippa diz-lhe que isso não foi o combinado, o combinado foi apanhar boleia com qualquer homem que parasse. Silvia não entrou no carro; Pippa sim. Pippa desapareceu durante dias, foi encontrada morta, Pippa tinha sido estrangulada e violada pelo homem que lhe deu boleia.

          Carolina conta a história de Pippa, evoca todas estas artistas mulheres que põem os seus corpos a jogo, que desfocam a barreira arte/vida. E tal como Carolina pergunta no seu espetáculo, eu também pergunto: vale tudo isso pela arte? Para quê? Para quem? Porquê? Estas regras que inventamos para o jogo que nós próprias criamos, que nos podem pôr em risco, são por amor à arte? Por amor à vida? Por termos fé nas pessoas desconhecidas? Por sermos viciadas no perigo? Porque foi assim que aprendemos a viver, no perigo, então estamos viciadas na adrenalina do perigo?

          Carolina Bianchi conta-nos o que é o Boa Noite, Cinderela, uma substância química usada por predadores que querem abusar de pessoas, colocando esse pó em bebidas alcoólicas. O efeito desta substância coloca-as num estado de sonolência e amnésia, sem saberem que ingeriram essa bebida “minada”. Carolina começa o espetáculo partilhando o programa-performativo do mesmo: irá tomar uma bebida alcoólica “minada” com a substância “Boa noite, Cinderela” e entrará num estado de sonolência, irá adormecer e o resto do espetáculo será realizado pela restante companhia. Enquanto esperamos que o efeito da bebida aconteça, e que a Carolina entre em blackout, ela vai-nos falando destas artistas ao mesmo tempo que nos explica o que é o feminicídio e conta histórias de atos desse género. Também a Carolina nos coloca num campo desfocado: será que é real a substância que a vemos ingerir? Será que as duras horas de espetáculo em que ela dorme, está mesmo sob o efeito do “Boa noite, Cinderela”? Mas o que muda se não for verdade? Precisamos de um atestado de verdade para que o trabalho da Carolina se torne mais ou menos interessante, importante, impactante?

          Rosalind Krauss, no Perpetual Inventory (2013), discorre sobre como foi necessário durante os anos 1970 entender o que significavam os meios que acabavam de explodir — vídeo, performance, body art… — no capítulo “The Encounter: Ten [True] Stories” (“O encontro: dez histórias [verdadeiras]”) utiliza o teu trabalho para evocar, precisamente, a questão da verdade. Sophie, eu não sei se tu concordas, mas a Rosalind Krauss refere que a verdade surge como necessidade nas tuas obras, afirmando-se como um meio. Ou seja, como se os meios deixassem de ser o ponto de atenção, a atenção volta-se para a validade da obra artística enquanto experiência, enquanto ato-vivido. Rosalind Krauss diz-nos que o relato de uma experiência é um pós-meio

          Mas Sophie, pergunto-te ainda: interessa saber se os teus trabalhos são a tua obra ou a tua vida? Interessa saber o quanto de verdade existe neles? E já me despedindo, porque as perguntas não acabam, que artistas desfocam a arte/vida? E os trabalhos que inevitavelmente acontecem nesse desfocar são de que artistas?

           

          Com amor,

          Raquel André

          Alina Ruiz Folini Aeromancia

          Estamos em janeiro de 2024 e o céu está cheio de nuvens contaminadas que têm formas estranhas, cores rosadas e cheiros adocicados. Nuvens que são como pulmões do céu. Plantas que são recicladoras do ar. Humanes que vivem um genocídio que aniquila milhares de crianças, os seus territórios e qualquer direito a respirar.

           

          Estamos em maio de 2023 e eu estou a visitar pela primeira vez as Minas da Panasqueira, que funcionam há mais de 120 anos em Cabeço do Pião, concelho do Fundão, região montanhosa do Centro de Portugal. Estou aqui em residência artística seguindo o convite que a rede Terra Batida1 me fez: colocar em tensão as práticas de voz, hapticalidade e linguagem que desenvolvi nos últimos anos, com as problemáticas singulares deste território.

           

          Percorro, juntamente com Ritó Natálio e Teresa Castro, colegas artistas com quem partilho este processo, as antigas lavarias e escombreiras que foram abandonadas em 1985 e que estão situadas numa parte exterior das minas: uma impressionante estrutura que servia para triturar, lavar e moer o metal extraído, para depois o concentrar a partir de processos químicos realizados mesmo ali.

           

          Estes processos de mineração derramaram, durante muito tempo, líquidos tóxicos e restos de metais pesados, contaminando tanto o solo como algumas vertentes do rio Zêzere. Rio que, entre outras coisas, abastece de água potável a cidade de Lisboa até aos dias de hoje. 

           

          Os detritos de pedra que sobram do processo de lavagem e extração do metal foram acumulados numa “montanha” de tamanho gigante, que ficou ali para todo o sempre e que parece vir de algum planeta seco e cor de laranja. Ao pé desta falsa montanha de restos, o solo tem uma cor branca-amarelada e fede intensamente a algo ácido. 

           

          O principal metal que aqui foi extraído foi o tungsténio (ou volfrâmio), um metal branco-acinzentado brilhante, muitíssimo denso e pesado. A maior parte do metal que se obteve na Panasqueira desde os começos do século XX foi exportado para vários países do Norte da Europa, para ser utilizado em diferentes tipos de indústrias. Foi usado, por exemplo, para o fabrico de lâmpadas incandescentes ou tubos de raios-X com os quais se fizeram as primeiras experiências para se obterem imagens do interior das pessoas, revolucionando a indústria médica. Mas o auge da procura e da extração do volfrâmio aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, visto que este metal teve uma posição muito significativa nos negócios bélicos: Portugal foi o principal produtor europeu de tal elemento, que, devido à sua dureza e à sua resistência às altas temperaturas, é usado para aumentar a letalidade de explosivos, balas, granadas e mísseis, tornando-se uma matéria-prima importante para a indústria do armamento e para a sua missão de matar.

           

          A maioria dos mineiros e mineiras que ali trabalharam sofreram graves consequências devido à insalubridade do trabalho e não houve, até aos dias de hoje, quaisquer ações de reparação para com estes trabalhadores ou as suas famílias, nem tão-pouco para com territórios, paisagens e culturas que foram e que continuam a ser irreversivelmente danificados até à atualidade.

           

          Um pequeno grupo de três artistas independentes propusemo-nos  à imersão neste território, e chegámos lá sem informação suficiente sobre como cuidar-nos, ou se poderia implicar algum tipo de risco. Um cheiro intenso, familiar mas ao mesmo tempo irreconhecível, inundou-nos quando chegámos às escombreiras. Esse cheiro corrosivo é do enxofre que ficou impregnado no solo a níveis profundos, como efeito das drenagens das lavarias. Reparámos que a exposição seria intensa quando já estávamos a visitar as escombreiras e as nossas gargantas começaram a sentir-se apertadas. Fomos mais um elo, ainda que privilegiado, na cadeia de extração e (auto)exploração colonial. 

           

          O que permanece deste encontro são sensações ásperas na garganta, que se foi apertando enquanto caminhávamos, por motivos ambientais e fisiológicos, mas também históricos, políticos, ecológicos. Há bastante vento no Cabeço do Pião, sinto o ar a friccionar as minhas vias respiratórias e também a sua força que me rodeia e empurra. Penso se esse ar, além de partículas ou gases tóxicos, carregará restos da monocultura de cereja ou de eucaliptos da região, se talvez esteja também a respirar os mineiros explorados, ou de que forma estarei a inalar a própria montanha e os seus tempos geológicos, que se expande ferida e magnética à nossa frente. 

           

          Somos co-respiradorxs

           

          Os seres que vivemos fora da água (plantas, animais, humanes, bactérias, fungos e mais) passamos a nossa vida a dividir e a reciclar o ar do planeta enquanto respiramos. Respirar é, então, muito mais do que um movimento fisiológico que visa a sobrevivência. Estamos conectades por um intercâmbio gasoso contínuo e invisível, que é ao mesmo tempo íntimo e atmosférico e que nos torna interdependentes. Não podemos respirar sem os bosques e as selvas que produzem o oxigénio, assim como sem outros seres que colaboram com a vida das plantas no planeta. Metabolizamo-nos e incorporamo-nos de forma espiralada e contínua para continuarmos com a vida.

           

          Somos co-respiradorxs e respirar juntes tem de ser entendido como um acontecimento político, ambiental, social, afetivo, erótico. A exposição a ambientes contaminados e tóxicos, o acesso ao sistema de saúde público, o ser discriminade a partir de condutas transfóbicas e/ou racistas, corresponder a um alvo específico para as forças repressivas policiais, o ser ume trabalhadore regularmente exposto a materiais tóxicos, entre outras condições, define o acesso à respiração de cada ume e, portanto, a ter uma vida mais ou menos respirável.

           

          “O que acontece se colocamos o ponto de vista nos pulmões?”, pergunta Elizabeth Povinelli no seu livro Geontologies. Que perspetivas de respirabilidade situada ou de justiça social e ambiental existem num pulmão com silicose? E num pulmão agitado por uma crise de ansiedade por disforia de género? Ou num pulmão asfixiado pelo acionar criminoso da polícia racista? 

           

          Reconhecermo-nos como co-respiradorxs é um desafio enorme enquanto atravessamos os tempos lineares neoliberais, onde a individualidade, o espaço privado e os binarismos estruturam a experiência sensível de coexistir. Onde acaba e onde começa a minha respiração? Quando o ar que co-respiramos está dentro, ou quando está fora, passa a ser teu ou meu? E em que é que se transforma esse eu (trans)individual no trânsito de respirações humanas e mais do que humanas?

           

          Um lobo chamado volfrâmio

           

          A palavra volfrâmio deriva do alemão wolf e rahm, que pode ser traduzido como “baba ou saliva de lobo”, em alusão às perdas de estanho durante o processamento do tungsténio. O lobo ibérico, por seu lado, é uma espécie em extinção em Portugal, devido à “caça, aos envenenamentos ou à redução do seu habitat”2

          A primeira edição impressa da fábula Os três porquinhos foi publicada em 1853 e em 1933 Walt Disney popularizou a história na qual três porquinhos humanizades e da classe trabalhadora constroem as suas casas no bosque, respetivamente de palha, de madeira e de tijolos. Dois deles constroem casas frágeis e preferem dedicar o seu tempo a dançar, a tocar flauta, a cantar e a bambolear os seus rabitos despidos na natureza. “Quem tem medo do lobo mau, lobo mau, lobo mau???” O lobo, que chega a salivar e cheio de fome, tenta comê-los e para tal sopra com força para cima das casas deles até as derrubar. 

           

          O lobo-volfrâmio poderia, assim, ser uma representação da voraz exploração mineira que avança tóxica e imparável sobre a vida ociosa e prazerosa dos porquinhos trabalhadores para lhes dizer: “Hey, porcos alegres e depravados, não deram atenção suficiente à solidez da vossa propriedade privada, preferiram sensualizar improdutivamente no meio da Natureza, merecem morrer.” 

          Ou talvez o lobo-ibérico seja, em contrapartida, um mineiro explorado que fugiu da mina, sem casa, com as suas roupas sujas e rotas, preto, desnutrido e sem outras armas senão os seus pulmões silicóticos.

           

          A aparição deste conto e o trabalho mineiro do século XX coincidem no tempo histórico, estruturando as suas narrativas sobre práticas extrativas, capitalistas, heterocentradas, racistas, sexistas, classistas, antropocêntricas. A moral do conto é punitiva e castiga os porquinhos ociosos, dedicados ao prazer, à música, à vida na Natureza e aos bailes queer. Acusa-os de serem preguiçosos, instáveis, tontos, de entrarem em pânico e de serem infantis. E também castiga o lobo, que não consegue aliviar a sua fome, é atacado e expulso da sua terra pelos novos excêntricos habitantes. O ar torna-se escasso, não há co-respiração possível e o que resta será a disputa violenta e o castigo. 

          É possível co-inspirar a partir de experiências antipunitivas e anticoloniais, em tempos de destruição irreversível? E como conspirar a partir de pulmões estruturalmente desiguais? 

          AEROMANCIA é a investigação que tenho criado em tensão com este processo territorial e propõe-se queerizar a respiração, não no sentido identitário, mais em sentido material. Observar as condições materiais nas quais co-respiramos, juntamente com as relações de poder que se reproduzem, para fabular, alucinar e hiperventilarmos como estratégia de reparação, transformação e autodefesa. Imaginar uma respiração não apenas fisiológica e mecânica, mas antes afetiva, transformadora, delirada e sensual, a partir de metabolismos estranhos. 

           

          Traduzido do original em espanhol da Argentina por Pedro Cerejo.

          1 Terra Batida é uma rede de pessoas, práticas e saberes em disputa com formas de violência ecológica e políticas de abandono em Portugal.
          2 “Lobo-ibérico regressa ao distrito de Castelo Branco após várias décadas”, Público online, 20 de Julho de 2021, acedido em
          https://www.publico.pt/2021/07/20/ciencia/noticia/loboiberico-regressa-distrito-castelo-branco-apos-varias-decadas-1971052.

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          Clara Amaral Editorial

          Escrevo este editorial entre duas serras. À minha esquerda, a serra da Estrela, nas minhas costas a serra da Gardunha. Sentada num pequeno escritório, entre duas serras, aqui estou na casa dos meus pais. Ainda que enquanto escrevo não olhe diretamente para elas, bem sei que estão à minha beira. Uma sensação que não nasce somente dos olhos, mas acima de tudo da perceção, um saber que se alojou na pele. A cidade onde vivo – Amesterdão – é plana, aliás o país onde vivo – Países Baixos– é plano, não há maciços montanhosos que desafiem a vista. Desde há algum tempo para cá, anseio o momento de chegar ao Fundão. Se no passado este lugar não me empolgava, neste momento é-me muito prazeroso estar aqui: acordar e ver a serra da Estrela ao longe numa manhã de verão, os seus contornos perfeitos e o céu de um azul invejável; virar a cabeça e ver o manto verde da serra da Gardunha; o pôr do sol que se vê da varanda da casa dos meus pais; as andorinhas, o seu voo, o seu canto durante o crepúsculo. Muitas vezes pensei no porquê desta mudança, todas estas coisas existiam antes, mas, por algum motivo, eu não as via.
          Agrada-me, quase sempre, narrar o “eu”, claro que não posso garantir em absoluto a veracidade desta narração, de todas as formas, aqui fica: há uns tempos, enquanto caminhava pela Avenida da Liberdade – no Fundão também há uma – apercebi-me de que esta cidade e tudo o que a envolve foi o primeiro sítio que os meus olhos viram e que, de alguma forma, viu os meus olhos. Nesse mesmo dia, um pouco mais tarde, pensei: ainda que este tenha sido o primeiro sítio que os meus olhos viram, este recém-enamoramento pelo Fundão e seus arredores não poderia ter surgido antes, pois necessitava de distância para ajustar o olhar, re-olhar, permitindo assim uma outra leitura de uma realidade tão familiar. Ressalvo aqui a importância da palavra “leitura”, quero resgatá-la, ao jeito da crítica e teórica indiana Gayatri Spivak para o espaço do mundo, pois a leitura que praticamos no espaço do jornal é uma preparação para a leitura que praticamos diariamente no mundo. E o mundo, tal como Spivak diz, pede para ser lido como um livro:
          “Toda a gente lê a vida e o mundo como se fosse um livro. Até os chamados «iletrados». E especialmente os «líderes» da nossa sociedade, os não sonhadores mais responsáveis: a gente da política, gente dos negócios, gente que faz planos. Sem a leitura do mundo como um livro, não há profecias, não há planeamentos, não há impostos, não há leis, não há prosperidade, não há guerra. No entanto estes líderes leem o mundo em termos de racionalidade e médias, como se fosse um caderno de exercícios. No entanto, o mundo escreve-se numa complexidade incorrigível, em vários níveis, e com a abertura de uma obra de literatura. Se através do nosso estudo da literatura, conseguirmos aprender e ensinar outros a lerem o mundo de uma forma rigorosa e arriscada, e a atuarem nessa lição, talvez nós, pessoas literárias, não fôssemos para sempre vítimas tão indefesas.”
          Cada uma das contribuições que fazem parte deste Coreia #9 lê o mundo de forma rigorosa e arriscada, como se fosse um livro, que se abre numa multiplicidade de capítulos, todos distintos mas com uma matriz semelhante, a de desafiar a nossa leitura. Assim o faz Alaa Abu Assad quando viaja pela flora da Palestina e reflete acerca do papel da fotografia na sua representação; ou João Bento, que desenhou um léxico de movimentos de O Limpo e o Sujo de Vera Mantero, trazendo esta peça para o presente e permitindo-nos um diferente olhar sobre ela. Os artistas Dori Nigro e Paulo Pinto e a curadora Georgia Quintas escrevem acerca da exposição Vento (A)Mar, que esteve presente na Bienal‘23 Fotografia do Porto. Durante a abertura da exposição, uma das salas foi encerrada pela administração do Hospital Conde de Ferreira com a anuência da Santa Casa da Misericórdia. Em seguida, a obra foi exposta fragmentada – um triste episódio de censura. No Coreia #9, os artistas reclamam a narração deste evento e deixam um tributo às avós dos artistas, avivando a sua presença no aqui, no agora deste jornal. Prosseguindo com um gesto de reclamação da narrativa, Zia Soares escreve-nos a partir da sua performance FANUN RUIN, que trata sobre questões de restituição de restos humanos pilhados no período colonial. Todos estes temas ainda carecem de muita atenção, pensamento e ação em Portugal. A distância temporal é essencial e permite-nos perceber, a pouco e pouco, a complexidade e brutalidade destas Histórias.
          Como sempre, mantém-se a tradição de publicar um texto histórico e nesta edição traduziu-se pela primeira vez para português Vicente Escudero, uma figura importantíssima do flamenco do início do século XX. A bailarina e coreógrafa moçambicana Janeth Mulapa, com uma voz generosa e urgente, partilha o seu projeto Vozes, que nos permite vislumbrar as complexidades e a beleza extrema do universo feminino da dança contemporânea em Maputo.
          Num tour de force encontramos Daniel Lühmann com O VaIvÉm – uma contribuição destemida, uma lengalenga, um encanto. De encanto para Encanto, com Lior Zisman Zalis através da dança colocamos o estado pra baiar. Giulia Damiani, e o abrandar de um coração, este texto disfarça-se de pesquisa, e pouco a pouco, qual montanha transformada em vulcão, revela uma performance que se vai construindo na nossa imaginação. Gio Lourenço e ngelo Custódio são entrevistados por Daniel Moraes acerca das suas práticas artísticas numa colaboração do Projeto Decorporeidades com o Coreia. Luísa Saraiva reflete acerca da saúde mental nas artes performativas. Teresa Fabião pensa a relação entre corpos HIV- e HIV+ e a importância de práticas artísticas de forma a repensarmos a relação entre corpo e vírus. Tiran Willemse é uma multiplicidade de “eus”, que se desdobram num espaço não linear. Com Andreia Neves Marinho, o Centro Ciência Viva Alviela, Andreia Sofia Cardoso Lima, a floresta, Patrícia Conde, Fernando Pedro dos Santos, João Henriques, a gruta, Valentina Parravicini, Cristina Fuentes Ávila, o rio Alviela, Francisco Weber Ruiz, Gustavo Vicente, María Jerez, Quim Pujol e os espíritos, entramos numa palavra inventada– Indíralo – e a partir daí o mundo reconstrói-se numa pluralidade de línguas. E, finalmente, Katarina Lanier pensa de forma afetiva o espaço da cidade de Escópia (capital da Macedónia do Norte).
          Tal como na edição anterior, também nesta, Isabel Lucena convidou uma designer gráfica para repensar duas páginas do Coreia, nesta edição esse repensar ficou a cargo de Joana Lourencinho Carneiro que fez o design das duas páginas referentes a Vicente Escudero. É também de mencionar que a tiragem do Coreia aumentou – viva! – de 3000 para 3500 exemplares.

          Ao escrever estas linhas finais não estou já entre duas serras. Estou pela primeira vez em São Paulo, no Brasil, para, entre outras coisas, visitar a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel. Não me posso ainda alongar nessa experiência, pois, não só ainda não “está vista” como também ainda não tenho a distância necessária que, possivelmente e esperançadamente, me permitirá uma leitura rigorosa e arriscada, não só da mais antiga Bienal da América do Sul como também da experiência de estar no Brasil, primeiro país da América Latina que visito; ainda que a enumeração crie hierarquias, a minha experiência de ambos está intimamente interligada.
          Afastando-me suavemente, com toda a suavidade que as palavras permitem da ideia de distância e da sua importância, quero aqui deixar um momento de uma conversa que tive ontem. Escolho deixar este “ontem” sem data, para que sempre que se leia este editorial este “ontem” se volte a evocar e assim sendo se repita. Alguém que conheci brevemente, disse-me: “O tempo em São Paulo é como o dinheiro, uma pessoa pensa que tem, e na verdade não tem.” Aqui deixo estas palavras, este feitiço, esta magia, desejando assim que o tempo, tal como o conhecemos, se deixe de usar.

          Janeth Mulapha VOZES

          Vozes foi uma iniciativa que surgiu após as aulas de rotina que acontecem em Maputo — aulas abertas, com maior participação masculina entre coreógrafos moçambicanos —, e impulsionada por uma fraca adesão de bailarinas de danças tradicionais em palcos convencionais e na dança contemporânea em geral em Moçambique. Umas talvez pelas suas escolhas e outras pela submissão. Desistência, teimosia, crenças… Aqui ainda se diz que o lugar da mulher é em casa, nas panelas, a cuidar das crianças e do lar…

          Vozes surgiu também de provocações de alguns que perguntavam sobre o meu legado. O que estaria a acontecer, afinal, com o universo feminino na dança contemporânea? Já faz tempo que vemos os mesmos rostos, porquê a resistência das mulheres a realizar projectos até agora dominados por homens? Porque está a sua auto-estima enfraquecida, quando são as mais fortes? Onde estaria eu a cultivar o meu legado? Onde está a minha machamba e o que pretendo deixar afinal? Queria responder a estas questões, não com palavras, mas com experimentos. Daí surgiu a iniciativa da INCUBADORA DE PESQUISA COREOGRÁFICA PARA MULHERES, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo (CCFM).

          Recebi muitas mensagens de mulheres que queriam aderir. Muitas de várias disciplinas, até no campo das ciências, da linguística… — eram engenheiras, advogadas, empresárias —, e muitas também sem formação nenhuma, porque cedo abandonaram a escola, consequentemente, mães aos 13 anos, avós aos 28; ironia, o ciclo se repetia, a filha e a neta tiveram o mesmo destino, como se estivesse no DNA marcada essa sina.

          Muitas perguntavam sobre os horários, as condições, quanto iriam receber. Quanto tempo teria este processo e se, até lá, estariam a dançar, magras, gostosas — porque estavam ameaçadas de serem trocadas pelos corpos esbeltos de sereias preenchidas de botox e calcinhas da Loja das Damas, cabelos lisos, touch my bunda, salto 21 e weus acessíveis às 13 horas do intervalo, ao invés das crespas saídas da maternidade que cheiravam ao leite fresco que enchia os seus peitos a apodrecer, consequência de maternidade precoce que, segundo o plano, não era de mútuo acordo: “Esse era o teu plano, sou muito jovem, quero curtir”… diziam, e elas se submetiam a ouvir esses actos bárbaros violentos e covardes para não serem trocadas e prevalecer a ideia de um lar feliz, porque … “O importante é que serás vista com bons olhos, serás um exemplo na sociedade.”

          Elas buscavam ali e queriam somente prover garantia para a sua independência financeira, muitas com vontade, mas impedidas por deveres na sua agenda humana: filhos, maridos, família, sociedade, e, pior, pela acção a que se queriam dedicar e por rebelar se dançassem! “Hummmm, ISSO É PARA PUTAS”. “Não se vive de dança aqui, estás a perder tempo”; “quem vai cuidar das crianças, organizar a casa, cuidar de mim?” “Estou muito stressado, te quero no quarto”; “se não aguentas mais, tem uma bicha de mulheres à procura de um lar”; “volta para casa dos teus pais se estás cansada”; “AUKATHI HI UKATHI”. Lar e sexo.

          As histórias ganhavam uma forma, mas tínhamos, ao mesmo tempo, questões que faziam com que sempre tivéssemos ausências. Enquanto caras novas contavam suas histórias, lá fora, do outro lado, estava a acontecer; números diferentes: eram caras novas reduzidas a nada, e mais desistências. As tarefas domésticas que as chamavam eram mais um impasse e, assim, tínhamos um processo que não avançava. A repetição tornava-se o nosso dilema. Um impasse que nos condenava a estarmos esmorecidas.

          Durante os nossos encontros, queria sempre, dia após dia, saber o que as trouxera ali, e porque não desistiam. Afinal, os rostos que ali estavam eram de infinitas emoções, mas quase nenhuma deixava transparecer alegria. Pouco a pouco, as máscaras, na sua subtileza, iam caindo, e eu via ali aquela mulher, menina, corajosa, com pensamento astuto e próprio da sua época, pronta para enfrentar qualquer que fosse seu inimigo. Pela força física que eu exigia, me perguntava porque voltavam, afinal, se as novas cicatrizes estavam ali frescas e visíveis; mas, porque surgiram de transformações do “eu”, da sua liberdade, não doía e eu gritava: “Avança Sempre, não recues!” Foi por essa força que desistiram outrora, a mesma força que as trazia de volta para a repetição do quotidiano.

          As perguntas prevaleciam: o que esperavam dali? O que estava a mudar nelas? Como queriam contar suas histórias? Seus relatos tinham pontos comuns: feridas e cicatrizes que, por mais que aparentassem estar saradas, tinham memórias vivas. Daí iniciaram o ciclo de desabafo falado, que depois transferiram para o corpo, para dar movimento. Muitas mulheres, apesar de nunca terem dançado, já apregoavam suas técnicas, seus estilos; sua voz era audível, tornava-se viral e contagiante de uma para outra. Se desafiavam a dançar seus enredos escritos pelo tempo de suas vivências curtas, mas de longo percurso. Um mês e meio tornou-se pouco. As aulas eram extremamente físicas para quem nunca tinha dançado. A magra Maria era preguiçosa e não queria descer ao chão e voltar em tempo binário suíço, mas I DON’T GIVE UP; eu vou até ao fim, era ela com ela mesma! Enfim, quem te chamou aqui? Parecia um treino psicofísico militar…

          Ficávamos na primeira posição em demi-plié, e a donzela Maria, que estava sempre no canto inferior esquerdo, via aquele ponto como espaço para incubar seus enjôos; dela poucas histórias ouvíamos, talvez estivesse à procura de conhecimento das mais crescidas. Ficávamos então de pé e ela voltava para o chão sem medir tréguas! Maria sentia cada vez mais enjôos — verão africano, manhã de 34 graus, fresquinho para a nossa realidade consecutiva — e não parou por aí. “Ela está grávida”, a fofoca se espalhou. Kuni ndzava. QUEM? EU?… Deveres de casa, levar os filhos à escola, cozinha, lavar. Assunta não foi diferente, duvidava dela própria, pior, com o marido no serviço militar, estava a viver com os sogros, não era fácil. “Amanhã não consigo vir, não tenho dinheiro para o chapa”, aproximadamente 15 meticais (2 cêntimos do euro). “Hoje andei tanto, acordei, fui buscar água, não temos há quase uma semana, não tinha sequer para beber”; “eu acordei às 4 horas para vir ao ensaio, apanhei 3 chapas supercheios, me pendurei e ainda cheguei atrasada”; “eishiii, venha viver para a cidade!”; “Impossível! O meu irmão mais novo vive cá há quase 3 anos, meu pai diz que não sou capaz de me governar, só saio com um marido que se responsabilize por mim.” A engenheira pugilista Maria (boxeira, por nós vista), vidente, o que fazia na dança? “Não te formámos para seguir com essa brincadeira”; “Tem uma vaga nos Caminhos de Ferro de Moçambique garantida”. Posterga e ou relega a sograria, não tem o mesmo nível social por quem se deixou apaixonar…

          Já nada mais nos parava, queríamos mais tempo para estarmos juntas, mais tempo para a movimentação, mais tempo para ouvir os clássicos da nossa terra no palco do parque do CCFM, mais tempo para ouvir a mim e a ela, a voz da outra a contar o que sucedera minutos atrás em casa ou naquela esquina, para fazermos da história dela nossa história e juntas chorarmos as dores em simultâneo; uma sororidade única. Muitas queriam vir e nunca mais partir, era uma sensação de liberdade adquirida; as quatro, cinco horas de estúdio tornavam-se poucas e claramente escassas.

          Daí o CCFM convidou-me para fazer uma peça. Não tinha estrutura nem elenco, tinha somente mulheres sem experiência em dança, histórias, feridas, relatos sobre violência vivida, ouvida, vista por e com elas. Que história iria contar? Resolvi convidar alguns colegas para apoiarem com sua energia, com o propósito de as impulsionar. Mas era com elas que queria provar que podemos, apesar das adversidades. A conjuntura nacional estava um caos e as histórias não paravam: casos de Cabo Delgado, epicentro dos grandes ruídos, insurgentes matando e levando mulheres, mulheres vítimas de violência. Logo nos vimo-nos misturadas com alguns homens que partilhavam relatos parecidos. Violência não acontece somente com as mulheres, somente em larga escala somos nós. Acabámos numa mistura de Vozes em palco, mas ficou a sensação de missão abortada, pois eu queria que fossem somente mulheres.

          Nasceu então o projecto VOZES NACIONAIS NO FEMININO. Sentia a necessidade de ouvir outras mulheres, a nível nacional, e trabalhar com mulheres de diferentes proveniências, diferentes línguas, texturas, hábitos, costumes, idades, cores, fisionomias, estados civis. Se todas essas mulheres viessem juntas, numa única voz, épico!, orquestrar uma sinfonia do corpo com diferentes linguagens, sem preocupação com a técnica e a rigidez da dança, demonstrar suas conquistas, seus desafios, suas revoluções, vozes de liberdade, demonstrar como o drama do próximo, ou do mais longínquo, afecta as nossas vidas e como a informação afecta e transpõe fronteiras viajando através dos corpos peculiares, definidos pela experiência de vida, contendo mulheres de grande impacto adormecido. Ser Mulher só, aqui, é um desafio…

          Se eu conseguir educar e consciencializar a rapariga desde tenra idade, teremos uma sociedade mais justa, equitativa, com igualdade de género, capaz de suprir o desenvolvimento sociopolítico, económico e cultural para uma humanidade menos doente, pois formar um homem é apenas formar uma pessoa, mas formar uma mulher é formar uma família e, por conseguinte, é formar a humanidade.

          Giulia Damiani Heart Brake – Pensar através de um sentimento expandido no movimento

          Heart Brake1

          No princípio era o ritmo2. O pulsar de um coração que abranda. Abranda-o. No princípio era o ritmo. Depois, com o ritmo, surgiu uma história. Abranda-o. Tic. Ainda bate com força. Como criar palavras a partir deste movimento? Ou são estas palavras que o fazem mover? Esta história antiga. Abranda-o. Como posso demorar-me neste sentimento desconfortável, abrandando-o? Que espaço cria ele? No ritmo do batimento. Põe a tua mão sobre ele. Palpitação, toque; é acolhedor. Porque temos medo de habitar esse espaço? E estas palavras, o que se consegue digerir do processo de passar por isto?

          Primeiro, apresentar uma imagem. No princípio emerge do escuro o som de um metal que bate numa superfície dura. Tic. O som é nítido, semelhante à forma como conseguimos escutar uma gotícula de água a cair num espaço vazio. Em segundos, o som acelera e alguma coisa parece estilhaçar-se. À medida que as luzes sobem vê-se alguém que martela um escopro numa laje de cimento. Dói. Tic. O escopro parte o cimento. A falha expande mais um pouco com cada martelada. Tic. Ferro em cimento. São construtores ou estão a destruir uma coisa? Magoa. O movimento acelera e aparecem várias fendas, e há uma maior ao centro. Depois uma respiração mais rápida. Os sons transformam-se em música. O corpo da personagem entra na música, entra na falha.

          Relaxa. Mergulhamos na falha.

          Desacelera o bater do coração. Sente um peso no peito. Coração abrandado. Ao entrevistar mulheres mais velhas aprendi que estar de coração partido pode ser muito mais do que apenas uma condição temporária3. Pode descrever um sentimento de desilusão com a realidade que se pode manifestar em certo momento. É a constatação da impossibilidade de concretizar o nosso potencial criativo e político dentro da sociedade, tal como ela é. A desilusão que pode surgir quando as mulheres têm de desistir da procura pela sua própria identidade integral para dar espaço a relações heteronormativas (a compreensão da sua experiência tornou-se então na minha; eram vozes proféticas nas quais me recusei a acreditar). As relações com homens cis e heterossexuais só podiam falhar. As mulheres que entrevistei expressavam um forte sentido de separação depois de muitos anos de esforço. Eram feministas, algumas delas artistas, e falavam sobre uma fratura interna, mas também externa: ao observarem as camadas de exploração e degradação do ambiente. Esta era uma questão que interessava muito ao grupo feminista Le Nemesiache, de Nápoles, grupo que investiguei e com quem trabalhei durante vários anos. A fundadora do grupo, Lina Mangiacapre, escreveu sobre lógica como uma “fissura no pensamento” e descreveu a separação entre corpo e pensamento na sociedade ocidental4. Juntas trabalharam em performances, filmes, ações políticas e criativas entre os anos 1970 e 1980, que mostravam claramente como as categorias ocidentais procuravam separar as pessoas do ambiente ao negligenciar as imensas relações de interdependência entre os dois. Mangiacapre dizia que a filosofia da alienação nasceu de uma ferida, de um corte5. Como entender um sentimento negativo enquanto espaço gerador?

          O grupo Le Nemesiache procurou estabelecer relações com o panorama envolvente para encontrar novas formas de harmonia e unidade. Ligadas ao poder e à lava do vulcão Vesúvio, elas entendiam a identidade das mulheres como algo que emergia inesperadamente. Da mesma forma que o Vesúvio é habitualmente visto como apenas uma montanha até se revelar um vulcão, criando assim uma “rutura epistemológica”, um choque cognitivo na cabeça das pessoas, a identidade emergente das mulheres vai chocar e agitar tudo mais uma vez. Talvez haja muito a aprender com a paisagem no que diz respeito à perda das referências convencionais. O que acontece quando nos tornamos permeáveis à paisagem? Neste sentido de profunda desilusão, Le Nemesiache acreditava que emergiriam revelações dos seus corpos dançantes na sua paisagem. Deixa o calafrio entrar. Uma voz-off diz: “Era uma vez, há muito tempo, a história de uma mulher. Viajou. Existiu. A história de uma mulher. Uma longa pausa. Coração Abrandado. Uma longa pausa. Coração Abrandado. Uma amiga minha disse-me que este sentimento era uma forma de ligação profunda; de ter a oportunidade de olhar para qualquer coisa de novo. De olhar umas para as outras. De tentar alcançar. Outra vez.”

          Sentir um aperto no peito. Esta história antiga. A trabalhadora das obras deixa cair o escopro e o martelo, mas mantém o movimento de perfuração. Outra personagem emerge de um dos lados do palco e tenta absorver o movimento. Uma força gravitacional entre elas. Uma forte intuição. Viaja. Um charme trémulo. É uma dança. Incapaz de relaxar. Abranda-o. Sentir-se empurrado para baixo. A palma da mão morna que pressiona outra. Um fogo interno, que sai através da respiração. Como o corpo reage ao stress. Como o corpo performa o stress. Respirar. Toda a sala a pulsar, luzes trémulas de cores diferentes. É assoberbante. Esgueira-se. Blackout. Liberta.

          Agora as duas pessoas juntam os fragmentos partidos para criar uma pequena montanha. É colocada uma estrutura sobre a montanha. Um holofote brilha sobre ela. Entra uma outra personagem chamada Wilgefortis que se derrama na placa vertical. Wilgefortis é uma santa popular também conhecida na Alemanha por Kümmernis, que significa sofrimento ou ansiedade. Liberta. Ela é uma das personagens do drama épico, de 1981, Freak Orlando, de Ulrike Ottinger6. A voz-off do filme narra que, segundo reza a lenda, a barba cresce a mulheres de coração partido. Wilgefortis, com um vestido de noiva e uma coroa, é amarrada a uma cruz, enquanto outra mulher lhe serve um martini seco, num copo fino e muito alto. Com um belo canto lírico ela denuncia a sua vida e o seu martírio; interpreta também a voz do seu pai que a castigará e sacrificará por não ter aceitado casar-se com um príncipe poderoso: “Em Portugal, o rei cristão fala com a sua filha Wilgefortis: imploro-te, por razões de estado, que cases com o sátrapa, o potentado, o que é poderoso do outro lado do oceano, ou não mais serás filha minha”7. A filha riposta, suplica a Deus que a transforme em alguém com quem seja impossível casar e, em resposta, é-lhe oferecida uma barba. O pai vai ficando cada vez mais furioso com ela e ela deixa de verbalizar e recorre a lindos sons. É assassinada. Existe algo cómico nesta tragédia, o martini seco e o tom geral aligeiram as coisas. Esse pode ser o último sítio de resistência. A permissão para que nem tudo seja subjugado. Não perder a autoironia. Deixar de se identificar como uma vítima. Abandonar um papel ao mesmo tempo que se continua a ser uma referência para outras. A lenda atravessou os séculos e Wilgefortis tornou-se a padroeira das mulheres que se querem livrar de relações abusivas com os seus parceiros. Wilgefortis foi também tomada como alguém que transgrediu as fronteiras do género, já que a sua barba e o seu vestido longo alimentaram a confusão entre as suas representações e as de Cristo. No final foi excomungada. É realmente transcendental. Ela flutua.

          Deixa-te atravessar pelos calafrios. Está a abrir-se uma brecha. Respira. A trabalhadora das obras e a outra personagem pegam num balde com bolas a pingar tinta e atiram-nas para os lados do corpo de Wilgefortis. É ela o alvo. As personagens marcam a sua silhueta rindo e aplaudindo de cada vez que as bolas falham o corpo. Wilgefortis também se ri. Faz sons. A voz-off fala: “Deixo crescer a minha barba como modo de ser. Eu seguro-te. Aproxima-te. Já tinhas visto alguma coisa tão bela? Vá lá, não sejas tão duro comigo. Sei que também gostavas de ter o mesmo. Mais logo ensino-te um truque para o fazeres. (Um guincho de uma das personagens). Ok, agora pega no balde. Aplica a cor nas bochechas, depois no nariz e no queixo. Aqui vamos nós. Agora outra camada. Muito bem. Sorri. Confiança. Pisca o olho ao público. Faz uma dancinha. Bate um pouco no rosto. É isso mesmo. Assume as consequências de uma puta de uma decisão. É isso mesmo. Castigada. Pensavas estar a aprender como estabelecer fronteiras. Espalha mais. Respira fundo. Isso mesmo. Sacode. Ó miúda, estou atraída por ti.” Uma personagem aproxima-se de Wilgefortis e beija-a. Começa a ouvir-se a música da Shakira, Addicted to You, e as três dançam.

          Dizem que a dor de um coração partido está no cerne da consciência revolucionária, uma prática ainda por revelar8. Uma força gravitacional entre corpos que descobrem algo de novo. Uma atração fatal. Neste work in progress aparece uma imagem final. As cores de Io, a lua de Júpiter e o corpo celeste geologicamente mais ativo do Sistema Solar, brilham no ecrã que está no palco. Uma atração fatal. A superfície de Io vai-se renovando com as suas vastas montanhas vulcânicas sempre a mudarem debaixo dos constantes rios de lava. Este ambiente extremo é causado por uma profunda fricção que existe dentro de Io e pela força gravitacional de Júpiter. Tons de amarelo, roxo, laranja, preto, verde. As mesmas cores da tinta à volta de Wilgefortis. Aproximam-se, beijo. Continuam inesperadamente a explodir. Continuo a sonhar com este espaço e a partir dele com a transmissão de um sentimento de lenta rutura. Apesar da ansiedade latente, o final será surpreendentemente alegre.

          1 O título do texto é um jogo com as palavras “heartbrake” que significa “coração partido” e “brake” que significa “abrandar”, aludindo assim a um coração que abranda.
          2 Hans van Bülow, maestro alemão do século XIX. Agradeço à minha aluna Sophie Refsgaard ter partilhado comigo esta referência.
          3 Integradas no projeto internacional intergeracional de entrevistas “Transmissões Feministas”, com Gabby Moser e Helena Reckitt. O projeto consiste em entrevistas orais com mulheres que participaram na segunda vaga do movimento feminista em Itália, com especial foco na autorrealização e no trabalho coletivo. O projeto incluirá uma exposição e uma publicação com as respostas de artistas contemporâneas de Toronto, Amesterdão, Londres e várias localidades de Itália.
          4 Lina Mangiacapre, Cinema al Femminile (Pádua: Mastrogiacomo, 1994), 2.
          5 Ibidem
          6 Freak Orlando, de Ulrike Ottinger, com Magdalena Montezuma e Delphine Seyrig, 35mm, 126 min, 1981.
          7 Wilgefortis em Freak Orlando, disponível aqui https://www.youtube.com/watch?v=7lWR2Bm2YzQ [consultado a 29 de julho de 2023].
          8 Gargi Bhattacharyya, “We, the Heartbroken”, Pluto Press, https://www.plutobooks.com/blog/we-the-heartbroken/ [consultado a 17 de julho 2023].

          Alaa Abu Asad Flores Plantas silvestres da Palestina

          Aconteceu estar a acompanhar uma amiga e a sua família até um pedaço de terra que lhes pertencia, e onde faziam agricultura biológica, quando vi as tulipas vermelhas. O seu talhão fica algures entre a vila palestiniana de Kobar e o colonato israelita de Halamish; ao lado de outros talhões que pertencem a outros palestinianos, a maioria plantados com oliveiras e vegetais da época. Os terrenos eram conspicuamente delimitados por muros baixos de pedra e com terraços em cascata, condizendo com o seu nome em vernáculo palestiniano: sanasel (سَناسِل). Tradicionalmente, estes terraços foram formados por paredes de pedra erguidas pelos locais, que assim transformaram o terreno acidentado em socalcos mais adequados para a agricultura. Os terrenos foram também firmemente vedados para prevenir incursões de animais selvagens – sobretudo javalis e colonos raivosos –, capazes de entrar e destruir tudo; ou de simplesmente atear fogo às oliveiras.

          Foi ali, no encantador planalto isolado, que encontrei as túlipas vermelhas. Simples e vívidas, bastante grandes e ainda assim delicadas, semelhantes às que podemos encontrar em floristas e ramalhetes. Foi a primeira vez que me apercebi da sua existência selvagem na flora da Palestina e o pai da minha amiga insistiu: “Estas são as túlipas de al-Jabal, tulipa montana”. Imensas espalhadas em grupos por toda a montanha, ficam orgulhosamente juntas, de pé, como se para uma performance, exibindo o seu encanto desejável e deixando-me mudo, fascinado pela irresistível beleza pura e pela maravilhosa combinação de cor, estrutura e forma. Desafiando os limites da minha conformidade com o instinto da propriedade, dei por mim a apanhar algumas destas cobiçadas túlipas vermelhas e a levá-las para casa. Muito entusiasmado com a sua qualidade, tentei, várias vezes, fotografá-las e sublinhar a sua presença selvagem e natural, o seu charme latente, ou até mesmo mostrar a sua forma de ser: desgrenhada.

          Por altura de março de 2016, fui convidado pelo Museu Palestiniano, em Birzeit, para acompanhar professores do departamento de biologia e bioquímica da Universidade de Birzeit (BZU) na sua visita semanal de observação de flora endémica e de recolha de informação. Fomos conduzidos por um jovem taxista da vila de Kobar que parecia bastante familiarizado com a área e os seus trajetos mais selvagens e recônditos. Durante mais de três meses, passámos as viagens a localizar as plantas que figuravam na nossa lista, por entre montes e vales, perguntando a aldeões por quem passávamos se conheciam os nomes de determinadas plantas e a sua utilização. Contudo, não nos foi possível realizar um estudo e um levantamento exaustivos da flora palestiniana, uma vez que as nossas visitas se limitaram aos territórios situados na Cisjordânia (excluindo os colonatos israelitas, as bases das Forças de Defesa de Israel (FDI) e outras zonas restritas). Geograficamente falando, e devido ao sistema de separação do apartheid e às circunstâncias da ocupação, a nossa área (de investigação) estava confinada entre Jenin (جِنين), a norte, e as colinas de Hebron (الخَليل), a sul; a viagem em si poderia passar por muitos postos de controlo militares e soldados e colonos desenfreados.

          Preocupado com a qualidade das imagens que tinha para fornecer ao museu, passei um tempo considerável a procurar referências visuais. Curiosa, mas não surpreendentemente, acabei por encontrar um conjunto de fotografias antigas intituladas Wild Flowers of Palestine (de cerca de 1900-1920), que se encontram na Coleção Matson, na Biblioteca do Congresso, na cidade de Washington, nos Estados Unidos da América. Cento e vinte e três fotografias, a maior parte a preto e branco, de flores silvestres e plantas que cresciam em diferentes sítios da Palestina. Entre as flores e as angiospérmicas estavam:
          cebola rosa selvagem,
          erva-dos-gatos selvagem,
          alho selvagem,
          cercefi selvagem,
          arruda selvagem,
          campo de mastruço selvagem,
          campo de mostarda rosa,
          tremoço-azul,
          arum-da-Palestina,
          estrela-de-Belém,
          papoila-síria,
          bananas,
          amendoeira em flor,
          flores de alfazema espinhosa,
          mandrágora em flor,
          lírio do campo,
          cardo-mariano,
          camomila,
          flor de milho,
          túlipas,
          orquídeas,
          clematis,
          olho-de-faisão,
          ranúnculos,
          folha-de-leão, e muitas outras. As fotografias mostravam plantas cuja escala variava entre herbáceas de pequeno tamanho até arbustos maiores e árvores, e forneciam informação elementar, mais sobre a codificação das próprias fotografias e documentos do que sobre a flora capturada nas imagens. Uma análise detalhada das justaposições, em algumas fotografias, das plantas e da paisagem circundante, por vezes da arquitetura e, noutros casos, dos seres humanos – habitantes da Palestina vestidos com os seus trajes tradicionais – levantaria questões mais profundas sobre o objetivo dessas fotografias e sobre o papel (político) da prática da fotografia no Levante e no Norte de África desde essa época até hoje. Esse tipo de fotografia, que transmitia um olhar orientado sobre o lugar e as suas gentes, captava paisagens, em particular na Palestina, e servia os projetos coloniais posteriores, que se concentravam deliberadamente em determinadas áreas vazias do território, ignorando qualquer cultura existente. Também sublinharia o posicionamento dos repositórios de imagens no que diz respeito ao mapeamento (como ferramenta de soberania) e, finalmente, a possibilidade de (mal) representar um lugar.

          A iniciativa conjunta de acompanhar os professores da Universidade de Birzeit nas suas visitas de observação foi promovida pelo Museu Palestiniano no âmbito da preparação da sua cerimónia de abertura. O museu pretendia fornecer aos seus convidados uma brochura impressa com fotografias e informações básicas sobre as plantas cultivadas (endémicas da Palestina), enquanto os convidados se passeavam pelos seus jardins. E assim foi. Apesar da abundância na coleção de factos e informações que fiquei a conhecer sobre a flora palestiniana ao longo destas visitas organizadas, dei por mim mais fascinado pela paisagem montanhosa e pela topografia multifacetada, mas apelativa, da Cisjordânia, em particular da zona oeste-norte de Ramallah e Birzeit (رام الله وبيرزيت), e das aldeias circundantes. Atravessar as trajetórias deste lugar, repleto da sua própria história e carregado com o seu silêncio tenso, fez com que se tornasse impossível não deixar os meus olhos percorrerem as memórias invisíveis e os incidentes desta terra. Uma experiência visual omniativa que a fotografia e as imagens nunca poderiam garantir por completo.

          Quem é provável que receba a informação?

          Estas viagens de observação permitiram-me voltar a olhar para as minhas fotografias, recordar como a fotografia pode ser agradável e inferir o seu potencial pedagógico – embora altamente político e seletivamente vago pela sua qualidade fantasmagórica e de vigilância1. Para além disso, através da sua presença digital generalizada e da miríade de formas de utilização e aplicação, a fotografia tem sido amplamente mal utilizada e, sobretudo, mal interpretada. Na sua contribuição para a exposição Visibility Machines: Harun Farocki & Trevor Paglen2, a investigadora Hilde Van Gelder afirma que, devido à atitude, tanto da fotografia quanto do filme, de pretenderem testemunhar sobre [um acontecimento], consideram-se ambos como uma forma de abordar a realidade não só como o resultado de um determinado processo de investigação, mas também como uma experiência de registo que é pessoal. Assim, “a fotografia e o filme”, continua, “tornam-se um instrumento privilegiado [através da sua utilização alargada e ‘democrática’ na era da tecnologia das redes sociais] que pode contribuir artisticamente para imaginar um mundo mais igualitário”3. No entanto, a fotografia deveria ser um instrumento didático que incentivasse o espectador a ver para além da informação óbvia e a olhar para o que está escondido dentro da própria imagem. Ou seja, o papel urgente da fotografia e das imagens é o de capacitar o espectador, incentivando-o a olhar a realidade quotidiana de um ângulo diferente.

          Foram estas peculiares viagens que me orientaram para as tulipas vermelhas nas montanhas da Palestina, para as torres de vigia de balões plantadas em Tall Asur (تل عاصور – o ponto mais alto da Cisjordânia), para a sua função e para as fotografias de arquivo da Coleção Matson que fazem o levantamento das flores silvestres da Palestina. Todas elas me chamaram a atenção para os atributos potencialmente fanatizantes e alegóricos da fotografia e das suas várias práticas e utilizações. A integração da fotografia e da produção de imagens tem vindo a constituir-se, de forma proeminente, como um elemento estrutural nos domínios do turismo (capitalista),
          do lazer,
          da observação,
          da espionagem,
          da vigilância,
          do domínio,
          da cidadania,
          da migração,
          dos media,
          etc., mas é informativamente restritiva. Tal facto só acentua as lacunas e o desequilíbrio da chamada cultura visual e, por conseguinte, o conceito de conhecimento-como-poder a um nível mundial (Sir Francis Bacon)4. Também me faz pensar até que ponto a fotografia, enquanto ferramenta, prática e recolha de informação pode ou não ser objetiva e não etnográfica. Questiono-me ainda sobre qual a imagem “representativa” que um museu, ou qualquer outra instituição na Palestina, está a tentar transmitir. Poderá alguma imagem da paisagem palestiniana representar verdadeiramente a Palestina?

          1 Ver Eduardo Cadava, Words of Light: Theses on the Photography of History (Princeton: Princeton University Press, 1998).
          2 Curada por Niels Van Tomme e organizada pelo Center for Art, Design and Visual Culture na Universidade de Maryland Baltimore County, em 2014. (N. E.)
          3 Hilde Van Gelder, “Reclaiming Information, Rebuilding Stories: Reinventing Fundamental Rights”, em Visibility Machines. Harun Farocki and Trevor Paglen (Baltimore: UMBC Centre for Art, 2014), 66.
          4 Ver Azamfirei L. “Knowledge is Power”, Journal of Critical Care Medicine (Universitatea de Medicina si Farmacie din Targu-Mures), 2, n.º 2 (2016): 65-66. https://doi.org/10.1515/jccm-2016-0014.

          Daniel Moraes Gio Lourenço Angelo Custódio Projeto Decorporeidades

          Projeto Decorporeidades

          Este é um projeto de pesquisa teórica sobre a produção artística de pessoas com deficiência no âmbito das artes visuais e performáticas. Idealizado por Daniel Moraes, artista e pesquisador brasileiro, em colaboração com Filipa Cordeiro, investigadora e artista portuguesa, o Projeto Decorporeidades visa gerar, reunir e divulgar conhecimentos sobre as relações entre arte e deficiência. Durante o primeiro semestre de 2023, foram realizadas entrevistas audiovisuais com os artistas ngelo Custódio, Diana Niepce, Gio Lourenço, Marta Sales, Nazareth Pacheco e Tony Weaver, no intuito de investigar suas poéticas, produções e identidades artísticas concernentes às pautas da corporeidade da deficiência (a que chamamos decorporeidade). Neste número do Coreia publicam-se as entrevistas com ngelo Custódio e Gio Lourenço, que foram transcritas e editadas pela equipa do projeto.

          Entrevista com Gio Lourenço

          Daniel Moraes (DM) — Que vivências iniciais marcaram a sua trajetória artística?

          Gio Lourenço (GL) — O meu primeiro campo artístico, sem eu o saber, foi a dança. Mas aos 14 anos decidi o que queria para a vida e fui estudar teatro e animação num curso para pessoas inadaptadas e com deficiência.

          DM — Como foi a sua relação com as pessoas na escola e o seu convívio com outras corporeidades?

          GL — Estudei na CERCICA [Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais], uma escola em que todas as pessoas têm algum tipo de deficiência, visível ou invisível. A primeira impressão que tive foi que estava numa escola de malucos. Pensei: “Se estou numa escola de malucos, então devo ser maluco.” Mas ao mesmo tempo que estava assustado, encarava aquilo com naturalidade. Lembro-me de haver quem tivesse ataques de pânico ou de raiva e de me aperceber de como é que ia lidar com cada pessoa e a sua deficiência. Cada um fazia os movimentos da sua corporalidade e isso era muito interessante, porque os corpos não estavam em competição, mas em aceitação. Fazíamos exercícios de aquecimento como meridianos, tai-chi e chi kung, e trabalhávamos a fala, o texto, o corpo. Era uma formação bem alargada. Sentia-me apoiado pelos meus colegas e ninguém falhava a nível físico — e com aqueles corpos. Estava tudo muito bem equilibrado, porque a nossa forma de trabalhar ia quase no sentido de atingir a perfeição, porque o nosso desafio era totalmente maior. Era um trabalho de grande intensidade, mas ao mesmo tempo de grande respeito. Durante o curso, a Amélia Videira, que foi minha professora, propôs que eu fosse ao casting para o musical Cabeças no Ar [2004, enc. Adriano Luz], e foi com essa peça que me estreei como ator profissional no Teatro Municipal São Luiz [Lisboa]. Na altura, não imaginava que iria marcar a minha vida.

          DM — Hoje no Brasil se discute muito a questão da educação inclusiva, onde não se segmenta uma classe para os deficientes. A gente aprende muito com a deficiência do outro. Eu só muito tarde tive acesso a pessoas com deficiência e comecei a perceber que existia uma proximidade de experiências, apesar de as deficiências serem diferentes. O que você vive, eu vivo de outras formas com a minha deficiência nas mãos, que possuem uma deformação congênita e a ausência de alguns dedos. A nossa corporeidade vai se construindo a partir dos embates conflituosos com o ambiente social que nos cerca. Quais as características ou sintomas que você reconhece no seu corpo que incorporam essas memórias significativas da sua trajetória?

          GL — Identifico-as quando falo. É comum as pessoas não entenderem o que quero dizer — logo a compreensão não é muito imediata, logo é complicada e parece que tem de haver uma tradução. Talvez seja uma fala disléxica. Digamos que há tempos normativos em que as pessoas encontram o raciocínio para dizerem o que querem dizer. O que sinto em relação à minha fala é que ela tem momentos partidos.

          DM — Acha que a forma de você lidar com a sua fala se reflete no seu modo de pensar o movimento do corpo no seu trabalho?

          GL — Sim. Quando me é custoso articular um discurso, prefiro primeiro traduzi-lo no corpo em dança. A partir daí é que nasce a fala — mas ela pode vir primeiro em dança.

          DM — Então existe uma conexão que lhe permite encontrar outros meios de o corpo se manifestar com uma certa fluidez? Talvez seja uma relação de permuta e não tanto de compensação.

          GL — Existe mesmo, o corpo toma conta e coloca-me num lugar onde eu queira caminhar enquanto artista.

          DM — O reconhecimento próprio enquanto pessoa com deficiência é algo que se vai construindo, mas muitas vezes é o outro que encontra problemas numa corporeidade que difere das características normativas. Você encara a questão da sua fala enquanto ferida ou cicatriz?

          GL — Por vezes, quem me ouve faz correções. Algumas são válidas, mas depois surgem correções atrás de correções e o outro apercebe-se de que a minha fala não é normativa. E isso pode traduzir-se até numa situação física, porque tudo leva à desconfiança a partir do teu verbo.

          DM — Você fala de correções que ferem e isso é muito marcante. A pessoa vai corrigindo, e o que é educativo acaba por se tornar uma agressão.

          GL — A certa altura questiono-me se a correção é positiva ou se começa a incomodar. E quando incomoda, já pode ferir. Há um jogo duplo, não é? Sei que a outra pessoa me corrige para me ajudar mas, se fica sempre nesse campo, ou faço uma travagem ou ela vai mais a fundo. E aí penso: “Vamos lá ver se essa pessoa realmente quer tocar na minha ferida.” Não a vejo como uma ferida frágil, levo-a comigo e aceito-a. Mas há um aspecto físico, um manejo da boca que expressa, e o olhar do outro está sempre a tentar perceber a partir desse lado físico se tens um lado intelectual muito presente ou não. Mas só vê o corpo e a fala quotidianos, não espera que sejam trabalhados como corpo artístico e em dança. Muitas vezes encaro essa cicatriz com leveza, mas há momentos em que também a encaro com melancolia e dor.

          DM — A deficiência tem uma coisa, é que ela te acompanha sempre. Eu encaro-a muito mais como cicatriz do que como uma ferida aberta. Está ali, você convive com ela, mas sabe que muita gente ainda vai colocar o dedo — não na ferida, mas na cicatriz —, e você vai ter que remontar e justificar toda uma situação cotidiana. A deficiência sempre está em coisas simples, que são minimizadas, e o fato de a gente tentar amenizar essa presença gera sofrimento. Mas não precisamos falar da deficiência apenas enquanto sofrimento, e acho que os artistas contribuem para expandir essa discussão.

          GL — Eu nunca fiz terapia da fala, aprendi ouvindo, falando, conhecendo a sonoridade do meu ouvido. Adquiri muletas no quotidiano para me defender, mas chega o momento em que elas desaparecem, porque eu apareço na minha forma de ser. Enquanto artista, estou a começar a assumir uma coisa desafiante e não sei como é que certos grupos ou contextos artísticos vão ver a deficiência, que é algo que cria estranheza ou choque, e que muitas vezes é colocado num lugar de condescendência. Mas se eu não tivesse a deficiência intelectual que tenho, não seria o criador que sou hoje. Também faz parte de mim.

          DM — Em novembro de 2022 presenciei sua performance Boca Fala Tropa no Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, e entendi que a dança ali surge como um manifesto, o que tem muito a ver com a história do kuduro.

          GL — O kuduro foi o primeiro contacto que tive com a arte, antes da representação, e é uma das coisas que me mantém ligado às minhas raízes africanas em Angola. O kuduro tem uma relação de proximidade com a deficiência, porque nos anos 1990 a maioria dos bailarinos eram mutilados de guerra e assumiam-no. É bonito ver alguém dançar assim, sem pudor, e as pessoas olharem o corpo deficiente sem preconceito. A guerra é um trauma — pode levar uma perna, pode levar um braço, pode matar —, e os corpos mutilados são exemplos nesse sentido. A maioria dos passos de kuduro, como o aleijado, o brututo, o jaracuza, o gato preto ou o tá maluco, foram criados por pessoas com deficiência e depois incorporados por cada um da sua forma. Lá está, corporeidades. O facto de haver esse tipo de inclusão no kuduro é incrível. No Boca Fala Tropa não podia deixar de estar em contacto com a guerra, porque trago um corpo com deficiência, presente, mutilado: um corpo-manifesto.

          DM — O que acaba transformando a deficiência em corpo cultural.

          GL — O título também faz alusão à boca que fala de forma agressiva. Os kuduristas têm uma forma muito específica de cantar: quando rimam, é como se estivessem a disparar balas e não houvesse respiração. É o que acontece na fala, não é? A boca dispara, coloca questões, é política. Ao ouvir o kuduro, dou atenção ao lado poético e político. Como a guerra esteve presente, os movimentos nunca vão ser suaves. Há um barulho. Contudo, Sebem, um dos fundadores do kuduro, dizia: “Como é que eu canto a felicidade no tempo da guerra?” Ele cantou a felicidade no tempo da guerra, e as pessoas que cantam o kuduro agora, no tempo da paz, cantam o tempo da guerra. É bem louco isso.

          DM — Você traz também uma questão sobre a sua cicatriz no rosto e, para mim, ficou nítido o quanto a experiência corporal atravessa o seu trabalho.

          GL — Fiz essa cicatriz em Angola, em tempo de guerra, mas ela tem várias camadas. Simboliza uma transição, a minha vinda de Angola para Portugal. Houve alturas em que nem sabia que a tinha. A Sofia Berberan, fotógrafa e produtora artística de alguns dos meus projetos, sugeriu ficcionar essa parte do meu corpo, também ela rachada, e o espetáculo começa com o corte. Dessa “Angola imaginária” também trouxe para o Boca Fala Tropa as festas que a minha mãe fazia no meu bairro, o Bairro do Fim do Mundo, em São João do Estoril. Estava tudo junto: a festa era a guerra, a guerra era a festa. A felicidade é um manifesto, não é? Uma vez perguntaram-me: “Mas porque é que trazes as festas do Fim do Mundo para as tuas peças?” E houve uma vez em que soube responder: “A festa é a minha mãe.” Nesta peça, que é um tríptico, uso a palavra “festa” como um código, mas sei que é a minha mãe. O espetáculo parte do corte, vai para a festa e por fim para a amnésia. Essa amnésia é algo que ainda não soube resolver direito — ainda estou a descobrir o que é, ao longo dos espetáculos que vou fazendo.

          Entrevista com Angelo Custódio

          Daniel Moraes (DM) — Como você percebe a relação entre a sua produção artística e a sua identidade corporal enquanto pessoa com deficiência?

          Angelo Custódio (AC) — Utilizo metodologias que vêm de uma relação pessoal com o corpo não-normativo: práticas relacionadas com a escuta, que iniciei com o ato de ouvir internamente o meu corpo e as suas necessidades na relação com o mundo, ainda em criança, e que mais tarde trabalhei no bacharelato em Canto Clássico, no conservatório de música de Amesterdão. A adaptação a um mundo que não foi pensado para nós e a capacidade de improvisação são dados muito presentes na vida de uma pessoa com deficiência, e eu incorporo isso na minha prática artística. No texto “Queering the Body: Sensation and Curiosity in Disrupting Body Norms”1, Rae Johnson afirma que, ao cultivar processos de escuta do corpo através da componente somática, a interrupção de normas corporais torna-se não só numa estratégia de resistência contra a opressão como também um processo criativo de investigação sensorial, que cada corpo estimula enquanto prática de libertação. A isto junta-se uma desestabilização das convenções, o que na minha vida e prática artística é tanto uma escolha como uma consequência. O processo de vigilância do olhar do outro e de perturbação das normas sempre aconteceu, pois quando escolho não esconder a deficiência, essa desestabilização acontece.

          DM — Poderia falar um pouco mais sobre o seu percurso acadêmico?

          AC — Depois de ter estudado canto, quis fazer a transição para as artes plásticas e encontrei o Sandberg Instituut, em Amesterdão, onde há temporary programs, mestrados que acontecem apenas uma vez. Um deles foi o Master of Voice (2016-2018), onde estudei artes plásticas em relação com a performance, a voz e questões de género e tecnologia. Foi a partir daí que construí a minha prática que, tal como a minha identidade, tem um posicionamento interseccional feminista queer e crip.

          DM — Como foi o processo de criação de QueerAble Adaptations (2019) e de QueerAble In/Stabilities (2020)?

          AC — A investigação partiu da memória física da minha experiência com o corpo em criança. Eu não nasci com uma perna amputada — a amputação veio bastante mais tarde, aos 19 anos. Quando era criança, não conseguia andar verticalmente, mas tinha um movimento bastante fluido sem prótese ou aparelho. Queria traduzir essa prática de movimento em som, usar a voz e a linguagem para desestabilizar o que é, ou pode ser, um corpo com deficiência, mas também as normas existentes e os agentes que as mantêm presentes no dia a dia. Nestas peças refiro uma cantiga cuja origem desconheço, mas que terá uma base militar: “Um, dois, esquerdo, direito, encolhe a barriga e estica o peito.” É uma forma disciplinar transmitida pela cultura oral que a minha avó costumava cantar-me, e que eu incorporava sem me aperceber do quão desconectada estava da minha experiência. A cantiga reproduz a ideia de uma postura vertical “correta” — também muito presente no canto clássico —, mas a verdade é que um corpo que respira está em constante movimento, nunca está fixo. Estas normas são feitas por nós, para nós — portanto, cabe-nos a nós entendê-las e decompô-las. QueerAble Adaptations foi uma primeira investigação sobre o movimento e o elemento prostético. Em QueerAble In/Stabilities substituí a minha prótese por uma barra metálica, que servia de interface entre o movimento do meu corpo e a materialidade do espaço. Este contacto era amplificado e manipulado eletronicamente. Mais tarde, o material foi transposto para um contexto instalativo em que o público experimentava o movimento-som no seu próprio corpo, através de um interface háptico de vibração.

          DM — Que artistas são referências para você na abordagem à corporeidade não-normativa?

          AC — Muitas vezes, a questão do corpo não-normativo na arte fica-se pela representação. Como esta perspetiva me parece insuficiente, tendo a olhar para outras abordagens artísticas e para a literatura académica. Gostava de referir Constantina Zavitsanos, artista americane queer com deficiência, que investiga novas estratégias e espaços a partir das relações da identidade queer-crip com o mundo, e a Isabel Lewis, uma artista sem deficiência, com formação em literatura e coreografia, que a partir de uma perspetiva queer cria momentos não lineares e mais vivos de relação entre o público e os performers. Em termos bibliográficos, os escritos de Robert McRuer sobre decomposição de formas predeterminadas, em ressonância com uma noção mutável de identidade, que se relacionam de outra forma com a escrita de Karen Barad, que mistura filosofia e física quântica para abordar, numa perspetiva materialista, a questão da indeterminação e da multiplicidade, fazendo um paralelo entre natureza e sujeito.

          DM — No Manifesto Contrassexual (2000), Paul B. Preciado entende a queeridade de uma forma próxima à deficiência, o que me desconcertou: “Espera aí! Porque é que ele se considera deficiente? Porque é que a deficiência está tão próxima da experiência queer?”

          AC — Preciado fala muito sobre monstruosidade, e os mundos da identidade queer e da deficiência provocam um sentimento de repulsa à comunidade normativa. Mas talvez uma pessoa com deficiência não sinta sempre a necessidade de desestabilizar as normas corporais — embora já o faça, apenas por existir.

          DM — Como você acha que as instituições artísticas lidam com a corporeidade da deficiência?

          AC — Varia conforme as instituições e os países, mas acho que a aceitação da arte com conteúdo relacionado com a deficiência tem sido o último dos movimentos de libertação no campo cultural. Os movimentos de descolonização, de identidade de género ou de orientação sexual abriram as portas para que isso acontecesse e se repensasse o que é que o conceito de corpo não-normativo pode incluir. Mel Baggs, blogger não-binário que escreveu bastante sobre autistmo e deficiência, tem um texto muito interessante onde refere que há uma hierarquia vertical da opressão que, na maioria das vezes, tem por base o capacitismo2. Mas falar de deficiência é conflituoso, porque as pessoas não querem abordar situações debilitantes, nem pensar no facto de que a deficiência não acontece só à nascença, nem lidar com uma estética muito diferente da que é promovida pelo capitalismo neoliberal. Na Holanda, onde vivo, há cada vez mais interesse nestas temáticas, mas o ponto de entrada geralmente não é o corpo não-normativo, mas sim a acessibilidade da cultura.

          DM — O que é problemático, não é? “Acessibilidade” é um termo que amplia muito o discurso, tal como “multiculturalismo”. Ao usar estes termos, se perdem aspectos singulares. “Acessibilidade” ou “inclusão” são palavras necessárias para penetrar nas instituições, mas quando a gente desenvolve o próprio trabalho não precisa falar delas. No seu trabalho, você fala de muitas outras coisas e há atravessamentos que não o tornam necessariamente “acessível”. Esse é um ponto ainda problemático nas pautas de curadoria sobre a não-normatividade do corpo e talvez seja o nosso maior desafio hoje: sair das garras da acessibilidade e ocupar outros espaços.

          AC — Exatamente.

          DM — Como foi para si o processo de concepção da performance O Permuto que criamos juntos em 2021 a partir de trocas e interlocuções de experiências pessoais com a deficiência física?

          AC — Quando começámos a conceber o projeto, ainda não nos conhecíamos. Foi um blind date, coisa que não costumo fazer em contexto de trabalho. Por isso, partimos da partilha das nossas experiências com a deficiência, que se traduziu no título: O Permuto. Reconhecemos uma certa similaridade de experiências na relação com as estruturas familiares, académicas e laborais, mas também diferenças. Depois trabalhámos o modo como o desporto e o canto clássico disciplinaram e treinaram os nossos corpos e, dessa forma, as nossas mentes, e investigámos a interseção destas disciplinas com o corpo não-normativo, olhando para a falha, a falta, o défice e o desvio.

          DM — De fato, o trabalho nasceu da aproximação entre nós e do que desconstruímos a partir dela. O processo foi conflituoso, mas não de uma forma violenta: foi um conflito em que houve suavidade. Nesse encontro, a minha queeridade se tornou mais clara. Na minha identidade, a deficiência e a queeridade somam forças, uma vez que o facto de ser gay e deficiente tem um significado diferente do que teria uma experiência heteronormativa da deficiência.

          AC — O facto de teres uma deficiência e te identificares como queer foi o ponto de partida para eu aceitar o convite. Adoraria trabalhar mais vezes com pessoas com deficiência, pois nesta partilha há uma sobreposição de experiências e um entendimento — o que não significa que tenhamos de concordar. O meu percurso artístico deu-se em lugares onde não convivia com pessoas com deficiência, por isso é raro ter momentos de troca com alguém da comunidade que também entenda os processos artísticos. Isso é extremamente importante e espero poder repetir este tipo de experiência.

          Rae Johnson, “Queering the Body: Sensation and Curiosity in Disrupting Body Norms”, em Embodied Philosophy, URL: https://www.embodiedphilosophy.com/queering-querying-the-body/.

          Teresa Fabião Diálogos entre arte e vírus

          Há algum tempo tenho atuado em torno de uma dimensão social da dança. Em 2011, recebi o diagnóstico de hiv +, o que aprofundou uma jornada de cura emocional e criou uma enorme reorientação pessoal e profissional. Viver com o HIV trouxe-me um novo corpo, uma nova identidade social e condição de vida. Obrigou-me a encontrar novos sentidos e a refazer afetos. Ao longo destes doze anos, a dança, por sua vez, transformou a minha relação com um corpo e uma identidade fraturados pelo hiv. Foi neste contexto que surgiram dois projetos de vida – o espetáculo UNA (2021/ trabalho em processo) e o projeto comunitário IMUNE (2023).

          Desde 2016, está provado cientificamente que as pessoas que vivem em tratamento mantêm uma carga viral indetectável e, portanto, não podem transmitir o vírus. Vivemos numa época em que o HIV não é tanto um vírus físico, mas um vírus social. Entendê-lo assim permite ir à “raiz do problema”, concluindo que só a proximidade e o diálogo ajudam a dissolver o preconceito e a transformá-lo em empatia e corresponsabilidade.

          Estamos na era Indetectável=Intransmissível (I=I); porém, essa informação não é suficientemente divulgada. I=I quer dizer que as pessoas hiv+ se tornaram protagonistas no controlo da epidemia: uma pessoa que sabe o seu diagnóstico, que está a ser medicada mantendo o vírus intransmissível e que faz rastreios gerais de seis em seis meses, é um corpo a menos no cenário “roleta russa”. Ou seja, nos últimos anos, a realidade inverteu-se.

          A proposta de UNA e IMUNE é também inverter a narrativa sobre o(s) vírus, vendo-o(s) menos como inimigo(se mais como experiência(s)-portal, catalisadora(s) de processos de transformação individuais e coletivos. Estes projetos surgem com essa intenção: a de partilhar uma perspetiva sobre o que é viver com hiv atualmente, em discurso direto e multifocal.

          HIV: DE LIMITAÇÃO A EXPANSÃO

          Sou a primeira mulher em Portugal a assumir o hiv no seu discurso artístico. Trazer este facto, ao invés de uma suposta reclamação de mérito, evidencia o nível de preconceito ainda vigente no país. Nesse sentido, é também pioneiro o Coletivo VIRAL, cofundado por mim, Paolo Gorgoni aka Paula Lovely e Luca Modesti aka Er Baghetta, em 2020, que propõe uma ressignificação dos imaginários sobre hiv/sida através das artes performativas, celebrando a visibilidade e reivindicando a centralidade das pessoas que vivem com hiv. 

          Entendo o processo criativo como um modo de conhecimento e criação de sentido sobre o mundo. Foi precisamente por via de um processo criativo que não só revisitei as minhas feridas como explorei os efeitos advindos deste diagnóstico e as diferentes capacidades que o vírus foi acordando em mim.

          Em 2021 criei UNA, uma pesquisa sobre o hiv baseada em questões biográficas, biomédicas e sociopolíticas. UNA veio refletir sobre as transformações no corpo e na identidade causadas pela infeção, convidando a olhar para o vírus – e para a vida – a partir do lugar da reinvenção. A ideia expandiu-se através de entrevistas a outros corpos positivos realizadas em diferentes países (Brasil, Estados Unidos e Espanha), que abordaram temas complexos como a discriminação, a opressão e a resiliência dos corpos em diálogo com estas questões: como dar corpo ao invisível? Como falar do tabu? Como (de)mover e desconstruir preconceitos?…  

          A partir da relação indissociável entre arte e vida, interessou-me pesquisar e tensionar sentidos: o vírus do ponto de vista médico, o imaginário da saúde e da biologia, o vírus do ponto de vista social (estigma, relação entre público e privado, rejeição, cuidado, entre outros). Este aspeto relacional fez-me procurar uma dramaturgia com base em metáforas e estados corporais associados à convivência com o vírus. Como é que o facto de eu viver com hiv interfere na relação com o outro, como é que isso interfere comigo, e, por consequência, como é que isto se expandiu a partir do momento em que o assumi publicamente?… Interessou-me igualmente mergulhar no modus operandi do vírus, relacionando-me com ele como se de uma entidade se tratasse; ou até mesmo ver o vírus na sua qualidade de “falha no sistema”/colisão/disrupção… Tudo isso serviu como inspiração para UNA que, assim como o vírus, é mutante e um trabalho em processo.

          Por perceber que é um tema que tende a fazer emergir muitas emoções e tensões, faço conversas com o público após todas as apresentações. Uma vez, uma pessoa da produção de um festival onde atuei procurou-me no camarim, lavada em lágrimas, para partilhar que o seu irmão tinha falecido por complicações associadas a um quadro de sida. O facto de ter assistido à peça fê-la entrar em contacto com uma série de emoções não processadas, como os anos que passou a ir buscar medicação para o irmão ou os últimos meses em que este desistiu de tomar a medicação e acabou por morrer. Situações deste género evidenciam o quanto esta pandemia que dura há quarenta anos continua envolta em silêncio e o quanto trabalhos que abordam esta temática podem ser uma forma de atravessar a dor em conjunto, e não mais de forma isolada e silenciada.

           Foto de Giulia Ferrari no ato fundador do Coletivo VIRAL, a 1 de dezembro de 2020 no Terreiro do Paço (Lisboa).

          Como evolução desta peça, criei e dirijo, desde o início de 2023, o IMUNE, projeto comunitário sobre o vírus como motor de transformação social, que conta com o GAT/Grupo de Ativistas em Tratamentos como entidade promotora, e que irá desenvolver-se na cidade do Porto até 2025.

          Combinando criação artística, arte-educação e artivismo, coloca pessoas hiv+ e hiv- em diálogo, investigando o potencial da dança e das artes expressivas como motor de desconstrução do estigma e de ressignificação desta condição de saúde. O projeto surge igualmente para gerar mais qualidade de vida e incentivar diferentes níveis de visibilidade hiv+ em Portugal. Dentre as suas atividades fazem parte: um grupo de interpares artístico-terapêutico hiv+; um programa de formação com artistas e artivistas; um laboratório de criação & espetáculo comunitário; intervenções urbanas como flashmobs e ações nas salas de espera dos serviços de Infectologia; palestras em escolas; a realização de um documentário que contribua para uma maior representatividade e um estudo de impacto pela Faculdade de Motricidade Humana (Universidade de Lisboa).

          O IMUNE quer não só trazer um tema pouco explorado no panorama performativo nacional como enfatizar a importância de ser discutido em discurso direto — o slogan “Nada sobre nós, sem nós”, resume essa intenção. Paralelamente, o IMUNE propõe a criação de algo até então inexistente: uma comunidade hiv+ em Portugal. Aliás, quer criar uma comunidade que inclua também corpos aliades, permitindo que quem não pode assumir o hiv possa também participar e envolver-se. Quando menciono a escassez de coletivos, hoje em dia, na segunda maior cidade do país, Porto, nem a Abraço (maior ONG dentro da causa) tem um grupo ativo. Obviamente, nem todas as pessoas hiv+ vão querer buscar outros pares, porém, é importante que o possam fazer. 

           

          Compreender o hiv num lato sensu tem-nos permitido conectar com outros vírus sociais. No IMUNE, a adoção de uma lente interseccional, atenta à opressão e ao privilégio das diversas pertenças sociais, convida a perspetivar o hiv como uma causa encruzilhada, destacando a sua transversalidade com outras causas não-normativas. O facto de ser uma diferença invisível e de não haver propriamente um perfil associado ao hiv, leva a que, ao desmantelar o preconceito em torno deste vírus, possamos contribuir para desconstruir outros vírus sociais como o sexismo, a homofobia, o racismo, o classismo, o capacitismo e outros tipos de preconceito. 

           

          HIV: DO INDIVIDUAL AO COLETIVO

          A dimensão que tomou a pandemia de Covid-19 deixou expostas as nossas fragilidades e privilégios. Atravessámos um trauma coletivo que não está a ser tratado dessa forma. Neste momento, a arte e, principalmente, as artes do corpo, pode(m) ser um caminho para refletir e dar sentido aos desafios, ao luto, à reinvenção que está em curso. Urge repensar o que entendemos por imunidade; urge não esquecer a “comunidade enquanto imunidade”1. Urge ver a presença do vírus nas nossas vidas menos como um inimigo e mais como um mensageiro ou pedagogo2. Estes são alguns dos diálogos que UNA e IMUNE têm fomentado, querendo olhar para as ressonâncias entre ambas as pandemias — de Covid-19 e hiv —, no sentido de trazer à luz a experiência de vida daqueles que já se confrontaram com a sua própria mortalidade e estão há muito a viver face à incerteza. 

          A relação com um vírus acorda as nossas respostas traumáticas. Se o mundo terá que seguir a adaptar-se a novos vírus, é essencial compreender que eles não estão contra nós, eles fazem parte de nós. Isso é o que nos move nestas pesquisas: ver o vírus de uma forma expandida, natural, metafórica, inclusive como uma linguagem para entender as relações humanas, a opressão, a diferença, a marginalização. Para isso, precisamos de mais aliades.      

           

          NOTA: A sigla hiv é utilizada em letras minúsculas propositadamente, com a intenção simbólica de suavizar o peso associado ao vírus. 

          1 Paul B. Preciado, “Aprendendo com o Vírus”, El País, 2021, acedido a 14/08/2022, https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html.
          2 Boaventura Sousa Santos, O Futuro Começa Agora: Da Pandemia à Utopia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021

          Luísa Saraiva Saúde mental nas artes performativas

          O ambiente e as condições de trabalho nas artes do espetáculo criam um conjunto específico de desafios no desenvolvimento de identidades profissionais, na criação de um sentido de carreira e na gestão do equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. Na comunidade da dança – na qual a maioria dos artistas trabalha como freelancer – o padrão é o emprego intermitente e precário. Esta precariedade traduz-se não só em períodos de trabalho instáveis, mas também está associada a stress financeiro; elevados níveis de competitividade; pressão para estar constantemente disponível e ser flexível com o seu tempo; dificuldade em definir metas profissionais e medidas de sucesso; falta de um sentido de estabilidade, muitas vezes ligado a um estilo de vida transnacional.

           

          A investigação académica mostra sistematicamente que instabilidade, insegurança e más condições de trabalho têm um impacto negativo significativo na saúde mental1 [2]. Nas artes do espetáculo, as relações contratuais são fluidas e caracterizadas por uma falta de regulamentação, proteção social e desequilíbrios de poder. Ao mesmo tempo, nos contextos laborais, os níveis de autoexigência, desempenho, responsabilidade e pressão são elevados e constantes. Nas últimas décadas, a escassa investigação psicológica disponível2[2] mostra que os profissionais da dança são uma população especialmente vulnerável no que diz respeito à saúde mental, com uma maior prevalência de depressão, ansiedade e distúrbios alimentares do que a população em geral. É, assim, necessário abordar as consequências imediatas e a longo prazo da cultura de trabalho na saúde mental e no bem-estar desta comunidade.

           

          O processo de individuação e diferenciação da identidade pessoal e profissional é particularmente complexo na área da dança, uma vez que a condição de saúde física (como lesões ou doenças) e decisões privadas (como a parentalidade, só para citar a mais óbvia) têm um impacto direto e imediato nas possibilidades de trabalho. A maior parte dos profissionais da dança iniciou a sua formação em idades precoces, o que contribui para uma interligação, ou utilizando jargão da psicologia, para um enredar da identidade pessoal e do estilo de vida com as decisões profissionais. Estes aspetos permeiam todas as dimensões do desenvolvimento da carreira e das relações de poder, criando uma teia de vulnerabilidades com diferentes pontos de intersecção.

           

          No que diz respeito à saúde mental existem poucos recursos estruturais, quer no contexto educativo quer no profissional, para dar resposta às exigências e desafios do sector. A responsabilidade recai sobre cada um, individualmente, para procurar ajuda de forma independente, o que muitas vezes acontece já em situação de crise ou psicopatologia instalada. Está implícita a convicção de que cabe a cada pessoa assegurar a sua regulação emocional, encontrar soluções individuais para problemas sistémicos e definir limites e fronteiras. Isto embora o mal-estar e o sofrimento psicológico surjam associados ou até como consequência direta das dificuldades em navegar no mundo do trabalho e da sua relação, conflito ou interferência com outros contextos de vida. Este tipo de lógica remediativa pode reforçar desigualdades e favorecer um pensamento empresarial de auto-otimização. O que significa, ainda, que aqueles que não dispõem de redes de apoio e/ou que provêm de meios menos privilegiados são deixados em posições ainda mais vulneráveis. Isto é particularmente verdade para as comunidades LGBTQIA+, com deficiência e etnicamente diversas, que têm de lidar com múltiplas camadas de stress e discriminação.

           

          A pandemia de Covid-19 funcionou como uma lupa para os problemas de saúde mental mais prementes no sector. A dramática interrupção do trabalho durante a pandemia exacerbou os sintomas e aumentou a consciência da necessidade de um apoio mais consistente. Embora os efeitos a curto prazo das medidas de confinamento tenham sido amplamente debatidos (ou seja, stress, solidão, ansiedade, depressão), sabemos muito pouco sobre a forma como a experiência da perda, as pressões e os desafios dos dois anos de pandemia e o aparente regresso a uma vida profissional “normal” se repercutem na perceção atual do bem-estar. 

           

          É urgente criar espaços de discussão adaptados às necessidades da comunidade. Paralelamente às valiosas e necessárias iniciativas de cuidado e bem-estar entre pares, é importante facilitar o acesso a apoio psicológico especializado para a comunidade da dança em todo o território nacional. Este apoio deverá dar resposta às necessidades do sector através da intervenção precoce e contínua na gestão das exigências do trabalho freelance, do desempenho/performance/audição/digressão e da conciliação de diferentes papéis profissionais; nas implicações profissionais e psicológicas associada a situações de lesão e doença; e na promoção do desenvolvimento de competências interpessoais, sócio-emocionais e de estratégias de resiliência. Neste momento existe apenas uma estrutura em Portugal, a Fundação GDA, que proporciona o acesso comparticipado a psicoterapia para a comunidade artística. No entanto, nessa lista de profissionais consta uma única psicoterapeuta associada. Um primeiro e importante passo seria alargar ao país inteiro a lista de profissionais associados.

           

          Antes de iniciar a minha formação profissional em dança estudei psicologia e trabalhei como investigadora associada do Centro de Psicologia da Universidade do Porto. Durante todo o período da licenciatura em dança na Universidade de Artes Folkwang fui representante estudantil e trabalhei em conjunto com os serviços para a igualdade de oportunidades e de género da universidade. Enquanto estudante fiquei surpreendida, e até chocada, com a resistência e a falta de preparação do ensino artístico para integrar as chamadas competências transversais na formação de bailarinas e bailarinos, reconhecendo que as competências técnicas são apenas uma parte da formação e não são suficientes para poder navegar os desafios de uma carreira artística. Deparei-me com as dificuldades em encontrar ajuda especializada, atempada e regular para os pedidos de apoio que me chegavam (por exemplo, falta de motivação, sentimentos de incerteza e desesperança em relação ao futuro, dificuldades na gestão de stress, situações de abuso e discriminação). Esta perceção tornou-se ainda mais clara durante a pandemia, em que recebi inúmeros pedidos de ajuda e era notória a discrepância entre as necessidades e as possibilidades de apoio disponíveis. Por esta razão, em 2020 comecei a pesquisar sobre a investigação psicológica existente no âmbito da saúde mental nas artes performativas e tenho desenvolvido workshops e materiais de sensibilização com o objetivo de aumentar a literacia do sector e defender um melhor acesso ao apoio à saúde mental. 

           

          Em maio de 2023, no âmbito do programa Pista 3, o Alkantara – em colaboração com a Loja Lisboa Cultura (serviço da Câmara Municipal de Lisboa) – promoveu uma edição do Fórum Cultura sobre a Saúde Mental nas Artes Performativas, no qual estive responsável pela moderação. No fórum, com um formato de discussão e debate aberto, procurou-se reunir profissionais de diferentes áreas que trabalham com/ou investigam sobre questões de saúde mental e sobre a relação entre condições laborais e saúde mental. Foram abordadas as questões mais prementes no sector das artes performativas e a sua articulação com a sociedade civil e os desafios associados ao desempenho de funções de organização, direção e gestão em estruturas artísticas, contrapondo perspetivas e práticas, identificando as principais necessidades e recomendações de medidas a adotar e a implementar. É urgente reconhecer a necessidade de nos envolvermos em políticas de promoção de condições dignas de trabalho e da saúde mental que incluam não só artistas, mas também produtores, pessoal dos teatros, programadores, decisores políticos e de organismos de financiamento. O objetivo é garantir a criação de espaços seguros e de uma cultura de apoio, definir e implementar boas práticas de trabalho, e redirecionar recursos das instituições para projetos continuados de apoio à saúde mental. Todos os conteúdos abordados durante o fórum foram compilados num relatório que está disponível e pode ser descarregado no website do Alkantara. 

           

          1 Ver 1] Chirban, Sharon A, e Miriam R. Rowan (2017), “Performance Psychology in Ballet and Modern Dance”, em Psychology in Professional Sports and the Performing Arts: Challenges and Strategies, ed. Robert J. Schinke e Dieter Hackfort. Routledge: Nova Iorque.
          2 Clemens, Lucie (2022), Equity Global Scoping Review of Factors Related to Poor Mental Health and Wellbeing within the Performing Arts Sectors. Equity Mental Health Report. https://www.equity.org.uk/media/6188/mental-health-report5.pdf.
          3 PISTA é um programa modular de formação e de fóruns, com vista ao desenvolvimento e atualização de competências profissionais, à partilha de boas práticas e à discussão pública de temas da atualidade cultural.

          João Bento Matéria inédita

          Em 2015/2016, durante a criação da peça O Limpo e o Sujo, de Vera Mantero, fiz uma série de desenhos que são um léxico de movimentos contidos numa única frase de dança que percorria toda a peça. Estes desenhos serviram para analisar ao pormenor estes movimentos e também registar os seus nomes particulares, estudando assim sonoridades próprias para cada um deles. Os desenhos feitos a partir dos intérpretes da peça em movimento (Vera Mantero, Elizabete Francisca, Volmir Cordeiro) foram esboçados de forma rápida ao longo de vários dias no estúdio do Rumo do Fumo, constituindo assim uma longa linha de tempo. A música foi também, e sobretudo, um corpo presente e participativo na construção da coreografia dos três intérpretes, como um elemento aditivo na criação da própria peça, dialogante e iniciador de gestos e movimentos. Às premissas de limpeza interior e ecologia do eu – físico e espiritual -, procurei captar sons que refletissem sobre noções de ritual individual e coletivo.

          Vicente Escudero Mi baile (A Minha Dança)

          Vicente Escudero (1888-1980) protagonizou uma viragem no flamenco ao dar um caráter moderno a uma arte considerada tradicional, ao mesmo tempo que buscando as suas raízes na tradição cigana. A sua obra Mi baile, publicada em 1947, é um dos raros esforços teóricos no meio, a par do seu “decálogo” onde enumera dez mandamentos para o bailarino masculino: “1. Dançar como um homem; 2. Sobriedade; 3. Virar os pulsos de dentro para fora com os dedos juntos; 4. Ancas quietas; 5. Dançar de forma clara e sem vaidade; 6. Harmonia de pés, braços e cabeça; 7. Estética e plástica sem mistificações; 8. Estilo e acento; 9. Dançar com indumentária tradicional; 10. Manter uma série de sons no coração, sem chapas nos sapatos, nem outros acessórios.” A masculinidade do manifesto, testemunha do seu tempo, contrastava com a sua forma de apresentação, num poster cor-de-rosa, escrito à mão delicada e ornamentadamente pelo próprio. 

          Escudero foi também um respeitado pintor. Durante três anos viveu em Paris onde se cruzou com os protagonistas dos movimentos cubista, surrealista e dadaísta, cuja influência ficou espelhada numa performance em que Escudero dançou, em vez da guitarra típica ao vivo, ao som difundido de “dois dínamos de diferentes intensidades”. Mas a sua referência foi La Argentina, a bailaora com quem teve uma relação de amizade e forte discussão artística, e que se espelha num dos textos aqui publicados

          Vicente Escudero veio várias vezes a Portugal. A primeira visita foi nos anos 1920, quando foi nomeado de “zapateador inimitável”; voltou em 1943 com a Companhia de Arte Coreográfica Espanhola, ao lado de Carmina García, com quem protagonizou Amor brujo no Teatro Nacional São Carlos. Em 1951 regressa, por último, ao Teatro Tivoli, para dançar entre sessões de cinema.

           

          Mi baile (1947) A Minha Dança 

          Vicente Escudero 

           

          Antonia Mercé “Argentina”

          É tal a admiração que sempre senti pela arte desta genial artista que quis dedicar-lhe não apenas este imprescindível capítulo escrevendo sobre a dança espanhola, mas sim todo o livro, como sincera homenagem à sua memória.

          Antonia Mercé foi a criadora de uma escola de dança tão própria, tão genuína, que dela partiram e a ela foram parar todos quantos pretenderam ou tentaram dar universalidade à dança espanhola.

          A arte de “Argentina” inspirou-se em todas as modalidades pitorescas do bailado espanhol dos finais do século passado, que entrançaram os passos de Los panaderos de la flamenca, El olé de la Curra, La maja y el torero1… e que tamborilaram no “riá, riá, pitá”2 das sevilhanas. Mas ela soube elevar o nível destas manifestações artísticas populares, e dá-lo a entender e a admirar a todos os públicos do mundo.

          A sua figura alcançou proporções tão gigantescas que a sua fama só teve como rival a de Ana Pawlova, a outra eminente dançarina da altura.

          Foram muitas as polémicas a que esta rivalidade deu azo, e eu lembro-me de ter tomado parte em não poucas delas.

          Um dia alguém disse:

          – Ana Pawlova é, sem dúvida, a bailarina do século.

          – Y “Argentina” é a de todos os séculos – repliquei eu.

          – Ana Pawlova – continuei –, quando dança, dá a impressão de que não pousa sobre a impureza do palco. É como um pássaro no ar, como uma estátua grega num pedestal invisível. Antonia Mercé também não toca a terra, nem abandona o voo, mas sabe tirar, milagrosamente, por um lado, torrentes de sons rítmicos e, por outro, capturar no ar vibrações maravilhosas. Por isso, a arte da minha compatriota não tem comparação.

          Na realidade, Pawlova e “Argentina” foram dois temperamentos, duas inquietudes de uma mesma arte, e representam dois pontos de partida para o porvir da dança.

          Para o triunfo definitivo de Antonia Mercé contribuíram de forma eficaz a sua cultura artística e uma infinita aspiração de depuração estética, ambas necessárias para não se cair no falso, algo infelizmente tão frequente em certos meios da nossa atual coreografia.

          É sabido, por todos quantos seguiam o movimento artístico da dança espanhola, que “Argentina” e eu não nos entendíamos do ponto de vista artístico, e que andávamos sempre “como o cão e o gato”. Mas no fundo sempre estivemos de acordo, mesmo apesar de as nossas tendências serem completamente opostas. Ela era muito disciplinada e estudiosa; trabalhava as 24 horas do dia se tal fosse necessário. Eu, indisciplinado e boémio, só estudava de vez em quando.

          Para as minhas danças inspirava-me em Picasso; ela não passava de Zuloaga3. Eu nunca fui grande amigo da música, que só utilizava seguia em casos imprescindíveis; ela admirava-a e seguia-a fielmente, ensaiando até que música e dança estivessem completamente sintonizadas; e só então apresentava a dança no palco, com aquele seu maravilhoso estilo pessoal.

          Foi assim que a sua genialidade alcançou o grau máximo de expressão com os “palillos”4, o que lhe valeu o título de “rainha das castanholas”. Um trono que ficou vago desde a sua morte. Foi realmente um caso único na história da dança espanhola.

          Certo dia perguntei-lhe:

          – Ouça, Antonia: como é que os utiliza para tirar sons tão diversos a esses dois “pedacitos” de madeira? A senhora parece um prestidigitador que está constantemente a apanhar no ar diferentes castanholas, sem que ninguém saiba de onde as tira.

          – Não vale a pena falar disso – respondeu-me –; isto não se aprende, vem de longe… 

          E, sorrindo, alongou uma das suas mãos e produziu um pianíssimo que parecia acabado de chegar de não se sabia onde.

          Pensando nesta prodigiosa habilidade, eu não fazia outra coisa que não fosse dar voltas à minha cabeça, olhando as minhas castanholas por todos os lados para ver se eram diferentes das dela ou se tinham algum defeito.

          Um dia chegou-me às mãos um folheto de publicidade da dita artista que tratava desta questão:

           

          Quando era pequena (talvez 5 anos) ouvia constantemente em casa dos meus pais, que davam aulas de dança, o ruído pesado e monótono de grandes castanholas.

          Este ruído antimusical irritava-me de tal forma que me refugiava na última divisão da casa para não ouvir o seu eco. Aí exercitava os meus dedos de menina em cima de um par de castanholas, muito pequenitas, que o meu pai me tinha oferecido, esforçando-me inconscientemente – com aquela idade não se raciocina – para retirar do meu instrumento sons que não me ferissem os ouvidos, como os outros.

          Esses foram os meus inícios na arte que pratico, e posso muito bem dizer que o gosto que ganhei pelas minhas castanholas veio do desgosto que me inspiravam as de todos os outros.

          Pouco a pouco, o que não era mais do que instinto transformou-se em vontade própria, e pus-me a estudar minuciosamente a maneira de obter com a ponta dos meus dedos sonoridades cada vez mais pronunciadas. Procurava a razão do porquê de as castanholas, até então, em vez de serem dóceis aos dedos, lhes oporem constantemente o obstáculo da sua pesada uniformidade. Seria por causa dos cordões e seria necessário modificar a sua espessura? Conviria aumentar ou diminuir o diâmetro dos furos por onde passam esses cordões? Deveria acentuar-se, mais ou menos, a concavidade da própria castanhola? No fim, foi este problema que atraiu a minha atenção.

          Então encomendei ao fabricante toda uma gama de castanholas com concavidades distintas. Este ficou furioso, dizendo que lhe estavam a tentar ensinar o seu ofício. Respondi-lhe que da minha parte podia vender ao mundo inteiro as castanholas que costumava fabricar, mas que eu, para mim, precisava de outras. E foi desta forma que consegui, por fim, os meus propósitos.

           

          Depois de ler este folheto fui, pela minha vez, a um fabricante de castanholas, que também a contragosto acabou por me dar o que lhe pedia.

          Fechei-me no meu quarto e comecei as minhas experiências. Mas apesar de passar o dia todo naquilo, sacava sempre o mesmo som.

          Não me serviu de nada nem mudar a grossura do cordão, nem o diâmetro dos furos, nem a concavidade das castanholas. Apesar da minha habilidade e das sucessivas alterações, o resultado continuava a ser o mesmo.

          Eu acho que o segredo estava mesmo nela e levou-o para o céu para sempre visto que, até hoje, ninguém conseguiu dar com ele, nem o vai conseguir. Porque embora ela tenha sido a criadora desta escola que hoje todos cultivam, falta-lhes o génio da professora.

          Da minha parte,  ao ver que nunca conseguiria nada nesse sentido, mudei de tática. Por intermédio de um amigo consegui que numa fundição me fizessem umas castanholas em ferro, outras em bronze e outras em alumínio. Nestas últimas é que todos os fatores tinham influência: a concavidade, o furo, o peso. Tivemos que fazer uma infinidade de testes para no final, à força de paciência e de dinheiro, conseguirmos umas que soassem bem.

          Estreei-as num concerto na Sala Pleyel, em Paris, e não quero referir o que deram que falar em todos os meios artísticos parisienses. Em todos os sítios aconteceu o mesmo. Aqui em Espanha muitas pessoas lembram-se delas e perguntam-me porque é que já não as toco. A única razão é que as perdi juntamente com um baú, por causa destas guerras e por causa da extraordinária dificuldade em conseguir fazer outras.

          A nossa tão chorada artista, quando soube que as usava, dizia a toda a gente que só um louco poderia ter tido uma ideia daquelas. Isto sem saber que tinha sido ela a causadora da minha doença.

          No entanto, quando nos encontrávamos ou me chamava para colaborarmos juntos nalgum bailado, nunca chegou a falar-me das minhas castanholas metálicas.

          Antonia Mercé foi, na sua vida, uma pessoa encantadora, possuía uma simpatia que “assustava” e a sua bondade só era comparável à sua arte. Mas no trabalho tinha um temperamento forte e severo.

          Lembro-me de que enquanto ensaiávamos uma sequência do Amor brujo5 no grande teatro de Bordéus, ao ver-me sentado, descansando num cantinho, me disse com o sotaque duro que a caracterizava:

          – Vicente, o que estás a fazer aí? Ala, vamos ensaiar! 

          – Pois agora não ensaio. Ah! Além disso, eu não preciso de ensaiar – respondi.

          Este incidente criou uma atmosfera de nervosismo e o ensaio rapidamente acabou. 

          Mais tarde contaram-me que ela tinha comentado: “Este Vicente é um demónio; conseguiu pôr-me nervosa; ensaia sempre de qualquer maneira, e a verdade é que quando vai para o palco cai sempre de pé como os gatos.”

          No dia seguinte, quando nos encontrámos, continuámos a ensaiar como se não se tivesse passado nada.

          Noutra ocasião, em Paris, o seu empresário, Meckel6, foi procurar-me para pedir a minha colaboração para montar o Amor brujo com os Ballets Internacionais7, em que cada país com algum significado no mundo coreográfico apresentava o seu bailado.

          Como já tinha sabido que, além do bailado, Antonia também ia apresentar uma secção de danças a solo, respondi-lhe que aceitaria sempre com muito gosto quando eu próprio também pudesse dançar a solo.

          – Estou farto – disse-lhe – de não fazer mais do que tontices de mudo nesse bailado, limitando-me a andar de um lado para o outro pelo palco, nessa pantomima tão comprida.

          Ficou Meckel de lhe transmitir a minha resposta e pouco depois de ele se ter ido embora apareceu ela pessoalmente no meu estúdio “Gallinero bohemio”.8

          – O que é que se passou com o Meckel? – perguntou ela sem me cumprimentar.

          – Nada. Ele não lhe disse?

          – Sim, e por isso tenho de te dizer que andar por um palco é mais difícil do que dançar. A mim agradar-me-ia, mas são os organizadores que querem que mais ninguém dance na parte das danças.

          – Então, os organizadores que dancem o meu papel.

          Sem me responder, saiu como um relâmpago, batendo com a porta com tanta força que partiu os vidros da parte superior desta. 

          A partir daí pensei muitas vezes em dançar um dia com umas castanholas de vidro e parti-las num golpe final (ainda que me cortasse), reconstituindo na sua memória aqueles cacos de vidro que nos mantiveram separados durante tanto tempo. 

          Porque aquele incidente artístico deixou-nos afastados durante quatro anos, nos quais não voltou a dirigir-me a palavra, apesar de eu ter procurado o momento uma infinidade de vezes, quando coincidíamos em concertos e receções.

          Foi pouco antes da sua morte que nos reconciliámos. Coppicus9, o empresário nova-iorquino, quis montar um “ballet espanhol” e contratou a “Argentina” na condição de que eu também dançasse.

          Quando soube que ela tinha aceitado fiquei muito mais contente pela alteração da sua atitude do que pelo contrato. Fui imediatamente cumprimentá-la e de repente estávamos outra vez muito amigos, como se nada se tivesse passado.

          Isto aconteceu em Nova Iorque em março de 1936. Voltámos para Espanha, onde nos apresentámos com o Amor brujo no Teatro Español (Madrid) e depois fomos a Paris montá-lo no Teatro da Ópera.

          Ao terminarmos a nossa atuação, ela ficou em França e eu voltei a Espanha para vir buscar alguns artistas para os bailados, e nunca mais voltei a vê-la.

          No início de agosto do mesmo ano, ao passar de novo a fronteira para me juntar a ela, o comandante do posto francês deu-me a terrível notícia.

          Foi uma das emoções mais fortes que sofri na minha vida. A minha disposição já estava influenciada pela tragédia que Espanha atravessava10 e o choque foi tremendo. Com Antonia Mercé, a excelente amiga, perdia ao mesmo tempo o meu maior estímulo artístico.

          Os meus olhos enevoaram-se e se não me tivesse lançado instintivamente para um banco que ali estava poderia ter rodopiado pelo chão. 

          Já reanimado dirigi-me a Baiona, o sítio em que morreu, e depois a Paris. Não recordo nada destas viagens pois fi-las quase como um sonâmbulo, e assim continuei durante algum tempo.

           

          Os meus primeiros passos de dança

          Comecei a dançar em Valladolid, a minha cidade natal. A minha infância foi passada entre ciganos. Pela atração que exerciam sobre mim o seu carácter e as suas roupas, julgo que o meu primeiro gesto de criança deve ter sido o de bater “palmas”.

          Todos os rapazitos que eram meus companheiros de brincadeira, quando eu tinha apenas 10 anos, sabiam fazer algum “redoble”11 e eu imitava-os. Com frequência também via os adultos a dançarem em casamentos e batizados, em que jovens e velhos competiam dando as suas “vueltecillas” de aficionados.

          Dava-me tão bem com os ciganos que, mais do que uma vez, em miúdo, me lembro de os ter ajudado nas suas “trafulhices” e na venda de bugigangas.

          Nunca me esquecerei da primeira vez que, numa feira, tive de chorar abraçado às patas de um esquálido cavalito gritando:

          – Não me separem dele, que é um cavalo muito “güeno”12, que nunca encontrarei outro tão “santito”, não mo tirem!

          O compadre comprador, convencido pelos meus prantos, formalizou a compra e montou em cima dele. Não tinha ainda passado um minuto quando caiu dele abaixo, mas não demorou menos tempo a levantar-se e a começar a correr atrás de mim vociferando:

          —Agora é que vais chorar a sério, malandro!

          Ainda bem que naquela altura eu corria mais depressa do que um comboio.

          Embora vá tentar sempre limitar-me o mais possível ao tema da minha dança, por vezes não poderei evitar que surjam historietas como a anterior que, embora não tenham uma relação direta com ela, servirão no entanto para ajudar a compreender a formação do meu carácter. 

          Os primeiros “redobles” produzidos pelos meus pés ouvi-os a ecoarem numa tampa de esgoto, ganhando-lhes tal gosto que passava o dia a correr de uma para a outra, para comprovar os diferentes sons.

          Todas as vezes eram diferentes, e por isso as preferia em vez do chão que não ressoava ou das madeiras das mesas que tinham uma vibração mais opaca.

          Muitos desgostos me causou esta paixão, e mais de uma multa teve o meu pai de pagar por causa dela, visto que como eu lhes dava com tanta força acabava sempre por parti-las e os guardas andavam atrás de mim.

          Até o próprio Ayuntamiento [Câmara Municipal] teve de levar a coisa a sério e chegou uma altura em que nem eu próprio sabia de onde podia sair tanto representante da autoridade. E tive de mudar o meu campo de operações.

          Numa das margens do rio Esgueva havia uma árvore que tinha sido derrubada há muitos anos por um vendaval e que atravessava o seu leito; muitas pessoas  utilizavam-na para passarem para o outro lado. Em cima desse tronco continuei as minhas experiências. Aí tinha que lutar não só com a dificuldade do som que produzia, muito mais apagado do que nas chapas metálicas, mas também com o equilíbrio, o que era para mim um novo aliciante, que me valeu mais do que um “mergulhanço”.

          O medo que tinha dos mergulhos fez com que chegasse a adquirir um equilíbrio fantástico, que conservo desde então.

          O guarda da zona não devia ser admirador das minhas proezas, porque cada vez que me surpreendia atiçava-me o cão, pelo que tinha que suspender o meu treino.

          Nessa altura, o meu pai conseguiu empregar-me numa tipografia, onde comecei a aprender o ofício de marcador de provas. Mas como a minha verdadeira paixão continuava a ser a dança, o ruído das máquinas atraía-me enquanto trabalhava, e nele descobria ritmos que tratava de traduzir em passos, sapateando em cima dos degraus. Esquecia-me de colocar o papel na máquina ou deixava-o cair em rolos e distraía o resto do pessoal do seu trabalho. Por esta razão fui despedido, uma por uma, de todas as tipografias de Valladolid.

          Ao ver-me sem trabalho vali-me da rudimentar técnica adquirida com os ciganos, nas tampas de esgoto, na árvore, nos degraus das máquinas e nas esquadras. (Os guardas conseguiram apanhar-me mais de uma vez quando partia as tampas, e levavam-me para a esquadra, onde nunca faltava um comissário castiço que me punha a dançar e que, depois de uma boa reprimenda, acabava por me dar um par de reais, o que na altura representava muito dinheiro para um rapazinho.) Decidi então dedicar-me completamente à dança, e comecei as minhas primeiras escapadelas para as aldeias da província, atuando em praças e cafés durante as festas locais.

          Como era o tempo das capeias13, viajava sempre na companhia de toureiritos, e por mais de uma vez reparti com eles o que ganhava e… até os riscos. Uma vez insistiram tanto comigo e picaram tanto o meu amor-próprio que decidi ir para arena e espetar um par de bandarilhas, o que consegui fazer não sei se lá muito bem; o que sei sim é do medo que senti e que me subiu uma coisa tão estranha pelo corpo todo que anos mais tarde, em Paris, esse momento me inspirou um desenho que intitulei “Os touros e o baile”, porque o baile… desenrolava-se aqui por dentro.

          Eu dançava uma dança a que chamava O comboio, visto que me tinha inspirado, nas minhas constantes viagens clandestinas, no ruído que as rodas produziam enquanto iam variando de velocidade nas curvas e nas retas do trajeto por cima dos carris. As pessoas das aldeias ficavam entusiasmadas, sobretudo quando reproduzia com os pés as entradas e saídas nas estações. Arrancava com um pianíssimo, ia matizando em crescendo a velocidade e alcançava o máximo.

          Gostavam mais desta dança do que a de outros “bailaores”14 que atuavam acompanhados por guitarristas, sapateados e tanguillos15 cómicos ou de “brincadeira”. E no meu prato caíam sempre as “pesetinhas” imprescindíveis para ir vivendo.

          No entanto, o meu desejo era chegar a dançar com guitarra, o que me parecia algo bastante difícil, já que era conhecida a tradição de os flamencos não se ensinarem de uns aos outros nem nos mais ínfimos detalhes. Há que captar tudo à força de tempo despendido, vendo e ouvindo. É algo dificílimo, que por vezes chega a parecer um mistério e, todavia, não é senão um segredo zelosamente guardado por todos os artistas deste género, desde tempos imemoriais.

          Isso induziu muitos escritores a qualificarem-no como mistério, chegando inclusivamente a dizer que há duendes16 pelo meio e não sei mais quantas coisas. Mas na realidade trata-se de um segredo que, se fosse ensinado de boa-fé, seria facilmente aprendido, mas que não o sendo leva muitos anos a desvendar.

          Além disso, todos os que escrevem ou falam sobre ele não estão “inteirados”, que é como se diz na linguagem do flamenco.

          Estar “inteirado” consiste em conhecer não apenas o compasso ou o ritmo que deve ser usado em cada dança, mas também saber em que momento é preciso assinalar ao guitarrista, com um gesto e um passo, as mudanças que se querem fazer no compasso e no ritmo – ou seja, passar às “falsetas”17, aos “desplantes”18 e aos meios “desplantes”, etc., até ao final. É claro que isto só se consegue se o guitarrista também estiver “inteirado”.

          A primeira vez que dancei “a sério” com acompanhamento de guitarra, e digo a sério porque esse também é um termo do flamenco (até então só tinha dançado acompanhado por aficionados, tão pouco sabedores como eu), o guitarrista perguntou-me:

          – Ouve lá, rapazinho, tu estás mesmo “inteirado”?

          Eu respondi que sim, meio enfadado, para despistar. Na primeira atuação numa aldeia e ao começar os primeiros compassos, parou em seco e disse-me bem alto, para que todos os espectadores ouvissem:

          – Chavalo, tu enganaste-me, tu não estás “inteirado” nem pouco mais ou menos.

          Como o público não sabia do que se tratava, e como o que eu estava a fazer lhes agradava, tomaram o meu partido e gritaram-lhe:

          – Ei tu, toca e cala a boca, ou vamos ter de te pôr a guitarra ao pescoço. Nas festas anteriores trouxeste-nos um “bailaor” que era uma “porcaria” e não lhe disseste nada.

          – Sim, mas para aquele eu podia tocar porque ele estava “inteirado” – desculpava-se timidamente o guitarrista.

          – Toca a tocar e a calar. Vamos, chavalinho, “saca” outra dança.

          Encorajado, dancei-lhes O comboio e depois continuei a bailar à guitarra aquilo que me ocorria. O guitarrista, algo assustado por um lado, mas prevendo uma boa quantia por outro, foi-me seguindo como podia, saltando por cima das regras do flamenco, e assim continuou comigo durante uma temporada. Nunca me disse nem me explicou nada e eu continuei por aldeias e cidades sem me “inteirar”.

          Traduzido do original em espanhol por Pedro Cerejo.

           

          1 Formas de dança relacionadas com o flamenco antigo da escola bolera (N. E.).
          2 Cantos e bailes típicos de Sevilha e de outras províncias da Andaluzia (N. E.).
          3 Ignacio Zuloaga Zabaeta (Eibar, 1870-Madrid, 1945) foi um importante pintor espanhol conhecido pelos seus quadros costumbristas e retratos de estilo naturalista (N. E.).
          4 Nome dados às castanholas na região de Andaluzia. O nome surge do artesão que fabricava palillos, chamado palillero, que usava palos (pequenos pedaços de madeira) para os fabricar (N. E.).
          5 El amor brujo foi um bailado composto por Manuel de Falla para a bailaora Pastora Imperio. Estreou em 1915, em Madrid, e foi sofrendo alterações até 1925. Foi dançado, entre outros, por Vicente Escudero e La Argentina e Carmita García (N. E.).
          6 Armando Meckel foi um importante empresário responsável por lançar bailaores, nomeadamente a carreira de La Argentina em Paris, em janeiro de 1926, na Sala Gaveau (N. E.).
          7 Existem poucos dados sobre a Compagnie des Ballets Internationaux, que terá sido impulsionado por Jean Weinfeld, em estreita colaboração com Julia Marcus, e que reuniu um conjunto de artistas exilados em Paris no auge do nazimo no final dos anos 1930 (N. E.).
          8 Estúdio de Vicente Escudero em Paris (N. E.).
          9 Francis C. Cuppicus (1880, Alemanha-1966, EUA) foi empresário, sobretudo de ópera, de estrelas como Enrico Caruso, Foedor Chaliapin, Maria Jeritza, influente no Metropolitan Opera em Nova Iorque (N. E.).
          10 Golpe militar de nacionalistas contra o governo republicano legitimamente eleito, que daria origem à Guerra Civil Espanhola e ao início do Franquismo. La Argentina terá falecido de síncope ao tomar conhecimento do golpe em julho de 1936 (N. E.).

          Indíralo Indíralo: como não fazer algo individualmente

          Este texto resulta de exercícios de escrita coletiva realizados no contexto de “Indíralo: como não fazer algo individualmente”, um workshop com María Jerez e Quim Pujol que teve lugar entre 5 e 9 de julho de 2023 no Centro Ciência Viva do Alviela (Alcanena, Portugal), no quadro da Escola de Verão: Na Prática, uma parceria entre o Materiais Diversos e o Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no âmbito da Linha de Investigação em Discursos Críticos nas Artes Performativas. Este workshop convidava a trabalhar com o imperativo de um verbo inventado: “indíralo”. A definição desse verbo é “não fazer algo individualmente” e designa uma prática em que decididamente não se age de forma isolada. Nesta prática, o corpo coletivo é incontornável e as ações, descobertas e composições têm sempre de ser definidas à medida que ocorrem na comunidade, entendendo esta como algo humano e não humano. Este imperativo é a decisão de propor, de forma coreográfica, outras formas de fazer que se afastam de ações autónomas, sublinhando que os processos são sempre coletivos, interdependentes e ecossistémicos. Trabalha-se na coreografia de um cérebro múltiplo e divergente que não se desloca numa só direção, mas antes ao longo de muitas linhas simultâneas que não foram acordadas, para nos relacionarmos com o que não conhecemos e ainda não foi definido. Trata-se de um estado de incerteza coletiva.
          Sabemos que estamos juntos “nisto”, mas “isto” nunca é definido, é um enigma que mantemos entre todos nós, humanos e não humanos. Como podemos relacionarmo-nos com o que suspende o sentido e o significado? “Indíralo” é a celebração deste relacionamento, desta junção no enigma.

          Nesta prática os participantes da oficina escreviam indistintamente em português, espanhol, catalão e também utilizavam anagramas e palavras inventadas coletivamente durante as sessões de trabalho. Os humanos e não humanos que permitiram que emergissem estes textos em modo de diário, aforismo, pergunta… são Andreia Neves Marinho, o Centro Ciência Viva Alviela, Andreia Sofia Cardoso Lima, a floresta, Patricia Conde, Fernando Pedro dos Santos, João Henriques, a gruta, Valentina Parravicini, Cristina Fuentes Ávila, o rio Alviela, Francisco Weber Ruiz, Gustavo Vicente, María Jerez, Quim Pujol e os espíritos.

          5 julho 2023

          Sol es va més ràpid, però juntes arribarem més lluny i en cara que mai atrapem l’horitzó, mos servirà per a seguir caminant. La resposta està al nostres peus. Estou só quando me desconecto do presente, e quando sinto que o outro não me compreende. Entra menos la luz de fuera pero todo lo de aquí dentro brilla más ahora -o así lo respiro-. Respirar é difícil: encher-me de ar, mastigá-lo, deitá-lo fora. Procuro não pensar respiradamente. Outros respirarão comigo. Hacer cosas juntas puede hacerte sentir solo y hacer cosas solo puede hacerte sentir con otros. Para salir de la configuración por defecto, tal vez sirva hacer “otra cosa”. Procuramos uma identidade coletiva diversa. A diversidade como o não-antagonismo da identidade. Componer juntas en tiempo sincrónico. Crear un beat entre dos pulsos cardíacos. En realidad, todo respira al mismo tiempo. Dentro de los cuerpos está un yo invisible que no para de moverse. (Pulso). Puede tocarse. Eu? O Outro? Nós no mesmo espaço, um todo de muitos mil-folhas, à procura do estar e do fazer, a caminhar. Fragmentar la sincronía en múltiples tiempos lineares. Eu procuro a palavra (…) ¿Has visto la película Nostalgia de la luz [2010, Patricio Guzmán]? A sesta, o momento de dormir acompanhados, guiados pelo som dos pássaros até um sonho comum, ou um fio de baba. “Eu sou porque tu és.” Ubuntu — coletivo versus individualidade — busca por um território comum. La vra pa a cu ro pro eu… Se atuássemos em comunidade, com a consciência de que “eu sou porque tu és”, talvez conseguíssemos libertarmo-nos da preocupação de encontrar culpados e não criássemos tanta solidão. Eu ro pro cu a vra la pa… Sentir ou ir na corrente da maré? Estar entre, no limbo, procurando pontos de encontro e de conspiração. Que importância damos à palavra e ao lugar da fala? A noção de ficar só, de solidão ou solitude é um mil-folhas com muitas camadas. A relação criadora do indivíduo e do coletivo não é uma relação unidirecional, como o provérbio do ovo e da galinha, mas sim bidirecional, impossível de estabelecer uma ordem hierárquica entre objetos.

          6 julho 2023

          Es mejor negociar fonéticamente. Há beleza na precariedade do material e no desapego da ideia. Yo soy muchas pequeñas cosas puestas en relación con otras. São esculturas de rastos que se encontram no ponto marcado a meio. Múltiplos rastos fazem uma vida. Perdí algo que nunca foi meu para un nós. Cravo, cravi elei, cravi elái, botomparani. O cessopro me cocei… a palavra ntinuoco (…) A Alegria no trabalho. Água-movimento-fluxo. Fomititas, ambno, nefleno, nixainifrin, bruslam, nosvaliti, bashaliti, enbnochoco, nalestian e braistrocia. Escolher atuar a partir do que há. O espaço nunca está vazio. O espaço entre não é aquilo onde estamos sempre? Comecei o processo… Continuo à procura da palavra (…) Un objeto no es una imagen. Dejar que acontezca y hacerlo acontecer. Respirar en distintos sitios te cambia el cuerpo. Gerar visibilidade é um gesto de apagamento. Su meda baina vollo fa. Não há culpados nem inocentes no fazer… cei come o ssocepro… Nuo conti rando procu a laprava. Es mejor recoger materiales juntas. Respirar é difícil. Los procesos artísticos siempre pueden encontrar una salida airosa. Escuto a respiração do espaço e procuro afinar-me com ela. Trabalho a partir do que está disponível. Na linha do horizonte, o meu corpo está ao mesmo nível da pedra. La realitat depèn dels ulls en què una la mira. Braistocia é uma ilha onde se respira para transformar.

          7 julho 2023

          Abrir the affordance de los huecos como práctica de estar juntos. O corpo introduz-se pelas mãos. Vamos juntxs cuando la cosa va sola. Um rio contradiz corpos, encontra rostos dispostos numa floresta… (…) A cesta. A roda das gerações segue enraizada. En un diálogo siempre hablan como mínimo tres personas. Sobre a toalha. Debaixo da toalha. Ou fora da toalha. Mas sempre na toalha. Uma canção que ia e vinha, mais mmmm, mais praidiosa. A água com que lavamos os pés é a água do nosso batismo. Los pliegues de las manos de nuestras abuelas estaban aquí hoy. La escultura es el arte de lo inmóvil pero todo se mueve al mismo tiempo. Que a palavra seja ou não seja dita de todo. Que se suspenda a vontade até que chegue a decisão.

          8 julho 2023

          Zahorí, agua, azar. Zahorí, azar, agua de azahar. Para que los objetos disfruten, los cuerpos humanos han de desaparecer. Escuto a cigarra, a minha vontade e a do outro? La naturalesa dona veu a coses mai dites. Pergunta a caneta o que quer escrever no espaço, escuta a resposta que se escreve, continua perguntando outra outra vez. Claro, oralc, raloc, dizemos no escuro. As pessoas que estranham a nossa romaria, as cigarras que não querem saber das nossas conversas, as pedras que ignoram as nossas intenções. Impasse in passe impas se i mp asse im pas sei mpa ss ei mpass e. No ceder ante la nitidez, permanecer en la borrosidad del instante perdido. Oxigénio/Para deixar de respirar…/Resfriar com um rio-mar/Caminhada/Tudo e nada/À procura do que/Não se sabia o que é…/Floresta…/Teremos descoberto/O que se queria?

          9 julho 2023

          A cigarra engoliu o morcego, o canto litúrgico matou o que sobrava. Tudo é uma escolha e que privilégio o nosso podermos escolher. O desejo de desejar devora-me às postas. Uvas, romã, laranja, limões e outros frutos múltiplos. Ojalá la naturaleza (de las cosas) nunca deje de hablarnos -y ojalá siempre saber escuchar-. Pensar com o corpo, ser-se um objeto, falar indiralês. Experimentar, respirar juntos, numa floresta fazer a festa com poucos-muitos. É possível colaborar sem ceder? Cr ausência cr presença cr cr craus cr crcrcrcr. 11 voces 10 voces 5 voces 1 voz 1 voz 2 voces 5 voces 10 voces 7 vozes 1 voz 3 voces 1 voz 1 voz 1 voz 3 voces 1 voz. O vento, o mar, as ondas, estão cheios de ausências. Tocar un material es invocarlo.

          Paulo Pinto Dori Nigro Georgia Quintas Vento (A)Mar

          A exposição Vento (A)Mar dos artistas Dori Nigro e Paulo Pinto, que esteve presente na Bienal‘23 Fotografia do Porto, realizada de 18 de maio a 2 de julho, investigou o território simbólico-poético da ancestralidade e os espaços de memória entre Pernambuco (estado de origem dos artistas) e a cidade do Porto (cidade onde residem). Ao longo de suas trajetórias, os artistas têm estabelecido, enquanto discurso crítico-afetivo, elos entre intenção poética e relações em rede no tocante à história colonial, às narrativas auto-ficcionais, à desconstrução de álbuns familiares e ao silenciamento de mulheres pelo patriarcado.

          Nessa ação criativa, os artistas trouxeram, para além dos trabalhos autorais, a relação com o artista cearense Mestre Júlio Santos, um dos mais importantes profissionais da fotopintura brasileira. Esse diálogo revela retratos e registros de aspectos sociais sobre o imaginário dos álbuns de família e sua representação para a memória da alteridade.

          A prática vernacular da fotopintura em Vento (A)Mar promove o retorno de imagens de mulheres e famílias apagadas pelo seu próprio tempo. Em conjunto, os artistas avivam matriarcas, dão-lhes a presença da identidade. Os retratos tomam esse caminho da confluência de histórias familiares, das conexões mesmo de memórias de sofrimento, injustiça e opressão contra mulheres, diluídas por seus papéis sociais num Brasil enraizado pela diáspora africana e colonial. As cores nos retratos (pintados) potencializam ancestralidades, dão corpo simbólico enovelado ao presente do passado, provocam a arqueologia da força vital do feminino.

          Durante a abertura da exposição, uma das salas onde estava a obra Adoçar a Alma para o Inferno III foi encerrada e depois exposta fragmentada, sem a autorização dos artistas e da curadora Georgia Quintas, pela administração do Hospital Conde de Ferreira com anuência da Santa Casa da Misericórdia. A censura revela a dificuldade das instituições de reconhecer o perfil escravista do seu patrono, Joaquim Ferreira dos Santos1, primeiro Conde de Ferreira, que com o dinheiro da venda de cerca de 10 mil pessoas escravizadas financiou a educação, a saúde, a banca portuguesa e a causa política de D. Maria II, rainha de Portugal e Algarves2 (que lhe concedeu três títulos de nobreza), além de obras de caridade.

          A violenta dupla censura (encerramento da sala e exposição da obra fragmentada), reflexo do colonialismo incrustado na sociedade portuguesa, contribuiu para o apagamento das histórias das nossas avós, que disparavam a criação da exposição. Em reparação às suas memórias, nossa ancestralidade, partilhamos seus retratos e histórias.

          Elisabete e Antônia, retratos das avós de Dori Nigro.
          Provocação do artista partilhada com o fotopintor Mestre Júlio Santos, 2023.

          Elisabete

          A imagem à esquerda é o último registro de minha avó materna, Elisabete. É das poucas fotografias do nosso álbum de família que resistiu às enchentes consecutivas que assolam a comunidade onde cresci, iniciadas desde o aterramento dos mananciais da Marim dos Caetés (terra indígena) para construção de engenhos de cana-de-açúcar, obra autorizada por Duarte Coelho, portuense donatário e primeiro governador da capitania de Pernambuco entre 1534-1554.

          Meu pai, autor da imagem à esquerda, capturada durante meu aniversário de cinco anos, revelou-me o entristecimento do seu olhar. Segundo ele, durante o ato fotográfico, o flash da máquina deixou-a assustada. Era a metáfora utilizada pelo meu pai para apaziguar a dor da doença terminal de minha avó. Ela morreu logo após meu aniversário de seis anos.

          Na ausência de mais fotografias dela, o seu rosto adornado em flores no velório era a única lembrança que tinha. Essa imagem foi meu primeiro contacto com a morte.

          Meu olhar vagueia pela fotografia na tentativa de compreender quem foi essa mulher camponesa, com um pé fincado no catolicismo e outro no candomblé; que morreu à espera de reparação de sua dignidade, por ter sido injustamente acusada do assassinato de um líder camponês e, assim, acabou presa por esse crime forjado pela ditadura militar brasileira.

          Revivo com raiva legítima as dores de minha avó quando esbarro na violenta censura que sofreu a exposição Vento (A)Mar.

          Antônia

          Nunca tivemos em casa fotografias da minha avó paterna, Antônia, mas guardo dela boas lembranças. Ela encantou-se na minha adolescência. A notícia de sua morte veio de manhã, anunciada por um dos meus tios. Eu, em cima de uma árvore, escutei a conversa angustiante entre meu tio e meu pai. Aquela mangueira era meu espaço de conforto diante da realidade concreta.

          Meus tios diziam-me que minha avó morrera com medo da morte. Viveu sem deixar que o medo a paralisasse. Antônia tinha a voz doce. E era com essa doçura que nos recebia. O cheiro do bolo recém-saído do forno anunciava o caminho até a cozinha. Ela adorava doces de todos os tipos. Morreu de diabetes mellitus (tipo II), patologia que acomete corpos negros com maior frequência3.

          Muito tempo depois de sua morte voltei à casa de meus tios em busca de fotografias dela. Encontrei um retrato de seu casamento com meu avô, apagado pelo tempo, com o vidro da moldura rachado em várias partes.

          O casamento de minha avó não foi fácil. O machismo cerceou sua vida. Antônia era uma mulher forte e sábia. Sabia esperar o tempo das coisas. Tinha o corpo forte e a voz mansa.

          Aquela imagem rasurada de seu casamento parece querer denunciar uma outra história de apagamento. Ao olhar para ela, penso no abismo que me separa de minha ancestralidade negra. Desconheço as imagens dos meus bisavós e tataravós negros. Nossas histórias foram apartadas em navios negreiros.

          Talvez tenham sido os meus ancestrais os corpos escravizados trazidos nos navios comandados pelo Conde de Ferreira que desembarcaram na capitania de Pernambuco, a que deu mais lucro à coroa Portuguesa.

          Alcides e Elita, retratos das avós de Paulo Pinto.
          Provocação do artista partilhada com o fotopintor Mestre Júlio Santos, 2023.

          Alcides
          Dizem que era como o arroz-doce que bem sabia fazer, alma de açúcar.
          Tecia nas mãos linhas da vida, fios de algodão, filhos do amor puxado como alfenim. Doze, dois partidos anjos no início de ser mãe e quase fim. Zelosa em criar, nutrir, vestir, cuidar. Cozia, cosia, cantarolava, benqueria.
          Doce, apurando-se em dores de ausências assombradas, rebordada por dentro sem cuidado médico mental, como a maioria das mães em suas incomensuráveis jornadas. Sofreu como um pássaro Sofreu4. Pouco sei do que pouco falam, moem. Dores em gerações.
          Sempre-viva, como toda fotografia parada no tempo, como as flores miúdas de seu vestido no último retrato, à esquerda. Trinta e três anos e sonhos de passear quando a cria criasse. Promessas rurais de sonhos urbanos, de praça, feira, festa, parque, missa, quermesse.
          Não viu a cria voar, construir ninho. Não viu netos, não vi vó. Lançou filhos de muitas sementes: sertão, litoral, travessias das águas do Rio Salgado, mitos do Boqueirão e da nação Calabaças.
          Mistura de gentes da terra, das matas, das águas, do sangue das invasões, tráficos, entradas, bandeiras, guerras, espadas, crucifixos, candelabros, estrelas de Davi.
          Mo(v)eu-se na vida como pode, vertendo-se em garapa de cana-de-açúcar sem fermentar. Na memória centenária dos que a conheceram: agonias de duas asas partidas não cuidadas em doze seguidos partos desde menina-moça-menina. Na memória dos filhos: fartura de grãos, alegria mel em todos os cantos da casa… ceifadas por lágrimas, desespero e fúria.
          Em desassossego viu-se árvore, galho e folhas a balançar ao vento em melodia de paz. Amplificadas as dores da alma, sem cuidados devidos da saúde pública, “decidiu” partir.

          Elita
          Criança, olhava o retrato pintado de minha avó materna e tinha certeza de falar com ela. Imagens falam, crianças ouvem, artistas e gentes al(m)adas também.
          Quadro grande de moldura de boniteza dourada envelhecida. Minha primeira paixão pela fotografia e pela alma capturada de uma pessoa amada que nunca conheci.
          Quando nasci, as pessoas que mais amava já haviam começado a partir. Meus olhos desde sempre são testemunhas de muitas ausências afetivas.
          Esse retrato de vó materna despertou a curiosidade de querer guardar o amor nos olhos, como relicário de recortes de reminiscências, para ilustrar as histórias latejantes de quem foi e do que passou.
          A imagem de vó me chegou porque alguém antes de mim se tornou guardiã da memória familiar. Minha mãe dedicou-se a aglutinar passados congelados que pontuaram pessoas, lugares, situações, condições. Delicada pedagogia que me cativou no interesse sobre as gentes, suas micro-histórias e cruzamentos com macro-histórias.
          Foi o retrato de minha vó materna, santificada por minha mãe, que me fez questionar sobre a ausência da imagem de minha vó paterna, sua prima. Meus avós eram primos, os quatro. Heranças de misturas ancestrais de tradições judaicas e afro-ameríndias, forjadas na zona rural do sertão, na agricultura de subsistência.
          Elita é o meu primeiro amor imaterial que se fez presença numa fotopintura encomendada por minha mãe a um fotopintor ambulante.
          Dizem que vó Elita sabia fazer doce de leite como ninguém; tinha cintura finíssima ressaltada pelo uso de anáguas armadas em goma; gostava de usar um pequeno decote com um pingente de trevo; era bem humorada e festiva; apaixonada por música, dança, costura, por meu avô e seus filhos.
          Teve sete filhos e viveu a dor da morte de um deles. Aos trinta e três morreu num parto de outra Elita, que só vingou até a primeira infância. Mortes vaticinadas pelo descaso da saúde pública nos sertões rurais de heranças coloniais.

          1 CAPELA, José. Conde de Ferreira & & C.ª. Traficantes de Escravos. Lisboa: Edições Afrontamento, 2012.
          2 ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins. Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa: Zairol, 1989.
          3 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política do SUS, 3a edição. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2017.
          4 Nome popular do pássaro Corrupião, também conhecido como Sofrê, Xofreu, Concriz. Espécie endêmica do Brasil de canto melodioso e capacidade de imitar o canto de outras aves.

          Zia Soares FANUN RUIN abrir o lugar do luto

          Há uma casa que habita em mim.
          Sei das cobras, vermelhas, que sempre guardam a casa e só se deixam ver quando há perigo. Na outra noite sonhei que uma delas repousava nos meus ombros. Antes que a visse, pressenti-a. E como antecipasse qualquer reação, silenciosa, esgueirou o seu rosto para junto do meu. Fixou-me. E eu a ela. 1

          Atravesso salas, corredores, os meus olhos passam agilmente em revista todos os aglomerados de ossos mais ou menos compartimentados, catalogados, arquivados: não, não, não…
          Não, não, não são estes.
          Não, não, não…
          Não, não, também não…
          Estou parada, mas o meu corpo, todo o meu corpo, teima em pesar-me apenas para um lado, obrigando-me a virar a cabeça num gesto rápido, preciso, como se em busca de equilíbrio. É então que os vejo, mesmo antes dos meus olhos. Agora estou diante de vós e nunca mais saio daqui.
          E é isto noite após noite: atravesso salas, corredores, os meus olhos passam agilmente em revista todos os aglomerados de ossos mais ou menos compartimentados, catalogados, arquivados: não, não, não…
          Não, não, não são estes.
          Não, não, não…
          Não, não, também não…
          É então que os vejo, mesmo antes dos meus olhos. Agora estou diante de vós e nunca mais saio daqui.

          Precisava de acabar com aquilo, precisava de acabar com a angústia que ia ocupando os meus sonhos e pesadelos e pensamentos.
          Então invento o FANUN RUIN — que se traduz do tétum [língua nacional de Timor-Leste] para português, Chamar Ossos — uma performance onde expelir o confronto com a morte sem rosto, onde me apaziguar. A mim…
          Então chego a mim, também é sobre mim, eu, convergência extemporânea onde Timor Lorosa´e se encontra com Angola para depois derivar em Portugal. Ponho na voz a minha vida:

          Timor. Em 1959, um grupo de homens timorenses revolta-se contra o regime colonial. São presos e desterrados – durante vários dias viajam no vapor “Índia” para um destino que desconhecem. Um desses homens é o meu pai.

          Angola. 1960… Um grupo de homens com rostos desfocados. A fotografia mais antiga que tenho é a do meu pai com os companheiros na cadeia do Bié. No Bié, o meu pai conhece a minha mãe.

          Portugal. 1882. Uma coleção de crânios usurpados. Na parte oriental da ilha de Timor têm lugar os ritos de caça de cabeças, exortados pelos invasores portugueses. De entre os decapitados, 35 crânios foram desterrados para Portugal. Jazem num armário no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra.2

          De volta ao necrotério.
          Enunciam-se as perguntas:
          Como eram os rostos dos decepados?
          Quais os seus nomes?
          Quando retornam os ossos usurpados?
          Quem os espera?
          Quem ainda se lembra?
          Quem quer esquecer?

          No que diz respeito aos crânios de Timor, e ao contrário do que tem sido defendido por alguns activistas (…) e investigadores, a historiadora mostra reservas em se proceder à restituição sem que haja pedidos de devolução por parte do próprio país. “Em abstracto poderia concordar, mas isso levanta problemas. Restituir a quem? Em que moldes? É preciso ter uma noção prática; não basta meter estes espólios numa caixa e enviá-la. A UC [Universidade de Coimbra] ainda não recebeu nenhum pedido”, nota Luísa Trindade. “O ponto principal deve ser o diálogo e a partilha.” 3

          Afinal, quando alguém se apodera de algo que não é seu, usurpa portanto, e tem verdadeira intenção de se retractar, deve ou não dar o primeiro passo? E se sim, no caso da coleção de crânios timorenses, os insepultos cativos em Portugal há mais de 140 anos, quando tenciona o Governo Português, e a Universidade de Coimbra dar esse passo, iniciando “o diálogo e a partilha” com o Governo Timorense?
          Afinal, volvidos mais de 140 anos, quanto tempo mais necessita o Governo Português, e a Universidade de Coimbra, para “ter uma noção prática” de como processar o retorno dos crânios?
          Afinal, como está a ser tratada ou para quando se prevê alguma partilha pública sobre o desenvolvimento dos processos de inventariação dos restos mortais e dos artefactos pilhados dos países anteriormente colonizados por Portugal?

          Escavo, folheio, desenterro o mal concretizado, conspurco-me uma vez mais com as certezas mortas do arquivo fundado em violência.
          É imperativo rasgar as fronteiras da História!
          É urgente desfigurar a arquitetura do arquivo!

          Perante o estratégico apagamento contínuo das narrativas que contrariam a univocidade do colonizador, pode ser muito sedutor, e por vezes enganador, tentar preencher esse espaço tornado lacuna, ousar criar carne para os ossos: urdir a partir do nada, do vazio, buscar apaziguamento onde aparentemente não o há. Como reparar a violência senão com a coragem de a expor, produzindo e provocando configurações outras dela mesma, e ainda sem submeter os insepultos a um novo trauma?
          É preciso performar a ferida, repetir sem tréguas a partitura do soçobro até que se torne obsoleta:

          Eu sei. Sei da catana no pescoço. Sei do joelho no pescoço. Sei da bota na cara. Sei do derradeiro suspiro quando não se consegue respirar. 4

          Não, não é sobre reescrever a História, mas sobre escrevê-la, protagonizando-a e performando-a, aceitando antecipadamente que ela, ainda, permanecerá inacabada. Trata-se de abrir o lugar do luto, do cerimonial, onde a incomensurável violência da estropiação, da violação, da desumanização dá lugar ao silêncio e só o sussurro pode irromper qual veneno que se propaga vagarosamente e se enraíza no inadiável pulsar da ulteridade.
          Não, não me detenho a historiar a Guerra de Laleia5: Emancipo-me dela: Atuo.

          — Hau iha imi nia oin.
          Hau la sai daar hosi nee too ita nia rain hatudu imi nia oin.
          Manu kokoreek ona, asu la harii ona.
          Ita nia Uma Lulik6 hein imi.
          /
          — Estou diante de vós.
          Nunca mais saio daqui até que a nossa terra revele os vossos rostos.
          O galo já cantou e o cão não ladra mais.
          A nossa Uma Lulik [Casa Sagrada] vos espera.

          1 Zia Soares, FANUN RUIN, 2022.
          2 Zia Soares, FANUN RUIN, 2022.
          3 Mariana Duarte, “Restituição de bens culturais, três debates nacionais para descolonizar os museus”, Público, 21 de junho de 2023.
          4 Zia Soares, FANUN RUIN, 2022.
          5 Foi durante a Guerra de Laleia, entre 1878 e 1881, que guerreiros timorenses, ao serviço do governo colonial português liderado por Hugo de Lacerda, decapitaram timorenses tidos como rebeldes, pertencentes a uma comunidade que vivia nas montanhas (no litoral a leste de Díli) onde se refugiou o rei de Laleia, D. Manuel Salvador dos Remédios, considerado líder dos opositores à missão e ao governo português.
          6 Uma Lulik é a casa sagrada e tradicional timorense, o espaço central da cultura e da identidade do povo maubere. Cada aldeia tem a sua Uma Lulik onde a família armazena as relíquias sagradas dos seus antepassados. Na Uma Lulik — reservatório de memórias e saberes ancestrais — realizam-se os rituais que permitem o encontro entre os mortos e os vivos.

          Tiran Willemse Acolho muitos eus

          Ainda não está acabado, mas estou quase. Multiplicar, irá seguramente fixar. Lembro-me de pessoas que já não estão vivas. Lembro-me de dançar à morte de manhã. Como se olha para uma coisa que não se consegue ver. Como nos tornamos humanos? Proximidade e experiência. Suficientemente grande para todos. Negociar o espaço, acomodar e resistir. Está no ritmo, está no som. O fluxo que não está em perfeita harmonia.

          A loucura humana. Uma falta de sentido, tal como eu gosto. Um estado não-binário. O lugar esquecido do qual nem sequer falamos, mas que preciso de levar mais longe. Qual é o meu processo? Um eu na prateleira. O meu corpo começa a falar. A dança despedaça-me o corpo. Uma noção diferente de articulação. Ainda há um longo caminho a percorrer. Dividir, sentar, protestar, destruir. Linhas que transformam fronteiras em horizontes. Linhas direitas transformadas em curvas e círculos. O que é natural? Da África do Sul à Inglaterra à Suíça à Alemanha a Bruxelas a Estocolmo à Alemanha e Suíça, de certa forma, estou presente. Expressar para dividir. Levanto-me, sento-me, para ficar emocional, para ficar funcional e levantar-me e entregar-me. Ordeno o movimento, a escuta e a transição. A arma sobre a carne. Como é que vieste aqui parar? Consegues sentir? Magoa? Não tenho a certeza, tu gostas? Gostas assim? Está tudo bem? Ele está aqui? É sempre ele? Como é que a dança te despedaça o corpo? Por onde andei eu num futuro imprevisto? Música clássica a tocar ao fundo. Como não sacrifico quem sou? Às vezes magoa. Ele não está sempre aqui, mas está perto. Difícil e pesado, e eu levo mais longe. Posso falar sobre dança negra? Celebrar rituais e cerimónias. Música e celebração. Sinto-me assim aqui onde estou agora. Como é que eu faço sempre isto acontecer? Existiram diferentes períodos de dança negra.

          Estudando, o feminino dentro de mim intriga-me. Nervos, o que quer que faça: sempre sem t-shirt. Não cor-de-rosa. Nostálgico como o caralho. Não consigo explicar. Tão limpo, um cheiro remotamente delicioso nos ecrãs. Uma rapariga bonita. Clavícula proeminente. Sentindo pelo meu prazer. Nível teórico. Entre silêncios dou estalos na minha cara. Expirar, mas ouvir apenas a minha boca a mexer e sentir o meu peito inflado. Passar por estados fantasmagóricos. Suá-los para fora de mim. Retirar a base para ser verdadeiro.

          Um processo estranho, limito-me a aceitá-lo? Uma vastidão a abrir e fechar para encerrar a escuridão dentro de si. Espaço público. Como agir nele com normalidade? Está na hora de deixar a cidade, tenho sonhado comigo no campo. A dormir à noite em silêncio absoluto. A olhar para a árvore e a pensar que nem sequer acredito na natureza. É a altura ideal para desfazer este trabalho. A precisar de mais ferramentas políticas para o fazer. Uma sensibilidade anarquista para fazer um caos líquido e pétreo, monstruoso e nodado, aguçado e selvagem, sem controlo, uma desgraça sobre o caos, tempo dentro de uma instituição, insanidade mistura-se com obscuridade, um natural insuportável. NÃO OLHES. Proibido mergulhar. Partir e sair. Continuar e entregar. Apaixonar-me e desapaixonar-me. Lembro-me de estar num monte na Cidade do Cabo e de o meu irmão sorrir para mim. A dançar e a adorar.

          Música ao fundo a tocar. Grito, é o meu processo, mas ninguém acredita em mim. E por isso movemo-nos num padrão formal, pelo beco vazio. A margem castanha, cheia de água, ao nascer do sol. A superfície a brilhar, refletida no estúdio. Passa uma nuvem e está tudo vazio. A luz reúne-se em qualquer ângulo. A água é um elemento não humano. Estou sozinho, isto desliga-me de um universo sónico. Agarro-me, é como se estivesse a flutuar. Em certas circunstâncias, mergulho no meu vasto corpo de água sem espaço lá dentro. Sem maldade, não zangado, nem sempre certo, com más intenções. Esforça-te muito, mas sê divertido. Duro e não quero simpático. Generoso e complicado.

          Sou um marinheiro, rapaz estrela, doutor, com um vocabulário de género tão diferente que até posso tornar-me monstruoso. Recusar esta ideia do sentido do corpo num acesso semiótico. Constrangimentos específicos de raça e classe, leituras dentro disto. Não há um corpo de género e ainda não é. O perdedor, não por eu ser queer, negro, um millenial ou por gostar de cor-de-rosa, mas porque a verdade é demasiado difícil de engolir para a maior parte de nós.

          Todos ligados romanticamente ao início da minha experiência performática.

          Forças invisíveis como meio de construir forma. Lidar com a luta que expande as nossas vidas e as coisas que nos acontecem ou as coisas onde existimos faz-me pensar em margens que têm qualquer coisa que ver com uma coisa que se assemelha a um culto – um atípico. As impossibilidades de um corpo ou da experiência de um corpo e a impossibilidade de uma margem dentro de um contexto institucional. Entro para o meio da sala, faço uma vénia, as pessoas aplaudem, avanço 1 vez, recuo uma outra, vénia. Avancei outra vez e fiz uma última vénia e todo o espetáculo colapsou para o subsolo. Foi o fim? As caras das pessoas estão confusas. Algumas sorriem, outras odeiam, outras estão assustadas. Eu olho para toda a gente com um grande sorriso, a pensar quem são vocês e o que estou eu a fazer à vossa frente? Tenho medo de vocês e vocês parecem estar sempre com medo de mim.

          blackmilk, o meu primeiro solo, marca um momento na minha prática, comecei a ter uma relação diferente da que tinha com mostrar o meu trabalho. Essa tinha sido uma conversa recorrente sobre ser negro, no que diz respeito à sobrevivência. No meu espetáculo acabei a escoltar o público até lá fora, quase um a um. A estranha classe social a que pertence um artista que performa. Estar na posição de artista é, amiúde, estar entre as posições de classe e ter uma visão do excesso. O meu trabalho sempre assentou na ideia de colonialidade como uma forma de excesso: pensar a expansão territorial, a condição de violência.

          Esta dança faz parte de um outro amanhã, de outro tipo de linguagem. Falar das coisas da natureza, da naturalidade, de como deve ser. Falar das coisas da negritude acerca do vazio. O vazio sem fim. O poço sem fundo que te rodeia.

          A questão da autenticidade para mim sempre foi sobre reverter expectativas de transparência. O facto de estar em palco e de recusar um final tradicional aponta para a realidade da performance. Para mim ,isto está assente na minha política, no meu mundo social, no meu ambiente, a troca de poder que tenho com o público e com as instituições. Existe tensão em simultaneamente suspender a autenticidade de estar juntos de forma consciente.

          Olhando para os meus espetáculos como um processo constante de transformação, enquanto desafio os limites das minhas políticas na esfera teatral, entendo o meu trabalho como um processo a caminho da ambiguidade, manifestação do inacabado ou do fora de ordem. O meu processo artístico implica uma colisão de culturas criativas. Invisto na exploração de estratégias de uma estética negra, desenhando a experiência de ser negro nas artes performativas e de como isso se relaciona com a vida, a morte e o conceito de se ser humano. Estou a investigar linguagem que manipule a minha prática ao mesmo tempo que procuro ofícios que manipulem o teatro e criem um sentido do que é político.

          Katarina Lanier O TERRENO AFETIVO. Notas sobre metodologias para corpos em espaços públicos

          Em junho, participei no Summer Lab de 2023, em Escópia (capital da Macedónia do Norte), enquadrado no programa europeu Arte Clima Transição. Fui enviada pela Culturgest, de Lisboa, e recebida pela Lokomotiva, em Escópia. O tema era a função do espaço público no ambiente urbano. Um grande foco do nosso trabalho foi relacionarmo-nos com as consequências do programa Escópia 2014, um projeto multimilionário, coordenado pelo partido então no poder VMRO-DPMNE, para a construção de monumentos e edifícios com a intenção de criar atrações mais clássicas. Este projeto transformou a cidade num estaleiro do poder, reescreveu o espaço público e a memória histórica e alterou a vida quotidiana dos cidadãos de Escópia.

          Durante o tempo em que estive em Escópia, fiquei com uma série de questões que se relacionam entre si: em que história estou a mergulhar? Será que esta é a história recente da cidade, a história da ex-Jugoslávia ou é a história da etnia dos povos desta região? O que fazer e como lidar com o peso da história?

          Um participante perguntou à nossa guia, Ivana Dragsic, o que faria ela com todos os edifícios do programa Escópia 2014, se fosse a presidente de câmara da cidade. Ela respondeu que destruiria a maior parte deles. Pensei para mim mesma que se tratava de uma metodologia artística. Fabricar possibilidades como esta cria fantasias e práticas especulativas que, a concretizarem-se, não seriam tão simples como destruir as construções de 500 milhões de dólares, nem provavelmente teriam as consequências que Ivana estaria a imaginar.

          Perguntaram-me várias vezes nesta viagem qual é a perspetiva da minha mãe, uma vez que cresceu em Sarajevo, que esteve cercada durante os três anos da guerra dos anos 90. Pensei para mim própria: como posso resumir a sua experiência e por onde começar? Com o avançar da discussão, nos últimos dois dias, sou lembrada da forma radicalmente diferente como as regiões da ex-Jugoslávia viveram a separação da nação comunista-socialista de Tito. Duas senhoras ficaram com pele de galinha quando comecei a falar-lhes de Sarajevo. Não tenho a certeza se foi a forma como falei que desencadeou a reação física ou se foi uma dor empática que elas próprias nutriam pela população de Sarajevo durante a guerra. Trata-se de outra prática artística: partilhar fantasmas. Pensar com outros sem um objetivo estabelecido a não ser ver uma parte do prisma da experiência humana. A curiosidade em relação ao que não pode ser quantificado: aquilo que só pode ser vivido em primeira mão ou através da tentativa de nos relacionarmos com outra pessoa.

          Durante a nossa pesquisa coletiva, cheguei ao conceito de terreno afetivo. Uma tarde, um pequeno grupo, composto por Arshia Ali Azmat, Merel Smitt e eu própria, criou uma estratégia de mapeamento da cidade que incluía o registo de elementos arquitetónicos e comerciais como edifícios vazios, monumentos anteriores a 2014, negócios informais e de registo da presença de grupos historicamente marginalizados como a comunidade Roma, os recoletores de lixo e os sem-abrigo. Esta estratégia de mapeamento incluía vários exercícios, tais como: perguntar a um transeunte “onde estou?” ou escolher um transeunte e segui-lo até ao seu destino. Ao atravessar a cidade com a nossa caixa de ferramentas, cheguei a um ponto em que tudo o que conseguia fazer era sentar-me num banco de rua e ouvir um jovem que estava a cantar na ponte entre a praça central e o velho bazar. Esta ponte é uma ligação fundamental, onde diferentes corpos que são agentes da cidade se encontram. Quando me sentei a ouvir o rapaz a cantar senti-me aliviada. Afastei-me dos grandes monumentos, virei as costas ao jovem cantor e senti o meu corpo a relaxar. Permiti-me abandonar o meu cérebro analítico e deixar o meu corpo senciente escolher ir para um sítio de conforto. Depois disto, atravessaríamos a ponte e a nossa última paragem seria num café do bazar, para comer juntas um kunefe – símbolos do jugo otomano, da herança islâmica e da sociabilidade quotidiana.

          A cidade afetiva não se conforma à malha ortogonal e ao mapeamento das ruas por drones. Não diferencia entre a esfera pública e a privada, apesar de parecer tentador no contexto de espaços urbanos e dos seus tradicionais equivalentes da esfera íntima. É um lugar de mudança onde vales e cantos escuros e espaços de conforto correspondem a afetos individuais e partilhados, que existem na perceção, na memória e no imaginário. É uma proposta: relacionarmo-nos com relações visíveis e invisíveis entre micro e macro-histórias, coisas mundanas e experiências sociopsicológicas. É um convite à construção do mundo e à sua transformação partindo da experiência do emocional e do psicossomático.

          Daniel Lühmann O VaIvÉm

          existe um texto. ele é lido primeiro na sua integralidade, numa tentativa de compreender o que está em jogo ali e que virá a se apresentar quando da sua tradução em outra língua, langue, tongue pra se tornar texte, text também. nessa altura, são identificados os termos recorrentes, as eventuais pedras encontradas pelo caminho. pegar um texto pela mão. depois, esse mesmo apanhado de páginas é relido em pedaços, os chamados blocos de trabalho. esses pedaços de texto se tornam morceaux de texte, pieces of text, or would they be slices?, que são relidos à medida que são concluídos. dois pra lá, dois pra cá. os pedaços são então reunidos e tornam-se fragmentos maiores, digamos, capítulos, que são relidos novamente uma vez promovidos a chapitres, chapters, deux pas en avant, deux pas en arrière. não se deixe enganar por esse plural de aparência tão simples: um mero s que transforma um capítulo em vários significa que a mesma operação foi refeita, isto é, uma única letra concentra horas e heures e hours de trabalho, boulot, trampo, ou apenas work work work work work, como quem sacode uma canção pop e, ao fazê-lo, põe também a bunda, les fesses, the ass a mexer. two steps forward, two steps back. é importante lembrar que a unidade livro, bouquin, livre, book leva tempo e que, nesse decorrer, os sentimentos se transformam do amor à raiva à indiferença à falta de vontade de vê-lo na frente e ao amor de novo, à euforia de começar a vislumbrar o fim, la fin, this is the end. não, não, ainda não: é preciso reler a totalidade, reestudar termo por termo, resolver as últimas questões, dúvidas, doubts, doutes, elaborar as notas de rodapé, dar explicações mais palatáveis a determinadas escolhas e tudo isso com calma, pois ele precisa de tempo, o texto. seria besta reduzir os esforços e tentar ganhar do relógio justo nessa altura do castelo de cartas. num futuro próximo, ele também virá a operar um retorno depois de ser percorrido pelos olhos, les yeux, the eyes de outra pessoa, someone else, quelqu’un d’autre, mas isso é só depois.

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          é mais ou menos assim que eu trabalho, que aprendi a trabalhar, uma maneira inscrita no meu modo de leitura e interpretação do mundo. é também assim que eu danço.

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          trata-se de observar com fineza aquilo que se manifesta, que insiste em aparecer sob diversas formas em torno de um mesmo tema que decidiu se intrometer no interesse. feito uma suspeita de gravidez inesperada que afia o olhar e multiplica os indícios de barrigões e bebês em volta, viés de confirmação. ou seu pleno contrário, o caso raro de alguém que sente uma dor na barriga e, pensando ser um desconforto banal, sai do hospital com um bebê nos braços. não é questão de inventar ou criar, está mais pra deixar-se impregnar, being pregnant, fecundado, prenhe de alguma coisa até então desconhecida. pra começo de conversa, o hospedeiro se põe a mobilizar referências. primeiro os textos, que ajudam não só a encontrar saídas, mas servem também pra colocar em palavras os pensamentos. eles são literários, teóricos, oriundos de domínios variados e variáveis. imagens, diagramas e outros se acrescentam a essa massa ainda amorfa pra acompanhar a operação de transformar tais indícios em práticas, gestos, sequências, matéria de improviso. daí esse conjunto começa a se desenhar em formas mais ou menos precisas, mas de costuras e encadeamentos ainda turvos. será que é nesse momento que isso começa a se chamar coreografia ou a atividade já vale enquanto tal desde o princípio? a última opção me parece mais justa, pois um texto só se concretiza depois de disposto em paradigmas e sintagmas, mas não pode existir sem o conteúdo que o informa, a experiência cotidiana e acumulada, as relações estabelecidas no sentido mais amplo, enfim, tudo aquilo que compõe quem escreve(m). munido então desse léxico performativo, de cânones e canhões, a etapa seguinte é a formalização de uma linha de ações e/ou movimentos e/ou operações organizadas numa espécie de escrita movente, que pode variar mais ou menos durante essa produção de narrativa ao vivo, aos vivos.

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          seria isso o fim dessa operação de contaminação cruzada, desse vaivém entre texto e movimento?

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          no documentário “foucault contra si mesmo” (2014) de françois caillat, a trajetória do filósofo e da sua obra são analisadas por especialistas que dão a ver um pouco da sua maneira de costurar cada elemento constitutivo do seu corpus, particularmente o fato de o trabalho seguinte começar sempre a partir do fim do anterior – uma continuidade quase óbvia, exceto que nem um pouco. tem também a questão essencial de se deixar levar pela escrita, de ter um tema sem saber aonde ele irá, mas de se jogar nele mesmo assim e acolher de maneira crítica o que sair desse buraco. tais aspectos, somados a seu percurso erudito e exemplar, mas que se autorizou, quiçá até mesmo ousou mover os limites de diferentes domínios de conhecimento, tornando-se quase um historiador sem sê-lo de fato, operam um borrão nas fronteiras dos conhecimentos, e eu acho que é aí que se encontra o xis da questão.

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          pera pera pera,
          você está se comparando ao foucault,
          é isso mesmo?

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          a resposta às duas últimas perguntas interpostas vem na forma de um sonoro não, non, nananinanão, no no no, necas de pitibiriba. a atividade performativa, depois de ter revirado tanto e continuado sua existência num palco ou fora dele, opera coisas que precisam ser mastigadas, digeridas, formuladas uma vez mais, retrabalhadas em palavras, paroles, paroles, paroles. mutatis mutandis, é no gesto editorial que esse ciclo encontra um fim provisório e oscila de texto a movimento, depois novamente em texto, apontando um vínculo com outros ainda, tornando-se movimento de novo, pra daí retornar à forma textual e assim por diante. esta é a tentativa aqui, tanto no que se lê quanto naquilo que se escreve sobre um corpo, passando por diferentes estruturas e registros de escrita pra demonstrar uma composição individual múltipla, um grande hematoma. como quem tenta tatear as fronteiras invisíveis e intocáveis e, fazendo isso, avança um passo em direção à dissolução delas ou, pelo menos, à constatação da sua limitação irrisória. respostas completas, iluminações e totalidades não são esperadas, é mais uma questão de encontrar um buraco, uma pedra, um desejo que passe de um domínio a outro, até que um novo entrave ou vontade surjam e convoquem o outro lado. ou a simples, reconfortante e luxuosa possibilidade de deixar algo descansar e ir ruminando sua decantação enquanto se faz outra coisa e, assim, colocá-las em contínuo diálogo. pois, dançando, a escrita pode assumir outros contornos e, escrevendo, a dança também abre outras facetas, um ciclo que se persegue sem se arretar mas não sem arestas.

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          ce dont on parlerait à présent aquilo de que se falaria agora what we would talk about then was the middle of the way era do meio do caminho du milieu du chemin, mais y a-t-il besoin tem necessidade is it really necessary? the impression que fica a impressão that remains l’impression qui reste est que non, não, no, absolutely not. carlos had said a while ago já faz um tempo que ele disse il avait dit, non? depuis un moment qu’il y avait une pierre que tinha uma pedra, there was a stone no meio do caminho, in the middle of the way, au milieu du chemin, ou à mi chemin? que tinha um caminho no meio da pedra, maybe a path in the middle of the stone, un chemin au milieu de la pierre peut-être, et qu’elle, la pierre, the stone, a pedra talvez fosse o caminho, serait peut-être le chemin, it would perhaps be the way itself que talvez maybe perhaps again peut-être encore nem caminho tivesse, there would be no way, il n’y aurait pas de chemin, only pierre, juste stone, só pedra, just, que les rétines as retinas the retinae would already já estavam be seraient déjà bien fatiguées, cansadas, tired, exhausted and that it was quite possible, era bem possível, il était assez possible, probable même, sans doute, even likely, provável até, que eles se apedrejassem, yes, they would se lapider, ils allaient se lancer des stones, lapidate, throw pierres les uns sur les autres at each other.

          este texto integra horror vacui, uma publicação e performance que consiste em cobrir o corpo de escritos, ambas trazidas ao mundo no contexto do programa de mestrado exerce de ici-ccn em parceria com a université paul valéry em montpellier, frança.

          Lior Zisman Zalis Políticas da caída ou como colocar o Estado pra baiar

          “É preciso girar para colocar a força em movimento. Tem que ficar tonto mesmo, é assim que eles vêm”, foi o que me disse Maria quando perguntei o que tinha que saber se quisesse baiar1 o Terecô, religião de matriz africana natural da cidade de Codó, interior do Maranhão (Brasil). Eles, a que se refere Maria, são os encantados, seres espirituais. Eles vêm ao se incorporar nos brincantes – como se chamam os seus praticantes e médiuns. Segundo dizem, os encantados tiveram uma vida terrena como nós, mas não morreram. Driblaram a morte e encantaram-se. Vêm ao nosso plano para trabalhar, utilizando o corpo dos médiuns. Quando não estão trabalhando, baixam2 nos festejos para brincar, dançar, beber cachaça e cerveja, fumar e participar do tambor das tendas, dançando Terecô por dias seguidos. O ritmo do Terecô é chamado de ritmo da Mata, acompanhado de tambores, cabaças, marimbas e, em alguns momentos, flautas. 

          Próprio da cidade de Codó, esse ritmo conforma certo elemento distintivo do Terecô em relação, por exemplo, ao do Tambor de Mina, religião de matriz africana presente em São Luís, capital do Estado do Maranhão. Também é por meio dele que se criam certas condições para que os encantados baixem. Estas são moduladas pela força com que o ritmo é tocado, dependendo de fatores variados que vão desde a força dos músicos a trabalhos religiosos feitos pelos pais e mães de santo ou à situação espiritual dos presentes, entre outros. Além do toque, é através da dança que a força é colocada em movimento. Como um dinamizador religioso, junto às doutrinas – pontos cantados –, aos músicos e aos instrumentos, o corpo transforma-se em aparelho, termo usado para designar o corpo do médium. Essa aparelhagem coreógrafa transforma-se em um veículo de outras ontologias. Acelerado, no ritmo da Mata os brincantes baiam girando, individual e coletivamente, criando uma corrente3. À medida que os corpos giram no espaço e sobre si mesmos, os encantados vão pegando as pessoas. Gestos de tontura, fraqueza nos pés, necessidade de apoiar o corpo e outras expressões do transe começam a povoar os corpos que, um a um, vão caíndo e recebendo seus encantados. 

           

          Quando estive em Codó fazendo meu trabalho de campo do doutorado4 entre 2022 e 2023, a expressão cair, além de designar a incorporação, aparecia também em certas memórias sobre o tempo em que o Terecô era perseguido pela polícia.5 A perseguição às religiões de matriz africana no Brasil esteve presente desde o começo do tráfico transatlântico de pessoas negras da África para o Brasil. Junto ao racismo estrutural e institucional, a tipificação do crime de “curar feitiço”, “charlatanismo”, “baixa medicina”, “curandeirismo”, “feitiçaria” e “pajelança” em distintos instrumentos legais (Códigos Penais e Códigos de Postura) começa a aparecer a partir do século XIX, aplicada majoritariamente às religiões de matriz africana no Brasil. 

          Segundo contam os mais velhos, em Codó, essas histórias aconteceram entre 1920 e 1950. Os terecozeiros eram presos, e o tambor, proibido. No entanto, para resistir a essa perseguição, desenvolviam-se algumas táticas não apenas para dar continuidade à prática religiosa, mas para escapar à violência policial. Uma das principais figuras da perseguição era um policial chamado de Tenente Vitorino, conhecido por sua crueldade e ódio às religiões de matriz africana. Mas por mais que o tenente tentasse proibir o Terecô, não conseguia. Dona Cleude, moradora do Quilombo Santo Antônio dos Pretos, localizado a 70 km do perímetro urbano de Codó, contou-me sobre o dia em que o Tenente Vitorino tentou acabar com o Terecô, mas acabou caindo nele.

          Em Santo Antônio, antes de haver salão – nome usado para designar os espaços de culto –, o tambor era feito em um local identificado como ilha, mais afastado da zona residencial do quilombo, situado no meio da mata e rodeado por olhos d’água. Era difícil chegar lá. A polícia não conseguia. Segundo os mais velhos, quando a polícia estava no caminho, as matas se fechavam: os policiais andavam, andavam, andavam e não encontravam o tambor. Às vezes ouviam o tambor de um lado e, quando iam naquela direção, escutavam o tambor em outro lado, perdendo-se nas matas. 

          Um dia, os encantados souberam que o Tenente Vitorino vinha com um grupo de policiais, mas, ao invés de despistá-los, combinaram de deixá-los encontrar o tambor. Vitorino vinha lá de Codó. Colocou seus policiais num camburão e trouxe mais quatro carros. Nesse dia a mata não estava fechada, era via livre para eles encontrarem. Tenente Vitorino, quando entrou no salão, foi recebido com um encantado de um lado e outro do outro, no meio estava Colin Maneiro6, que montou no Tenente Vitorino e dançou Terecô em cima dele a noite toda. Depois, pegaram o carro, colocaram o pessoal lá, com tambor e tudo, e foram até Codó continuar brincando de Terecô. Entraram na delegacia baiando, tudo com seu Colin Maneiro montado nele. Depois disso, ele não só liberou o Terecô, como passou a frequentar todos os anos o festejo por lá. 

          Chave nas histórias de perseguição ao Terecô, a figura do Tenente Vitorino delimita um marco temporal – “no tempo do Tenente Vitorino” –, um tempo de silenciamento, repressão e fuga. Poucas das pessoas que estão vivas hoje em Codó o conheceram, e são muitas as versões das histórias em que ele aparece. Existe, contudo, uma noção comum a todas elas: seu fracasso. O Tenente Vitorino é, na memória do Terecô, uma cifra narrativa do fracasso do poder repressivo do Estado frente à agência do Terecô. Provavelmente ele era um militar de alta patente responsável pela região e, como contam, chegou a Codó para proibir o tambor. Sua relevância no Terecô é tanta que fizeram uma doutrina sobre ele:

           

          Baia, baia, baia, 

          Baia, baiadô (x2)

          Tenente Vitorino quer acabar com o terecô

           

          Tenente Vitorino é homem não é menino, 

          Quer acabar com o terecô com cipó de Tamarindo.

           

          Tenente vitorino é um homi muito malino,

          Quer acabar com o terecô, com cipó de Tamarindo.

           

          A música, dizem alguns, foi cantada no momento em que Vitorino caiu em Santo Antônio dos Pretos e começou a dançar. A estratégia foi combinada: utilizar o corpo dos policiais e fazê-los baiar. Forma-se uma inusitada coreografia que invade a repartição pública. A incorporação, nesse caso, é distinta daquelas usadas nos cultos e nas obrigações religiosas pelos médiuns ou, como chamam em Codó, aparelhos. É uma incorporação instrumentalizada à resistência. Trata-se do uso do aparelho estatal para dançar a noite toda e sustentar aquilo mesmo que se buscava reprimir. Dançar o tambor é uma forma de manter a força circulando e fluindo, sustentando a energia vital do terreiro.

          A relação entre dança e política ganha aqui particular mutação. A resposta à violência estatal é o controle de um corpo que é posto a girar no ritmo da Mata. “Quis acabar com o Terecô mas acabou caindo nele”, me disse a mãe de santo Maria dos Santos quando contava as histórias daquele tempo. Cair alude também a uma política da derrubada. Tanto o corpo como a autoridade caem, sucumbem a uma rítmica, a um poder. São arrastados por uma força. Essa caída é da mesma ordem do tombo, o “tombo da maresia”, como disse a mãe de santo Luizinha referindo-se ao momento em que os encantados pegam a pessoa. Um tombo não para fazer cair no chão ou interromper um percurso, mas para transformar e continuar corpo de outra forma. É um corpo que cai ao mesmo tempo em que é capturado para não mais deixar o sujeito dono de si mesmo.

          Nessa política da caída, a resistência não pode ser desvinculada da sua dimensão religiosa. Como um movimento tático, os corpos não se confrontam. São tomados. Diferente das barricadas, dos protestos e das passeatas, a agência política é um corpo condicionado ao movimento. Um corpo que, mais que interrompido, mais que assassinado, mais que atingido, é apreendido. Na história de Cleude, submeter-se ao ritmo do Terecô é transformar a autoridade performativa do Estado, subjugando-a e colocando-a em outro lugar. De alguma forma, através dos corpos que dançam, o poder é deslocado. É, ainda, desmoralizado, invertido, desconstruído. É um gesto de sobreposição da força do Terecô à do poder Executivo. O Estado sucumbe à dança.

          1 A palavra baiar refere-se genericamente ao ato de dançar – bailar – o Terecô. Ao longo do texto, as palavras em itálico referem-se a conceitos êmicos, utilizados pelos interlocutores para indicar experiências, práticas e conceitos nos seus contextos.
          2 Essa expressão é utilizada para referenciar o momento em que as entidades incorporam no médium. Além dela, escutamos também expressões como a entidade subiu em cima, montou, pegou ou também que a pessoa caiu.
          3 Corrente é um termo polissêmico que remete tanto a essa atmosfera criada durante a gira quanto à organização e hierarquia dos encantados de uma pessoa.
          4 Este texto é resultado do trabalho de campo que realizei em Codó entre 2022 e 2023 para a minha tese de doutoramento no âmbito do programa em Pós-Colonialismo e Cidadania Global no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. A minha pesquisa de doutorado centra-se na agência política de seres não humanos dentro das relações de racismo institucional, perseguição e conflito com o Estado Brasileiro e seus agentes.
          5 Sobre os instrumentos legais e a perseguição institucional às religiões de matriz africana no Brasil, ver Dantas, Beatriz Góis (1988), Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janeiro: Graal; e Maggie, Yvonne (1992), Medo de feitiço: relações entre magia e poder no Brasil, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. Sobre a perseguição de religiões de matriz africana e pajelança no Maranhão, ver Ferretti, Mundicarmo (2001), Encantaria de “Barba Soeira”: Codó, capital da magia negra?, São Paulo: Editora Siciliano; Ferretti, Mundicarmo (2015), Um Caso de Polícia! Pajelança e Religiões Afro-Brasileiras no Maranhão (1876-1977), São Luís: EDUFMA.
          6 Os encantados dividem-se em linhas e famílias, estabelecendo relação de parentesco uns com os outros. Colin Maneiro é um encantado da família de Légua. Alguns dizem que é um dos primeiros filhos do encantado chefe da linha da mata de Codó, Légua Boji Buá Ferreira da Trindade, enquanto outros sugerem que é seu irmão. Conheci seu Colin Maneiro em cima do pai de santo Zé William, da Tenda Espírita de Umbanda Santa Bárbara em Morada Nova, quilombo localizado cerca de duas horas de carro de Codó. Sua fama de grande feiticeiro e curador é disseminada pela região. É um encantado velho, gosta muito de cachaça e sempre quando baixa tira a camisa, bota um chapéu e amarra um pano atravessado no corpo.

      • 8 Para o Gil

          Gil Mendo O que queremos levar connosco?

          No final dos anos 1990, afirmavam-se e proliferavam novos festivais onde dança, performance art e outras linguagens se cruzavam e se fundiam – sendo o festival Mergulho no Futuro um dos seus emblemáticos exemplos. Na publicação do seu programa, em 1998, Gil Mendo fazia o ponto de situação desse movimento de desfronteirização e mobilidade das disciplinas artísticas, ao mesmo tempo celebrando a possibilidade de novas hibridizações, novos desejos artísticos. Nessa antecipação de devires ainda por imaginar, Gil Mendo perguntava à comunidade: “O que queremos levar connosco?” Um quarto de século depois, no âmago das nossas imaginações coletivas sobre o futuro da arte e do mundo, continuamos a perguntar-nos o mesmo como exercício ético de cidadania – e assim deveremos continuar a fazer.

          De todas as transformações a que temos assistido, no campo das artes performativas, nas duas últimas décadas deste século, aquelas que terão mais duradouras repercussões no futuro serão porventura as que derivam do esbatimento de fronteiras entre disciplinas artísticas e da consequente mobilidade dos criadores no seu interior.

          Mobilidade, eliminação de barreiras, foram causas emblemáticas do movimento da “Nova Dança” e do “Novo Teatro”, que tão fortemente marcaram a década de oitenta. Sublevação tácita de uma geração de autores contra fórmulas predeterminadas e imobilistas que, do seu ponto de vista, reduziam a actividade performativa a um repisar de artifícios inadequados às novas realidades sociais e culturais, este movimento não pretendeu instaurar novas fórmulas em substituição das que recusava. Pelo contrário, opôs-se ao purismo a favor da contaminação, de uma maior aproximação à vida, ao quotidiano das pessoas. Ao quotidiano passaram os autores a ir buscar a sua principal matéria de trabalho, não para operarem uma transposição pura e simples da vida para a cena mas para criarem em cena algo que poderia ser transposto para a vida. Cada novo projecto passou a desenvolver-se num processo de pesquisa envolvendo autores e intérpretes, a linguagem passou a ser definida por esse processo em vez de o predeterminar.

          Passou assim a praticar-se uma permanente reaprendizagem de linguagens, a fronteira entre autor e intérprete esbateu-se, passando este a desempenhar um papel tão fundamental como o daquele no processo de criação, e uns e outros passaram a sentir a necessidade de aprofundar conhecimentos e desenvolver perícias além das fronteiras estritas de uma determinada disciplina a que estivessem à partida ligados.

          O que de fundamental resultou daqui não foi, por isso, o regresso a um “teatro total” em que todas as disciplinas coexistiram paralelamente, mas a explosão de múltiplas formas em que elementos tradicionalmente atribuídos a diferentes disciplinas são manipulados pelo mesmo autor e, o que é talvez mais consequente, pelos mesmos intérpretes, sem que para isso tenham que desaparecer as diversas disciplinas, enquanto repositório de saberes e perícias que não têm cessado de se aperfeiçoar e desenvolver.

          A geração que irá marcar o início do novo milénio é a geração dos discípulos deste movimento, uma geração não marcada pela ruptura estética dos anos oitenta, para quem a multiplicidade de vias abertas para as artes performativas ao longo da década de noventa constitui um campo a explorar bem mais excitante e lúdico do que quaisquer querelas ou antagonismos.

          A década de noventa não tem sido uma década de rupturas neste campo, mas não deixa por isso de ser uma década de fortes personalidades criativas e inovadoras. Não estando circunscritos a movimentos redutores, os autores do nosso tempo podem, a cada momento, seleccionar influências e fontes de inspiração para o seu trabalho. O que é importante nesta década não é o que se pôs de lado, ou abandonou, mas o que se ganhou, o que se acrescentou. Aliás, como toda a gente, também os autores neste fazem um balanço, questionam e reinterpretam, à luz dos conhecimentos actuais, figuras e momentos emblemáticos do século XX, especulam sobre a memória, interrogam-se, interrogam-nos, sobre o que de essencial levamos daqui para o próximo milénio.

          A forma vertiginosa, ainda que subtil, como os desenvolvimentos tecnológicos deste fim de século invadiram o nosso viver quotidiano e transformaram o convívio social não poderia deixar de reflectir-se, de mais de uma maneira, na evolução das artes performativas. A apropriação artística de novas tecnologias, com tudo o que deixa antever de renovação de formas e dispositivos cénicos e de novas relações possíveis entre obra e espectador, não será talvez a mais significativa. Mais significativo poderá ser o que trarão de novo as gerações para quem o convívio com um quotidiano altamente mediatizado e globalizado, em que o real e o virtual coexistem, é já um convívio natural e isento de perplexidade.

          Mas a generalizada mediatização, a transferência do espectáculo e da espectacularidade para outras esferas que não são a da arte e da criação artística, determinou também uma redefinição do campo artístico e, nomeadamente, do espaço em que as artes performativas actuam e da forma como procuram interagir com a sociedade. Tornou-se mais íntima e emocional a relação entre performer e espectador, duma intimidade e emocionalidade que só o confronto ao vivo permite e que é dificilmente apropriável pelas indústrias do entretenimento. O processo de criação, a pesquisa, o trabalho em progresso, a obra em aberto, ganham terreno sobre o produto artístico e a obra acabada. A relação com o espectador é mais provocadora do que apaziguadora, não pela intenção de agredir mas pela insistência em levantar questões, em despertar, em provocar no espectador a identificação e a emoção, sem lhe oferecer respostas redentoras. A cumplicidade que procura estabelecer-se com este espectador não se baseia no domínio comum de linguagens codificadas, mas numa comum vontade de preservar a experiência individual, a diferença individual, a memória individual. E talvez isto, este instinto não reaccionário de preservação, seja o que de mais fundamental as artes performativas transportem para o novo milénio.

          Gil Mendo A sua última apresentação pública

          Dos inúmeros eventos e momentos que marcaram a sua vida, houve um que Gil Mendo tinha especial prazer em relatar, tanto em conversas informais como em apresentações públicas dedicadas à história da dança: a vinda de Maurice Béjart a Lisboa em 1968, em plena ditadura fascista em Portugal. Neste texto de 2017, Gil Mendo recorda a fatídica noite da apresentação de Romeu e Julieta no Coliseu dos Recreios, retratando-a como um episódio de resistência política, uma indelével fratura no regime censório que oprimia os desejos dissidentes (artísticos e outros) da sua geração – e toda a vida do país.

          Em 1968, no âmbito do Festival Gulbenkian de Música, os Ballets du XX Siècle, dirigidos pelo Maurice Béjart, apresentaram, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o seu Romeu e Julieta. O bailado era um libelo contra a tirania e continha, a certa altura, uma gravação fictícia de notícias radiofónicas, nas várias línguas dos intérpretes, e que incluía um excerto em português, que mencionava uma revolta de estudantes em Coimbra e a brutalidade da repressão.

          O Coliseu estava à cunha e no final do espectáculo houve uma enorme apoteose. Aconteceu que, nesse mesmo dia, o Robert Kennedy (irmão do Presidente John Kennnedy e candidato à Presidência dos EUA) tinha sido assassinado. O Maurice Béjart veio ao palco, disse “Mesdames et Messieurs, Robert Kennedy est mort victime du fascisme et de la violence” (senhoras e senhores, o Robert Kennedy morreu vítima do fascismo e da violência) e pediu um minuto de silêncio, após o que disse “Les jeunes, battez-vous contre toute forme de dictature” (jovens, combatam todas as formas de ditadura). Foi um pandemónio, e um numeroso grupo de estudantes que estava nas galerias cantou A Internacional.

          No dia seguinte, de manhã, a PIDE foi ao Hotel Borges, no Chiado, para prender o Maurice Béjart. Algumas bailarinas rodearam-no e ele conseguiu aceder ao telefone da recepção e telefonar ao Embaixador de França (o Béjart era de nacionalidade francesa). O Béjart acabou por sair do hotel acompanhado do Embaixador e da polícia (veio depois a saber-se que o tinham conduzido à fronteira e aí deixado). A polícia política apagou também a parte da gravação em português. O Embaixador da Bélgica (a companhia era belga), mandou cancelar o segundo espectáculo e pediu que toda a companhia abandonasse o Coliseu antes da chegada do público.

          O Maurice Béjart só voltou a Portugal cerca de duas décadas depois para ser condecorado pelo Presidente Jorge Sampaio, numa cerimónia no Palácio de Belém em que lhe pediu publicamente desculpa pelo sucedido. (Uma curiosidade: por esses dias, salvo erro mesmo o dia que deveria ter sido o da segunda representação do Romeu e Julieta, era também a primeira apresentação, no Teatro Nacional de São Carlos, da Giselle dançada pela Margot Fonteyn e pelo Rudolf Nureyev. Correu o boato, mas não sei se é verdade, que o Rudolf Nureyev queria vir à boca de cena, perante o então presidente Américo Tomás, declarar que não dançava por solidariedade com o Maurice Béjart, e que terá sido a Margot Fonteyn a conseguir demovê-lo.) Em qualquer caso, este incidente terá porventura ditado o fim do Festival Gulbenkian de Música, que foi uma das muitas iniciativas de Madalena Perdigão que permitiram ao público português o contacto com figuras cimeiras das artes (como o Igor Stravinsky, entre muitos outros).

          Texto escrito para o projeto “Para uma Timeline a Haver — Genealogias da Dança como Prática Artística em Portugal”, no âmbito do qual Gil Mendo fez a sua última apresentação pública, na Fundação de Serralves.

          Gil Mendo Introdução da Coreologia como disciplina em Portugal 

          Ao longo de quarenta anos, Gil Mendo foi professor de coreologia, nomeadamente do sistema Benesh, inventado pela bailarina Joan Benesh e pelo matemático Rudolf Benesh na década de 1940. Para além do registo rigoroso do movimento, Mendo realça, numa época em que o vídeo impera, o contributo da coreologia para a composição de movimento.

          Introdução da Coreologia como disciplina em Portugal 

          A Coreologia como disciplina foi introduzida no Curso de Dança do Conservatório Nacional, na sequência da Reforma do Conservatório de 1973, por Maria Bessa. Eu próprio tornei-me professor de Coreologia da Escola de Dança do Conservatório Nacional no ano lectivo de 1975/1976, após conclusão do curso do Benesh Institute of Choreology, e mais tarde ensinei notação Benesh na Escola Superior de Dança, até à minha aposentação. Nos meus primeiros anos de ensino deste sistema de notação, com Maria Bessa, contribuímos para a graduação de alguns estudantes, e alguns professores, em Portugal, em colaboração com o Benesh Institute, o Conservatório Nacional e a Academia de Dança Contemporânea de Setúbal. O ensino da Benesh Movement Notation mantém-se hoje, penso, com carácter regular, apenas na Academia de Dança Contemporânea de Setúbal. Mas outras instituições (nomeadamente a ESD) mantêm o ensino da Labanotation (pelo menos em ligação com a análise de movimento baseada na teoria Laban). Hoje podemos, penso, considerar a Coreologia uma disciplina mais ampla do que o estudo de um dos sistemas universais de notação de movimento, até porque se continua a pesquisar no campo da preservação das obras e matérias dos processos coreográficos, com os muitos meios tecnológicos hoje disponíveis. Mas continuo a pensar que o estudo de uma notação (uma escrita) é um contributo importante para a criação de hábitos de organização, visualização, concepção e memorização do movimento. 

          Texto escrito em 2017 para o projeto “Para uma Timeline a Haver — Genealogias da Dança como Prática Artística em Portugal”. 

          Gil Mendo Vinte anos depois: Algumas considerações pessoais

          Atento observador do desenvolvimento do tecido profissional e da programação de dança na cidade do Porto, Gil Mendo integrou o júri do projeto “Interfaces”, onde o NEC produzia trabalhos de colaboração entre jovens criadores independentes. Neste texto, que integra a publicação Ensaio Aberto- Núcleo de Experimentação Coreográfica: Abordagens à Produção Artística, lançada em 2005 aquando da comemoração dos 12 anos do NEC, Gil Mendo descreve uma das suas características éticas enquanto agente das artes, nomeadamente, a não hierarquização entre espaços de apresentação, obras, artistas e carreiras.

          Passadas quase duas décadas sobre o movimento de ruptura aglutinador que se convencionou chamar da Nova Dança Portuguesa (NDP), muita coisa mudou em Portugal. Aquilo que na altura era um movimento herege conduzido por um grupo de criadores jovens que o establishment da dança olhava com desconfiança, veio a ser progressivamente aceite à medida em que o mais vasto movimento de renovação europeu e internacional, no qual a NDP se inseria, se estendeu a Portugal e foi, como era inevitável, pacificamente incorporado.

          Como é natural, e como sempre aconteceu com todos os movimentos de renovação e todas as revoluções, o seu triunfo e a sua generalizada aceitação trazem também consigo a sua banalização. Mas neste caso, porque se tratava de um movimento antidogmático, que precisamente se rebelava contra a imposição de conceitos, formas, processos e vocabulários rígidos, a sua banalização corresponde sobretudo a uma generalizada aceitação da diversidade.

          Não se trata apenas da diversidade de géneros ou de correntes artísticas, daquela diversidade que nos separa claramente embora nos não incompatibilize irredutivelmente e veja-se como foi generalizada no meio da dança a reacção negativa e a sensação de perda, de risco e de empobrecimento provocada pela súbita extinção do Ballet Gulbenkian. Não, a diversidade que é verdadeiramente significativa, aquela que é uma directa consequência do movimento renovador dos anos oitenta do século vinte, é a diversidade que existe no seio duma mesma corrente artística e que nos convida a olhar para cada objecto artístico como se fosse totalmente novo, mesmo se pertencente a uma corrente ou resultante de uma postura artística que julgamos nossas conhecidas.

          Um dos aspectos, da história da dança portuguesa recente, que me parece mais singular é a enorme resistência dos principais protagonistas do movimento da NDP a deixarem-se aprisionar numa fórmula ou encobrir num rótulo, a despeito do sucesso artístico e da aceitação que entretanto alcançaram. Essa postura, de permanente busca e questionamento, faz com que ainda hoje estejam na vanguarda e com que a influência maior que projectam sobre as gerações seguintes seja a de uma ética de verdade e não a de um legado de fórmulas e de processos.

          Pergunto-me por vezes se seria hoje possível um movimento de ruptura, ou que forma poderia assumir um movimento de ruptura neste ambiente de aparente abertura a todas as formas e a todas as pesquisas, embora ainda parco em infra-estruturas para as acolher.

          A minha maior angústia nestes últimos tempos, no entanto, tem sido a de não conseguir acompanhar tudo o que se passa à minha volta. Rara é a semana em que não perco a oportunidade de conhecer um projecto ou o trabalho de um autor que ainda não conheço ou que conheço mal. Pessoalmente, procuro olhar para um projecto ou uma obra com o mínimo possível de preconceitos. Não hierarquizo os autores segundo as idades, isto é, não espero que um projecto seja mais ou menos consistente, ou mais ou menos inovador, consoante a idade e a experiência do autor. Não hierarquizo as obras segundo a dimensão, isto é, não penso que um solo tenha menos peso numa carreira artística do que uma peça de grupo, nem que uma obra muito curta tenha menos peso artístico do que uma obra muito longa.

          Não hierarquizo os lugares: não considero um grande auditório mais do que uma sala estúdio, nem um espaço formal mais do que um espaço informal, em termos artísticos. Tampouco menosprezo as carreiras criativas efémeras: o processo coreográfico contemporâneo induz ao envolvimento criativo dos intérpretes e estimula o desenvolvimento da autoria, e é bem possível que uma experiência de criação que não tenha continuidade numa carreira de coreógrafo tenha um valor e uma importância artística relevante. Assim como não menosprezo o trabalho artístico desenvolvido em meios escolares ou comunitários, à margem do circuito artístico profissional: não apenas por ele ser fundamental para o desenvolvimento artístico e cultural, mas porque no seu seio podem dar-se acontecimentos artísticos que são notáveis precisamente em termos artísticos, independentemente da sua repercussão pública.

          O que é importante é que todas estas hipóteses correspondam realmente a escolhas e não a recursos. Ora eu penso que nós talvez ainda não tenhamos adaptado totalmente o nosso olhar analítico e crítico à dança como ela é hoje (e aqui estou a falar da dança criada por uma geração que não viveu a ruptura da Nova Dança, que cresceu artisticamente já no ambiente de presumível abertura, transdisciplinaridade e informalidade que essa ruptura fomentou), nem adaptado totalmente a rede de infra-estruturas às necessidades para a produzir e difundir. Nisto eu vejo de facto um grão de crise. Mas não é uma crise apenas portuguesa. Nem é crise de maior. É-o em grau suficiente para ir forjando soluções e alternativas que se afiguram marginais, mas que são porventura, em termos de futuro, aquelas onde germinam as coisas mais relevantes. É importante estar-lhes atento. Acredito que, mesmo num clima de abertura e abrangência como aquele em que, felizmente, temos vivido, há sempre um establishment e há sempre margens. E acho importante estar atento às margens, sem nelas procurar interferir, para não ficar prisioneiro de visões estreitas, julgando-as largas, ou duma consciência pobre da realidade que me cerca, julgando-me homem do mundo.

          Gil Mendo Um corpo liberto de ideias feitas

          Para a sua tese de doutoramento sobre as transformações culturais ocorridas em Portugal na década de 1980, vistas a partir do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, a investigadora Ana Bigotte Vieira chega a Gil Mendo para com ele entender o momento que então se vivia na dança, nos corpos, nas instituições e nas práticas.

          Ana Bigotte Vieira: Encontro-me, então, de roda do Serviço ACARTE, e como o Gil Mendo é um especialista em dança vou tentar focar-me nesta área, mas o ACARTE é maior…

          Gil Mendo: É, de facto, e uma das coisas muito importantes do ACARTE é precisamente o cruzamento de linguagens (embora este estivesse na altura já inscrito no que se chamou a Nova Dança, Novo Teatro e Nova Música), mas para mim há um aspecto muito importante do ACARTE que é o cruzamento de públicos: os públicos das formas novas.

          Gostava de começar um bocadinho mais atrás, para perceber onde é que o ACARTE se inscreve quando aparece em 1984. No que diz respeito à dança, o que é que existe então em Portugal, em termos de companhias, programação e ensino?

          Nessa altura havia duas companhias institucionais, que eram a Companhia Nacional de Bailado e o Ballet Gulbenkian; havia uma escola oficial que era a Escola de Dança do Conservatório Nacional e depois existiam uma série de estúdios particulares, como o Estúdio da Ana Mascolo.

          Já nessa altura havia alguns grupos independentes, mas estruturavam-se muito à semelhança do Ballet Gulbenkian, embora houvesse uma tendência para uma menor hierarquização das funções. Já existiam os Estúdios Coreográficos do Ballet Gulbenkian – e é importante falar nisso porque ligo muito aquilo que começou a acontecer nesses Estúdios com o que depois o ACARTE veio apoiar e amplificar, que é surgirem alguns autores – bailarinos do Ballet Gulbenkian – que se começavam a fazer notar por um público mais interessado no novo: os casos da Vera Mantero, João Fiadeiro…

          Depois, fora desse âmbito, também já existia o Grupo Experimental de Dança Jazz, que deu origem à Companhia de Dança de Lisboa e que foi fundado pelo Rui Horta; existia o estúdio do Rui Horta, que acolhia também alguns jovens emergentes como era o caso da Clara Andermatt, o caso do Francisco Camacho e outros. E, portanto, já havia um fenómeno de geração, uma geração que já tinha começado quando saía de Portugal para ir para o estrangeiro fazer estágios, estudar durante alguns períodos: já iam não tanto à procura do aperfeiçoamento técnico, que era o que acontecia tradicionalmente (ou seja, as pessoas iam estudar o que estudavam em Portugal mas com outros mestres, em Londres, em Paris e alguns em Nova Iorque), mas de outras coisas a que não tinham acesso em Portugal (nomeadamente, gente da dança que ia para o Lee Strasberg estudar teatro, ou gente que ia estudar dança de forma mais participativa e criativa: a improvisação, o contacto-improvisação, etc.). E, portanto, já existia essa geração nascente. O ACARTE veio amplificar tudo isto, porque veio dar a estas pessoas a possibilidade de conhecerem muito do que se passava nessa altura na Europa e nos Estados Unidos, mas não apenas, e fazê-los perceber que, na sua ânsia de uma forma diferente de trabalhar com o corpo e de trabalhar com a dança, não estavam sozinhos, que havia um movimento vasto na Europa nessa altura. 

          É preciso também enquadrar o que acontecia antes de existir o ACARTE, há alguns nomes que acho que é justo que citemos, sobretudo dois: um é o da Paula Massano, o outro é o da Olga Roriz, que já tinha um percurso no Ballet Gulbenkian. Ah! E o nome da Elisa Worm: em relação ao que se fazia no campo da dança independente, [espelhava] já uma tentativa de se organizar de uma forma diferente e, sobretudo, quebrar a distinção entre o coreógrafo e o intérprete. O coreógrafo até aí esperava do intérprete um corpo dócil que pusesse em prática a sua ideia, e a partir desta altura começa a surgir em Portugal a vontade de um trabalho em que o intérprete também é um criador, e, portanto, há algo de coreógrafo também no intérprete e a distância hierárquica entre o coreógrafo e o intérprete esbate-se.

          E em relação ao ensino? Como era então o ensino, nomeadamente na Escola de Dança do Conservatório Nacional e, claro, na recém-criada Escola Superior de Dança?

          A Escola de Dança do Conservatório Nacional era uma escola que assentava em duas técnicas: a técnica da dança clássica e a modern dance, que nessa altura era a técnica Graham. Quando nós criámos a Escola Superior de Dança, embora continuássemos a ter essas técnicas como técnicas-base — a escola de dança teve instalação a partir de 1983 e abriu os seus cursos em 1986 —, já houve uma grande influência do que se estava a passar…

          Em 1986, o ACARTE já se encontra em funcionamento…

          Já houve influência, a ideia-base já era o primado da criação e da criatividade e, portanto, quando abriu a escola esta tentava já estar a par do seu tempo. Naturalmente, o Conservatório Nacional a partir daqui também teve uma evolução bastante grande, nomeadamente em relação às técnicas contemporâneas. Nesta altura, meados dos anos 1980, as pessoas, quando pensavam no contemporâneo, pensavam só na técnica Graham, mas já havia muitas outras coisas. E as coisas depois evoluíram bastante. Nesse aspecto eu também considero o contributo do ACARTE muito importante.

          Nas técnicas?

          Noutras maneiras de trabalhar com o corpo. 

          Pois, o que vai de encontro a outra das minhas perguntas. Este tipo de dança, que tipos de corpo cria? Não o corpo dócil a que se referiu…

          Sim, e atlético e moldável. Com o ACARTE — agora já saindo do âmbito dos profissionais da dança — houve nesta altura (final dos anos 1980, início de 1990) bastante querela estética. Ou seja, pessoas que rejeitavam completamente o novo e pessoas que queriam rejeitar completamente o que estava para trás. Mas, em relação ao público em geral, acho que o ACARTE lhe deu oportunidade de descobrir muita coisa do que se estava a fazer no mundo: nomeadamente, a recusa de um modelo de corpo, de uma ideia de dança totalmente pré-determinada, de um trabalho com vocabulários restritos. E em que o coração do movimento quotidiano… em que o coração da voz… o trabalho com o corpo tal como ele é (naturalmente, trabalhando-o para o poder utilizar) [se torna possível, por contraponto a] uma ideia rígida de qual é o corpo possível para a dança, [que] deixou de existir.

          Qual é a relação entre a criação da Escola Superior de Dança e a reforma do Ensino Artístico levada a cabo pela Dra. Madalena Perdigão?

          Madalena Perdigão tinha estado ligada à reforma Veiga Simão, que foi feita em 1971, onde se reformou também o Conservatório. Depois houve umas tentativas de reforma do próprio Conservatório, de reconversão. O Conservatório tinha cinco escolas: a Escola de Música e a Escola de Teatro, que eram do Conservatório original, e depois foram acrescentadas a Escola de Educação pela Arte, a Escola de Cinema e a Escola de Dança.

          Que ainda não são escolas superiores?

          Não, embora o Conservatório em conjunto fosse tutelado pela Direcção-Geral do Ensino Superior. Mas o Conservatório tinha estudantes, na Dança e na Música, desde os sete anos de idade; depois no Teatro, no Cinema e na Educação pela Arte já eram estudantes com o ensino secundário completo.

          Embora na altura não fosse exigido, havia uma separação grande entre a parte académica e a artística. Fizeram-se várias experiências, a Escola de Dança teve a primeira experiência de ensino integrado que depois só viria a ser retomada mais tarde… mas depois houve várias tentativas de reestruturação, porque estas escolas todas cabiam mal naquele edifício e isso deu azo a grandes dificuldades de entendimento, porque em todos os cruzamentos que se procurara fazer, havia sempre a questão do espaço e do que era sentido por quem lá estava há mais tempo – neste caso, a Música – como uma invasão do seu território e isto tornou muito difícil o entendimento. A Madalena Perdigão esteve ligada a todas estas tentativas de reforma. Mas, na realidade, já não foi com ela, em 1983, que foram finalmente criadas por decreto, no papel, as Escolas Superiores. E que se decidiu que elas seriam escolas autónomas e que estariam no Ensino Superior Politécnico. 

          Tinha havido um projecto muito interessante, ainda sob a égide de Madalena Perdigão, que era um curso de Educação pela Arte que fornecia o apoio pedagógico para a formação de professores destas áreas todas. Acabou por não se conseguir entendimento à volta deste projecto…

          É a seguir a este projecto que a Dra. Madalena Perdigão regressa à Fundação Calouste Gulbenkian e funda o ACARTE…

          Não me lembro se houve alguma coincidência entre o estar neste Gabinete do Ensino Artístico no ministério e o ACARTE. A Madalena Perdigão esteve sempre ligada à Fundação Gulbenkian: já tinha sido a criadora do Festival Gulbenkian de Música, já tinha sido a criadora do Ballet Gulbenkian, e  fundou o ACARTE, que abriu em 1984, e depois vieram os Encontros ACARTE [em 1987]. Embora a actividade do ACARTE fosse uma actividade ao longo do ano, havia este momento no ano que eram os Encontros ACARTE, que era um festival, em Setembro, todos os anos. Houve algumas coisas muito inteligentes que a Madalena Perdigão fez: uma delas foi ela chamar a trabalhar consigo como co-directores dos Encontros ACARTE o George Brugmans, que é um holandês, na altura director do festival Springdance, e o Roberto Cimetta. Porque é que isto era muito importante? Porque existia nesta altura na Europa uma rede: tinha-se começado a constituir uma rede de profissionais, programadores e produtores, que procuravam garantir a sobrevivência destas novas formas. Até aí o que é que acontecia? Os teatros trabalhavam sobretudo com as companhias, companhias estabelecidas, com um corpo permanente de bailarinos ou actores, ou o que fosse, e este movimento novo de renovação na Europa tinha sido compreendido por estes programadores, que eram muito próximos desta geração de criadores… E, para garantir o sucesso e a sobrevivência destes artistas, destas formas [artísticas], era necessária uma circulação internacional. Eles não podiam mais existir completamente encerrados nos seus países. Então começaram a criar essa rede e eram muito atentos ao que se estava a passar em cada país. E, nesse aspecto, o George Brugmans e o Roberto Cimetta foram preciosos co-directores com a Madalena Perdigão. Era uma grande qualidade que tinha: saber fazer-se acompanhar de pessoas informadas e não fazer as coisas meramente porque achava que era assim. E depois havia este festival que era uma coisa fascinante, porque, sendo uma coisa organizada muito profissionalmente – os espectáculos começavam à hora certa, etc. –, tinha um clima… que era um clima de festa! E juntava, de facto, os públicos… Os públicos de teatro, que tinham começado a ir lá para ver o Novo Teatro, começaram a ir também para a Nova Dança e a Nova Música, e o mesmo acontecia com os outros. E estes momentos eram também momentos de cruzamento de públicos com artistas. Depois a outra coisa muito importante foi que foram organizadas uma série de conferências em que se juntavam alguns dos nomes mais importantes que escreviam,  nessa altura, sobre dança e que apoiavam – em termos teóricos – a dança e não só… já  também com portugueses que começavam a despertar para estas coisas e era muito informativo para o público. Ou seja, as bases teóricas que sustentavam este movimento estavam ao alcance dos espectadores. Por outro lado, paralelamente à programação de espectáculos, havia a organização de workshops e os artistas portugueses tinham acesso ao contacto com os artistas de outros países que, digamos assim, lideravam este movimento, e que vinham apresentar o seu trabalho em Portugal.

          Lembra-se da abertura do Centro de Arte Moderna [CAM], em 1983? Será que é relevante o facto de o ACARTE estar localizado no primeiro museu de arte moderna do país?

          A criação do CAM teve que ver com a necessidade que o José Azeredo Perdigão sentiu, a certa altura, de ter um lugar onde expor tudo aquilo que a Fundação Gulbenkian foi adquirindo já depois da morte de Calouste Gulbenkian. E, naturalmente, isto foi também muito importante porque foi um espaço de amostragem da arte contemporânea. E o facto de, junto a isto, se criar o ACARTE com um auditório, uma sala polivalente, e de começarem a ter as artes performativas ao lado da arte contemporânea, fazia todo o sentido, eram mais barreiras que tinham sido quebradas. Era importante que as pessoas não continuassem a dizer: “Eu sou espectador desta forma de espectáculo” ou “Eu não, eu gosto é de pintura ou escultura”, esse cruzamento foi realmente muito importante. Mas quando o ACARTE surgiu, a sua intenção era também pedagógica; aliás, tinha também o Centrinho para crianças [noutro pavilhão].

          Como conheceu Madalena Perdigão?

          Já não sei exactamente como a conheci. Conheci-a no âmbito do funcionamento do ACARTE. Também em relação à Escola Superior de Dança, tivemos na altura uma revista da Escola e eu lembro-me de, logo para o primeiro número, a ter entrevistado.

          É possível traçar umas linhas do que pode ser a filosofia de Madalena Perdigão para as artes, procurando esboçar uma continuidade entre o Ballet Gulbenkian, os Festivais Gulbenkian de Música e a reforma do Ensino Artístico?

          Eu acho que teve um papel fundamental, em várias alturas, em Portugal. Era uma pessoa, por um lado, muito prática – a formação dela era de Matemática –; por outro, de trato fácil. Uma pessoa com uma grande visão, com um grande sentido de serviço público – e em relação às artes. A sua linha condutora, parece-me, foi sempre que, por um lado, Portugal estivesse a par do universo que consideramos mais evoluído e, por outro lado, que isso fosse acessível ao comum das pessoas – e daí esse interesse pela pedagogia, pelo trabalho artístico com as crianças, pela Educação pela Arte, onde também foi muito importante. Era uma pessoa que queria favorecer o desenvolvimento artístico profissional, mas também tornar a criação artística acessível a toda a gente. Para mim, trabalhou sempre nestas duas áreas.

          Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte – ACARTE. Em que debates se inseriam estas palavras?

          Pois, animação era uma coisa de que já se falava bastante em Portugal, na altura, e que tinha que ver, de facto, com levar as actividades artísticas à população, falava-se muito em animação, era uma palavra que tinha entrado no nosso vocabulário a seguir ao 25 de Abril e que tinha que ver com a divulgação e a acessibilidade. E Educação pela Arte tinha que ver com a pedagogia e tinha, na altura, uma corrente de trabalho artístico com crianças e de favorecer o desenvolvimento humano através da prática artística. Criação artística, obviamente, o ACARTE, para além de acolher muitas coisas estrangeiras, também co-produzia e apoiava…

          Uma ideia de que a cultura não é apenas o acesso às obras-primas, como nos anos 1950… mas também a criação contemporânea.

          Exactamente. Que é o que está a nascer neste momento, o que está a ser criado neste momento.

          Tentando entender mais a fundo os anos 1980… Por exemplo, e penso em algum teatro, é como se o 25 de Abril “levasse as artes para a rua”, como se costuma dizer etc. Mas há uma série de outras coisas, entre elas a abertura de um museu de arte, que demoram mais de dez anos a acontecer… 

          Em primeiro lugar, a história do teatro é diferente da história da dança. O teatro já tinha uma tradição de resistência política, e já existiam os grupos independentes, que tinham sido criados na fase final do salazarismo. Depois houve ali um período em que o que começou a acontecer foi que os mais jovens, os que já tinham chegado ao teatro depois disso, sentiam-se com pouco espaço. E então houve ali alguma fricção. Depois foi ultrapassado, sobretudo porque os grupos de teatro independente, esses que existiam já antes, também a certa altura compreenderam a necessidade de se abrirem aos outros e de darem espaço aos que tinham acabado de chegar. Portanto, a história do teatro é um pouco diferente, eu julgo que aqueles mais jovens que se reviam completamente no ACARTE eram realmente esta geração, uma geração já pós-25 de Abril e que teve também ali a oportunidade de conhecer muita coisa, porque o ACARTE trouxe o teatro físico… enfim, muitas coisas que eram pouco conhecidas em Portugal.

          Para além do ACARTE, que outras coisas havia? Penso em instituições, ou mesmo em termos de consumos culturais. Ou seja, o ACARTE move massas numa altura em que ainda não há concertos de estádio… há a Festa do Avante que é também um fenómeno… há o Rock Rendez-Vous…

          Daquilo que conheço, daquilo que vivi e em que participei, no campo da dança havia a Companhia Nacional de Bailado, que nesta altura era uma companhia de repertório clássico. Havia o Ballet Gulbenkian, que tinha tido uma evolução muito interessante a partir do Milko Šparemblek – e depois essa evolução ganhou consistência com o Jorge Salavisa, que decidiu tornar o Ballet Gulbenkian uma companhia contemporânea. E havia também o estúdio coreográfico do Ballet Gulbenkian, que também tinha sido criado pelo Milko Šparemblek, e que também foi muito apoiado pelo Jorge Salavisa. Na dança estes eram os principais. E depois existiam, de facto, algumas companhias e alguns coreógrafos que trabalhavam já no universo independente, numa altura em que não havia os apoios que há hoje – que são uma coisa que a Portugal chegou tardiamente –, mas as pessoas tentavam realizar o seu trabalho. Houve a experiência do Rui Horta, ele foi talvez quem demonstrou que era possível a existência de uma dança independente. Depois, no Porto, havia o Pirmin Treku, que era o expoente no campo da dança clássica, e havia o Ballet Teatro, da Né Barros e da Isabel Barros, que era a escola, o centro contemporâneo, que também teve importância. 

          A sociedade portuguesa, está a mudar muito rapidamente nos anos 80. O aparecimento da “noite”, do rock, uma série de novos consumos… o Frágil foi-me referido frequentemente em entrevistas como o local onde se continuava a noite depois dos espectáculos.

          Em Lisboa houve esse fenómeno do Frágil. Nós íamos todas as noites e era o local onde nos encontrávamos ou onde prolongávamos o dia… tínhamos ido a um espectáculo no ACARTE e a seguir íamos ao Frágil, normalmente os artistas também vinham. Nesse aspecto, o Frágil juntou a noite lúdica com a troca cultural, depois mais um bocadinho para a frente isto espalhou-se para o Majhong, então era ali, naquela Rua da Atalaia: subia-se e descia-se, as pessoas encontravam-se nas esquinas… As pessoas nessa altura dialogavam muito, na medida em que, com os parcos apoios que existiam, não estavam completamente absorvidas no seu trabalho. E então tinham muita oportunidade de se encontrar, de falar, de trocar. E era curiosa a “noite” quando nasceu: era uma extensão da actividade cultural.

          Sim, entrevistei o Paulo Graça [um dos primeiros desenhadores de luz no país] e ele a dada altura também faz luzes para coisas no Frágil, para as Manobras do Maio…

          Claro, o ambiente era propício. Depois havia outras coisas que iam acontecendo; por exemplo, a galeria d’Os Cómicos, que acolhia também alguns espectáculos… enfim, alternativos, não eram espectáculos para palco… havia uma sede de trabalhar de maneira diferente, por um lado, mas depois havia uma vontade muito grande de afirmação de uma geração.

          Uma geração que se demarcava da anterior?

          Em parte, sim. Claro que eu, em termos de idade, sou mais velho, mas senti-me completamente identificado com esta geração. Demarcava-se na medida em que queria afirmar uma forma diferente de trabalhar. E teve algumas resistências, que mais tarde se esbateram. Há uma figura, infelizmente desaparecida, que é importante referir, que foi muito importante para muita gente das várias áreas artísticas, que era o José Ribeiro da Fonte. Foi outra personalidade com esta grande capacidade de abrangência: muito importante para essa geração. Era um homem um pouco mais velho, com peso social, chegou a ser director artístico do São Carlos e era um homem, por um lado, muito aberto ao novo, de uma cultura muito vasta e transversal, e que foi um apoio muito grande a esta geração de criadores. 

          É possível ver aqui uma escola? Que forma uma geração, até a nível teórico…

          Não sei se lhe posso chamar uma escola, mas, de alguma forma, sim. O ACARTE favoreceu os encontros. Não era por acaso que se chamavam Encontros ACARTE, porque eram realmente encontros, encontros de pessoas com funções diversas. Encontros entre artistas, entre artistas e programadores, entre artistas e teóricos, entre teóricos, e encontros de toda esta gente com o público. E o público sentia-se realmente participante. É impossível reproduzir isto, mas eu recordo-me bem daquela ligação no jardim da Gulbenkian entre o CAM, o auditório ao ar livre e depois o edifício mesmo da Gulbenkian e nós circulávamos por ali, e depois havia sempre o bar, às vezes passava cá para fora e era possível as pessoas cruzarem-se e conviverem.

          Em dois anos, entre  1986 e 1988, como se lê nos  textos dos programas escritos por Madalena Perdigão, há um crescimento rapidíssimo da dança. O que é que se passa nestes dois anos?

          O ACARTE não veio criar um universo novo, veio dar visibilidade a esse universo e permitir os encontros no âmbito desse universo. Mas isso correspondeu a um momento muito rico na Europa em relação à dança. E em Portugal isto também era assim: é uma geração cheia de capacidade inovadora, vontade de fazer coisas e qualidade artística. E foi muito encorajada por este clima que o ACARTE criou. Mas era natural que as coisas evoluíssem assim rapidissimamente, porque enquanto antes tinha acontecido haver pessoas mais ou menos isoladas com ideias que antecipavam o que viria, o que surge é uma geração. 

          E a nível estético – que tipo de corpos, espectáculos, movimentos, relação com o espaço, cenários, enfim… que corpos aparecem em cena?

          Não há um tipo de corpo. Eu usaria uma palavra para ligar a série de coisas que enumerou, e isso era uma grande preocupação: a verdade. Verdade e coerência, não fazer coisas por fazer. Os corpos eram muito diversos, mas eram sobretudo corpos verdadeiros. E depois o vocabulário que esses corpos usavam também era verdadeiro em vários sentidos, era verdadeiro porque ia buscar coisas do dia-a-dia, que não faziam parte de nenhum cânone ou de nenhum vocabulário predeterminado: eram os movimentos que os corpos podiam fazer e que faziam. E verdade no sentido em que o corpo não está a ser violentado para ir além das suas próprias capacidades. E [no sentido em que] o que vemos como virtuoso já não é o que ninguém pode fazer, mas aquilo que, com o corpo que tenho, posso fazer e transmitir aos outros e aquilo com que os outros mais facilmente se identificam, com que mais empatia sentem, virtuoso porque é verdadeiro. Por isso é que eu falo em verdade, porque acho que estava muito inscrita nas preocupações dessa geração.

          No sentido de não artifício…

          Exactamente. No sentido de não recorrer ao artifício, ou recorrer o menos possível ao artifício, de ser verdadeiro no seu próprio corpo.

          Isso é interessante até em questões como a da representação…

          Não. Representação havia, obviamente há sempre representação. E quando digo verdadeiro, não é: eu estou em cena a ser eu próprio. É: estou em cena a usar o meu corpo como ele é, e exploro ao máximo o que o meu corpo é capaz de fazer e não estou permanentemente a violentá-lo. Eventualmente não estou a ser eu próprio, mas não estou a fingir.

          No entanto, algumas dessas coisas são violentas, estou-me a lembrar do Wim Vandekeybus com as suas propostas-limite…

          Sim, claro. Mas são violentos dentro do que aqueles corpos podem…

          E não dentro do que uma linguagem exige aos corpos…

          Exactamente.

          De que modo é que isto se cruza com uma democratização do corpo, uma certa libertação dos costumes, muito recente no país…

          Tem tudo que ver, obviamente, porque aqui o que se pretende é mesmo essa democratização. Claro que não posso dizer que aquilo era acessível a toda a gente, porque nem toda a gente estava para ali virada, mas, para quem quisesse, era-lhe acessível, de facto. Não se estava a tentar que as pessoas olhassem para o que se passa em cena e ficassem fascinadas – aquilo é uma coisa que eu nunca poderei fazer –, a mensagem que se queria transmitir era uma mensagem de acessibilidade. 

          Como uma geração de jovens que se pode exprimir livremente, até livremente das questões ideológicas em sentido mais directo e explícito…

          Exactamente.

          O que não quer dizer que não partilhe de uma série de ideologias…

          É ideológica. Não se expressa é por clichés. E logo a seguir a Abril nós ainda podemos ver surgirem uma série de clichés. E aqui, de facto, o cliché é recusado…

          Tudo o resto decorre, portanto, daí: os cenários, a relação com o espectador, a relação com a palavra… O que era o Novo Teatro-Dança da Europa, que dá o subtítulo aos Encontros ACARTE?

          O Novo Teatro-Dança da Europa veio trazer sobretudo as coisas da Dança-Teatro alemã, porque, no meio disto tudo, também é uma corrente importante. Naturalmente que a dança alemã tinha as suas características próprias porque tinha uma herança do movimento expressionista e é curioso que a Pina Bausch só chega a Portugal em 1986 ou 87… Mas o ACARTE já existia desde 84. Porque uma coisa é a Dança e Teatro, outra coisa é a Dança-Teatro, não me estou a recordar se houve algum ciclo dedicado mesmo à Dança-Teatro…

          Usei a expressão porque os Encontros ACARTE têm este subtítulo…

          Sim, claro. Mas é Novo Teatro, Nova Dança, não está necessariamente a focar uma coisa a que se chamou Teatro-Dança, ou Dança-Teatro.

          De que modo é que esta iniciativa se pode relacionar com a entrada de Portugal para a CEE?

          Eu não acho que se possa relacionar directamente, mas havia um grande desejo por parte dos portugueses que tinham sido muito arredados da Europa ao longo de quatro, quase cinco, décadas, e tinham um grande desejo de regressar à Europa, e de partilha com os outros europeus. Há, de facto, nesta geração um grande desejo da Europa…

          Até no país…

          Claro. E, portanto, é natural que isso se reflectisse, mas não vejo uma relação directa, vejo é o contexto, que nos iria conduzir logicamente à integração na então CEE.

          Quem é Roberto Cimetta? O que é o IETM?

          O Roberto Cimetta é um italiano, infelizmente desaparecido muito jovem, que fundou o Inteatro em Polverigi, que foi um dos iniciadores deste movimento europeu. Foi também um dos iniciadores do IETM, que é Informal European Theatre Meeting, uma espécie de associação criada para favorecer o conhecimento, a troca e, de uma maneira informal, pôr  os produtores, sobretudo nessa altura os programadores, e ajudar a criar um circuito europeu.

          Nesta altura quase não há programadores em Portugal…

          Não, no início não está lá ninguém, muito embora como está lá o Roberto Cimetta, que é quem acolhe essa primeira reunião, e o George Brugmans, que são co-directores do ACARTE… eu não sei se nalgum destes encontros não terá estado também o António Augusto Barros. Porque esqueci-me de falar de uma outra realidade que existiu nessa altura que era a Bienal Universitária de Coimbra, que foi também um factor de internacionalização, que era um festival que acolhia autores sobretudo do teatro, mas também foi o primeiro, antes da existência do ACARTE, a acolher a Nova Dança Portuguesa. 

          Eu participei no IETM a partir de 1991, foi anterior à Europália, quando houve o encontro do IETM em Lisboa, no ACARTE, em que eu fui convidado para o Comité Executivo…

          Mas já tinha ido antes ao IETM?

          Não, eu já tinha tido encontros com algumas pessoas, encontros muito promovidos pelo George Brugmans, o Roberto Cimetta infelizmente já não era vivo, com outros membros do IETM e depois a partir de 1990 tivemos uma participação alargada de vários portugueses e ainda hoje… 

          O que é este IETM inicial? De que instituições estamos a falar?

          Do Springdance, do Inteatro, do Kaitheatre, da Onda, mais uma série deles… Em Espanha, provavelmente, o Teatro Central de Sevilha, o Feliz Meritis. Em Amesterdão, uma outra organização, que era a Mickery…

          O que é o Movimento da Nova Dança Europeia?

          É um movimento que recusa uma dança dominada por cânones e por vocabulários predeterminados e, portanto, de alguma forma, faz a ponte com a dança pós-moderna norte-americana e com um corpo liberto de ideias feitas sobre o que é a dança e o que não é a dança e promove, portanto, o encontro entre a dança e o quotidiano.

          E de que modo é que se pode dizer que isto é um movimento de pensamento? Uma forma contemporânea de produzir conhecimento sobre o mundo?

          Eu acho que é porque aqui o pensamento é muito importante e este corpo transmite pensamento também. E também um entendimento do mundo.

          Ainda sobre a dança europeia: de que modo é que a Nova Dança Europeia ou mesmo a criação do IETM se podem inserir em, ou se cruzam com, uma recém-formada Europa da cultura? É que, se formos a ver, a União Europeia estava a alargar-se, a própria União Europeia deixa de ser só económica, como nos anos 1950…

          Hesito em atribuir essa responsabilidade ou dar esse crédito a esta fabricação da CEE. Eu acho que a Europa da cultura já existia antes, e que a cultura foi sempre transfronteiriça. E o que acontece aqui é que, mercê do derrube das fronteiras, que foram derrubadas para permitir a circulação dos bens económicos, dos produtos e facilitar o comércio… naturalmente a cultura aproveitou isso e, de alguma forma, as actividades culturais também beneficiaram com isso, mas estas ideias que alguns homens políticos – honra lhes seja feita – defenderam para favorecer uma Europa de paz, de entendimentos e de convivências pacíficas… mas isso já existia, nomeadamente nas actividades culturais e nos homens de cultura, eles eram era homens políticos que tinham a possibilidade de dar forma jurídica a estas coisas…

          E mesmo certas coisas que aparecem: co-produções, certos modos de organização do trabalho…

          Claro, isso tem depois que ver com uma evolução efectivamente do mundo económico europeu e de uma Europa sem fronteiras rígidas entre países, onde se circulava livremente, onde se trocava livremente, onde se podia mais facilmente estabelecer esse tipo de contrato, co-produção, e fazer coisas em conjunto.

          Qual é a importância directa do ACARTE na programação de outras instituições?

          Eu julgo que, eventualmente, o exemplo do ACARTE terá estimulado outros programadores, é preciso dizer que até há não muito tempo havia muito poucos programadores de dança em Portugal. A figura do programador teve uma grande importância a certa altura, e quando se fala das origens do IETM e desses programadores europeus é preciso reconhecer-lhes uma grande importância. Hoje é claro que o programador também é importante, mas também se criou uma mística do programador, como se fosse um artista, o que contesto, não acho que o programador seja um artista, acho que o artista é o artista e o programador serve a relação entre o artista e o público. Mas durante muito tempo tivemos que batalhar para que se compreendesse que não chega ter um teatro ou um centro, mas é preciso ter lá alguém que o faça funcionar e não é só a equipa técnica, também há alguém que é o programador e que não pode ser lá o vereador da cultura da Câmara. É preciso alguém que esteja no terreno, que tenha contactos, que vá ver coisas; que conheça e que estabeleça as relações. Quando apareceu o ACARTE, ainda não havia assim tantos programadores.

          Que programadores existiam?

          Para dizer a verdade, até nem me lembro de nenhum. Naquela altura, que eu conhecesse, o António Augusto de Barros e a equipa dele, da Bienal Universitária de Coimbra. Há-de haver outros…

          António Pinto Ribeiro diz que Madalena Perdigão é provavelmente uma das primeiras programadoras portuguesas.

          Tenho medo de ser injusto ao não indicar nomes, se calhar havia pessoas no Porto a fazer esse trabalho que eu não conhecia. Aqueles que eu conheço, porque na minha actividade tive directamente que ver com eles, realmente o António Augusto de Barros, sem dúvida alguma; a Madalena Perdigão, claro; o António Pinto Ribeiro, que veio logo a seguir; eu próprio comecei a ser programador na Europália, e depois no CCB em 1993…

          De que modo é que a experiência do ACARTE o influencia como programador?

          A experiência do ACARTE a mim influenciou-me muito porque me fez descobrir a geração na dança com a qual eu me identificava, uma geração vinte anos mais nova do que eu. Depois o que me influenciou mais em relação à minha actividade no CCB foi a actividade que eu desenvolvi enquanto um dos fundadores do Forum Dança e a actividade que desenvolvi no IETM, o cruzamento destas duas coisas.

          Uma nova escrita, por último. A Nova Dança fez-se acompanhar pela emergência de novos críticos. Em que difere esta escrita da anterior? Quais os seus media?

          Quando [esta nova escrita] surge, surge paralelamente a esta geração de que eu te falei – e a primeira pessoa que aí teve um papel muito importante foi o António Pinto Ribeiro. O que acontecia anteriormente? Os críticos já existiam, estavam muito atentos às coisas mais institucionais, e não se atreviam sequer a dar espaço a isto que estava a surgir. O António Pinto Ribeiro, pelo contrário, fez destes novos criadores o centro.

          Escrevendo no Expresso?

          No Expresso. Paralelamente, surge o André Lepecki, que começa por escrever no Blitz, mais tarde é o Ezequiel Santos que escreve no Blitz… e depois vão surgindo… surge a Maria José Fazenda, que escreve no Público, a Cristina Peres, que escrevia no Se7e primeiro e depois no Expresso

          E para finalizar: de que modo pode a memória do ACARTE ser importante?

          É importante porque é importante não perdermos a memória das coisas… Para vivermos bem o presente e projectarmos bem o futuro é importante não esquecermos o que se passou. E em relação àquilo que se chamou a Nova Dança Portuguesa, que hoje se chama Dança Contemporânea Portuguesa, ela tem uma história, e não deve ignorar a sua história. E também o próprio mundo das artes performativas, a sua apresentação em Portugal, tem uma história e o ACARTE é importante nessa história. Nós não podemos esquecer a história e é verdade que nos últimos anos não se tem falado muito no ACARTE, mas eu julgo que, para muitas pessoas, e não sou apenas eu e mais meia dúzia, essa história está muito presente. E a gratidão que nós sentimos por esse momento ímpar…

          Quase um momento fundador, um mito de origem?

          Pois, é um início de uma forma organizada de mostrar e partilhar. Não digo que seja o início de outras coisas, porque havia já coisas que tinham vindo a emergir, mas é de facto um início, em Lisboa, de uma forma de mostrar e partilhar. Eu tenho muito medo de dizer “olha, ali é que é o início” porque realmente já existia a BUC e teve um papel importantíssimo…

          Entrevista realizada na Escola Superior de Dança, sita na Rua de O Século, em Lisboa, a 25 de julho de 2011, transcrita por Pedro Cerejo, editada por Ana Bigotte Vieira e João dos Santos Martins.

          Gil Mendo Testemunho

          No dia 29 de abril de 2008, Dia Mundial da Dança, a REDE – Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, na altura sob a direção de João Fiadeiro (RE.AL) e de Filipe Viegas (Bomba Suicida), decide homenagear Gil Mendo, nomeando-o seu primeiro sócio-honorário. A homenagem decorre no festival Festa da Dança, na LX Factory, em Lisboa, num momento de luta contra a precariedade do sector artístico, e conta com a presença do então ministro da Cultura, António Pinto Ribeiro. O testemunho que Gil Mendo partilha faz uma retrospetiva de fundo sobre os precedentes da Nova Dança Portuguesa e o panorama posterior, refletindo sobre o seu papel de facilitador e mediador entre artistas, público e instituições.

          TESTEMUNHO

          O movimento da Nova Dança Portuguesa, que julgo que podemos com justeza considerar o motor principal, embora não necessariamente o único, do desenvolvimento notável que a dança contemporânea independente portuguesa conheceu nestes cerca de vinte anos, foi obra de muita gente. Nem de outra forma se lhe poderia ter chamado ‘movimento’. O meu papel nele foi um de entre muitos, e fui muito menos ‘fazedor’ do que muitos outros. Por isso me sinto sempre um pouco embaraçado e constrangido quando me é atribuído um protagonismo ou perícia de que não me considero detentor. Os protagonistas de um movimento artístico são os artistas, em primeiro lugar, e de seguida os produtores e organizadores que o acolhem e viabilizam e os críticos e ensaístas que o contextualizam e divulgam. Ora eu fui sempre mais um ‘facilitador’ (no sentido do termo britânico facilitator) e, ocasionalmente, um intérprete das ideias novas junto das instâncias a que tinha acesso. Não se interprete isto como falsa modéstia, nem sequer como modéstia. Tenho consciência da importância que a minha acção teve em certos momentos e foi uma acção consciente e empenhada. Mas teve importância apenas no contexto da activa existência dessa comunidade de artistas, produtores, pensadores e pedagogos que deram e dão forma a este movimento.

          É por ter tão presente e considerar tão importante essa rede complexa e diversa de iniciativas e de acções que em dada altura confluíram num movimento que até hoje não parou, e os gestos isolados e solitários que precederam e incentivaram esse movimento, que me pesa a responsabilidade de um testemunho que é forçosamente parcial. Ao prestar-me a dar este testemunho, faço-o por isso no pressuposto de que de mim se espera apenas isso mesmo, um testemunho baseado na minha própria experiência, no que vivi e acompanhei, e não um relato histórico detalhado, só possível de ser feito com a distância que garante a objectividade e a isenção. Decerto, neste testemunho, deixarei por referir muitos protagonistas e acontecimentos que foram relevantes, do que peço antecipadamente desculpa.

          Sendo hoje este movimento protagonizado por um grande número de jovens artistas e profissionais que não viveram a sua génese, e havendo entre eles não poucos que têm uma predisposição natural para o estudo e a investigação, gostaria de encorajá-los a um estudo rigoroso sobre esse período tão interessante da dança portuguesa, sobre o qual há já alguns valiosos testemunhos publicados, nomeadamente nos livros Movimentos Presentes, editado pelas Danças na Cidade e a Cotovia em 1997 e coordenado por Maria José Fazenda, e Dez Mais Dez, editado em 2001 pela Re.AL e pelo Forum Dança.

          A minha atenção a este movimento e o meu envolvimento com ele data do final da década de oitenta. Até então, e desde 1976, tinha sido professor da Escola de Dança do Conservatório Nacional e estado sobretudo envolvido nos esforços, e nalgumas lutas, pela preservação e desenvolvimento do projecto do Conservatório Nacional, com as suas cinco escolas, de Cinema, de Dança, de Educação pela Arte, de Música e de Teatro. Tinha criado fortes laços de solidariedade profissional e pessoal com alguns colegas na luta pela consolidação de um ensino artístico que fosse simultaneamente rigoroso, culto, democrático e propiciador da criatividade. Desde 1983 era membro da comissão instaladora da Escola Superior de Dança, e foi aí que este movimento nascente me encontrou.

          Sentia-se, na altura, no mundo da dança em Portugal, a emergência de uma geração que dificilmente se revia nos cânones então dominantes: o tecnicismo, a rigidez de vocabulários pré-determinados, a hierarquização de funções entre criadores e executantes, a estreita limitação do que se considerava ser ‘dança’, a estilização do movimento que, pretendendo exaltar uma visão do corpo, anulava todas as diferenças identitárias, nomeadamente de sexo e de género.

          Como os seus antecessores, estes jovens deslocavam-se bastante ao estrangeiro para estudar. Mas, ao contrário daqueles, que iam quase sempre à procura de aperfeiçoamento, como executantes, nos estúdios dos grandes mestres, estes iam à procura do desenvolvimento criativo, dos workshops de composição e de improvisação, da experiência de outras abordagens da dança e do processo criativo, e mesmo do estudo de outras linguagens performativas. E, nestes períodos de estudo no estrangeiro, foram encontrando outros artistas com quem discutiam e partilhavam ideias e com quem foram estabelecendo laços e cumplicidades que mais tarde viriam a ser muito importantes para o movimento da Nova Dança Portuguesa. Esta era uma geração verdadeiramente cosmopolita.

          Nos Estúdios Coreográficos do Ballet Gulbenkian, em iniciativas da Companhia de Dança de Lisboa e em espaços alternativos começavam a destacar-se os trabalhos de Vera Mantero, João Fiadeiro, Francisco Camacho, Clara Andermatt, Paulo Ribeiro e outros.

          O estúdio de Rui Horta, na Rua Camilo Castelo Branco acolhia uma parte substancial destes jovens artistas e proporcionava-lhes espaço de trabalho.

          Paula Massano, que sempre recusou integrar-se nas estruturas formais de dança da época, vinha há anos a defender e a apresentar uma dança que pensava o seu tempo e que se cruzava com outras linguagens, nomeadamente as artes plásticas, e que foi incontornável precursora do que viria a seguir. Foi ela, creio, a responsável por atrair o interesse de outros artistas, como Nuno Carinhas, ou pensadores, como António Pinto Ribeiro, sobre a dança.

          Olga Roriz, Margarida Bettencourt e alguns outros bailarinos do Ballet Gulbenkian apresentavam-se como autores fora do Ballet Gulbenkian sempre que os seus projectos se não adequavam à estrutura de uma companhia.

          A Bienal Universitária de Coimbra, BUC, estava atenta a este movimento emergente e tinha começado a acolhê-lo, apresentando criações de Paula Massano e de Vera Mantero.

          Uma boa parte destes artistas tinha em José Ribeiro da Fonte, homem de vastíssima cultura e de uma capacidade ímpar para compreender o que estava a emergir, um confidente e conselheiro imprescindível.

          Antes de chegarem às instituições, as ideias novas iam-se formando e clarificando em intensas e inspiradoras conversas de rua ou nos bares do Bairro Alto.

          Havia no ar esta sensação de emergência de algo novo, mas não havia ainda um mínimo de tecido estrutural que viabilizasse uma mudança que precisava de ser sustentada por outras formas de organização, a despeito das tentativas de constituição de alternativas (o Pós d’Arte, de Vera Mantero, Francisco Camacho, João Fiadeiro e André Lepecki, o Aparte, de Margarida Bettencourt e João Natividade, o Dança Grupo, de Elisa Worm, entre outros).

          O Serviço ACARTE, criação de Maria Madalena de Azeredo Perdigão, iniciara a sua programação regular de Nova Dança, Nova Música e Novo Teatro e depois a realização anual dos Encontros ACARTE. Madalena Perdigão, que fora já a responsável, entre muitas outras coisas, pela criação do Festival Gulbenkian de Música, que na década de 60 nos permitira algum contacto com grandes nomes da criação contemporânea e que quebrara anualmente o asfixiante isolamento em que vivíamos, teve uma vez mais uma acção visionária. Assessorada por George Brugmans, então director do Festival Springdance, de Utrecht, na Holanda, e por Roberto Cimetta, fundador e director do Inteatro, de Polverigi, Itália, que com ela co-dirigiam os Encontros Acarte, começou a trazer a Lisboa sistematicamente a vanguarda das artes performativas europeias e norte-americanas. E a proporcionar aos jovens coreógrafos e performers portugueses o contacto directo com os seus pares europeus e norte-americanos, através dos muitos workshops organizados, e a todos, artistas, críticos, estudiosos e público em geral, a oportunidade de pensar e discutir o pujante movimento de inovação que estava, desde o início dos anos 80, a crescer nas artes performativas na Europa. O ACARTE pôs-nos realmente no mundo. Proporcionou-nos descobertas emocionantes, encontros fundamentais, o acesso a redes informais – de organizadores, de críticos, de artistas – que já então estavam activas na Europa e nos Estados Unidos. E, talvez o mais importante de todos os encontros, o encontro de um público, minoritário que fosse. Quem viveu essa época não pode ter esquecido o clima de festa, a sensação empolgante de estar a viver algo de muito forte, uma sensação de pertença que nos unia, espectadores, organizadores, artistas, pensadores, em inesquecíveis dias e noites na Sala Polivalente, no Anfiteatro ao Ar Livre, no Self-Service do Centro de Arte Moderna, no Grande Auditório e nos jardins da Fundação Gulbenkian. O ACARTE deu um contributo sem paralelo para a criação de um desejo de comunidade, de movimento.

          Na Escola Superior de Dança, tínhamos, antes de iniciar o curso, resolvido experimentar, através de workshops, algumas das matérias que queríamos incluir no currículo, e ao mesmo tempo estabelecer um primeiro contacto com alguns daqueles que pensávamos poderem vir a encarregar-se de as estruturar e ensinar. Foi assim que convidámos António Pinto Ribeiro para um seminário no campo da Estética e História das Artes, matéria que ele viria a ensinar quando o curso abriu em 1986, e Madalena Victorino para um workshop de Dança Educacional, matéria que ela viria igualmente a ensinar no primeiro curso.

          Eu já antes conhecia o António Pinto Ribeiro, tinha-o conhecido através da Paula Massano, e fascinava-me a sua capacidade de análise e de fundamentação teórica deste movimento nascente e a forma aliciante como expunha as suas ideias. A sua colaboração com o Expresso deu um contributo valiosíssimo a este movimento, destacando o trabalho destes criadores então emergentes e chamando a atenção para a sua importância e relevância cultural. O que o António Pinto Ribeiro fez no Expresso foi dar protagonismo total ao trabalho de artistas emergentes que, na lógica da ordem e hierarquias vigentes no ‘establishment’ da dança de então, mereceriam apenas uma curta nota de encorajamento. E isso marcou um ponto de viragem fundamental que viria mais tarde a ser seguido por outros jornais e críticos de dança.

          Não conhecia até então a Madalena Victorino, embora ela tivesse já há algum tempo o seu Atelier Coreográfico para não profissionais. A Madalena Victorino e a sua actividade tiveram um enorme impacto em mim. Aqui estava alguém que era capaz de despertar nos outros, de forma sedutora e feliz, a vontade de se envolver num processo criativo, de experimentar, inventar e compor, de dizer de si e do mundo. O trabalho da Madalena Victorino aliava à exigência artística, que era muita, a acessibilidade, que era total.

          Ninguém, na minha vida profissional, foi tão importante para mim como o António Pinto Ribeiro e a Madalena Victorino. Conhecê-los mudou a minha vida para sempre.

          Como é natural, o entusiasmo que sentíamos por estas novas ideias fez-nos desejar que elas estivessem no centro do que seria o curso da Escola Superior de Dança. Mas este destaque dado a artistas emergentes, a radicalidade do que eles defendiam em relação ao que era então a ideia de dança prevalecente, e mesmo o protagonismo que a Madalena Victorino e o António Pinto Ribeiro, que eram vistos como ‘outsiders’, estavam a assumir, tinha começado a gerar crescente fricção e alguma querela. Daí a surgirem conflitos e incompatibilidades pessoais insanáveis foi um passo. Se no terreno profissional isto pôde ser gerido, apesar de tudo, com alguma flexibilidade e informalidade que preservou a continuação de relações profissionais a despeito das divergências, numa instituição que estava a nascer, bastante voltada sobre si própria por força de estar ainda a construir-se, foi fatal. E doloroso para todas as partes. Eu demiti-me da comissão instaladora. A Madalena Victorino e o António Pinto Ribeiro acabaram por ser afastados no final do seu primeiro contrato. Porventura não era ainda a altura de este movimento entrar nas instituições. Mas não faltava muito.

          Nós estávamos totalmente empolgados por aquilo em que estávamos envolvidos: divulgar novas ideias, torná-las acessíveis, divulgar e apoiar o trabalho daquela jovem geração de coreógrafos e performers portugueses, estabelecer pontes com os nossos pares noutros países.

          Foi assim que decidimos criar o Forum Dança, com o apoio e envolvimento de vários elementos do Atelier Coreográfico para não profissionais da Madalena Victorino, entre eles a Catarina Vaz Pinto, que viria a desempenhar um papel activíssimo e importantíssimo no Forum Dança. Connosco como fundador estava também o Miguel Abreu, jovem e dinâmico actor, encenador e produtor, editor da revista O Actor e director da produtora Cassefaz, que intuía como ninguém o que era preciso alterar, em termos organizativos, no campo das artes performativas, para lhes garantir independência e capacidade de iniciativa, e que veio posteriormente a estruturar a actividade de produção do Forum Dança. E a Cristina Santos, que tinha sido nossa aluna na Escola Superior de Dança, tendo já atrás de si, embora fosse ainda muito jovem, uma carreira de bailarina da Companhia Nacional de Bailado, e que hoje dirige o Forum Dança.

          Lançámos os Cursos de Formação de Monitores de Dança para a Comunidade, por onde passaram alguns dos que viriam a ser chamados a segunda geração da Nova Dança Portuguesa, como João Galante, Margarida Mestre, Teresa Prima, Paulo Henrique, Ezequiel Santos, Paula Castro, para mencionar apenas alguns. Eram cursos voltados simultaneamente para o pensar, o experimentar, o fazer e o transmitir, para o que concitámos a colaboração de muitos criadores e pedagogos, não só da área da dança mas também do teatro, da música, do vídeo, etc. Cultivámos os contactos internacionais e lançámos uma revista. Em colaboração com a nova-iorquina Ann Rosenthal e a sua organização MAPP, e com apoio da Fundação Luso-Americana, o Forum Dança viria mais tarde a organizar a vinda a Portugal de programadores e outros profissionais dos Estados Unidos, de que depois resultaram várias residências, estágios e digressões de portugueses naquele país. E com o Théâtre Contemporain de la Danse, de Paris, foram organizados estágios de bailarinos portugueses naquela cidade. Como sabem, já com a sua actual direcção o Forum Dança desenvolveu a sua actividade de formação de intérpretes de dança contemporânea e de produtores e por lá tem passado grande parte da geração actual deste movimento.

          Datam daqueles primeiros anos também alguns dos projectos da Madalena Victorino, como Torrefacção e O Terceiro Quarto, que tanto impacto público tiveram.

          O José Ribeiro da Fonte, com quem eu conversava muito e com quem partilhava o interesse e entusiasmo por esta então emergente geração de coreógrafos, tinha entretanto sido nomeado para o Comissariado para a Europália-91 Portugal, sendo ele o comissário de Música e Dança, e convidou-me para trabalhar com ele como assessor para a Dança. Foi a minha primeira actividade de programador e simultaneamente o primeiro projecto internacional em que me envolvi e a minha primeira e feliz colaboração institucional com o José Ribeiro da Fonte.

          Decidimos que o festival Europália, um grande festival que se realiza na Bélgica e que foca a cultura de um país ou região, era uma óptima oportunidade para revelarmos internacionalmente esta nova geração da dança portuguesa. Sentiamo-nos seguros para o fazer, porque sabíamos que esta geração estava em sintonia com o que de mais interessante estava a acontecer nos circuitos internacionais de dança contemporânea.

          Esta era também uma oportunidade de estimular e apoiar o esforço de organização e produção independente que estava a surgir em torno destes criadores. Desejávamos que esta primeira exposição internacional da Nova Dança Portuguesa se realizasse em condições profissionais normais, isto é, integrada numa programação internacional regular, e de acordo com a escolha do respectivo programador, e não isolada numa efeméride especial. Eu tive muito apoio de pessoas como o George Brugmans e o António Pinto Ribeiro, e foi por influência deles que desde o início tive como meu principal interlocutor na Bélgica o Bruno Verbergt, então director do Festival Klapstuk, de Lovaina, à época o mais prestigiado festival europeu de revelação de novos valores e por isso muito frequentado pelos profissionais europeus e norte-americanos.

          O Bruno Verbergt veio assim a ser o nosso grande parceiro nesta estratégia de divulgação internacional da Nova Dança Portuguesa e, mais jovem do que eu, foi para mim um mestre com quem muito aprendi. A preparação da participação da Nova Dança Portuguesa no Festival Klapstuk 91, numa série de sete espectáculos que se chamou Os Novos Portugueses, e a selecção dos participantes, passou pela produção de um grande número de novas criações, pela organização de uma mostra de Novíssimos no Convento do Beato em Lisboa, por uma presença maciça da Nova Dança Portuguesa na BUC 90, em Coimbra, pela organização de uma mostra na sala estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, esta totalmente negociada pela produção associada aos criadores representados, encabeçada pelo Albino Moura, então ainda bailarino da Companhia Nacional de Bailado, mas cada vez mais envolvido como produtor e organizador com esta geração de coreógrafos. Os coreógrafos cujos trabalhos foram seleccionados para o Festival Klapstuk 91 foram Aldara Bizarro, Francisco Camacho, Joana Providência, João Fiadeiro, Paulo Ribeiro, Rui Nunes e Vera Mantero. Os trabalhos do Francisco Camacho, do Paulo Ribeiro e da Vera Mantero foram igualmente apresentados em Bruxelas, no Théâtre 140, em Kortrijk, no Limelight, e em Namur, na Casa da Cultura. Ficaram de fora alguns nomes importantes deste movimento, mas foram os trabalhos e a sua adequação aos critérios do Festival Klapstuk que determinaram a selecção.

          Na sequência da nossa participação no Festival Klapstuk no âmbito da Europália 91, um grupo de produtores, técnicos e organizadores permaneceram na Bélgica, em estágios organizados pelo Vlaams Theater Instituut, então dirigido por Guido Mine, com o objectivo de estimular as relações entre organizações e profissionais portugueses e flamengos.

          Embora apenas uma parte dos protagonistas da Nova Dança Portuguesa estivesse representada no Festival Klapstuk 91, o sucesso da série Os Novos Portugueses confirmou e ampliou o interesse por esta geração da dança portuguesa, que estava já a surgir nos circuitos internacionais, em boa parte em virtude das cumplicidades artísticas que alguns destes criadores emergentes tinham já criado e de que vos falei antes. Alguns deles estavam já a mover-se no circuito internacional, a procurar as suas parcerias de eleição. Muitas vezes na minha actividade vim a beneficiar de, ou a dar seguimento a, contactos que tinham sido iniciados pelos artistas.

          A Europália, a sua preparação e a sua concretização, confirmaram-me a justeza de uma convicção: a da importância das parcerias entre as instituições e as organizações no terreno, da associação entre os meios da instituição e a flexibilidade e agilidade da pequena organização e do profissional no terreno. É uma convicção que mantenho.

          A afirmação internacional era nesta altura um passo importante para o reconhecimento interno, mas era também a única forma possível de viabilização dos projectos artísticos para que, então e por muito tempo depois, não havia circuito nacional.

          Nos anos seguintes, alguns profissionais internacionais viriam a ser muito importantes para esta fase inicial da afirmação de alguns destes coreógrafos: Bruno Verbergt, George Brugmans e Anita Mathieu, que então era a programadora de dança da Ferme de Buisson, em Paris, para Vera Mantero; Bruno Verbergt, Marie Descourtieux (então administradora do CNDC d’Angers) e Les Ballets C. de la B. para Francisco Camacho, Christian Ferry Tschaeglé, em Paris, e depois Dieter Jaenecke, em Hamburgo, para João Fiadeiro, Dieter Buchoh, em Frankfurt, para Clara Andermatt e Paulo Ribeiro, etc.

          No festival Klapstuk 91 tinham sido tão evidentes as afinidades e a sintonia entre os participantes portugueses e a espanhola Monica Valenciano, que Carlos Marquerie, então director do Teatro Pradillo, em Madrid, desafiou o Forum Dança para a realização de uma pequena mostra de dança portuguesa no âmbito de Madrid 92 Capital Europeia da Cultura.

          Por intermédio de Carlos Marquerie e nos esforços que ambos desenvolvemos ao longo de alguns anos, a partir daí, para gerar parcerias entre artistas e projectos ibéricos, viria a conhecer artistas como Olga Mesa, Pep Ramis e Maria Muñoz, La Ribot (que foi o Zé Laginha, no festival a sul, e não eu no CCB, como muitos pensam, que apresentou pela primeira vez em Portugal; eu tinha conhecido La Ribot em Salamanca, onde ela estava em residência a preparar as suas primeiras Piezas Distinguidas, e ficado completamente rendido, e o Zé Laginha e eu assistimos depois juntos à primeira apresentação das Piezas no Teatro Pradillo). Por iniciativa do Carlos Marquerie conheci também outros organizadores que apoiavam a Nova Dança Espanhola, como Ana Rovira, de Girona, e Alberto Martín, de Salamanca. Nunca fomos muito longe porque nos nossos dois países, nessa altura, as condições de circulação da dança que nos interessava eram muito adversas. A cumplicidade artística entre portugueses e espanhóis, no entanto, nunca deixou de existir, alguns artistas portugueses, como o Francisco Camacho, e espanhóis, como Blanca Calvo e Ion Munduate, e instituições ou organizações como o Museu de Serralves, o Citemor, O Espaço do Tempo, a Devir, etc, ou espanholas, como La Porta e La Mekanica, têm-na mantido viva. Hoje que as condições de difusão se estão a alterar positivamente nos dois países, espero que consigamos aproximar-nos mais.

          Tínhamo-nos entretanto tornado membros do IETM – Informal European Theatre Meeting, uma rede internacional que tinha nascido da iniciativa de alguns profissionais no início da década de 80, e que desde então não parou de crescer e de se renovar. Sendo eu que representava o Forum Dança no IETM, envolvi-me então bastante intensamente na sua actividade, até porque fui durante alguns anos membro do seu comité executivo. Para mim, e felizmente para um grande número dos seus membros, o que definia esta rede estava claro no seu nome: informal e encontro (meeting). O encontro sem agenda prévia rígida, que favorece o imprevisto é, na minha experiência, responsável por alguns dos mais bem-sucedidos projectos. É muitas vezes a partir do encontro ocasional que, pela identificação ou pela diferença de pontos de vista, de experiências, etc., se torna perturbador e gera atracção, que germinam relações artísticas e culturais interessantes e duradouras. Isto é verdadeiro também para a história da Nova Dança Portuguesa e deste movimento que surgiu nos anos oitenta, e se consolidou na disponibilidade para o encontro e em encontros muitas vezes inesperados, e permito-me sublinhar a importância de não nos deixarmos nunca manietar pela pressão dos resultados e produtos concretos e imediatos, por critérios de avaliação baseados em definições prévias de objectivos demasiado rígidos, porventura válidos em outros campos de actividade mas que, desconfiando do imprevisto, podem induzir alguma esterilidade na actividade no terreno, mesmo que, paradoxalmente, favoreçam a multiplicação de produtos.

          Em 1992, em Genéve, num intervalo entre reuniões, o George Brugmans convidou-nos, ao Bruno Verbergt e a mim, para um almoço em que nos propôs que o Springdance, o Klapstuk e o Forum Dança firmassem um contrato por três anos de co-produção internacional de criações de coreógrafos portugueses. Assim nasceu o Tejo Trust, que viria a justificar que o Forum Dança criasse um Núcleo de Apoio Coreográfico e obtivesse da então Secretaria de Estado da Cultura um subsídio a três anos de forma a poder assinar este contrato. Foi uma estratégia do George Brugmans, que conhecia bem Portugal, para nos ajudar a introduzir nas relações entre as organizações no terreno e as instituições uma ideia de planeamento e compromisso plurianual. O Tejo Trust, em associação com La Ferme du Buisson, produziu o Sob, da Vera Mantero, e depois, já sem o Springdance, que, tendo George Brugmans saído da sua direcção, se desvinculou, mas com o CNDC d’Angers e Les Ballets C. de la B., o Primeiro Nome Le, do Francisco Camacho.

          A convite de Ghislain Boddington, que dirigia a organização shinkansen, de Londres, e que até hoje mantém relações de trabalho e cooperação artística com organizações e artistas portugueses, nomeadamente a EIRA e Francisco Camacho, passámos a pertencer a uma pequena rede internacional, o Butterfly Effect Network, constituída pela já citada organização britânica, por uma organização flamenga, o Stuk, que era a estrutura onde se realizava de dois em dois anos o festival Klapstuk, mas que tinha actividade permanente e que era dirigida pelo Mark Deputter, uma organização austríaca e uma organização eslovena. Esta rede organizava anualmente o European Choreographic Forum, em Dartington, no sul de Inglaterra, fomentando o encontro e colaboração entre artistas seleccionados em conjunto pelas quatro organizações. Antes de o Forum Dança se juntar a esta pequena rede, já o Francisco Camacho tinha participado no primeiro European Choreographic Forum. Eu conheci a Ghislaine Boddington através da nossa comum participação no IETM e, através dela e do Mark Deputter, conheci muitos artistas e organizadores que pude, por minha vez, pôr em contacto com outros que eu conhecia. Menciono estes exemplos simples porque me é muito cara a ideia da atenção ao outro, da partilha, do funcionamento em rede assim descomprometido e não como uma espécie de grande cadeia multinacional de interesses, e porque acredito que nessa partilha sem eliminação de diferenças esteve e está a força do movimento que celebramos.

          Foi numa viagem de avião entre Frankfurt e Liubliana, para um encontro do Butterfly Effect Network, que o Mark Deputter me confidenciou que estava a pensar seriamente vir viver para Lisboa. O Mark tinha pouco tempo antes conhecido a Mónica Lapa num encontro internacional em Gent. A Mónica, nessa altura, já tinha criado, com o Albino Moura, o Festival Danças na Cidade. Aproveitou o facto de estar em residência com a Clara Andermatt em Arnhem, na Holanda, para dar um pulinho a este encontro internacional em Gent. E lá encontrou o Mark Deputter. Não me ocorre nenhum encontro que tenha sido mais importante para a dança em Portugal e para todos nós do que este entre a Mónica Lapa e o Mark Deputter.

          Foi através do João Fiadeiro, estava então a Re.AL a residir no Centro Cultural da Malaposta e tinha eu acabado de ser convidado para assessor para a Dança do Centro Cultural de Belém – onde me reencontrei com o José Ribeiro da Fonte, que era o assessor para a Música – que tomei conhecimento do projecto Skite 94, um projecto pluridisciplinar de residência de artistas numa cidade durante um mês, concebido pelo Jean-Marc Adolphe, director da associação Figures du Mouvement, e hoje director da revista Mouvement. O João Fiadeiro estava empenhado em trazer este projecto a Lisboa no âmbito da Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura, mas o Centro Cultural da Malaposta não tinha dimensão suficiente para o acolher. Eu levei portanto a ideia ao Centro Cultural de Belém, tendo-me antes aconselhado com o José Ribeiro da Fonte. O Skite 94 acabou por se realizar no Centro Cultural de Belém e no Centro Cultural da Malaposta e ter apoios pontuais de produção da Re.AL e do Forum Dança. A ideia inicial era acolher 60 artistas de todas as áreas e muitas nacionalidades. O processo da selecção dos participantes era assim: o Jean-Marc Adolphe convidava um certo número de artistas e pedia-lhes que indicassem outros a convidar. Acabámos por ter não 60 mas 120 artistas durante um mês em Lisboa. A primeira semana era preenchida por workshops e por apresentação de trabalhos de alguns dos participantes. O Bonjour Madame…, do Alain Platel, por exemplo, foi apresentado no CCB nesse âmbito. As duas semanas seguintes eram totalmente livres, podendo os participantes experimentar o que quisessem com quem quisessem, e devendo diariamente solicitar à produção o espaço de trabalho de que iam necessitar. Eram encorajados a envolver-se com a cidade e a produção fazia o que fosse necessário e possível para lhes facultar o acesso a algum espaço da cidade que particularmente os inspirasse. A última semana era dedicada à apresentação de fragmentos de experiências que os participantes quisessem mostrar. O Jérôme Bel, por exemplo, apresentou pela primeira vez o seu Nom donné par l’auteur, no Cinearte. Eu não teria tido capacidade para conceber ou gerir eu próprio um projecto desta dimensão. Quem assumia a produção no dia-a-dia era o Jean-Marc Adolphe, assistido pela Shilá Fernandes, então uma jovem recém-licenciada do Departamento de Dança da Faculdade de Motricidade Humana. Eu estava lá para acudir às crises, se as houvesse, assegurava a ligação com o Centro Cultural de Belém, durante aquele tempo totalmente ocupado por este evento. Foi um projecto louco mas fascinante, que se espalhou por toda a cidade de Lisboa e que criou ligações artísticas que duram até hoje. Entre os participantes, para mencionar apenas uns poucos, estavam o Alain Platel, a Meg Stuart, a Emmanuelle Huynh, o Christian Rizzo, o Mark Tompkins, o Frans Poelstra. Nos anos seguintes alguns dos participantes do Skite estavam sempre a voltar a Lisboa. O Ronald Burchi, um americano que pertencia aos Ballets C. de la B. – talvez tenham visto, durante o Ciclo Meg Stuart, um filme feito com ele, aquele americano que se encontrou na Europa na condição de emigrante ilegal – ficou mesmo alguns anos em Portugal, trabalhando sucessivamente com o Francisco Camacho, o João Galante e a Teresa Prima e a Lúcia Sigalho.

          Na primeira metade da década de 90, Lisboa tinha-se tornado imensamente atractiva para muitos artistas. E a marca de cosmopolitismo que os fundadores da Nova Dança Portuguesa tinham imprimido a este movimento desde o início estava mais presente do que nunca.

          Os protagonistas do movimento da Nova Dança Portuguesa, envolvidos como estavam na viabilização dos seus próprios projectos artísticos, não tinham no entanto deixado de trabalhar sobre a afirmação e o desenvolvimento do tecido artístico nacional.

          O João Fiadeiro, com a Re.AL, tinha criado os LAB, um projecto que perdura até hoje, sempre em evolução, e que foi o lugar de revelação dos primeiros trabalhos da chamada segunda geração da Nova Dança Portuguesa.

          E em 1993, por iniciativa da Mónica Lapa, realizou-se aquele que foi o evento que simbolicamente confirmou a existência deste movimento enquanto comunidade artística e profissional: a Maratona para a Dança, que durou 12 horas ininterruptas no Teatro Maria Matos, de que resultou um manifesto e depois a criação da Associação Portuguesa para a Dança, que, embora de âmbito e com objectivos diferentes, foi a antecessora da REDE. Tornou-se publicamente evidente nessa altura que esta se tinha tornado uma comunidade com muitos artistas e organizações com capacidade de interagir.

          No âmbito da Lisboa 94, a Clara Andermatt e o Paulo Ribeiro realizaram o Dançar Cabo Verde, a que se seguiram a colaboração da Clara com artistas cabo-verdianos, de que viria a resultar a História da Dúvida, e que foi o princípio de um intercâmbio com artistas e organizações de países lusófonos, depois prosseguido pelas Danças na Cidade – com o Dançar o que É Nosso, as residências e colaborações artísticas intercontinentais, e esta relação com o mundo que hoje o Alkantara nos proporciona e que devemos ao Mark Deputter.

          Talvez a parte visível do trabalho desta comunidade artística sejam só as produções, os espectáculos, o número de espectadores. Mas nós sabemos quantos encontros e desencontros, quanta reflexão e pesquisa, quantas tentativas, desistências e insistências (e quantos falhanços também) são necessários para que haja uma produção que valha a pena. E eu acho que este movimento, que a vossa actividade, tem sistematicamente devolvido a Lisboa aquele ar de porto aberto ao mundo que vai tão bem com a sua história.

          Quando, no final de 1995, fui convidado para integrar a comissão instaladora do IPAE – Instituto Português das Artes do Espectáculo, presidida pelo José Ribeiro da Fonte, a comunidade profissional da dança portuguesa tinha já demonstrado a sua capacidade para actuar no terreno em todas as áreas relevantes: na criação e produção, na internacionalização, na iniciativa, concepção e realização de eventos, na pesquisa e investigação, na formação contínua e no apoio aos artistas emergentes, na realização de parcerias. Até aí, esta comunidade tinha sabido aproveitar eventos institucionais, como a Europália e a Lisboa 94, e tinha demonstrado serem as suas organizações os melhores parceiros para o sucesso dos projectos. Agora era necessário definir um sistema de apoios que viabilizasse a regularidade destas actividades. E evitar, se possível, que esses apoios trouxessem consigo contrapartidas que sufocassem a actividade ou condicionassem a sua iniciativa. Faltavam meios de produção, infra-estruturas, circuitos de difusão. O José Ribeiro da Fonte faleceu pouco depois do início dos nossos trabalhos. Fui um rude golpe, para nós que com ele integrávamos a comissão, que o admirávamos tanto e que tínhamos tantas expectativas nesta missão com ele. Seguiu-se algum tempo de indefinição que atrasou a institucionalização do IPAE. Mas nem por isso deixámos de continuar a trabalhar. E quando Ana Marín assumiu a presidência da comissão e depois a direcção do IPAE finalmente institucionalizado, voltámos aos caminhos que tínhamos começado a projectar com o José Ribeiro da Fonte. Não vou dizer-vos que a minha passagem pelo IPAE foi isenta de angústias. Não é fácil estar na posição em que eu estive quando se vem de tão estreita ligação ao terreno e se tem tão aguda percepção das suas necessidades, a uma grande parte das quais, obviamente, não se tem possibilidade de atender. Mas o IPAE proporcionou-me uma enorme aprendizagem e laços profissionais e emocionais que ficarão comigo para sempre. Trabalhei com uma equipa dirigente profundamente empenhada na sua missão e atenta ao terreno artístico. E a minha passagem pelo IPAE deu-me, a mim que vinha de um movimento lisboeta e internacional, a possibilidade de descobrir outros projectos artísticos, instalados noutros pontos do país e o trabalho que desenvolviam. Quando lançámos os primeiros concursos e viabilizámos a criação de estruturas profissionais em torno dos principais criadores, eu receei, confesso, que isso os isolasse. Não precisava de me ter preocupado. É uma característica admirável das estruturas de dança portuguesas a sua capacidade de partilha de meios, de acolhimento de outros coreógrafos e de atenção aos emergentes. E enquanto estive no IPAE outros projectos foram surgindo que depois se tornaram estruturas. Ainda bem que conseguimos apoiá-los quando estavam a emergir. A verdade é que não há investimento que se preze sem algum risco. É preciso apoiar de forma sustentada os que já provaram (mas é melhor não exagerar no tempo que é necessário para os considerar merecedores de confiança) e apoiar também os que ainda são só uma esperança. Uma coisa não é alternativa da outra, acho mesmo que uma coisa não sobrevive sem a outra. É também importante estar atento aos que emergem solitariamente. A rebeldia aparece quase sempre em ruptura com o que está. E a rebeldia, já vimos, pode ser o sinal de uma inovação importante. Por isso convém que não a arredemos sem pelo menos antes lhe termos prestado a devida atenção.

          Com altos e baixos, a verdade é que até hoje não foi contestada a implicação do Estado no financiamento das actividades no terreno nesta área. E que alguns projectos então lançados pelo Ministério da Cultura, como a rede de Teatros e Cine-Teatros, cresceram, tornaram-se claros e estão a dar resultados. A mim não me surpreende. Tem havido sempre técnicos empenhados a trabalhar nestas questões.

          Hoje, como sabem, a minha actividade divide-se entre a Escola Superior de Dança e a Culturgest. Voltei ao ensino quando saí do IPAE e depois voltei também à programação. Antes de ir para o IPAE, também era professor da Escola Superior de Dança e era programador no CCB. Quando estava no início da minha actividade na comissão instaladora do IPAE, fui convidado para fazer uma palestra na Faculdade de Arquitectura do Porto, num ciclo cujo tema era A Viagem. Fui falar dos acasos e dos encontros que fui tendo na minha actividade internacional nos anos precedentes. Chamei-lhe Regresso em Aberto, inspirado no Open Return dos bilhetes de avião. Agora já regressei. Não com a energia que tinha antes, nem de longe, mas regressei para um meio muito mais desenvolvido, tanto num campo como noutro.

          A Escola Superior de Dança é hoje uma escola muito mais aberta e relacionada com o meio profissional da dança contemporânea. Não é perfeita, quem o é?, por isso lá estamos atentos a todas as melhorias possíveis. O mundo do ensino superior está em grande transformação e eu espero que ela seja realmente no sentido dos propósitos anunciados, nomeadamente na creditação da actividade profissional e na possibilidade de interacção entre o universo académico e o universo profissional. O que pressupõe a clara compreensão dos objectivos de cada um. Eu considero que o terreno profissional não deve nunca abandonar os seus projectos de formação, porque há um lado da formação que é de ponta, que está a ser transmitido ao mesmo tempo que se experimenta e pesquisa, que precisa de uma flexibilidade que dificilmente as instituições e os tempos académicos têm. E que o mundo académico deve acompanhar de perto o que é desenvolvido no terreno profissional e a seu tempo incorporar e sistematizar.

          A Culturgest é um paraíso. É um prazer enorme trabalhar com o Miguel Lobo Antunes e a equipa da Culturgest é de ouro. São pessoas que gostam do que fazem e que têm prazer em fazê-lo bem. Temos gosto em colaborar com os nossos colegas no terreno e cada vez nos envolvemos mais em co-produções. Temos uma colaboração regular com os festivais Alkantara e Temps d’Images, e este ano vamos ter também uma colaboração com o A Sul. Temos tido sucessivas co-produções com O Espaço do Tempo, onde grande parte das obras que co-produzimos passa um período em residência de criação. São muito importantes para nós os centros de residência artística. São suportes fundamentais da criação. Já tivemos e vamos continuar a ter colaborações com várias das vossas estruturas. Valorizamos muito esta ligação com os nossos colegas, e eu espero que se mantenha esta vivacidade que há no terreno, esta variedade de projectos e de dimensões. Hoje há, em muitas áreas, uma obsessão com a dimensão que confesso que me assusta e que espero que não nos atinja. São necessárias todas as dimensões e uma forte interacção entre elas para garantir a saúde de um tecido artístico.

          Quando voltei para a actividade de programação, descobri com grande prazer que hoje também há uma comunidade profissional de programadores em Portugal. Por iniciativa do Rui Horta e da Luísa Taveira foi crescendo uma rede informal de programadores que se reúne periodicamente. Eu juntei-me também a essa rede e é um prazer ter interlocutores e parceiros com quem partilhar a nossa informação e os nossos projectos. E é um sinal de uma mudança em Portugal que, espero, há-de ser importante na viabilidade e na mobilidade dos projectos artísticos.

          Eu tive um percurso sui generis. Fui alguém que esteve atento, e que calhou estar em certos sítios em certas ocasiões, e poder abrir uma ou outra porta quando era preciso e que o fez sem hesitação ou cálculo. A mim tudo o que aconteceu foi um pouco obra do acaso e dos encontros e não de um projecto profissional ou de um desígnio que tivesse delineado e preparado. Estava disponível para ser tocado por estes artistas, por este movimento, e sei que é essa disponibilidade e atenção que apreciam em mim. Fui aprendendo convosco e continuo a aprender convosco. Devo-vos algumas das maiores alegrias da minha vida. A vossa amizade e o vosso apreço são fonte de enorme felicidade para mim. Por isso aceito a vossa homenagem e me emociono com ela.

          Gil Mendo A importância do artista programador

          Texto datado de 25 de dezembro de 2012 e que lança um olhar retrospetivo à atividade da EIRA (cujos 20 anos de existência foram assinalados em 2013) e do coreógrafo Francisco Camacho, refletindo sobre os espaços e contextos de apresentação da dança, bem como sobre o desdobramento do artista enquanto programador – assumindo dessa forma uma posição de compromisso com um tecido cultural diverso e emergente.

          Quando, em 1993, Francisco Camacho criou a EIRA, a geração que fundou o que então se chamava a Nova Dança Portuguesa ambicionava ver instituído em Portugal um sistema organizado de apoio à actividade performativa de iniciativa independente, como havia nos países europeus mais desenvolvidos, onde esta geração tinha muitos contactos e cumplicidades artísticas; ambicionava dispor de espaços de trabalho que tivessem as características necessárias para viabilizar uma intensa actividade de colaboração artística, pesquisa, experimentação e criação; e ambicionava que se desenvolvesse em Portugal um circuito de co-produção e difusão destas novas correntes que lhes permitisse crescer na relação com o público.
          A actividade coreográfica de Francisco Camacho foi acolhida desde o início por um circuito internacional que desde os anos mil novecentos e oitenta vinha sendo criado por artistas e profissionais precisamente com a preocupação de difundir e viabilizar as novas correntes que então emergiam com grande ímpeto nas artes performativas europeias.
          De então para cá, ainda que com altos e baixos, houve grande evolução no tecido artístico e profissional das artes performativas europeias e portuguesas: o que então se chamava Nova Dança foi generalizadamente aceite e incorporado e passou a designar-se simplesmente Dança Contemporânea (como aliás aconteceu com o Novo Teatro e a Nova Música), os circuitos de difusão desenvolveram-se, a figura do programador afirmou-se, novos centros de espectáculo e festivais apareceram; no caso português, os artistas e as suas organizações foram, com grande esforço próprio, conquistando espaços de trabalho.
          Não sendo o melhor dos mundos, porque os meios disponibilizados nunca pareceram suficientes, há que reconhecer que se estruturou minimamente um tecido artístico profissional com as suas organizações independentes, as suas instituições, os seus circuitos de difusão.
          Mas esta mesma evolução teria arrastado consigo um predomínio da uniformização e superficialidade que um ‘mercado internacional’ corre sempre o risco de gerar, não fora a capacidade de antecipação que os artistas parecem ter por natureza e o facto de terem tornado muitos dos seus espaços de trabalho e produção em espaços de resistência ao domínio de ‘tendências’, de salvaguarda da pesquisa e da experimentação, de acolhimento de projectos de risco, de cativação de espectadores para os projectos emergentes.
          Neste campo, a actividade de Francisco Camacho e da EIRA é exemplar: reduzido ao mínimo indispensável o espaço de escritório, todo o espaço da EIRA é espaço de estúdio, de trabalho criativo e de partilha, de experimentação e pesquisa, de apresentação e de diálogo. Desde que passou a ter uma estrutura de produção própria, Francisco Camacho sempre cuidou de a pôr ao serviço do desenvolvimento coreográfico, através de actividades de formação e de pesquisa, da promoção dos intercâmbios artísticos nacionais e internacionais, do acolhimento e programação de projectos de outros coreógrafos.
          Francisco Camacho soube assumir, para além da sua actividade coreográfica, que só por si justificaria o relevo que tem na dança portuguesa actual, um papel de organizador e programador que reputo da maior importância. Fê-lo em colaboração com artistas e organizações internacionais e nacionais – e destaco, nos últimos anos, a sua actividade de curadoria com o Festival CITEMOR – e fê-lo no seu próprio espaço de trabalho, na EIRA, onde tantas vezes nos revela o trabalho, os projectos e as obras de outros artistas.
          No vigésimo aniversário da EIRA, escolho destacar este aspecto pela importância que atribuo ao artista programador e ao espaço local e informal de apresentação, ao espaço de proximidade, num momento em que vejo alastrar na Europa e em Portugal uma ideia de ‘eficácia’, de ‘sustentabilidade’ e de ‘internacionalização’ dominada pela filosofia do mercado. Ora esta ideia empobrecedora poderá arrastar consigo a ideia de que uma rede de instituições de difusão é suficiente para garantir o sucesso – e a ‘triagem’ – dos projectos artísticos. Pelo contrário, o circuito de difusão que permite o acesso de um público mais alargado à criação artística contemporânea é que depende do trabalho dos artistas, das suas organizações e das condições que lhes sejam dadas para investigar e experimentar, partir do que começa sempre por ser feito por poucos e para poucos.
          E assim, neste vigésimo aniversário da EIRA, fica o meu preito e o meu voto interessado pela continuação e desenvolvimento da actividade que Francisco Camacho, o artista programador, e a sua equipa, lhe têm imprimido. 

          Gil Mendo 31 de agosto de 1995

          No momento em que se comemoravam os cinco anos da estrutura fundada em 1990 pelo coreógrafo João Fiadeiro, a RE.AL, Gil Mendo reflete sobre o seu papel preponderante no desenvolvimento e proliferação de linguagens da dança independente em Portugal – “o terreno”, como então antecipava, “onde hoje está provavelmente a germinar aquilo a que amanhã chamaremos novo”.

          Impossível lembrar-me do que terei feito nesse dia há cinco anos. Mas é quase certo que no centro das minhas expectativas e das minhas preocupações estaria a Mostra de Nova Dança Portuguesa que iria realizar-se em Novembro desse ano na Bienal Universitária de Coimbra BUC 90 e que constituía um passo importante na preparação do programa de dança da Europália 91 Portugal.

          Éramos um grupo numeroso de pessoas empenhadas numa múltipla aposta: demonstrar a existência e coerência de uma corrente de dança independente portuguesa que era realmente nova; revelar, num amplo festival sobre cultura portuguesa a realizar no estrangeiro, o que estava em efervescência e crescimento, o que era novo; falar do presente e sonhar o futuro; encontrar o nosso próprio lugar num circuito internacional então em plena pujança e onde havia já manifestações de curiosidade e interesse por este grupo de criadores e performers portugueses.

          Nesse dia de que hoje, solitariamente sentado em frente do processador de texto, comemoro, à minha maneira, cinco anos, se não vi o João Fiadeiro ou falei com ele, devo ter de certeza pensado nele e no seu Retrato da Memória Enquanto Peso Morto que então ele e o seu grupo de bailarinos, músicos, cenógrafa e desenhador de luz preparavam com afã e entusiasmo. (…)*

          Depois da BUC, do Convento do Beato, dos primeiros contratos internacionais, veio o Solo para Dois Intérpretes e a participação no Festival Klapstuk, as improvisações com Miguel Azguime, O que Eu Penso que Ele Pensa que Eu Penso no ACARTE, o Prémio Madalena Perdigão, a instalação no Centro Cultural da Malaposta, o Branco Sujo, a residência criativa em Salvador e os Recentes Desejos Mutilados, uma intensa circulação internacional, a criação de uma peça para os finalistas do CNDC de Angers, o regresso ao solo e à performance nas Danças na Cidade, a actual colaboração com Jorge Silva Melo, a próxima criação para o ACARTE.

          Recordando o que estes cinco anos foram para as artes performativas contemporâneas portuguesas, e a estratégia que se foi delineando, encontro a RE.AL presente em todos os pontos essenciais de uma estratégia cultural que tem sido sobretudo prosseguida por um sector jovem, independente, dispondo de apoios chocantemente escassos mas detentor de uma notável capacidade de intervenção e realização: a cidadania do mundo sem decepar as suas raízes; a participação num movimento cultural e humanista que não se deixa delimitar por fronteiras de nenhuma espécie; a tentativa de criar estruturas flexíveis de produção, bem implantadas numa comunidade sem por isso perderem mobilidade; a atenção à formação, à experimentação, ao reconhecimento e à descoberta do novo; a inserção num espaço que não tem que ser rotulado de pertença exclusiva de uma arte específica, em que as várias artes performativas confluem despidas de cânones, e que é o terreno onde hoje está provavelmente a germinar aquilo a que amanhã chamaremos novo.

          Não podemos dizer que tudo começou há cinco anos, porque há cinco anos o que se tentou concertadamente fazer foi revelar algo que já estava em marcha, nem devemos olhar para este ciclo de cinco anos como algo que em si se encerra, porque na nossa actividade tudo se vai sempre encadeando, a despeito de aqui e ali reconhecermos e assinalarmos pontos de ruptura ou viragem.

          Mas é bom que comemoremos, quanto mais não seja porque comemorar é um ritual que cimenta os nossos laços comunitários.

          Olhando para o programa destas comemorações dos cinco anos da génese da RE.AL, encontro aí com prazer o rasto do passado, mas também o sinal do futuro. A RE.AL tornou-se num espaço acessível a performers de todas as origens. Como os espaços que, há cinco anos, nos acolhiam em outros centros europeus.

          Como dizia, não consigo lembrar-me exactamente deste dia, 31 de Agosto, de há cinco anos. De certeza que estava cheio de expectativas. Se tiver, acaso, pensado “como será daqui a cinco anos?”, devo ter pensado que decerto ainda teria expectativas. E é verdade que tenho. Mas ser-me-ia impossível imaginar então que teria hoje razões para comemorar estes cinco anos. Reconheço que as tenho, muitas. E isso vale bem uma comemoração.

          *O corte indicado no texto consta da publicação original.

          Publicado originalmente no dossier dos cinco anos da REAL / Festival “A dança muda lugares”, realizado no Centro Cultural da Malaposta em 1995.

          Gil Mendo Agir em parceria: algumas notas sobre o apoio do Ministério da Cultura à criação e produção coreográfica de iniciativa não governamental

          Atento à dança contemporânea em Portugal, aos seus protagonistas e às suas necessidades, Gil Mendo terá a oportunidade de contribuir para o desenvolvimento de uma política cultural no país, na qualidade de membro da comissão instaladora do Instituto Português das Artes do Espetáculo e de coordenador do seu Departamento de Dança no Ministério da Cultura, tendo como ministro Manuel Maria Carrilho, e Rui Vieira Nery como secretário de Estado. Neste texto, Gil Mendo sublinha a importância de uma ação articulada entre as instituições do Estado e o tecido profissional.

          Em Portugal, o investimento do Estado na Dança foi sempre mínimo: nunca se prosseguiu uma estratégia de desenvolvimento durante tempo suficiente para lhe conhecer os resultados, e até hoje não se conseguiu implantar uma rede nacional de criação, produção e difusão de dança dotada dos meios, das competências profissionais e da independência artística necessários para assegurar o acesso de todos os cidadãos à fruição desta expressão artística nas suas variadas formas e correntes.

          Apesar disso, a dança independente portuguesa não deixou, nos últimos dez anos, de revelar uma grande vitalidade e capacidade de intervenção, forçada como foi a encontrar, à margem do sistema e das instituições oficiais, quase tudo o que lhe era necessário — desde uma formação profissional e artística actualizada a métodos contemporâneos de gestão e organização. Integrou-se naturalmente na comunidade internacional de profissionais das artes performativas independentes que, desde o início dos anos oitenta, mudou radicalmente o mapa cultural da Europa, e angariou um capital de saber que hoje não pode ser ignorado.

          Uma nova política cultural neste campo não pode deixar de contar com os profissionais independentes e com as suas organizações. Não apenas para lhes proporcionar o apoio há muito devido, mas porque eles são parceiros naturais e actores principais de uma estratégia que visa implantar uma rede nacional de estruturas e espaços culturais, dotada dos meios e das competências profissionais necessários para assegurar o desenvolvimento cultural nesta área.

          O esforço que o Ministério da Cultura vem fazendo, desde há dois anos, para aumentar progressivamente os meios disponíveis para o apoio à dança independente (de 64 000 contos em 1995 para 250 000 contos em 1997, o que representa um aumento de 290%) deve ser entendido nesse sentido.

          A nova regulamentação dos apoios do Ministério da Cultura à criação e produção coreográfica, publicada em Dezembro de 1996, para além de cometer a decisão do apoio a um júri de especialistas maioritariamente constituído por profissionais independentes da Administração Pública, prevê o apoio plurianual e a celebração de protocolos de actividade entre o Instituto Português das Artes do Espectáculo (estrutura que, na nova orgânica do Ministério da Cultura, é o interlocutor das artes performativas independentes) e estruturas não governamentais (considerados parceiros estratégicos para o desenvolvimento da dança em Portugal).

          O novo regulamento procura contemplar a pluralidade de estruturas que são activas no terreno profissional, sejam companhias de dança, estruturas de produção, programação ou difusão, centros de pesquisa e experimentação, ou outros. Valoriza-se a actividade desenvolvida, a sua credibilidade artística, o seu carácter profissional e o seu impacto cultural, e a capacidade de cativação de outros apoios.

          O mesmo é dizer, a boa gestão, o contributo para o desenvolvimento profissional e descentralização cultural, seja através do apoio a novos autores e da produção de primeiras obras, seja através do apoio à formação contínua e à reciclagem de quadros profissionais, artísticos e técnicos (considerados necessários ao desenvolvimento de uma rede nacional de criação, produção e difusão artística).

          Os investimentos a fazer, para dotar o país das infraestruturas necessárias para assegurar a existência de um mercado artístico que funcione com a máxima independência, só serão possíveis através do cruzamento de recursos e da realização de parcerias entre o Ministério da Cultura, outros departamentos do Estado e da Administração Local, instituições privadas, profissionais independentes e suas estruturas e organizações. 

          Tanto ao Ministério da Cultura como à comunidade profissional da dança independente interessa a existência de um tecido profissional saudável, actuante, capaz de se adaptar à evolução e ao desenvolvimento cultural e de responder aos desafios e às exigências do seu tempo. Só podem, por isso, considerar-se parceiros com um mesmo objectivo; e o sucesso ou insucesso de uma nova política cultural neste campo, e das instituições que a personificam, será determinado pelo sucesso ou insucesso desta parceria.

          Originalmente publicado no livro Movimentos Presentes: Aspectos da Dança Independente em Portugal, com coordenação editorial de Maria José Fazenda, pela Livros Cotovia e Danças na Cidade, em 1997.

          Gil Mendo O “performer” criador

          Entre as muitas transformações que as artes performativas contemporâneas têm vindo a forjar, uma das mais interessantes e positivas é a redução drástica da distância entre o intérprete e o criador.

          Hoje, o “performer” é um parceiro activo no processo de criação.

          Na dança, esta evolução de mentalidades e atitudes tem reflexos na definição de novas exigências profissionais, e na forma como o bailarino encara a sua actividade, a sua formação e o seu crescimento artístico, que passam pela afirmação da sua criatividade, da sua individualidade e da sua diferença.

          Os tempos em que se pensava que o engenho criador só se adestrava eficazmente através da vivência relativamente dócil de uma carreira de intérprete, ficaram decididamente para trás de nós.

          E ainda bem.

          Esta mudança é um sinal de maturidade.

          Texto publicado no programa da Maratona para a Dança, realizada no Teatro Maria Matos em 1993, onde bailarinos, coreógrafos e promotores se reuniram para exigir mais e melhores condições de trabalho para a cena da dança independente. 

          Gil Mendo Ideia: Cristina Peres entrevista Gil Mendo

          Em consequência da sua demissão da comissão instaladora da Escola Superior de Dança em solidariedade com Madalena Victorino e António Pinto Ribeiro, Gil Mendo cofunda com ambos, juntamente com Miguel Abreu e Catarina Vaz Pinto, o Forum Dança, em 1990, incorporando o espírito de independência, experimentação e pensamento da Nova Dança. Nos seus primeiros anos na direção, edita quatro números de uma pequena publicação, no segundo dos quais, lançado em 1991, é entrevistado por Cristina Peres. A jornalista e crítica de dança indaga sobre o estado da arte da dança no início dos anos 1990 – momento em que a Nova Dança Portuguesa florescia – procurando entender, junto de Gil Mendo, as especificidades dessa nova experiência de corporalidade.

          Gil Mendo é quase uma omnipresença neste mundo da dança portuguesa. Neste, porque reconhece o radicalismo que a defende por oposição ao radicalismo de quem a considera invenção de alguns. Porque é uma das pessoas atentas que se aperceberam do fenómeno e o apoiaram, incentivando e ajudando a uma certa definição da diversidade. Não se trata de pretender que esta é uma forma de dança que vem substituir qualquer outra. Pelo contrário, vem acrescentar; não se perde seja o que for de determinado património artístico, como não deixa de existir o ballet, evidentemente. Como é evidente que esta nossa conversa sobre dança não pretende esclarecer em definitivo o que é isso de dança, esta ou aquela. Foi, sim, uma ocasião para revisitar ideias, das que eventualmente não se formulam sem uma razão específica. Valeu por isso e pelo exercício em si. E regista-se como aconteceu: sem princípio nem fim.

          Cristina Peres: Tendo em conta o eclectismo hodierno, o “ruído” presente nas formas específicas, como a dança, oriundo de outras áreas artísticas, e a tendência das artes para o indivíduo qual é o estado da dança, para onde se dirige?

          Gil Mendo: Não faço ideia. Penso se eventualmente esta geração que recusou os cânones e dogmatismo não irá criar outros…

          CP: O movimento, no sentido físico, está em crise?

          GM: Penso que não. Mesmo que pensemos que o novo não é possível, surge sempre algo que espantosamente é novo. Digo espantosamente, porque, por vezes, parecem-nos ideias tão óbvias mas que são novas.

          CP: O que é que tem mais possibilidade de ser novo, as ideias ou as formas?

          GM: Para mim são essencialmente as ideias. Só que elas produzem formas que, pelo menos na aparência, são novas, podendo ser uma espécie de desconstrução e reconstrução de formas que já existiam, ou conjugações diferentes das mesmas formas.

          CP: Acha que a dança é descontextualizável no sentido em que não vem directamente do nada mas recebe informação de muitos lados, no sentido em que é sintética mas se apresenta numa nova forma? Isto, num sentido inverso à delimitação de género e estilo a partir de influências?

          GM: É sempre possível olhar para as coisas desse modo. Se há algo que vejo pela primeira vez, vejo-o como se não tivesse existido nada antes.

          CP: Mesmo para si, como professor e estudioso da dança?

          GM: Faço por vezes associações com outras coisas mas tenho sido surpreendido ao não as associar com nada. É muito natural que o nosso quotidiano seja uma sedimentação de muita coisa que vem de trás e que transportamos connosco, é isso que nos fornece uma memória cultural. É isso que é notório nestas novas correntes das artes performativas que têm uma feição nacional, com influências de muitos lados diferentes. No entanto, é fácil reconhecer num criador as suas origens nacionais, a região a que pertence e a História que transporta consigo.

          CP: Acha que a dança é mais difícil hoje em dia?

          GM: É sem dúvida mais difícil, mas é mais aliciante. No passado, o que se fazia era tentar aproximar o corpo individual de uma ideia estereotipada de corpo ideal. Era muito trabalhoso, bastante frustrante, mas apesar de tudo era mais fácil e claro. Hoje há que conhecer-se a si e ao seu próprio corpo, estamos mais perante um processo de comunicação verdadeira. Então isso é tão difícil como eu tentar expressar-me.

          CP: Levado ao limite, se as coisas forem feitas com uma seriedade e uma duração no tempo razoáveis, poder-se-á dizer que esta é uma época-embrião de uma série de correntes novas? O movimento parece não ter limites a partir do momento em que existe a preocupação de descobrir algo que vem de dentro. A diversidade pode abrir caminhos a uma enorme quantidade de linhas, num sentido muito mais lato que qualquer classificação de novo.

          GM: O que começou a passar-se com a dança, sobretudo a partir de meados da década de 80 na Europa – reconheço que houve antecedentes nas décadas de 50 e 60 na dança nova-iorquina passou-se com as artes plásticas há muito tempo. Olhamos a obra de um pintor e não tentamos integrá-lo numa escola, embora por vezes arranjemos rótulos. Aceitamos facilmente a diversidade e estamos a começar a fazê-lo na dança.

          CP: O que equivale também a uma certa pulverização..

          GM: É, o que não é necessariamente mau. Aí poderá passar a existir uma pluralidade de gostos e opções estéticas que não têm de ser hierarquizadas. É importante porque é um processo de democratização no verdadeiro sentido. O que, para mim, é um avanço civilizacional considerável, dentro da consciência permanente da evidência da nossa ignorância. Não é possível um saber enciclopédico e este é o momento em que cada um acabará por, desejavelmente, saber o que para si é fundamental saber.

          Revista Forum Dança, n.º 2, março de 1991.

          Gil Mendo “Uma corrente de ternura” Gil Mendo entrevista Pina Bausch

          Em setembro de 1989, Pina Bausch e a sua companhia de dança apresentam-se pela primeira vez em Portugal, nos Encontros ACARTE, com a peça Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört [Ouviu-se uma gritaria na montanha, 1984]. Após a sua última apresentação, Gil Mendo entrevista a coreógrafa a convite da Fundação Calouste Gulbenkian nas instalações da instituição. Nesta curta conversa, cujo registo permaneceria guardado desde então, Gil Mendo aborda questões às quais era particularmente sensível — do lugar dos/as intérpretes e da sua diversidade na criação à plasticidade das peças e aos sentidos múltiplos que provocavam. Gera-se um clima de cumplicidade entre si e a coreógrafa, frequentemente pautado pelo riso e por gargalhadas entre ambos, e que os levaria a jantar juntos nessa mesma noite.

          GIL MENDO: Pina Bausch, acho que uma das coisas que impressiona o público é o facto de a maioria das pessoas da sua companhia serem mais velhas e muito diferentes entre si, e parecerem ter personalidades muito fortes. Ora, o que eu queria perguntar é o seguinte: são a diversidade e a individualidade importantes na sua escolha das pessoas com quem trabalha? E, também, são a história pessoal e a fantasia dos/as bailarinos/as importantes para o seu trabalho?

          PINA BAUSCH: É verdade. Eu gosto muito de trabalhar com pessoas diferentes – altos, pequenos, largos, baixos… Mas, o que quer que pareçam, há qualquer coisa… ou o que quer que sejam, as suas personalidades, têm algo parecido, algo que a gente não sabe o que é, mas há qualquer coisa que é semelhante. Quanto à fantasia, não sabemos exatamente até fazermos uma audição em que tentamos em conjunto… não é o que se consegue ver, percebe? É um sentimento, ou confiança, que me faz pensar, “sim!”. E às vezes é uma coisa que acontece muito depressa, em conjunto, e às vezes demora bastante até que de repente funciona. Logo, ambas as formas são possíveis.

          GM: Bom, você fala sobre semelhança. Durante estas três noites [nos Encontros ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian] senti que havia uma grande empatia por parte do público com…

          PB: Empatia?

          GM: Simpatia…

          PB: Ah, simpatia!

          GM: …por parte do público com o acontecia no palco. Ou seja, sinto que nos identificamos com o que se passa no palco. Ora, para além do facto de os/as seus/suas bailarinos/as serem tão bons/boas em movimento e terem personalidades tão fortes, há também o tema do seu trabalho, como eu o vejo: vejo jogos de infância (logo, memórias); jogos de crueldade; catástrofe, ou talvez o que se poderia chamar as consequências de uma catástrofe: destroços, afogamento, homens indefesos nas mãos da fé – esta é obviamente uma interpretação pessoal, claro. O que eu queria perguntar é o seguinte: monta a sua companhia como uma amostra da humanidade? E podemos dizer que os seus trabalhos são como uma escolha, uma amostra selecionada do mundo? Porque eu também vejo por detrás de tudo isto – catástrofe, crueldade – que há uma corrente muito tocante de ternura. E talvez por isso, eu acho, seja tão fácil para nós no público nos identificarmos e sentirmos essa empatia com o seu trabalho.

          PB: Não sei o que dizer [abre os braços humildemente e desata a rir com GM]! Sim, é o que tento fazer e… e acho que essa é sempre a questão quando faço uma nova peça, sabe, quando se apresenta numa nova noite. E acho que a única coisa que posso fazer – porque não é um livro, não há um objeto, não há uma história, é algo… [gira as mãos para a frente, i.e., em progresso] –, posso apenas perguntar a mim mesma: como existo agora, neste mundo, desta vez (quero dizer, no contexto do trabalho, não no presente, apenas para mim pessoalmente). Mas estar desperta para os assuntos que conheço – sobre o que esperamos, o desejo que temos, ter muito medo de violência e de quando vai acontecer, e outras coisas como estas – é como começo a construir um trabalho.

          É uma certa maneira de trabalhar, a minha. E acho que é algo que as pessoas da companhia, sem falarmos sobre isso – porque não falamos realmente sobre isso – claramente procuram.

          GM: Para além disso, há outro aspeto que me impressiona no seu trabalho, e acho que impressiona muita gente, que é a metamorfose, tanto no sentido de coisas que se transformam noutras – um chão avesso pode também ser um mar onde se nada, ou morre, se afoga; uma perna é uma perna mas também parece um bastão de críquete ou um bastão de ouro – mas não só nesse sentido de os personagens se transformarem noutros personagens e as coisas se transformarem noutras coisas, mas também na forma muito rápida e subtil como que as cenas mudam. Estive aqui as três noites e, no entanto, impressionou-me sempre como de repente a cena é outra, e isso é tão rápido, é como uma metamorfose, tudo mudou. Poderia dizer algo sobre isso? Faz isso parte do seu processo de trabalho, essa metamorfose?

          PB: Sim, é muito importante… mas não lhe sei dizer porque é importante para mim, sabe?  Como, na maior confusão, de repente há qualquer coisa, algo completamente diferente, ou parte de qualquer coisa que parecia muito calma e se transforma em algo completamente diferente. Não sei, para mim há tantos ângulos ou coisas! Todos os tipos de coisas de há muito tempo também lá estão. É como algo no tempo, como um antes ou um depois

          E é verdade quando diz que é apenas a sua opinião pessoal, mas para mim também é muito importante que todos tenham a sua opinião – a sua própria. Qualquer pessoa que assiste faz parte da performance. Cada pessoa, onde quer que esteja – na sua vida ou nos seus sentimentos – retira algo diferente, ou acrescenta algo diferente; ou vêm cenas à cabeça… e quando se vê mais vezes, surgem coisas diferentes, ou sentimentos diferentes da sua vida, vê-se diferente de novo. E eu acho que nesse fazer parte, nessa participação de cada pessoa, não há por que perguntar a outro/a como foi a história – como se pode perguntar? É a sua história, é a sua relação com o que vê, cada uma, pessoal. Isso também pertence ao trabalho. E nós não nos conseguimos segurar a nada, estamos perdidos, não temos onde nos agarrar – isso também faz parte de se trabalhar assim!

          Porque acho, não sei exatamente mas acho, que é compreensível entre todos nós… às vezes quando não sabemos alguma coisa dizemos que a sentimos, mas isso parece-me inadequado; acho que sentir é algo bem exato. Isso é sempre algo que dizemos para nos desculparmos por não sabermos algo, porque não podemos expressar os nossos sentimentos. Mas acho que eles são realmente a coisa mais exata que sabemos sempre. Onde a sabemos? Não na cabeça; sabemo-la noutro lugar, mas sabemos. E eu acho que é algo que toda a gente entende, mas não é com a cabeça. O que existe é a nossa mente, que tentamos entender! Tentamos tomar consciência daquilo que sabemos. E não há palavras, forma…

          GM: Outro aspeto que acho importante para quem só teve oportunidade de ver anteriormente o seu trabalho em vídeo é o facto de ser tão orgânico quando é visto no palco. Ora, você é conhecida por usar terra verdadeira, flores, relva, árvores verdadeiras… Existe alguma razão especial para você gostar de trabalhar com estes materiais?

          PB: Existem muitas razões. Para mim, cada material é tão diferente. Por exemplo, se houver relva, há um cheiro, sente-se um cheiro, não se faz barulho… Noutra vez há coisas amontoadas, e quando se anda ouve-se o tempo todo, é uma espécie de música também; tem um cheiro, ou cola-se no corpo – é difícil, é diferente de atravessar. E isso é de certo modo a essência da peça, também, é o que a peça é, uma espécie de extrato daquilo que se tem a dizer. É algo… como um vazio sobre o futuro dos seres humanos, e da natureza também. Não sei… espero que um dia a gente não a veja apenas numa montra, ou algo assim. Acho que, em geral, nunca realmente olhamos para aquilo que temos (talvez para os carros…). Mas, no palco, é com isso que confrontamos o público, a nossa terra, o chão… Sei lá, são tantas coisas, e cada uma pode fazer o seu [sentido]…

          GM: Bem, muito obrigado. Muitas pessoas esperavam há muito ter a oportunidade de a ver em Lisboa. Assim, para terminar, gostaria de lhe perguntar, acha que teremos oportunidade de a ver novamente em Lisboa…

          PB: Isso seria maravilhoso.

          GM: …podemos contar com isso?

          PB: Sim, seria maravilhoso, eu gostaria muito. Até porque foi só uma peça, deveriam ver outra; porque outra é diferente e… quer dizer, sou eu na mesma! Mas assim pode mais facilmente imaginar-se como aquela casa pode ser diferente; se com uma é difícil imaginar, entretanto haverá outra! Foi muito bonito estar aqui. Seria maravilhoso se pudéssemos voltar.

          GM: Muitíssimo obrigado. Foi também muito bonito tê-la cá, e um grande prazer conversar consigo, obrigado.

          Transcrito e traduzido do original em inglês por Pedro Pinto.

          Gil Mendo Reflexões | Nova dança europeia – A década da surpresa ou a imunidade voluntariamente perdida

          Gil Mendo escreve para o jornal académico de Coimbra Via Latina (com direção de Francisco Silvestre Tão Lindo) em fevereiro de 1990. Nesse ano, a Bienal Universitária de Coimbra (BUC), com direção de António Augusto Barros, apresentaria uma grande mostra de dança portuguesa, de que Gil Mendo foi responsável, em preparação para o festival Europália 91, que decorreu na Bélgica. O texto é dedicado a Madalena Perdigão, então recentemente falecida, diretora do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, que mantinha, à data, uma relação de cooperação com a BUC.

          Surpresa. Eis uma sensação que quase sempre nos acompanhou ao longo da década de oitenta. Afinal a Europa não evoluiu na direcção de uma uniformidade cinzenta tiranicamente imposta por uma tecnologia inacessível ao cidadão comum, que tanto tínhamos temido e esconjurado. 

          Surpresa paradoxal, é da própria surpresa que nos surpreendemos e nos parecem, agora, lógicos os desenvolvimentos que não previmos. Mas acaso tenha sido essa imprevisão, ou o afecto que entretanto ganhámos por noções como acaso e imprevisibilidade, que nos ajudou a forjar as transformações que hoje estamos vivendo.

          Para quem acompanha com interesse a dança europeia, os anos oitenta foram, sem dúvida, surpreendentes e empolgantes. Entrada da década, dir-se-ia que a evolução se iria processar por via de um apuramento técnico levado a extremos de perfeccionismo, centrado na excelência do executante mais do que na proliferação dos criadores, através de uma selecção precoce de corpos superdotados, de um treino rigorosamente calculado para a inculcação de vocabulários precisos, realizado à margem do “humus” da turbulência e contaminação da vida comunitária, como que “in vitro”, para a produção de um intérprete dócil, atlético, émulo de um ser idealizado, sublime na sua virtuosa esterilidade.

          Não foi por aí, no entanto, que a dança alcançou a presença com que chega ao final da década e o prestígio e importância de que desfruta hoje na vida cultural da Europa. Antes o que foi pela acção de criadores heréticos, muitas vezes oriundos de outras artes, outros saberes (Wim Vanderkeybus vem do Teatro, George Appaix tem na sua formação a Literatura e a Música, Karine Saporta a Sociologia, Jean Claude Gallota as Artes Plásticas, Joseph Nada passou pelas Artes Marciais), que encontraram a Dança no seu caminho e resgataram de um mausoléu de rígidos vocabulários para a fertilidade de linguagens em permanente renovação.

          Este envio e contaminação de outras artes e outros saberes que melhor explica a erupção de uma Nova Dança Europeia, não enquadrável nos parâmetros definidos pelo Ballet ou pela Modern Dance, e de um surto de inovação que não se caracteriza pela afirmação de um novo estilo ou de uma nova linguagem, mas antes pela recusa em deixar se aprisionar por estilos e linguagens pré-codificados. A voluntária perda de imunidade (recorte-se o interesse de Paulo Maçã pela Arquitectura e o seu trabalho com actores e encenadores a aproximação de Olga Roriz ao Teatro e às Artes Plásticas) explica também alguma perplexidade que esta Nova Dança causa em sectores que por demais se habituaram a interpretar todas as obras, a enquadrar todos os criadores na cronologia linear de uma história dada como adquirida, estanque, imune a redescoberta ou reinterpretação.

          A par do que funda a sua actividade numa pesquisa pessoal liberta das peias de um vocabulário imposto e que parte para uma nova pesquisa a cada novo trabalho que empreende, surge na década de oitenta o crítico novo que abdica de parâmetros pré-estabelecidos de apreciação e que assume o pessoal, o subjectivo e o criativo no equacionar dos dados com que percepciona cada obra sobre que se decide escrever. Os anos oitenta são também os anos da afirmação do Ensaísmo no campo da Dança, o que constitui simultaneamente um indício do reconhecimento cultural e intelectual que a Dança alcançou e um contributo para o seu reforço (citem-se, entre outros António Pinto Ribeiro, Marianne Van Kerkoven e Norberto Servos). Ao recusar a imunidade, o bailarino dos anos oitenta aproxima-se simultaneamente da comunidade, cuja cultura e memória transporta consigo, e de si próprio. Não é um virtuoso que se despoja do seu ser em imolação a um estereótipo inatingível, mas um criador que habita integralmente o seu corpo. O coreógrafo solista, figura que praticamente se apagara da Europa do pós-guerra, regressa em força (mencionemos, como exemplos significativos, Cesc Gelabert, Daniel Larrieu, Suzanne Linke, Vera Mantero).

          Diversidade e individualidade são características da Europa dos anos oitenta que estão bem presentes na Nova Dança Europeia. Esta é uma dança que ao mesmo tempo nos surpreende, pois não dispomos do esteio de um estilo que no-la torne familiar, e sentimos próxima de nós, por se inspirar no corpo real, que não é um ideal de corpo comum a todos mas o corpo individualmente diferente e por isso tocante. O que aproxima a Nova Dança do Novo Teatro, tornando por vezes difícil, mas também supérfluo, decidir o que é pertença de uma ou do outro, e a sua inspiração na gestualidade do quotidiano para com ela construir um jogo que já não é nem a mímica narrativa linear nem a estilização de emoções supostamente comuns a todos os homens. Pina Bausch diria que tentamos tornar inteligível o conhecimento mais exacto que temos, e que é inexplicável. Na atenção explícita ou implícita, que dedica teatralidade do quotidiano, as personagens que construímos para comunicarmos uns com os outros, fruto da solidão que nos advém da consciência individual de pertencermos a um todo, bem pode dizer-se que a Nova Dança é uma dança de solidariedade, logo de felicidade.

          Se o criador dos anos oitenta aproximou a Dança da comunidade e lha tornou mais acessível, aproximou-se e ele próprio mais do corpo sobre o que compõe e teve, para tanto, o auxílio precioso de um novo medium ao seu alcance: o vídeo. A vídeo-dança é, efectivamente, uma inovação da década de oitenta. De instrumento de reportagem ou registo de um acontecimento artístico, o vídeo passou a ser ele próprio o suporte de uma realização artística e abriu um vastíssimo campo de experimentação e exploração coreográfica (atente-se nas obras produzidas pelo grupo L’Esquisse, ou por Régine Chapinot, ou Daniel Larrieu ou Jean-Claude Gallota, ou nas colaborações entre Conceição Abreu e Luiz lança, Madalena Victorino e Paulo Abreu, Olga Roriz e Joaquim Leitão). Neste campo pelo menos, não é previsível que a dança de oitenta encerre em si própria um ciclo. A vídeo-dança florescerá na década de noventa.

          Assim, chegados ao final da década de oitenta, podemos constatar que a tecnologia não se opõe, afinal, à diversidade, antes a estimula; que o domínio e a rapidez da comunicação audiovisual não tornará o mundo necessariamente uniforme. Digamos que a diversidade e a afinidade deixaram de ser fortemente influenciadas pelos acidentes geográficos. Hoje podemos partilhar ideias, descobertas e criações a milhares de quilómetros de distância. Não estamos imunes ao mundo, nem à surpresa. Não estamos condenados à uniformidade. Podemos começar a elaborar uma nova cartografia: a dos afectos. 

          Post-scriptum: dedico este artigo à memória de Maria Madalena de Azeredo Perdigão, figura ímpar da actividade cultural das últimas décadas e principal impulsionadora da integração de Portugal no movimento da Nova Dança e do Novo Teatro da Europa e, por extensão, a todos os seus colaboradores na imprescindível aventura que é o serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian. 

          Gil Mendo O pássaro entre dois fogos

          Nesta entrevista à revista Face de agosto de 1989, precedida por um longo artigo intitulado “Escola de Dança com barra pesada”, Gil Mendo fala publicamente da sua demissão da comissão instaladora da Escola Superior de Dança. Tal acontece na sequência de uma crise interna vivida na instituição então recentemente criada, que culminou com o afastamento de dois colegas, Madalena Victorino e António Pinto Ribeiro, a quem muito se deveu o espírito inicial da Escola, e com quem Mendo criara uma relação de estreita cumplicidade, manifestando-se também crítico relativamente ao teor do projeto de lei que estabelecia as bases do ensino artístico, publicado um ano depois [Decreto-Lei n.º 344/90, de 2 de novembro].

          Gil Mendo é um personagem central na crise que abala a Escola Superior de Dança, e também na crítica ao modo como se projecta o ensino artístico em Portugal.

          Co-autor do projecto pedagógico da Escola Superior de Dança, símbolo do equilíbrio entre tendências, ex-bailarino e primeiro português licenciado em notação Benesh (sistema de escrita de dança), professor há mais de uma dezena de anos, Gil Mendo demitiu-se do seu cargo de vogal da comissão instaladora daquele estabelecimento de ensino. Com esta demissão acabou-se a “paz podre”; de certo modo fez-se a separação das águas. Durante meses, a pedido do presidente da comissão instaladora do Instituto Politécnico de Lisboa, Almeida Costa, manteve-se em funções. Agora acha que já é suficiente, que já não pode ficar calado.

          FACE – O seu pedido de demissão da comissão instaladora data de há meses, porque é que só agora assume publicamente esta ruptura?

          Gil Mendo – Pedi a demissão em 7 de Março. Aceitei, depois de uma conversa com o dr. Almeida Costa, que ele reteria o meu pedido até ele próprio ir à escola assistir a uma reunião do conselho científico e ter uma conversa com a comissão instaladora. Passaram-se vários meses e, na reunião de há duas semanas daquele órgão, as coisas agravaram-se. A minha intenção, era, não podendo continuar a trabalhar com o resto da comissão instaladora, por não nos entendermos quanto aos termos de gestão da escola, demitir-me e ser substituído.

          Aguentei estes meses, aguentei este silêncio, e não foi fácil, como deve calcular, mas continuei a exercer as minhas funções o melhor que era capaz. Só que no final deste ano lectivo comecei a sentir que a revisão do projecto de estudos que se ia fazer, a forma como era feita a avaliação dos estudantes, tudo se encaminhava – pode dizer-se tudo se encaminha – para o estreitamento do projecto no qual me empenhei.

          Que é que realmente aconteceu nestes meses para que lhe pareça inevitável esta ruptura?

          A minha solidariedade para com as pessoas que se empenharam neste mesmo projecto era na base dele e não uma solidariedade de grupo fechado. Criou-se um espírito que rejeita os que vêm de fora e que é muito cáustico para os jovens docentes e para os estudantes.

          A minha solidariedade para com as pessoas, independente das amizades que ali tenho, é na base de um projecto em que eu me empenhei. Se o vejo posto em causa, eu, por mim, quebro, considero quebrada essa solidariedade. Não vou, de facto, continuar na comissão instaladora. Vou insistir na demissão porque estas questões são demasiado importantes por terem a ver com o sistema educativo português e com o papel da arte na educação.

          Quer explicitar melhor essas questões de que fala?

          Ao chegarmos ao final destes três anos, que correspondem ao primeiro bacharelato, nós próprios tínhamos proposto fazer uma revisão do plano de estudos. Esse plano – penso eu – deve mesmo ser revisto. Aliás não tenho dúvidas nenhumas de que em algumas coisas nós errámos. Começámos por pensar que logo na entrada da escola os estudantes podiam optar pelo chamado ramo do espectáculo ou pelo ramo da educação. Depois, chegámos à conclusão de que deveríamos proporcionar um primeiro ano comum e deixar a opção para o segundo ano. Mas havia ainda várias outras opções possíveis, e, através da lei interna, que regulamenta a frequência, acabámos por considerar determinados estudos nucleares em ambos os ramos. Entre nós existia um compromisso – era considerado um compromisso moral – que respeitaríamos as tendências reveladas pelos estudantes e as escolhas que fossem fazendo.

          Tomemos por exemplo o ramo da educação. A possibilidade, alí, é a de formar professores do ensino vocacional: professores de técnica, professores que criem bailarinos. E para formar professores, à partida, no ensino vocacional, precisaríamos de contemplar várias técnicas. Começámos pela dança clássica, porque essa era possível na altura, mas a nossa intenção era desenvolvermos também a formação de professores de dança contemporânea – coisa que até hoje ainda não foi feita. Por outro lado, punha-se o problema de permitir que os estudantes optassem por serem professores de técnica ou de dança educacional. Esse era outro vector em que nós tínhamos a intenção de investir. Tudo isso passava também por desenvolver um trabalho de persuasão, de divulgação, porque pelo menos nessa altura havia muito pouca abertura para a ideia da integração da dança no ensino geral.

          E essa situação foi ultrapassada?

          Neste momento, com os projectos de reforma, as coisas não estão ainda, para mim, muito claras, mas há, apesar de tudo, uma muito maior receptividade à ideia de integração das artes na formação geral do indivíduo – embora eu esteja alarmadíssimo com este projecto de lei de bases do ensino artístico que apareceu aí. Espero sinceramente que não seja aprovado. É desastroso.

          Estava a falar sobre o que considerou a quebra de um compromisso moral entre os que elaboraram o plano de estudo…

          Havia este compromisso moral de respeitar a escolha dos estudantes e eu sinto isso, neste momento, posto em causa: há estudantes que revelam grande capacidade para um destes estudos e depois são eliminados pelo chumbo no outro. Não querem ser professores de ballet, querem seguir outro caminho, e têm grandes capacidades para isso, mas vejo pôr em causa as opções feitas pelos estudantes. Além do mais nós aceitamos na escola estudantes de variadas origens – porque hoje o mundo da dança é muito vasto e o tipo de formação com que o estudante chega àquela escola pode ser muito diverso – e, para mim, é um problema moral grave que um estudante, aceite pela escola, e que é perfeitamente evidente que nunca vai ser um professor de dança vocacional, a certa altura do seu curso se veja, no fundo, impedido de prosseguir por não obter sucesso em determinada disciplina, mesmo quando lhe são reconhecidas capacidades e qualidades em outras cadeiras que podem dar-lhe um perfil profissional num campo que, para mim, tem muita importância.

          Prende-se tudo essencialmente com esta questão: que é que se entende por arte? Há uma espécie de tradição empírica de formação dos bailarinos para a dança, para a formação de corpos de baile. Isso é uma coisa que as companhias precisam de continuar a fazer, não o ponho em causa, só que o mundo da dança não se esgota aí.

          Parece que para si a formação técnica clássica não é muito importante?

          Eu não desvalorizo, de maneira nenhuma, a formação técnica, mas penso que há que pôr à disposição do estudante as mais variadas técnicas e dar-lhes a maior quantidade possível de informação teórica – informação estética – e permitir que o estudante escolha, isto no caso da Escola Superior de Dança, que é um estabelecimento de ensino não destinado a formar corpos de dança ou solistas, mas vocacionado para a criação. A técnica, neste caso, tem de estar ao serviço da sua criatividade, como qualquer outra arte. E é aqui que eu vejo problemas, porque sempre que nós – nós porque não se trata só de mim – chamamos a atenção para estas questões, as questões da informação estética, as questões da análise, da reflexão sobre as coisas, a questão da criatividade, somos apontados como detractores da formação técnica. Ora não é isso que acontece. O que sucede é que a criatividade e a criação são mais importantes do que a técnica, que só é válida na medida em que está ao serviço da criatividade do indivíduo. 

          Eu rejeito uma visão passadista, historicista no sentido linear. Penso que hoje, no final desta década, estamos perante uma evolução de mentalidades para mim muitíssimo importante e acho que não devíamos, nós, que estamos no ensino, estar desatentos em relação a isso. Eu aceito mal, ou considero uma lacuna cultural pior, uma pessoa que ignora o presente a outra que tem algum desconhecimento sobre o passado. Isso não quer dizer que eu rejeite o conhecimento da história. Não é isso que está em questão. O que está para mim em causa é uma perspectiva linear e meramente cronológica da história da arte ou, se quiser, da história da dança.

          Que se reflecte na escola de que maneira?

          O que ali está a acontecer é o que eu sinto ser uma rejeição da pluralidade, absolutamente essencial para uma escola como esta – que é a única escola superior de dança em Portugal integrada num núcleo artístico. Ali devem coexistir as mais variadas correntes estéticas e técnicas para os estudantes poderem optar.

          O debate que tudo isso gera só é paralisante – como algumas pessoas dizem – se as questões deixam de ser discutidas em termos intelectualmente válidos e passam a ser pessoalizadas. Quando começam a acontecer coisas como o que eu considero confundir uma biografia com um programa de ensino, quando se põe em causa que alguém possa pronunciar-se sobre determinado assunto por o seu passado profissional não ser este ou aqueloutro, nesse momento eu sinto que tudo acaba por ser personalizado e que não posso mais manter-me em silêncio.

          Pelo que disse pode ficar-se com a ideia de que se trata de uma luta de gerações?

          Eu acho que não pode ser vista assim por haver pessoas mais novas do que eu com posições contrárias às minhas. Não penso que isso seja um problema de gerações. Poderá ser, essencialmente, um problema de informação e eu não acho aceitável, profissionalmente, que quem está envolvido no ensino, seja em que campo for, se deixe de preocupar com isso, com o presente.

          É uma questão de democratização também, e vendo eu tantas declarações a favor da pluralidade, a favor da democratização, em nome da Declaração dos Direitos do Homem, vendo e ouvindo estas coisas, olhando para a escola, só posso pensar que é necessário passar à prática. Não podemos passar de sonantes declarações para o lado mais burocrático das coisas, nem deixar pelo caminho essas ideias e remetermo-nos às questões meramente administrativas.

          Face n.º 11, 3 de Agosto de 1989.

          Gil Mendo Entrevista com a Dra. Madalena Perdigão

          Na altura em que se encontra a funcionar o seu primeiro curso de dança, a Escola Superior de Dança, então sob a direção de Wanda Ribeiro da Silva, publica, no primeiro número do seu Boletim, no verão de 1987, uma entrevista de Gil Mendo a Madalena Perdigão. Foi enquanto fundadora e diretora do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian (1958-1974) que Perdigão criou as condições para acolher uma companhia que viria a ser o Ballet Gulbenkian e, posteriormente, foi responsável pelo Serviço ACARTE (1984-1989), preponderante na mostra de novas expressões de dança, e instigador de um novo pensamento sobre a dança. 

          Gil Mendo – Desde a criação do ACARTE, temos tido a possibilidade de assistir a espectáculos de dança no Centro de Arte Moderna. Gostaria que a Dra. Madalena Perdigão começasse por nos dizer alguma coisa sobre as actividades do ACARTE no campo da dança.

          Madalena Perdigão – A acção do ACARTE no domínio da dança tem sido sobretudo voltada para a apresentação, na Sala Polivalente, de grupos caracterizados por serem, digamos, de vanguarda, nomeadamente por se dedicarem ao experimentalismo em dança. lsto foi decidido atendendo a que a acção da Fundação Gul­benkian no domínio da dança através do Serviço de Música tinha características diferentes, visto ser mais orientada para a apresentação do seu próprio Ballet Gulbenkian e, mais esporadicamente, de companhias de dança moderna norte-americanas.

          Portanto, pensou-se que havia um espaço a preencher com es­ses pequenos grupos que são uma espécie de núcleos de criação artística com um grande vigor e com grandes potenciali­dades, que não se encontram na maior parte das grandes com­panhias de dança. E pensámos muito na dança europeia que, no nosso entender, actualmente se está a sobrepor à dança americana. Tem-se a impressão de que a dança americana se esgotou um pouco e agora a dança europeia é que está a pegar no facho e a renovar-se. Como disse, tivemos muito em mente a dança europeia, embora sem pôr de parte, bem entendido, a dança norte-americana. Começámos até pela Molissa Fenley, se bem se lembra. Mas, em todo o caso, pensámos mais na dança europeia, na dança de vanguarda e no experimentalismo.

          Como disse, para preencher um lugar que, em certa medida, estava vago no que respeita à acção da Fundação Gulbenkian no domínio da dança através do Serviço de Música.

          Mas não pensámos só nisso; pensámos também em animar o an­fiteatro de ar livre, que está adstrito ao Serviço ACARTE, e para isso começámos por convidar as maiores e melhores companhias de dança portuguesas, o que representa também uma diversificação do apoio da Fundação Gulbenkian ao bailado em Portugal.

          Portanto: diversificar o apoio, em vez de ser só restrito ao Ballet Gulbenkian, diversificar apoiando também, de uma maneira indirecta, apresentando espectáculos, a Companhia Nacional de Bailado do Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia de Dança de Lisboa, que eram as melhores e as maiores companhias existentes. Para aquele anfiteatro não parece adequado convidar pequenos grupos, porque tem grandes dimensões. E ainda há uma terceira vertente, que foi só apontada mas que eu espero desenvolver, que é a verten­te da dança não europeia. Pensámos nela ao escolher, por exemplo, Elsa Wolliaston, que é uma bailarina com raízes africanas, e adoptámos esse critério porque uma das tendências, uma das vocações do ACARTE, é não se circunscrever à cultura europeia, abrir-se para outros continentes, como, aliás, é vocação do próprio país, de Portugal. Portanto, nessa medida, achamos que devemos estar abertos para culturas de outros continentes. Então apontámos, com a Elsa Wolliaston, esse caminho, que esperamos continuar.

          G.M. – Eu tenho-me apercebido, no contacto quer com estudantes de dança quer com profissionais de bailado, sobretudo os bailarinos mais jovens, do grande entusiasmo que lhes tem despertado os espectáculos de dança a que assistem aqui no ACARTE, e penso que sobretudo por duas razões: a descoberta do experimentalismo, da dança de vanguarda, e o contacto com grupos de dança europeus, nomeadamente de países que são, como Portugal, pouco populosos, embora mais desenvolvidos do que nós culturalmente, como a Holanda, a Bélgica.

          Até agora o ACARTE não recebeu qualquer proposta de experimentalistas portugueses? Eu pergunto isto porque, embora assistamos por vezes a espectáculos de dança caracterizadamente experimental, em Lisboa, são muito poucos e muito espaçados, e surpreende-me que estes jovens, sobretudo os que já estão profissionalizados, que se interessam pelo experimentalismo, não tentem, à semelhança do que fazem outros jovens bailarinos europeus, desenvolver as suas experiências e apresentar o seu trabalho.

          M.P. – Estou informada de que essa actividade vai recomeçar. O Serviço de Música reiniciou o Estúdio Coreográfico no mês de Agosto último, portanto aí haverá um espaço e um tempo para que os jovens coreógrafos apresentem as suas tentativas de experimentalismo em dança.

          Junto do ACARTE houve duas aproximações, uma de Santarém, do grupo dirigido pela Prof.ª Fátima Sampaio, e outra do Dança Grupo, dirigido pela Prof.ª Elisa Worm. Foi uma primeira aproximação para ver em que medida é que poderiam colaborar com o ACARTE.

          Quando dirigia o Serviço de Música, tive a ideia de organi­zar Estúdios Coreográficos para permitir a revelação de no­vos valores no domínio da coreografia e os Estúdios tinham lugar todos os anos.

          Houve também um pedido de um grupo que agora se apresenta como Projecto APARTE. Achei muita graça porque deu-me a impressão de ser um pouco paródia ao ACARTE. Este grupo, Lisboa-Nova lorque-Lisboa, também queria colaborar connosco, mas não o pudemos atender por causa da nossa programação. Exigiam uma permanência muito longa, portanto não se podia realizar aqui na Sala Polivalente. Vai ter lugar no Teatro de São Carlos e no Teatro D. Maria II, portanto será de facto um projecto à parte.

          Mas estamos abertos ao experimentalismo português na Sala Polivalente, como disse há pouco. Quanto ao anfiteatro de ar livre, eu creio que foi a Sra. D. Manuela de Azevedo que lançou a ideia no Diário de Notícias de que se poderia abrir o anfiteatro de ar livre a grupos de jovens bailarinos portugueses. Penso que seria um pouco arriscado, porque o anfiteatro de ar livre tem umas dimensões muito grandes, mesmo a Companhia de Dança de Lisboa já tem dificuldade em se adaptar àquele espaço. Mas na Sala Polivalente admito perfeitamente que venham a apresentar-se jovens grupos de dança portugueses devidamente enquadrados.

          G.M. – Eu penso que um dos problemas dos grupos portugueses que querem dedicar-se ao experimentalismo é o espaço onde fazerem as suas experiências antes propriamente de as apresentarem, e provavelmente esse é um dos óbices.

          A Dra. Madalena Perdigão, na sua actividade em prol da dança, tem sempre revelado um grande interesse pela inovação, e portanto pela experimentação, e também um grande interesse pela pedagogia, e eu, nessa base, porque verifico – e verifico-o com grande satisfação – que uma vez mais a Dra. Madalena Perdigão está na dianteira do que é necessário fazer, no ACARTE está a dar importância à divulgação da experimentação no campo da dança – eu penso que o ACARTE está a fazer um trabalho muito importante em prol dessa ideia de desenvolvimento, de experimentação e de inovação -, nessa base gostava que me dissesse o que pensa que outras insti­tuições, nomeadamente a Escola Superior de Dança, poderiam fazer também em prol desse desenvolvimento da criatividade sem o qual a arte não evolui.

          Quer dar-nos uma opinião, que pode ser inclusivamente uma crítica?

          M.P. – Eu penso que poderiam, por exemplo, organizar workshops e seminários, convidando para o efeito alguns artistas de passagem, ou vindos propositadamente, eventualmente em colaboração com as embaixadas, se se tratasse de professores e coreógrafos estrangeiros. Parece-me que seria muito importante abrirem esse caminho para os vossos alunos, organizarem seminários e workshops de nova dança.

          G.M. – O ACARTE como procede para a selecção e escolha dos grupos que traz a Lisboa?

          M.P. – Eu procedo aqui no ACARTE como procedia no Serviço de Música, muito à base de documentação. As companhias enviam vídeos, críticas de espectáculos já realizados.

          Há também o contacto pessoal com correspondentes estrangeiros, com organizadores de festivais, que nos dizem “tal ou tal agrupamento é merecedor de apoio”, “tal ou tal agrupamento tem mérito”, e, portanto, isso tudo ajuda a seleccionar.

          Há também certas formas de colaboração que se estabelecem automaticamente, por exemplo com a organização Dance Umbrella, em Londres, que organiza todos os anos um festival em que se apresentam companhias da América e da Europa. Nós estamos em contacto com eles e seleccionámos, por exemplo, três das companhias que vão apresentar-se em Londres em Outubro, e que virão apresentar-se aqui, em Lisboa, em Novembro.

          E já agora que falamos de pedagogia – e, de facto, confirmo que estou sempre muito aberta à importância da pedagogia e da parte formativa do bailarino -, eu queria dizer­-lhe que pedimos sempre, e muitas vezes somos atendidos, que as companhias ou os bailarinos realizem seminários dedicados a bailarinos portugueses. Temos organizado vários e vamos continuar a fazê-lo, em Novembro também. Sempre que as companhias o aceitam, nós organizamos workshops destinados aos bailarinos portugueses. Admito perfeitamente que seja possível estabelecer uma colaboração com a Escola Superior de Dança nesse aspecto.

          G.M. – Esperamos que sim! Já agora, em termos de frequência desses workshops, eles são mais frequentados por profissionais de bailado ou por estudantes de dança?

          M.P. – Mais por profissionais. Menos por estudantes, talvez porque a informação não lhes chegue.

          Gil Mendo Os sinais de mudança

          Neste texto que escreve para o Expresso no início de 1989, Gil Mendo dá conta do desenvolvimento da Nova Dança europeia, que em Portugal se dá a conhecer através da vanguardista e inovadora programação do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, dirigido por Madalena Perdigão. Regista ainda os desenvolvimentos paralelos da dança contemporânea em Portugal, alertando para a necessidade de acompanhar e apoiar os seus protagonistas e de lhes proporcionar o espaço que lhes permita crescer.

          No decurso da década de oitenta, tem vindo a afirmar-se um movimento inovador na dança europeia. Convencionou-se chamar-lhe Nova Dança Europeia e, ainda que que todos os rótulos sejam redutores e perecíveis, o termo “novo” não é, aqui, descabido.

          Foi a mudança de mentalidades ocorrida na Europa ao longo desta época que permitiu a inovação. Tal como a Dança Independente dos anos setenta esteve ligada aos movimentos da democratização e descentralização cultural, a Nova Dança dos anos oitenta pode ser entendida à luz da autonomia individual e do espírito antidogmático desta década.

          Se a Dança Independente dos anos setenta fomentou a renovação na dança europeia, abrindo-a à influência da dança norte-americana, formando novas companhias, fornecendo novos coreógrafos às companhias instituídas, divulgando novos estilos e introduzindo na Europa a ideia do experimentalismo, ela foi sempre, no entanto, marginalizada como movimento, enredada numa ideia rígida do que é e do que não é dança. O entusiamo militante dos bailarinos que queiram participar mais activamente nas decisões artísticas, viver o seu quotidiano com a vitalidade e criatividade dos seus colegas do outro lado do Atlântico, sem o peso de hierarquias rígidas, foi muitas vezes empurrado para uma itinerância de estradas secundárias e usado pelas instituições como um subproduto, mais barato e de maior mobilidade, útil, para fazer alguma dinamização cultural, que é como quem diz abrir as estradas por onde mais tarde pudesse circular a outra dança, mais rica e considerada mais nobre.

          Foi só na década de oitenta que, no seio deste movimento, conseguiu afirmar-se uma verdadeira diferença em relação à companhia convencional, e que o bailarino-coreógrafo, que já não quer ser apenas executante exímio mas, antes de mais, criador, se tornou o protagonista de um movimento inovador.

          Tornou-se, assim, claro, para um número crescente de espectadores, que existe uma forma de dança que não é um produto marginal mas outra forma, que esta dança não é o recurso daqueles que não tiveram lugar nas companhias convencionais, é uma escolha diferente e foi escolhida por essa diferença, que esta dança não exige menos dos que a criam do que qualquer outra, que não é a versão pobrezinha de qualquer outra. É outra dança — mais do que renovar inova —, não veio substituir o que existia, veio acrescentar algo de novo.

          É a existência deste espectador novo que permite, na década de oitenta, a afirmação da Nova Dança Europeia. Esta Nova Dança tem hoje o seu próprio circuito, que partilha com o Novo Teatro. Pela Europa vão surgindo os festivais que criam espaços para a receber, os produtores e os promotores que lhe garantem viabilidade, os críticos e ensaístas que a decifram. É europeia embora não recuse as influências da dança pós-moderna norte-americana, é inovadora sem deixar de transportar consigo uma enorme carga de memória. A Nova Dança Europeia é uma dança culta.

          Em Lisboa existe hoje este espectador que claramente escolhe a Nova Dança e o Novo Teatro. Para além dos progressos universais nos processos de mediatização e no acesso à informação, que subverteram os conceitos de centro e periferia, e de que Portugal é beneficiário, Lisboa tem tido regularmente, desde há alguns anos, através das mostras organizadas pelo ACARTE, um conhecimento directo desta nova forma de espectáculo. Tem ainda, desde há dois anos, nos Encontros ACARTE, um Festival Internacional integrado no circuito europeu de Nova Dança e Novo Teatro.

          Era de esperar, pela ordem natural das coisas, que o ACARTE promovesse o encontro entre o espectador que formou e o criador que motivou, e é de saudar a iniciativa de, nesta temporada, incluir criadores portugueses nos seus ciclos — Olga Roriz no Ciclo Solos — e organizar uma Mostra de Dança Contemporânea — Rui Horta e Amigos, Aparte e Dança Grupo.

          Há sinais de mudança na forma como a dança portuguesa é olhada pelos operadores culturais: onde antes se olhava para o bailarino português sobretudo como intérprete e executante, procura-se hoje o criador. Surgem Concursos e Mostras Coreográficas. Ao mesmo tempo que decorria, no Centro de Arte Moderna, a Mostra de Dança Portuguesa Contemporânea promovida pelo ACARTE, a Companhia de Dança de Lisboa apresentava no S. Luiz um programa totalmente preenchido com obras de jovens coreógrafos, dos quais três portugueses — Rui Miguel Nunes, Vera Mantero, Paulo Ribeiro.

          São sinais positivos, sem dúvida. Convém, contudo, que se reflicta sobre alguns pontos, para que uma Nova Dança Portuguesa não venha a ser vítima dos mesmos equívocos que sufocaram a Dança Independente Portuguesa dos anos setenta.

          Hoje podemos acompanhar o crescimento da Nova Dança Europeia, e isso entusiasma-nos. Mas por trás desse crescimento o que está? Já não é possível acreditar que a dança portuguesa crescerá apenas à custa da formação de executantes cada vez mais exímios. Hoje é preciso formar produtores e promotores, é preciso organizar circuitos, é preciso pensar na mediatização, é preciso conseguir financiamentos e garantir formas de circulação que os viabilizem. É preciso contar com um bailarino novo que não aceita vocabulários nem estilos impostos de fora, ao seu corpo. É preciso contar com as suas escolhas e dar-lhe o espaço para crescer, pôr-lhe ao dispor instrumentos de aprendizagem, de experimentação, de reflexão.

          Estas questões, que são elas próprias tema de reflexão em Seminários e Encontros Internacionais organizados regularmente no âmbito do circuito europeu de Nova Dança — e cujo debate o ACARTE tem aliás também, louvavelmente, promovido — são essenciais para o crescimento da Nova Dança Portuguesa. São, aliás, no campo da dança, as mesmas questões que, num âmbito mais largo, se põem a toda a actividade cultural de uma Europa que já não é tanto a Europa das capitais quanto a Europa da circulação e da autonomia, onde, quer-me parecer, se integra este novo bailarino e este novo espectador. Por isso nos dizem respeito a todos.

          Expresso, de 28 de Janeiro de 1989

          Gil Mendo Jovens coreógrafos

          Paralelamente à sua atividade como professor de coreologia, Gil Mendo faz crítica de dança no jornal Expresso na década de 1980. Ainda que os seus textos apareçam esporadicamente, registam eventos que se destacam na dança em Portugal nesse período, como é o caso do espetáculo Zoo&Lógica (1984), aqui descrito, e posteriormente muito referenciado na historiografia da dança em Portugal.

          Quando a Sagração da Primavera, de Stravinsky e Nijinsky, foi apresentada pela primeira vez no Teatro dos Campos Elísios, em 1913, o público sentiu-se agredido pela quebra das convenções a que estava habituado e reagiu com escândalo e indignação. Pelo contrário, os espectadores que assistiram agora no Teatro Municipal de S. Luiz a uma nova versão da Sagração, com coreografia de Carlos Trincheiras, pareceram-me sinceramente entusiasmados.

          Entusiasmo que não senti, certamente em parte por a minha forma de entender um ritual de sagração da vida ser diferente da de Carlos Trincheiras. O apreciador de uma arte não tem, evidentemente, que aderir emocionalmente a uma obra para se interessar por ela, nem deve recusar liminarmente o ponto de vista ou a forma de expressão de um criador, como terá acontecido com aquele público em 1913, sob pena de se condenar a ser quase sempre um espectador frustrado. Mas mesmo tentando entrar na leitura que Carlos Trincheiras faz da Sagração da Primavera, penso que ele atribuiu uma importância excessiva à figura do Sábio, com isso prejudicando o ritmo da obra, que fica também prejudicado com o recurso a paragens de movimento para reforçar o simbolismo de certas imagens. Por outro lado, o primitivismo é representado de uma forma muito linear e por isso pouco interessante visualmente, e não me parece bem conseguida a sua ligação com os movimentos mais próprios do homem contemporâneo, o agitar dos punhos, a corrida falsa, que Carlos Trincheiras também usa.

          Neste programa, a Companhia Nacional de Bailado voltou a apresentar Serenade, de George Balanchine, que tem no reportório há pouco mais de um ano. Parece-me positivo que esta Companhia, que tem por projecto a divulgação das principais obras do património universal da dança, não se fique pelos bailados românticos e organize o seu reportório de forma a proporcionar o conhecimento das criações mais significativas da evolução estética desta arte. A decisão, agora anunciada, de apresentar brevemente o Concerto Barroco, uma obra mais recente de Balanchine, e a Mesa Verde, de Kurt Jooss, é, assim, de aplaudir. 

          Gulbenkian: usar o spaço cénico

          Dos dois dos programas já apresentados pelo Ballet Gulbenkian nesta temporada, parece ressaltar um aspecto digno de atenção: a tentativa de utilizar o espaço cénico com um dinamismo e teatralidade que ultrapasse as limitações da cena tradicional, recorrendo a uma intervenção mais activa da cenografia.

          É um sinal positivo. A dança afirmou-se já suficientemente como expressão artística autónoma para poder reaproximar-se das outras artes e participar com elas numa concepção mais global do espectáculo, e uma companhia de dança contemporânea que alcançou o nível artístico que o Ballet Gulbenkian tem neste momento pode lançar-se em novas e arrojadas aventuras.

          Mas a simultaneidade de elementos cénicos diversos requer um cuidado especial de encenação para que eles se não anulem uns aos outros, antes se valorizem mutuamente. Ora, é precisamente a ausência de encenação que tem sido o ponto fraco das últimas criações apresentadas pelo Ballet Gulbenkian.

          Senti-o em relação à obra mais recente de Vasco Wellenkamp, Estranhos Transeuntes, apresentada no primeiro programa da temporada, em que à atmosfera a um tempo gélida e majestática criada pelos cenários e figurinos de Ana Silva e Sousa o coreógrafo sobrepôs um elemento de luminosidade quente e faiscante, como ondas sucessivas de energia vertiginosa, criando momentos de grande beleza — os momentos, por exemplo, em que há uma relação visual directa entre a energia concentrada em Ger Thomas e a exploração de movimento polarizada em Edmund Stripe, e em que as duas dimensões presentes em cena parecem emanação uma da outra — mas deixando os transeuntes desaparecerem excessivamente no turbilhão do movimento.

          Senti-o igualmente em relação ao Livro dos Seres Imaginários, o trabalho de Olga Roriz em colaboração com o cenógrafo Nuno Côrte-Real, apresentado em estreia absoluta neste segundo programa da temporada do Ballet Gulbenkian. Também a coreografia de Olga Roriz tem momentos de grande beleza, e é muito interessante e estimulante a forma como traduz em movimento os seres descritos por Jorge Luis Borges. Tocaram-me sobretudo o Pássaro da Chuva e o A Bao a Qu. Mas, por um lado, parece-me que o cenário tem um peso excessivo para a utilização que lhe é dada — não tanto a rampa, mas aquela asa desmesurada no fundo de cena — e, por outro, julgo que a coreografia segue uma narrativa demasiado parecida com a de um livro: passamos de um ser a outro como se voltássemos a página para um novo capítulo, o que em termos cénicos se torna monótono. Encenado de outra forma, este interessante trabalho de Olga Roriz teria decerto ficado valorizado.

          Também de Olga Roriz se estreou agora na temporada oficial da Companhia um trabalho apresentado pela primeira vez no último Estúdio Coreográfico, e que logo aí alcançou merecido êxito: Lágrima, sobre música de Nina Hagen.

          É um trabalho carregado de violência, muito bem conseguido em termos cénicos, e muito bem interpretado por Elisa Ferreira. É interessante observar como aqui Olga Roriz transforma o espaço cénico servindo-se apenas das luzes.

          Este programa do Ballet Gulbenkian (I) é totalmente dedicado a Olga Roriz e Vasco Wellenkamp, e é uma óptima oportunidade para revermos alguma das suas obras anteriores: Encontros de Olga Roriz, Percursos e Outono de Vasco Wellenkamp. É também uma óptima oportunidade para recordar que estes dois coreógrafos foram revelados pelos Estúdios Coreográficos do Ballet Gulbenkian, e referir a importância da existência de oportunidades para que se manifeste a criatividade e o espírito inovador dos bailarinos portugueses.

          No seu terceiro programa o Ballet Gulbenkian irá apresentar em estreia absoluta um trabalho de Vasco Wellenkamp, Ricardo Pais, Constança Capdeville e António Lagarto. Será uma obra com quatro criadores: um coreógrafo, um encenador, uma compositora e um cenógrafo. Poderá ser a primeira das novas aventuras que atrás mencionei. Será de certeza um espectáculo a não perder.

          Cómicos: “Zoo&Lógica”

          Reabriu ao público, no início de Fevereiro, a sala dos Cómicos, no rés-do-chão do Teatro do Bairro Alto.

          Aproveitando muito bem o espaço da pequena sala, Nuno Carinhas realizou ali uma instalação de grande beleza plástica, que foi sucessivamente habitada pelas pesquisas coreográficas de Gagik Ismailian, Ana Rita Palmeirim e Paula Massano, com música de Carlos Zíngaro e Constança Capdeville e textos de Clarice Lispector e António S. Ribeiro.

          Habitada também pelos espectadores, que neste caso estão dentro do próprio espaço cénico, sentados a toda a volta da sala, tão perto dos intérpretes como estes uns dos outros.

          O espaço, o volume, o pormenor do gesto e da expressão (que também é gesto), são aqui peças de idêntico valor no puzzle que é a visão de cada espectador, ao contrário do espectáculo convencional em que a distância em relação ao palco pode induzir na ilusão de que o movimento é desenhado numa superfície bidimensional. O espectador tem, aliás, que escolher para onde olha e, desta forma, escolhe as peças do seu próprio puzzle.

          Há neste espectáculo — Zoo&Lógica — uma progressão muito interessante:

          Gagik Ismailian fez uma colagem, cheia de humor e imprevisto, de gestos e movimentos retirados em parte dos jogos e expressões infantis, em parte dos filmes de terror, em parte das situações grotescas do quotidiano, com a característica de serem gestos de afirmação mais do que diálogo: a ameaça, o medo, a teimosia, o esgar, o entretenimento. A voz também tem essa característica: os gritinhos de prazer ou de susto, os beijos que se atiram, a frase “não tenho fome” teimosamente repetida.

          No trabalho de Ana Rita Palmeirim há uma relação com “o outro”, com o som e com os objectos isenta de emocionalidade, de efeito muito belo: o solo de Margarida Bettencourt, com os movimentos presos por um fio imaginário, o seu dueto com Gagik Ismailian e o trio com Filipa Mayer são lindíssimos. Aqui o gesto e o som ilustram-se mutuamente, a música é graficamente desenhada na tela transparente, e há um divertido coro de vozes sobrepostas que traz escrito nos vestidos um texto só parcialmente legível.

          Paula Massano usa um texto inteligível, que vai sendo dialogado pelos intérpretes e depois dito em voz-off pelo narrador, e cria uma atmosfera de idílio, sedução e sensualidade, tanto entre os intérpretes como na sua relação com o espaço e os objectos. É muito belo o jogo entre Ana Rita Palmeirim e Gagik Ismailian com as bolas coloridas, e muito interessante a utilização que é feita da cadeira e do aquário. Há algo de lânguido nos gestos, no repouso, na troca de olhares entre os intérpretes, que transmite uma sensação de bem-estar, de fruição do corpo, do espaço e do habitat, de grande efeito estético.

          Muito bem produzido este espectáculo de tocante simplicidade, que é um encontro de várias artes carregado de gentileza.

          Não são muitas, infelizmente, as oportunidades dadas aos jovens coreógrafos. Oxalá este novo espaço inter-média continue a acolhê-los.

          Hábito ou progresso

          Se hoje nos parece risível a reacção que o público teve à primeira audição da Sagração da Primavera será porque, entretanto, nos habituámos a sons tão mais estridentes que estes nos parecem banais? De forma alguma. O que acontece é que hoje ouvimos melhor, compreendemos melhor os sons que ouvimos, e somos capazes de sentir pulsar em nós próprios o eco da música de Stravinsky. Devemos esse progresso aos músicos, como devemos aos pintores e escultores, aos coreógrafos e homens do teatro, aos cineastas, o vermos mais e melhor e termos mais facilidade em articular e entender o que vemos.

          É esse contributo da criação artística para o apuramento dos sentidos e do raciocínio, e não a sua anestesia, que justifica o investimento na arte.

          Investimento que deve traduzir-se no apoio à criatividade, ao progresso, ao desenvolvimento, por um lado, e na extensão a toda a comunidade dos benefícios do progresso artístico, por outro. O primeiro aspecto tem que ver com o fomento da actividade artística. O segundo com a educação e o entendimento necessário entre os artistas e os pedagogos.

          Expresso, 3 de Março de 1984

          Gil Mendo Texto introdutório ao programa de Análise e Notação de Movimento

          A 29 de julho de 1988, têm lugar as apresentações dos/as estudantes do 1.º ano do Projeto Interdisciplinar da Escola Superior de Dança (realizado no âmbito da disciplina de Metodologias e Pedagogias da Dança Educacional, coordenada por Madalena Victorino, em colaboração com as disciplinas de Estética e História das Artes, coordenada por António Pinto Ribeiro, e de Análise e Notação de Movimento, lecionada por Gil Mendo). Neste texto introdutório ao programa, Gil Mendo sublinha a importância da desconstrução e da experimentação nos processos criativos, recordando jogos e brincadeiras com os seus irmãos mais velhos na casa onde viviam em Lisboa, na Infante Santo, e também nas margens do Tejo. Neste retorno à sua infância, Gil Mendo articula tais memórias num jeito discursivo muito seu, que era também o seu predileto: o de contador de estórias.

          Uma vez deram-me um presente que me seduziu muito.

          Consistia ele num barquito e um farol colocados sobre uma base que tinha um mar pintado. O barquito movia-se sobre este mar de fantasia e, quando se aproximava do farol, este acendia e apagava uma luzinha vermelha.

          Era uma coisa para brincar só com os olhos. Dava-se-lhe corda e ficava-se a ver…

          Mas fascinou-me, por quaisquer fantasias que despertou em mim…

          Só o tive um dia. Um irmão meu resolveu desmontá-lo, para descobrir o que o fazia funcionar. Depois não o remontou. Mas aproveitou-lhe as peças para outras coisas.

          Este meu irmão tinha uma paixão pelos mecanismos. Acabei por compreender que, na realidade, quando os desmontava, não tinha intenção de voltar a montá-los, mas de compreender como funcionavam e, depois, usá-los, ou parte deles, para outras coisas, quase sempre muito diferentes.

          Lembro-me dos barcos de madeira que construía: com leme, quilha, velas que se içavam e arriavam, cabine, cada um mais elaborado do que o anterior… todos feitos com minúsculas peças e mecanismos de outras coisas: anilhas, rodas dentadas, cordas de relógio…

          No equinócio, quando as marés vivas deixavam lagos na praia que havia em frente da nossa casa, atravessávamos a correr a linha do comboio, levando nas mãos estes barquinhos de velas enfunadas, e íamos pô-los a navegar naqueles efémeros e tranquilos oceanos…

          Acontece-me muitas vezes, quando numa aula me ocupo, com os meus companheiros de trabalho, a desmontar e a analisar um movimento — uma tarefa árida que procuramos desempenhar com humor e fantasia… —, recordar, interiormente, estas histórias (ou melhor, recriar histórias com as peças — uma onda a galgar a praia, um tufo de azedas a irromper entre paralelepípedos, um silvo de comboio, um joelho esfolado a aparecer sob a fralda desbotada de uma camisa… — que vou destacando, e retendo, de um mecanismo demasiado complexo, ou demasiado simples, para que domine a sua elaboração).

          E, da mesma forma, quando assisto a uma dança que realmente me seduza, sinto como se no meu olhar houvesse dedos que se esgueiram no clarão do fascínio e tentam desmontar um mecanismo, não para copiá-lo ou reproduzi-lo, mas para senti-lo e entendê-lo e, quem sabe?, agarrar alguma peça que me permita aperfeiçoar o sistema que vou desenvolvendo para me relacionar com o mundo. 

          Joclécio Azevedo Maria José Fazenda João dos Santos Martins Pedro Pinto Editorial Para o Gil

          Gil Mendo (1946-2022) foi professor e agente ativo no terreno formativo, artístico e cultural português, tendo dado um assinalável contributo para o desenvolvimento da dança contemporânea em Portugal. A sua ação foi pautada por um interesse pelo bem comum, pela defesa da democratização da arte e da livre expressão da individualidade, pelo respeito pela pluralidade de ideias e estéticas. Foi um acérrimo defensor da necessidade de acompanhar e apoiar o trabalho das gerações mais jovens, no qual reconhecia força inventiva e vislumbrava um futuro promissor. A sua presença revelava uma postura de compromisso e de entrega, que não se restringia apenas aos papéis que assumiu institucionalmente, mas que se pautava sobretudo pela sua excecional capacidade de fomentar ligações e cumplicidades – em suma, por um imenso desejo de comunidade.

          Estuda dança no Centro de Estudos de Bailado do Instituto de Alta Cultura, no Teatro Nacional de São Carlos, entre 1969 e 1972, sob a direção de Anna Ivanova e David Boswell. O interesse pela coreologia leva-o a Londres, ao Benesh Institute of Choreology, onde se formou, em 1975. De regresso a Lisboa, é essa a matéria que ensina, primeiro na Escola de Dança do Conservatório Nacional, entre 1976 e 1986, e, depois, na Escola Superior de Dança do Instituto Politécnico de Lisboa, entre 1986 e 2014, escola cuja comissão instaladora integrara desde o início. Em 1990, também em Lisboa, é membro fundador do Forum Dança, integrando a sua direção, uma associação cuja missão coincide com a transmissão dos ideais da Nova Dança Portuguesa.

          Intervém na programação de dança na qualidade de consultor do Comissariado da Europália 91 – Portugal, momento este que servirá de trampolim para uma nova geração de coreógrafos, no quadro da integração de Portugal na CEE. É membro do Comité Executivo do IETM – Informal European Theatre Meeting, de 1991 a 1993. Paralelamente, participa como intérprete em espetáculos de Madalena Victorino. Entre 1993 e 1995, assume funções como consultor para a dança no Centro Cultural de Belém. 

          Integra a comissão instaladora do Instituto Português das Artes do Espetáculo do Ministério da Cultura, entre 1995 e 1998, e assume a função de coordenador do Departamento de Dança deste instituto, de 1998 a 2001. Mantém-se ativo em redes internacionais de artes do espetáculo, como o Roberto Cimetta Fund, de que é cofundador, em 1999. Em 2004,  torna-se assessor da administração da Culturgest, em Lisboa, na área da programação de dança, posição que mantém até 2017.

          O seu trabalho de dinamização artística — em particular no âmbito da organização do festival Europália em 1991 — foi distinguido nesse mesmo ano com a atribuição pelo Presidente da República do grau de Oficial da Ordem de Mérito. A sua relevante ação em várias áreas — no ensino, na política cultural, na programação de espetáculos — foi reconhecida, ao longo de todo o seu percurso, por alunos, artistas e colegas. Sobre todas elas pensou, agiu — e também escreveu. 

          O seu pensamento e as suas interrogações ficaram impressas em documentos de natureza diversa — ensaios, críticas, entrevistas concedidas a jornalistas e investigadores, e outras conduzidas por si, como as que fez à coreógrafa Pina Bausch e a Madalena Perdigão, diretora do antigo Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian. Entendemos que a pertinência, no passado, e a relevância, na atualidade, das palavras de Gil Mendo justificam a reedição de alguns desses documentos e a publicação de outros inéditos, precisamente quando se assinala um ano sobre a sua morte e a comunidade da dança se reúne para celebrar o seu legado. 

          De entre os documentos recolhidos, transcrevemos essencialmente os textos e entrevistas menos acessíveis, que não se encontram em circulação; ou que foram escritos, lidos, mas não publicados. Dividimo-los em duas partes: Reflexões e Retrospetivas. 

          Na primeira parte, agrupam-se documentos em que Gil Mendo, à época em que os escreve, sublinha a necessidade imperiosa de apoiar jovens criadores/as; explica as razões da sua demissão da comissão instaladora da Escola Superior de Dança, na sequência de uma crise interna vivida na instituição; questiona ou reconsidera os lugares dos/as intérpretes e outros intervenientes nos processos criativos; salienta a importância da experimentação de novos modos de composição e da desconstrução de linguagens artísticas; ou reflete sobre o estado da arte, da Nova Dança, da programação e da política cultural.

          Na segunda parte, reúnem-se escritos em que Gil Mendo relata retrospetivamente acontecimentos, como a expulsão pela PIDE do coreógrafo Maurice Béjart aquando da apresentação da sua companhia em Portugal; discorre sobre a importância da coreologia enquanto exercício de compreensão formal e conceptual do corpo em movimento; analisa o desenvolvimento e a preponderância de estruturas de criação, experimentação e programação, como a RE.Al ou a EIRA; pensa o modo como a dança contemporânea se foi transformando, e as suas fronteiras disciplinares transgredidas e diluídas, ao longo de várias décadas em Portugal.

          Em todos os textos é salientado o valor social da arte, perpassando em todos eles o elogio da democraticidade, da diversidade, da individualidade, da mobilidade, da acessibilidade e da solidariedade entre pares. São valores que também nós queremos manter presentes, e desejamos que sejam projetados para o futuro.

          A capa desta edição especial do Coreia é da autoria do artista plástico João Penalva, amigo íntimo e de longa data de Gil Mendo (e seu colega de formação em dança clássica no Teatro Nacional de São Carlos, antes de ambos partirem para Londres no princípio da década de 1970), e regista a expressão tão distinguível que para sempre nos recordará Gil Mendo: o seu maravilhoso sorriso.

          João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda e Pedro Pinto

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          João dos Santos Martins Clara Amaral Editorial

          Na última página da edição anterior do Coreia o futuro era deixado em aberto. A primeira página deste Coreia mantém o futuro em construção sabendo, à partida, que haverá mais quatro edições e que assim se inicia uma nova série. Esta é uma edição especial que se desdobra em duas. Por um lado, o Coreia prossegue a sua linha editorial com um novo design de Isabel Lucena, e introduz uma coeditora, Clara Amaral. Por outro lado, publicamos um caderno exclusivamente dedicado a Gil Mendo, figura ímpar no panorama da dança contemporânea em Portugal que nos deixou em 2022. O suplemento, publicado no contexto da “Maratona para o Gil” a realizar na Culturgest em março de 2023, é editado lado a lado com Maria José Fazenda, Joclécio Azevedo e Pedro Pinto, com design de Nuno Beijinho.

          Num dos seus editoriais para a Revista do Forum Dança, em 1992, Gil Mendo refletia sobre o papel das artes performativas na “manutenção (ou deveríamos dizer recuperação?) da comunicação e da troca nas sociedades”. Quando começámos a construir o futuro desta edição do Coreia, falámos sobre os nossos desejos, os escritos que nos movem e comovem, as pessoas com quem estamos numa proximidade distante. Assim se vivem alguns afetos. À distância. Sem que essa seja menos valiosa que a proximidade, ou como nos escreve setareh fatehi desde Teerão: “Em caso de (eu) estar presente, de qualquer forma possível,/Tudo o que estiver perto dessa presença é real.”

          E a realidade, que vertiginosa tem sido, passou um ano desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, que espoletou uma trepidante tendência bélica na Europa e virou a página Covid. Se em Portugal se luta pelos acesso justo a bens essenciais e por preços dignos na habitação, no Irão a luta das mulheres por uma emancipação política intensifica-se, no Brasil celebra-se euforicamente o fim da era do genocídio e ecocídio bolsonarista. A convivência do tempo comum na esfera da digitalização ao lado da disparidade geográfica, política e social cria uma sensação nauseabunda de ansiedade. Desde esse lugar de tormento, abrimos o jornal com uma proposta epistolar de Tiago Amate, que nos escreve “hoje com um quê de desespero”.

          Na sua conferência no Teatro do Bairro Alto, Franco Bifo Berardi discutia com a ativista ambiental Ideal Maia que a forma de ação política que lhe parece estar ativa hoje passa não pela participação, mas pela renúncia: a renúncia ao trabalho, a renúncia à produtividade, a renúncia à vida tal como ela é. A renúncia já antes expressada por Bartleby, o escrivão, é reafirmada por Rogério Nuno Costa, que escreve nesta edição que “o mundo que temos é uma valente merda. Se calhar é o pior dos possíveis. Ou um dos impossíveis”. O que fazer perante uma vida que não faz sentido e no qual as forças de mudança política clássicas parecem exauridas? “Onde foram parar nossas alternativas? Por acaso ainda existem?”, escreve Amate.

          Alternativas existem, se dúvidas houvesse, dissiparam-se no momento em que Leyla Brasil ocupou a peça Tudo sobre a Minha Mãe de Daniel Gorjão, no Teatro Municipal São Luiz com um protesto para dizer que as pessoas trans continuam a trabalhar precariamente nas ruas por não terem lugar noutras esferas da sociedade. As instituições culturais tentam abrir-se para não serem canceladas, mas a tentativa muitas vezes não está enraizada em mudanças estruturais que realmente baguncem as lógicas e práticas hegemónicas do pensamento.

           

          A disputa dos corpos, da representatividade em oposição à inclusão, da oportunidade em oposição à tendência, está na ordem do dia. Cada vez mais é inevitável pensar políticas de representatividade, por se observarem na sociedade discriminações obtusas, que frequentemente têm as suas raízes profundas na linguagem. 

          O artista Joseph Grigely comentava isso mesmo a propósito de uma notícia do New York Times de junho de 2021: “Revistas de Medicina cegas relativamente ao racismo como crise de saúde, dizem os críticos.” Na sua página de Instagram, Grigely criticava o “uso da cegueira como uma metáfora pejorativa”. E continuava: “Mas está claro que a intenção do uso da frase é conotar uma falta de consideração, ou pensamento racional. (…) Na verdade não sabes o que é um insulto até te aperceberes de que o corpo que tens e o corpo que te tem a ti é usado como uma metáfora descritiva de ignorância no maior jornal dos EUA.”

          Diana Niepce descreve a primeira vez em que entrou autonomamente na Culturgest por uma entrada acessível a cadeira de rodas para assistir ao espetáculo Ôss, de Marlene Monteiro Freitas com o Dançando com a Diferença, um grupo profissionalizante que reúne pessoas com e sem deficiência. A sua experiência crítica questiona espaços de agenciamento e leva-nos a perguntar qual será a diferença entre apresentação e representação na dança. 

          Pensando (e atuando) sobre acessibilidade, Ana Rita Teodoro traz-nos a transcrição de uma conferência de Valérie Castan, audiodescritora especializada na tradução e interpretação de espetáculos de dança, para pensar nas especificidades da experiência cinestésica a par da experiência visual. 

          Dando atenção à escuta, o músico João Polido debruça-se sobre questões de tradição, identidade nacional, memória e a criação de mundos via práticas culturais, a partir das experiências de som. Estelle Nabeyrat, curadora e escritora francesa, descreve a sua relação com o trabalho de som do artista visual Pedro Barateiro a partir de uma vivência coletiva num concerto de Dean Blunt onde a experiência estética se confundiu em estranheza: um apelo. Nabeyrat lembra-nos que ser espectador/a é, também, ser assombrade de relações inesperadas entre artistas. 

          O coreógrafo Davi Pontes alinha-se teoricamente com o pensamento quântico da filósofa Denise Ferreira da Silva e propõe Racial ↔ Não-local com o intuito de “bagunçar a lógica do linear”. O seu exercício de pensamento assume um “recordar ético que dispensa as forças mórbidas da melancólica coreografia moderna e propõe possibilidades na beira do abismo temporal”. Em semelhante exercício de questionamento  do tempo na coreografia, Miryam Gourfink fala, numa entrevista ao jornalista Wilson Le Personnic, sobre a sua investigação a partir do movimento ínfimo, intra, mínimo do corpo. São movimentos que não são percetíveis ao olho humano e que obrigam a uma reorganização do espaço que ocupa a visão como modo de perceção ainda dominante na dança. 

          A coreógrafa e escritora Chloe Chignell dá corpo (e mão) a Baladas em jargão VII — Um auto-retrato, parte do projeto Ballades infidèles, iniciado por François Villon, um poeta francês do século XV, e desenvolvido pelo artista Simon Asencio. Na contribuição de Chignell, habitamos o corpo de uma balada que viajou da língua francesa para o inglês e daí para o português. Pensa-se o ato de ler desde o corpo de quem normalmente é lida, neste caso, a balada, que também confidencia: “O desejo de cada poema é manter-se ao mesmo tempo dizível e desconhecido.”

          Mantendo-nos no desconhecido e nas suas possíveis aparições fantasmagóricas, Anh Vo, artista vietnamita residente em Nova Iorque, escreve a partir da sua peça BABYLIFT e como esta leva a comungar “com a multidão de anónimos morta no decorrer da guerra do Vietname”. A dança e a sua relação íntima com o desaparecimento — que terá, segundo Vo, de ser desligada da efemeridade — é o que “permite” a comunhão com fantasmas “sem ter de os tornar visíveis”.

          Publicamos pela primeira vez, em tradução portuguesa, escritos do artista norte-americano Pope.L acompanhados por uma série de imagens do seu trabalho de performance nas ruas de Nova Iorque dos anos 1970 e 1990. Trazendo o corpo em proximidade com o chão, o seu trabalho insiste na literalidade do gesto performativo, questionando estruturas hierárquicas do espaço social, racialidade e poder. No chão, mas num gesto de sensualidade somática, encontramos também a bailarina e professora Inês Zinho Pinheiro, que propõe “que sejamos chão em conjunto, ‘cher’ em conjunto”.

          Num momento em que várias estruturas artísticas ficaram literalmente sem chão por verem os seus apoios da DGArtes descontinuados numa nova roda-viva de empobrecimento, isto obriga-nos a pensar como ser chão em conjunto e a imaginar outros modos de sobrevivência. 

          Talvez regressando a “um corpo que dança”, como sugere Silvia Federici no seu artigo de 2016 que republicamos. A filósofa italiana reflete que olhar para o corpo como uma “produção social (discursiva) ocultou o facto de que o nosso corpo é um recetáculo de faculdades, capacidades e resistências”. Com esta crítica, Federici não sugere recuperar a ideia de um corpo natural, mas reivindica um corpo que ultrapassa a periferia da pele “numa continuidade mágica com os demais organismos vivos que povoam a terra: os corpos humanos e não-humanos, as árvores, os rios, o mar, as estrelas”. De acordo com Federici, devemos reapropriar o nosso corpo, não só individualmente como coletivamente. 

          Assim se termina esta edição do Coreia #8, o movimento que continuarão a ver.

          Os próximos Coreias continuam abertos a novas contribuições. Abrimos também a possibilidade de assinatura do jornal e de doações através do site coreia.pt. 

          Tiago Amate Uma carta que dança ao Sul

          Lisboa, 11 de janeiro de 2023

          Queridos amigos,1
          Escrevo hoje com um quê de desespero. Nada demais, nada que impossibilite o correr da vida segundo uma lógica de mais-valia que não nos deixa parar; lógica que expropria nossa força de trabalho, nosso tempo e, ultimamente, até nosso sono para agregar valor às mercadorias e aos abismos sociais num mundo de extensas crises humanitárias. Não me sinto angustiado à toa, mas, sem explicar ao certo, percebo que seguimos rodeados de pessoas mentalmente saturadas e adoecidas. É compreensível a exaustão em tempos de sociedade do desempenho, como anunciou há mais de dez anos Byung-Chul Han: “A sociedade do desempenho é uma sociedade de autoexploração. O sujeito do desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente”2. No entanto, insisto em perguntar para onde foram as experiências de solidariedade, de autocuidado e, sobretudo, de dissidência em contraposição aos sistemas hierárquicos impostos biopoliticamente segundo o controle da vida social no ocidente. Onde foram parar nossas alternativas? Por acaso ainda existem?
          O adoecimento generalizado que acompanha a ascensão das redes sociais no século XXI e das novas ondas de fascismo não está dissociado da perversidade ideológica do capitalismo, agora financeiro e informacional3, além de suas estratégias biopolíticas para manutenção de poder, como comprovam os desastres midiáticos (e simultaneamente políticos) do século passado: a propaganda nazista de Goebbels, a espetacularização iconográfica de invasões coloniais no continente africano e o televisionamento de guerras forjadas na Coreia e no Vietnã. Se hoje temos fake news, há toda uma perversa economia política dos meios de produção e comunicação a ser desvelada antes. Guy Debord a resume em um de seus famosos aforismos: “O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem.”4 É, sobretudo, a mais-valia uma das responsáveis pelo esgotamento humano e não-humano, quando transformaram cada âmbito da vida ocidental em espetáculo e, portanto, em mercadoria. Tenho assistido novamente a alguns filmes de Jean-Luc Godard após sua morte em 2022, sobretudo aqueles realizados pouco antes do fatídico maio de 1968, entre os quais Masculino Feminino (1966) e A gaia ciência (1967), e percebo a tentativa de sintetizar paradoxalmente os absurdos de uma vida moderna resignada com sua própria exploração, enquanto delira por revoltas fracassadas ou sucumbe a falsos atos de resistência. É, sim, desesperador viver numa modernidade do esgotamento que apenas adensou a lógica utilitária do objeto.
          Se não somos produtivos, tornamo-nos descartáveis. Qual a diferença dessa perspectiva para aquela vigente em tempos de capitalismo mercantil, quando inúmeros corpos racializados foram escravizados e transformados em objetos descartáveis das monarquias eugenistas europeias? Se durante as invasões coloniais a figura do homo sacer apresentava-se como o outro passível de ser aniquilado pelo poder soberano, isso acontecia porque os povos assassinados sequer alcançavam o estatuto europeu de humanidade: eram objetos da vontade branca, vidas desnudas fora da ordem do direito, como descreve Giorgio Agamben5. Não que essa configuração tenha mudado: a comoção seletiva da branquitude continua uma explícita denúncia da falácia humanista diante da necropolítica contemporânea. Alguns corpos valem menos que outros, talvez porque não sejam tão humanos assim. No entanto, a diferença é que mesmo essa humanidade excludente, na sociedade do desempenho, passou à condição de homines sacri. Segundo Han, a vida numa sociedade de doping deve ser mantida sadia a todo custo, mas apenas para continuar produtiva. É o oposto da vida que deve ser aniquilada: “Sua vida equipara-se à vida de um morto-vivo. São por demais vivos para poder morrer, e por demais mortos para poder viver.”6 Não se tornaram cadáveres, mas sim zumbis.

          “É um princípio epistemológico. O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo. Acham que o trabalho é a razão da existência deles. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar, experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso.”7

          Para Krenak, a insistência do homem branco na exploração do outro desenvolveu-se como experiência social de autoexploração. As políticas neoliberais de uma sociedade de desempenho mantiveram as pessoas escravizando a si mesmas no regime de mais-valia. Se não forem úteis o suficiente, não precisam mais de alguém para cobrá-las; que o façam sozinhas agora. E por isso o adoecimento generalizado: tornamo-nos insuficientes, mas segundo a óptica de quem nos explora. Fomos todos encerrados numa caixa de Pandora contemporânea, no entanto mais parecida com a forma que espécies são cultivadas em laboratório, úteis a algum experimento. Estamos enclausurados numa sociedade tecnocientífica que encontra justificativas para a manutenção de suas opressões seculares, explorando corpos à exaustão.
          Presos nesse ciclo infindável, vemos a emergência de inúmeras doenças mentais, entre elas a depressão, a ansiedade e o burnout8. Em comum, essas doenças carregam o modus operandi da insuficiência subjetiva numa modernidade que privilegia a perspectiva dos exploradores, opressores, detratores etc. Somos cotidianamente atacados e boicotados por lógicas que impedem o desenvolvimento de atos de resistência, sejam simbólicos ou materiais, ao destituí-los de sentido. A guerra híbrida que se instalou com o aperfeiçoamento do ciberespaço tem produzido disputas de narrativa a favor de signos viciados pelas ideologias do horror, da violência e do fascismo. Assim, uma obra de arte que contém nudez pode repentinamente virar uma ameaça pedófila, como ocorreu com La Bête, do coreógrafo Wagner Schwartz. Um corpo nu que manuseia e se assemelha a uma das esculturas de Lygia Clark tornou-se alvo dessas acusações quando imagens de sua performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2015, viralizaram na internet. Adultos e crianças interagiam com Wagner, disponível para mudar de posição a partir do toque do público. A nudez do coreógrafo diante de crianças, então, foi acusada de pedofilia pela extrema direita. Isso não é uma novidade, visto que as substituições de sentido são a estratégia política dos conservadores. No entanto, nada se compara à difamação criminosa e às ameaças de morte produzidas por fascistas. Wagner, então, precisou deixar o Brasil.
          São os mesmos fanáticos que, em 8 de janeiro de 2023, destruíram dezenas de obras de arte na invasão aos Palácios da democracia brasileira, reproduzindo cenas esdrúxulas do episódio no capitólio norte-americano, mas com outras pitadas de perversidade: mural de Di Cavalcanti rasgado, esculturas de Brecheret, Giorgi e Krajcberg destruídas… o que mais esses vândalos são capazes de fazer quando mesmo a arte não os impede do ímpeto de aniquilação? O desespero do zeitgeist traduz um verdadeiro abismo ao qual lançam-se pessoas e, à deriva, em queda livre, não conseguem mais responder criticamente aos comandos virtuais enviados por máquinas de guerra e por hierarquias de poder que fazem a manutenção das ameaças às subjetividades autônomas.
          Quando anuncio meu desespero, é uma forma de assumir o medo desta distopia que avança com pouquíssimas interdições em democracias liberais ao redor do mundo. Mas ainda sou otimista e penso que atos de resistência atravessarão o espaço e o tempo, como Krenak: “O que nos resta é viver as experiências, tanto a do desastre quanto a do silêncio. (…) Ou toda vez que você vê um deserto você sai correndo? Quando aparecer um deserto, o atravesse.”9 Por isso danço, danço como se atravessasse um deserto que conheço. Deserto de lagoas, cujas águas brotam da chuva.

          “Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
          sobre os automóveis de Roma.
          Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara,
          água e folha da Amazônia
          Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra
          Você não me pega, você nem chega a me ver
          Meu som te cega, careta, quem é você?”10

          Danço como ato de impermanência na resistência, como algum antídoto ao logocentrismo do antropoceno mas, sobretudo, às interdições que se multiplicam na vida social. Um pensamento que vem dançando e se recusa a ter na normalidade da economia política de expropriação ou na razão ocidental qualquer ordenação sobre si. Porém, se vejo pessoas adoecendo logo ao lado sei que também não estou imune, é um processo coletivo, e por isso precisamos urgentemente cuidar uns dos outros e também das utopias com as quais flertamos socialmente. Estamos corresponsabilizados e somos um organismo vivo, um planeta que integra um sistema solar numa galáxia perdida no espaço infinito. Mas isso não nos impede de respirar autonomamente, cada um à sua maneira e ritmo. É na diferença, portanto, que nos encontramos resistentes e vivos diante de consensos impostos. Por isso respiro e me permito parar, como numa dança que abandona o desespero por desempenho.

          1 Este texto foi originalmente escrito antes de sua leitura nas imediações do Convento de Arrábida, onde aconteceu uma das performances integrantes do projeto Cartas que dançam ao Sul. Com a intenção de serem enviadas ao Brasil, essas epístolas se transformam em videodanças, hibridizando-se numa perspectiva não linear a partir de múltiplas interações entre corpo, câmera, imagem e palavra.
          2 HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 101.
          3 A análise otimista de Manuel Castells sobre uma economia baseada no informacionalismo, publicada em 1996, encontra sua crítica no trabalho de Byung-Chul Han, quando este descreve uma era de psicopolítica digital dominada pelo neoliberalismo: “Hoje, essa euforia já se mostrou uma ilusão. A liberdade e a comunicação ilimitadas se transformaram em monitoramento e controle total. Cada vez mais as mídias sociais se assemelham a pan-ópticos digitais que observam e exploram impiedosamente o social. Mal nos livramos do pan-óptico disciplinar e já encontramos um novo e ainda mais eficiente.” Em: HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: yiné, 2018, p. 19.
          4 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 25.
          5 “Os Estados-nação operam um maciço reinvestimento da vida natural, discriminando em seu interior uma vida por assim dizer autêntica e uma vida nua privada de todo valor político (o racismo e a eugenética nazista são compreensíveis somente se restituídos a este contexto).” AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 139.
          6 HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 269.
          7 KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 113.
          8 Em relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde, cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo viviam com algum transtorno mental em 2019. Só o suicídio teria sido responsável por mais de uma em cada 100 mortes, sendo 58% dos casos registrados abaixo dos 50 anos de idade. Durante o primeiro ano da pandemia de COVID-19, a OMS estima que casos de depressão e ansiedade tenham crescido pelo menos em 25%. Disponível em: , acessado em 20 de fevereiro de 2023.
          9 KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 116.
          10 Reconvexo, música composta por Caetano Veloso para Maria Bethânia.

          Pope.L Notas sobre Crawling Piece/Diário de Performance/ Manifesto de Performance #78

          Notas sobre Crawling Piece

          vulgo Quanto Custa Aquele Preto na Montra?

          (Verão 1991 / Ruas de Nova Iorque)

          Masoquismo estético, os seus des-contentamentos, performando lutas sociais poeticamente / analiticamente via agência publicitária de lamentações: para incitar uma dinâmica recursiva entre o privilegiado/subordinado – para nos testar a nós/ a nossa negociação do social. Rastejar: SOFRER: provocação para a ação. Pergunto: A arte corporal iliba? Por exemplo, é somente uma luta desconectada e ISOLADA? Americanos, adoramos o capital pessoal = individualismo. Tão reconfortante. Se dar corpo continua a ser uma idiossincrática explosão individual, então ação = solipsismo. Preocupo-me. As pessoas dizem ironia = arte séria. As pessoas dizem: não sejas tão CLARO. A tua crítica não é confusa o suficiente, as tuas palavras não são longas o suficiente, que raio se passa contigo, não vês a trapaça? Conclusão: a FÉ é um produto. Ironia, outro produto. Coloca ‘elas’ juntas. Ama essa lógica falha. O verdadeiro ESPÍRITO do meu projeto: MIJAR no coração sangrento do PAI. Falha do tribunal. Não da LEI. Máxima machista: Ações são efeminadas. Palavras são viris. A confusão é conspurcada – à totalidade TOTAL. REIVINDICO: Quando sofro. Faço-o para todos. Isto é DESONESTO (mas tenho que enfiar a carapuça) não importa que produto venda ou com que bíblia acene. A minha MÃE: Billy, faz-te à vida e deixa-te de palavras – arrisca o couro onde nós, o zé-povinho, vivemos…

          Publicado originalmente no Art Journal, 56, n.º 4 (Inverno de 1997), “Performance Art: (Some) Theory and (Selected) Practice at the End of This Century”, pela CAA.

          (do Diário de Performance, 1991)

          A verdadeira questão

          Jaz na justaposição

          Da destituição e plenitude

          Isso é tão in-quietante 

          E a sensação de que poderia ser eu amanhã

          Faz a minha arte parecer autosserviço.

           

          As porções da vida não são divididas equitativamente… 

          Se as coisas fossem mais claras, mais limpas, mais brilhantes, mais arrumadas

          Mais tipo bolacha Ritz…

          Se apenas houvesse rico ou pobre,

          Preto ou Mouro

          Ou só alguns brancos a arrancar à dentada cabeças de cotonetes…

          Cairia eu na miséria

          A defender, a ir na onda, a fingir sofrer

          Por algo supostamente totalmente outro?

          Eu sou o mano mais escuro, o muito mais escuro,

          A resolver puzzles infiltrado

          Num bom emprego em más alturas.

          A levantar o meu salário sobre os corpos na Palestina

          Vejo-os dispostos como judeus em Bowery

          Como no terminal da estação de autocarros de Port Authority,

          No âmago de Nova Iorque

           

          As pessoas dizem que há beleza na feiura.

          Passa o Häagen-Dazs 

          Vomita-o na retrete,

          Fá-lo milhentas vezes.

          Não deixes que o teu lado bom o estrague.

          Tenho a minha própria anorexia cultural.

          É um tanto ousado,

          Ponho-me de bruços e rastejo até me tornar realidade.

           

          Não te escapas da verdade, ‘tás a ver,

          Arte não é sobre obras-primas

          Queres perfeição? Compra uma Smith & Wesson.

          Toma um Slurpee, isso, sim, é uma lição!

          Arte devia ser desleixada e vergonhosa.

          Vergonha: o chicote, o corte e a maçã.

           

          Como podes amordaçar a corrente e os escravizados?

          Arte devia ser enorme mas caber na boca.

          Na minha arte, quero a coordenação olho-mão

          Para criar uma celebração conflituosa.

          Arte que chama a atenção dos transeuntes.

          Arte que é macabra & inócua & incompleta.

          Arte simbólica do salto

          Que precisamos para nos livrar da nossa paz de espírito.

           

          ….

          Eu queria a coordenação Olho/mão

          Para criar uma celebração conflituosa

          Eu – Eu – Eu – Eu queira fazer algo

          Que comunicasse com quase

          Qualquer um nas ruas

          Algo macabro, algo inócuo, contudo incompleto,

          Algo profundo, algo doloroso, simbólico

          Da armadilha da fé de que precisamos para nos abanar

          Do nosso sono

           

          No trabalho,

          Pessoas diferentes viram histórias diferentes

          Aquelas que viram as ações na rua

          não viram o filme.

          Quando esmifras a tua intenção

          Estás a defender a insegurança

          Uma grande dama disse isto

          Ruth Maleczech! então não o esqueças

          Ela disse (e vou citá-la só uma beca)

          “Só porque dizes que existe

          Não significa que é realmente visível”

           

          Então se eu fosse mudar alguma coisa

          Mudava algumas das minhas decisões

          Mudava algumas crenças

          Por detrás da visão

          Quanto misturas Arte + política

          Acabas sempre a tratar os sintomas

           

          A maioria dos que viram a performance na rua não foi convidada para a exposição

          Então – Se eu fosse mudar algo

          Aceitaria as minhas limitações 

          Tentaria criar pontes

          Entre o que é feito, o que é dito

          E o que é escondido

          Levava todos para a cozinha

          Para uma subversão de arroz, feijão e porco frito

           

          Enfim, só não quero arruinar a minha imagem

          Como alguém uma vez disse “Arte precisa de contexto”

          Um Álibi, talvez café e pastel

          Podia ficar constipada e 

          Desaparecer…

          Então o que faríamos?

          Bebíamos uma coca-cola e ficávamos famintos.

          O excerto que aqui se publica reúne dois blocos de texto complementares originalmente publicados na Art Journal, 56, n.º 4 (Inverno de 1997) “Performance Art: (Some) Theory and (Selected) Practice at the End of This Century, pela CAA, e em manuscrito no catálogo que acompanhava uma retrospectiva do trabalho de Pope.L no MoMa, Nova Iorque: member: POPE.L, 1978—2001, editado por Stuart Comer com Danielle A. Jackson, 2019. 

          Manifesto de Performance #78

          — A Morte da Performance; A minha mãe; Eu próprio

          Sabes de antemão de algumas coisas. Como a morte.

          Ainda assim, no fim ela te escapa.

          A vida é assim também. Esperança, igualmente.

          Hoje estive a pensar na minha mãe. Vejo-a

          na sua casa, que consiste num quarto pequeno numa casa estreita numa rua pedregosa num lugar especificamente criado para a malta preta.

          Quando penso na minha mãe, frequentemente fico triste, não deprimido atenção mas triste. Uma tristeza que sulca como uma onda sobre o horizonte das minhas pálpebras. Pergunto-me porquê todo esse drama e nego-o com uma careta de indignação. A minha mãe está mais velha hoje do que alguma vez foi. Isto é lógico, mas ainda me surpreendo. Ela senta-se aprumada na sua cama. A TV está aos seus pés as paredes caiadas a azul que ela contempla cheia de paz com o olho de uma tartaruga. Ela tem um livro numa mão a outra crispada no seu colo: espasma quando a televisão faísca com estáticas. Perto da cama, junto à sua mão há uma mesinha com cigarros pretos, um copo de cerveja, um romance cor-de-rosa e muitas caixas de fósforos. Ela está a dormir. Com a respiração pausada. O quarto brilha como uma pira fúnebre.

          E estou triste. mas jubilante de uma forma estranha, pois a morte da minha mãe é a minha jovem e mísera inspiração a gatafunhar neste restaurante à espera que o teatro abra; evito aquela atenção cuja presença não se menciona, porquanto eu sou um performer a caminho da minha morte.

          Publicado originalmente em manuscrito no número 1 da revista THE ACTPerformance Art, inverno/primavera 1986, pelo Performance Project, tendo como editor Jeffrey Greenberg e co-editores Jacques Cwat e o próprio William Pope.L. 
          Traduzido dos originais em inglês por Marinho Pina.

          Anh Vo A força aparicional da dança

          Depois da estreia de BABYLIFT (2021), em Nova York sem público, estava muito deprimido. Primeiro diagnostiquei-me com uma clássica depressão pós-performance – o inevitável colapso que acontece depois de trabalhar loucamente num projeto que significa tudo para mim, mas não parece significar nada para o resto do mundo. À medida que as semanas e os meses foram passando, o corrosivo sentimento diário de vazio não desaparecia. Nem desapareciam os pesadelos e a paralisia do sono, pareciam até aumentar de intensidade e frequência. Alguma coisa estava errada. Talvez estivesse assombrado.

          Ser assombrado não devia ser, para mim, uma surpresa; afinal, BABYLIFT tinha estreado sem público principalmente porque eu queria dançar com fantasmas, com a multidão de anónimos morta no decorrer da guerra do Vietname. Era uma tarefa impossível. Pesavam muitas mortes sobre este pequeno país destruído por meio século de guerras com impérios, tanto antigos como recentes – França, Japão, China e os Estados Unidos da América. Crescer em Hanói, numa das primeiras gerações vietnamitas que viveram relativamente em paz (pelo menos do ponto de vista geopolítico), fez-me sentir distante das guerras. A diretiva tácita era, e ainda é, continuar e seguir em frente. Não podemos ficar parados a olhar para trás, se não queremos que os fantasmas nos alcancem.

          E lá estava eu, a pedir aos fantasmas que dançassem comigo, e nunca me ocorreu que eles poderiam ficar e assombrar-me depois do fim da performance. Senti-me falsamente protegido pelo carácter efémero da performance, o mesmo que, aparentemente, livra a performance dos grilhões do tempo e a envolve no presente fetichista. “O ser performance […] atinge-se através do desaparecimento”1, a famosa declaração da teórica da performance Peggy Phelan. E se a performance desaparece no presente não reproduzível, os fantasmas invocados também se dissiparão ao mesmo tempo que o momento singular de uma performance se dissipa.

          Há algo de reconfortante e que garante segurança nesta articulação ontológica da performance enquanto desaparecimento, o que justifica a ideia de que os encontros com fantasmas em performance sejam também efémeros. Numa reviravolta paradoxal, a hiperfixação no presente efémero acaba por banir inadvertidamente os fantasmas ainda mais para o passado, sem vínculo à contemporaneidade. Mas assombrar é o mais contemporâneo possível. Assombrar desafia a progressão da linha temporal do passado para o presente e para o futuro, ou até a crença de que os fantasmas são o regresso de um passado que ficou por resolver. Assombrar tem uma qualidade atemporal e não porque está fora do tempo. É precisamente o contrário, assombrar, com a sua presença eterna, evidencia a força turbulenta do tempo, recusa qualquer lógica temporal e assim desestabiliza a dicotomia entre passado e futuro, entre vida e morte. Jacques Derrida lembra-nos, “um fantasma nunca morre, permanece para poder voltar uma e outra vez”2.

          Nesse sentido, fui ingénuo quando estava a trabalhar em BABYLIFT e esperava que um momento de comunhão com fantasmas funcionasse como um aperto de mão inócuo, uma troca de cumprimentos no teatro sem consequências materiais. Não podemos estabelecer contacto com fantasmas e sair ilesos. Nesse encontro visceral com o desconhecido temos de questionar o que pensamos saber, e o que achamos ser a realidade deixa de parecer muito real. Assombrar produz inevitáveis transformações. Pode não ser imediatamente aceite, ou pode ser temporariamente evitado recorrendo a rituais de exorcismo. Podemos tentar resistir em vãs tentativas de o afastar, mas eventualmente a assombração apanha-nos. Repito, “um fantasma não morre”.

          Em 2021 não estava pronto para dar as boas-vindas aos fantasmas que entusiástica, ainda que imprudentemente provoquei (como se os fantasmas alguma vez esperassem que estivéssemos preparados; como se nos conseguíssemos preparar para a sua erupção e disrupção). Então, para comprar um estado de calma provisório, ganhar algum tempo e começar a lidar com esta minha nova condição de pessoa assombrada procurei dois poderosos intermediários: a psicanálise e o xamanismo do Sudeste Asiático. Por um lado, a psicanálise e a sua metodologia de associação livre animam a força da assombração com a curiosidade científica pelas suas consequências sentidas (i.e., sintomas como pesadelos), trabalham meticulosamente sobre a psique individual do sujeito para reconhecer os vestígios da presença inquieta de fantasmas. Por outro lado, o xamanismo promete um acesso ao assombro menos tortuoso, onde o xamã, com recurso a várias ferramentas de adivinhação, consegue falar diretamente com os fantasmas, quase como se fossem seres vivos, por vezes com uma linguagem simples, às vezes em línguas diferentes, ou até telepaticamente, mas é sempre claro que a comunicação entre eles está a acontecer.

          Estou tentado a dar nomes aos fantasmas identificados neste meticuloso processo de cuidar dos assombros, apesar de achar que é uma vontade à qual não devo ceder. Por exemplo, os fantasmas com quem interajo não têm nome, continuam por aqui desde as guerras, pertencem às multidões anónimas de mortos. Mas, mais do que tudo, nomeá-los e assim fixá-los num documento seria enganador, daria uma ilusória sensação de clareza que implicaria podermos simplesmente confrontar as assombrações diretamente e obter as respostas de que estamos à procura. Seguir o rasto da assombração pode levar a algumas respostas (a perguntas que nem sequer sabíamos ter), mas as respostas só nos levarão a mais perguntas. “Um fantasma permanece para poder voltar uma e outra vez.”

          A experiência de consultar xamãs e de ser psicanalisado foi muito esclarecedora. Ao mesmo tempo, não tenho a certeza de que almejar o esclarecimento seja o caminho a seguir ao trabalhar com assombrações. Talvez seja necessário algum esclarecimento, mas apenas no sentido de dar alguma segurança sem dissipar todo o medo e toda a curiosidade, para continuar a avançar no escuro e a seguir o rasto dos fantasmas. Para nos mantermos sensíveis no meio da dúvida e da incerteza, para nos aventurarmos pelo desconhecido sem o colonizar pelo campo iluminado do conhecimento, mas para que simplesmente nos deixemos ser movidos por esse desconhecido.

          Ao pensar nestas questões de mover e de ser movido regressei à dança, como se fosse uma bússola guiando-me por terrenos espectrais e desconhecidos. Quero voltar à questão do desaparecimento, cuja formulação assente na efemeridade e na preciosidade do presente parece banir a dança e as assombrações para um passado distante. Ainda assim, não quero apressar-me a repudiar o desaparecimento – existe, de facto, alguma coisa semelhante ao desaparecimento na dança, com a sua ambivalência entre ser escorregadia e evasiva e ao mesmo tempo ter uma materialidade visceral. E é precisamente nesta relação íntima com o desaparecimento que a dança consegue estar em movimento com fantasmas e rastrear movimentos fantasmagóricos sem ter de os tornar visíveis. 

          Aqui o termo desaparecimento precisa de ser desligado da noção de efemeridade, o que não é tarefa fácil porque a efemeridade contém a promessa utópica de que a dança e a performance não podem ser registadas e fixadas. No seu provocador estudo sociológico sobre assombrações e assuntos de fantasmas, Avery Gordon coloca pressão sobre a materialidade sensível do desaparecimento, descrevendo que “um desaparecimento só é real quando é aparicional”3. O desaparecimento já não está cristalizado num momento fugaz do presente não reproduzível. Ao invés, o desaparecimento assombra e é definido por essa assombração, pelos efeitos materiais sentidos mesmo na sua suposta ausência. Não é coincidência que Gordon reconheça esta força aparicional do desaparecimento e, de forma semelhante aos meus instintos artísticos, decida seguir o rasto das mortes em massa orquestradas pela Guerra Suja da Argentina, numa tentativa de ouvir aqueles que desapareceram pelas mãos das juntas militares, nos anos setenta e oitenta. O que está morto tem uma forma de nos dizer que está (ao) vivo se tivermos paciência de o ouvir.

          E os mortos também nos dizem como dançar com eles. Que é dançar ao mesmo tempo connosco enquanto seres assombrados, com os nossos corpos e com a sua impossível rebeldia. O corpo, sempre em excesso de si mesmo, talvez não seja tanto uma entidade física como um veículo do aparicional, uma convergência de forças desconhecidas que não estão ali, mas cuja presença é sentida. A dança, com a sua devoção incondicional às idiossincrasias do corpo, parece prontamente permeável ao imperativo ético de comungar com fantasmas. Este tráfico com fantasmas não deixará a dança intacta, exigirá uma transformação de como nos movemos e como somos movidos. Não insisto que devamos marchar em frente na direção de uma ilusão de transformação com a nossa compulsão vanguardista de estarmos à frente do tempo. Em vez disso, quero ter tempo para me sentar quieto, estar no tempo, estar com a força aparicional do tempo, ouvir os fantasmas cheio de humildade e vulnerabilidade.

          Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.  

          1 “Performance’s being […] becomes itself through disappearance.” Peggy Phelan, Unmarked: The Politics of Performance (Nova Iorque: Routledge, 1993), 146. N.T. Como não está publicado em português coloco aqui a versão original.
          2 Jacques Derrida, Espectros de Marx, (Coimbra: Editora Palimage, 2021).
          3 “A disappearance is only real when it is apparitional.” Avery F. Gordon, Ghostly Matters: Haunting and The Sociological Imagination (Mineápolis: University of Minnesota Press, 2008), 63.

          Diana Niepce Crítica para a dança

          Entro pela primeira vez na Culturgest com uma entrada acessível. (Extraordinário.) Não tive de ligar a pedir para entrar, ou de dizer a um amigo a dizer que estou a chegar, ou de pedir ajuda com os desníveis. Até parece simples, mas não, isto não acontece em qualquer lado. No café queimo tempo com as amigas e, quanto mais se aproxima a hora, mais a mesa se aglomera com os famosos da dança. Isto seria expectável se eu alguma vez tivesse conseguido conciliar a minha agenda com os espetáculos da Marlene Monteiro Freitas, mas como só hoje se tornou possível, não estava à espera disto.

          A sede de um banco nacional em Lisboa, que se assemelha à casa do Tio Patinhas, enche e enche. (É um Rock in Rio, só vejo rabos e pernas porque, quando estás sentada na multidão, o campo de visão é limitado.) Entro no hall vermelho (aquele da casa de banho dos deficientes de porta dourada, que parece um quarto de BDSM), abrem as portas, subo a rampa inclinada, e o grande auditório parece maior do que me lembrava, talvez pela quantidade absurda de humanos que não param de entrar.

          O espetáculo é Ôss com o Dançando com a Diferença. A cena abre e um performer com síndrome de Down com calções de boxe e ténis dirige-se a um sintetizador, onde diz coisas irreconhecíveis, e desenvolve um ritmo. (Parece que entrei numa discoteca azeiteira do início do milénio.) Pula da mesa para o centro e ao mesmo tempo que corre, bate palmas e salta por cima do suporte do microfone relativamente baixo. (Sinto-me estúpida.) O público segue os movimentos do performer com os abanões do próprio corpo e, histérico, reage às acrobacias deste circo verdadeiramente impressionante, ou parvo. (És odiosa Diana. Não sei se sou. Será que faz sentido evocar os horrores circenses numa companhia de inclusão nos dias de hoje, quando durante tanto tempo as pessoas com deficiência foram desta forma exploradas?)

          A música muda para uma gaja aos gritos numa ópera dramática. (Parece a minha vizinha de baixo que quer ser cantora de ópera e diz que tem de ensaiar muito.) O performer executa um solo com alternância de imagens que remete à mímica do cinema mudo, com uma série de caretas, pliés, movimentos de boxe e de ginástica. (Como eu sou pitosga e o auditório é uma espécie de estádio de futebol, adivinho aquilo que não consigo ver nas imagens.)

          A cortina de ferro abre por trás do performer, a cenografia e os figurinos dos performers em exposição remetem para um navio. Uma figura vestida de laranja, sentada junto ao ciclorama, move um pau em micromovimentos, outro performer sentado de pernas cruzadas fuma ou finge que o faz. (Preciso de binóculos.) A quietude das restantes figuras acentua esses pequenos movimentos. E se prestarmos atenção estão alinhados o boxista, a laranja e o marinheiro/cozinheiro/fumador (provavelmente não é cozinheiro, mas tem um chapéu de cozinha e com as galochas parece… acho que lhe ficam bem) e ainda os capitães normativos, duas marinheiras/capitãs ou então ajudantes de cozinha (parece que estou a jogar ao “Quem é quem?”), uma vaqueira e a mulher na bacia. (Já tenho músicas de circo na cabeça.)

          Começam as passeatas no meio da cena. (Acho que estão todos tão perdidos quanto eu.) Os capitães carregam o pódio, a bacia e a mulher para o centro da ação. Anuncia-se a sua apresentação, só que nada. Embrulhada num lençol branco, numa espécie de paralisia, a figura vai girando a cabeça. Será que é uma referência colonial, do estilo a mulher africana da bacia? Com certeza, mas é um discurso intencional? É claramente uma imagem violenta. O tempo continua a esticar, a cena arrasta-se, a mulher continua na paralisia (e daqui a bocado estou a babar-me a fazer a lista das compras), surge a buzina de um navio na esperança de verticalização da mulher deitada. Uma coreografia de ações quotidianas são decompostas até se transformarem e restar apenas o híbrido. (Lá estou eu a ser obtusa, não, contemporânea. Isto da arte contemporânea tem o que se lhe diga, porque o espectador irá observar a obra a partir da sua cultura e experiência pessoal. Mas quando a experiência pessoal é limitada, será que sabemos o que estamos a ver? Será que posso analisar a obra sem as minhas próprias referências? Será que é algo que quero fazer?)

          Passaram vinte minutos e tento concentrar-me no palco. (Parece uma insónia, e continuo a pensar nos livros pendurados na mesa da sala há semanas, na mala de viagem que tenho de comprar, os iogurtes que acabaram e a medicação da minha cadela Nina que ficou por pagar. PÁRA, DIANA, CONCENTRA-TE!)

          Acordei e estamos num momento de marcha, a performer laranja com a cabeça baixa marcha, e os autocolantes na sua cabeça fazem uma nova cabeça, criando um novo corpo. O boxista também marchou para outro lugar. A dança do copo anuncia-se como uma sagração. (A minha criatividade morreu.) Os performers seguem um líder num uníssono desfasado. (Talvez estejam atrasados nas contagens.) O da câmara que faz uma espargata frontal na boca de cena e uma sequência flexível que poderia ser uma sequência de yoga. A embrulhada na bacia abre os braços e o lençol parece uma capa de um herói a contrastar com o seu tom de pele. (Vai levantar-se. Não, tombou.) À direita começam um port-de-bras. A mulher da bacia senta-se, levanta a bacia para cima da cabeça, apresentando a biamputação das pernas, e corre até ao ciclorama. Já na boca de cena, o trio começa o parto: um lençol cor-de-rosa esconde as pernas da laranja que grita e outras duas seguram-lhe os joelhos. (Parece que estão a brincar. Penso nas múltiplas queixas de pessoas com deficiência que são esterilizadas contra a sua vontade?1) Uma mãe com uma criança levanta-se na plateia e saem da sala. (Acho que esta imagem apareceu noutra peça, será que foi nas Bacantes?)

          Num diálogo incompreensível, a performer amputada, agora polícia, desloca-se de forma estilizada à boca de cena, com dois bastões que lhe servem de canadianas. Senta-se ao centro, tira o chapéu e snifa no microfone. Tento compreender o que diz, mas nada. Alguém distorce o som de uma guitarra, a voz da polícia cresce, torna-se tensa, agressiva, fugaz, e uma gargalhada repete-se… A performer que treme (pela sua condição) segura uma chávena e o comandante enche a chávena de água, que por sua vez abana, e o som é amplificado. A polícia despe-se até ficar de fato de banho e o comandante faz o mesmo até ficar de tronco nu. Contrai o abdómen, ao mesmo tempo que alguém late, a barriga late, é um cão de barriga. (Isto deve ser uma referência de cinema.) Começam os slows, uma massagem com uma faca à performer amputada, a toureira, os cabeças de dildo, a histérica, os militares cabeça de dildo, gritos, a assassina, a sesta, a cantora, o funeral do normativo, as carpideiras, a rave. Marlene a ser Marlene e os bailarinos a serem muito bem mandados e a encontrarem, no seu corpo, o corpo Marlene. Exceto que estes bailarinos são os bailarinos a quem os normais deste mundo amputam a voz, por serem pessoas com deficiência. E esta é a bailarina que está constantemente a mandar tiros no pé. (Sim, Diana, já paravas a chacina ao teu pé paralítico.)

          O que eu queria era ver a Marlene aqui no meio, com a sua técnica exímia daquele corpo que entre estados, caos e decadência se transcende. (Até parece uma sinopse tua, Diana. Não é isso. Lembras-te do Guintche. Foda-se, é de uma análise de movimento mítica. Mas aqui falta. E a cena do lençol no Jaguar… em que o micromovimento escultórico gera a construção de imagens, até à sagração do lençol.) O problema aqui não é a Marlene, mas sim as companhias de inclusão continuarem a ignorar os líderes com deficiência. Continuamos à espera de ver as companhias que circulam internacionalmente a serem representadas pela própria comunidade. (É difícil olhar para as peças de Marlene e do Dançando com a Diferença e não fazer contas ao orçamento.) Afinal, é um problema estrutural que já acordou demasiados gatilhos nas peças de Jérôme Bel (Disabled Theater) ou de Milo Rau (Os 120 Dias de Sodoma) com o Theater Hora  nas últimas décadas. Voltamos à discussão de que as pessoas sem deficiência continuam a ditar a voz das pessoas com deficiência. Vou responder ao Jérôme e dizer que não estamos a desafiar as convenções normativas teatrais quando estamos a usar artistas com deficiência e o elenco é selecionado por fotografia. Talvez em 2001 essas questões fossem abordadas de outra forma. Hoje, se pegar na crítica de jornal em torno das mesmas peças que há vinte anos foram premiadas por reformularem o panorama, vejo um discurso condescendente e paternalista, o mesmo que continuam a aplicar nos dias de hoje. Tornando as companhias um produto que vende uma ideia, mas por dentro os sistemas continuam velhos. (E estar sempre a dizer a mesma coisa faz de mim uma velhaca.)

          1 Ver “Esterilização de deficientes: Governo averigua denúncias sobre um tema «tabu»”, Público. 26 de Junho de 2016.

          Estelle Nabeyrat Love Song, uma canção na cabeça

          Estelle Nabeyrat em conversa com Pedro Barateiro 

          Uma noite, em Junho de 2016, Dean Blunt (artista britânico com múltiplas identidades musicais, incluindo Hype Williams [2007-2012], uma colaboração com Inga Copeland) actua no Musicbox, em Lisboa, com os seus acólitos de Babyfather, uma formação hip hop. O concerto começa como uma provação, de tal maneira que nos podemos questionar sobre a sua competência: um som estridente e contínuo mergulha-nos numa atmosfera opressiva, camadas de fumo branco são lançadas para cima de nós vindas do palco, holofotes colocados de frente cegam-nos.

          No meio da multidão agrupada, expectante, homens mascarados deambulam e empurram-nos, um deles parece ter uma bomba de gás na mão, que agita de vez em quando, lançando a dúvida sobre a legitimidade da sua presença na sala.

          Como única decoração, bandeiras Union Jack lembram-nos o referendo do Brexit, recentemente realizado, confirmando o desejo da maioria dos britânicos de sair da União Europeia.

          Esta mistura de registos e a agressividade do contexto fazem-nos questionar: a que é que estamos a assistir? Um concerto em forma de tomada de reféns? Uma performance que zomba dos limites do suportável? Um acto militante ou a sua paródia? Será que se trata de nos fazer sentir a expressão viva da rejeição num contexto britânico antieuropeu?

          Tudo é mal-estar. Os meus amigos abandonam a sala. No meio da nuvem, vejo Pedro Barateiro, atento, conectado com os elementos, o seu ser tomado, como eu, por esta experiência impossível de caracterizar.

          Muitos críticos de música se têm interessado pela abordagem de Blunt, pelo seu estilo sem estilo, pela sua abordagem conceptual, etc., mas não encontrei nada sobre este concerto em particular. O que se tornou mais claro com o tempo foi que tínhamos assistido a um apelo. Apesar da orquestração da situação, não conhecíamos os verdadeiros limites nem o que estava em causa. Expostos/as a nós próprios/as, na incerteza partilhada, formávamos uma comunidade. Estávamos reunidos/as no carácter político: a forma interrogativa aqui suscitada projectava os nossos corpos expectantes numa necessária projecção em acto.

          Pedro Barateiro: “A experiência não tinha só que ver com a música. Tratava-se de viver algo, e de pegar nalgumas coisas que estão codificadas, e que conhecemos, e de como as reunir num momento completamente diferente e surpreendente. Lembro-me com muita clareza. Havia bastante fumo. Era desorientador porque não sabíamos onde estavam de facto os artistas/músicos (incluindo Dean Blunt), uma vez que se misturavam com a multidão. Lembro-me de ver alguns deles com lenços com bandeiras da Grã-Bretanha a cobrir-lhes a boca. Usavam óculos de sol. As luzes azuis frias na sala estavam acesas, o que era invulgar para uma sala de concertos. Nessa altura, as máscaras estavam sobretudo ligadas a manifestações, e não à pandemia.”1

          Em 2022, o trabalho de Pedro Barateiro foi objecto de uma exposição individual (Love Song, comissariada por Elfi Turpin) que se realizou no CRAC Alsace, em Altkirch (França). Fiquei cativada com esta visita depois de ter visto diferentes ocorrências do trabalho deste artista. Feliz também por ter recebido a encomenda de um texto, que acabou por não poder ser publicado.

          Procurei outras formas de traduzir a experiência desta visita, fugindo também às limitações do formato da crítica, que não permite grandes digressões. Desde então, assombram-me algumas notas de música, trazendo-me de volta à experiência do concerto de Babyfather.

          Estes dois momentos permanecem presentes um no outro: para mim, Love Song foi como uma clarificação dos temas e formas que habitam o trabalho de Pedro Barateiro e de preocupações de ordem política que eu não tinha sentido ainda de maneira tão manifesta.

          Wake up, wake up, wake up, wake up 

          Wake up, wake up, wake up 

          So don’t you want to be with me? 

          ‘Cause everybody knows you’re feeling me 

          So don’t you want to roll with me? 

          I cannot compete with anyone 

          So I can never be your only one 2

          Para além de constituir uma organização espacial subtil que mostra esculturas, instalações, vídeo…, dois gestos sob a forma de convite chamaram-me a atenção: um foi feito a Mário Varela Gomes (nascido em 1949), que apresenta fotografias datadas do fim da ditadura salazarista, e o outro a Aurélia de Sousa (1866-1922), pintora portuguesa, rara figura feminina do seu tempo. As suas presenças historicizam uma abordagem, uma postura política e artística que o Pedro poderia ter tido no tempo deles e que prefere integrar na sua narrativa sem desnaturar a experiência situada que o visitante poderia ter tido nesse momento preciso.

          No primeiro caso, Pedro Barateiro traz para o meio artístico uma série de fotografias sem identidade artística (a priori) e que, se testemunham a Revolução dos Cravos através das concentrações nocturnas e do ataque ao gabinete da Censura em 1974, são igualmente gestos e imagens de uma beleza impressionante. Aqui, a objectiva documenta o voo de um monte de fichas que são lançadas do gabinete da Censura; ali, a energia de uma multidão conduzida pelo fim de uma era de repressão. No segundo caso, inclui no seu campo de referência uma obra não datada e pouco representativa de uma artista moderna pouco conhecida no contexto francês.

          No andar de cima, outras obras fazem eco destas integrações. My body, this paper, this fire (2020), um vídeo em que Barateiro assume o trabalho de montagem e escrita, nomeadamente a partir de excertos das manifestações estudantis em que participou em 1994 contra o aumento das propinas nas universidades. Na altura, foram as manifestações mais violentas desde o fim da ditadura.

          E depois, mais uma vez no rés-do-chão, o vídeo Love Song, que dá à exposição o seu título:

          Pedro Barateiro: “Love Song vem da ideia de fazer uma banda sonora para um filme antes de fazer o filme. Tem 45 minutos porque é a duração média de um álbum de música pop. Estou a tentar perceber como é que certos formatos estabelecidos se tornaram o que são e como transformá-los noutra coisa. A peça é uma paisagem áudio que fiz para depois a dar a um músico/compositor como uma das camadas que podem ser usadas na banda sonora de um filme que vou começar a rodar em breve. […] Queria muito instalá-la no espaço numa espécie de área de audição dedicada só a ela, para desenvolver a experiência de uma peça sonora que lida com o tempo de uma forma particular. A peça concentra-se na desconstrução da narrativa através do uso do som, utilizando fontes variadas, tanto feitas de propósito como encontradas, cuidadosamente entrelaçadas de modo a criar uma banda sonora. Uma das fontes que usei é a gravação de uma das câmaras de vídeo que transmitem ao vivo a partir da Estação Espacial Internacional (ISS).”3

          Tenho algum receio de que te possa parecer barulhento

          wake up wake up wake wake up4

          Oiço atentamente o Pedro e não me consigo livrar de uma presença que se faz convidar sem ele saber. Esta intrusão nesta paisagem mental leva-me a dizer que as minhas experiências de espectadora trabalham em mim como vidas aumentadas. Um despertar que não se limita apenas ao campo da representação. O motivo da multidão repete-se, o nosso encontro faz de nós um corpo político e que age: Acorda!

          Espectadora atormentada: a silhueta do Pedro que eu adivinhava na nuvem é também a do jovem manifestante em frente ao Parlamento português. De costas, como que à cabeça do cortejo, as manifestações de 1974 e 1994 são animadas por uma experiência reconstituída durante um concerto. O tema da multidão, que persiste depois da visita à exposição, leva-me a estes outros espaços-tempos: a linha sensível entre real e ficção ganha vida. As manifestações em imagens completam-se com uma experiência física totalmente encenada.

          Neste apelo ao despertar, consegui ver Dean Blunt na obra Love Song de Pedro Barateiro como tinha visto o Pedro na plateia. Tinha feito inconscientemente a ligação entre estes dois momentos e estes dois objectos, convencida de que Barateiro se tinha inspirado em Blunt. Não foi o caso, mas esta aproximação pessoal amplificou a ressonância da minha visita à sua exposição. O refrão aumentado da experiência do concerto de Blunt veio reforçar a impressão de assistir tanto a um despertar dos sentidos como a um despertar político. De que estes motivos de multidão não eram imagens congeladas na posteridade, mas que estas experiências vividas, transmitidas e imaginadas trabalhavam em nós como possíveis componentes de corpos políticos.

           

          Traduzido do original em francês e inglês por Joana Frazão.

          1 Excerto de uma troca de e-mails com Pedro Barateiro, 29 de Julho de 2022.
          2 Letra de “Three”, de Dean Blunt, do álbum Stone Island, editado em 2013: “Acorda, acorda, acorda, acorda / Acorda, acorda, acorda / Então não queres estar comigo? / Porque toda a gente sabe que tu me curtes / E não queres andar comigo? / Não consigo competir com ninguém / Então nunca posso ser o teu mais-que-tudo.”
          3 Excerto de uma troca de e-mails com Pedro Barateiro, 29 de Julho de 2022.
          4 Excerto de Love Song, Pedro Barateiro, 2022. banda sonora de 45’,45’’ (a obra é acompanhada por um vídeo HD no quadro da exposição Love Song, no CRAC Alsace).

          Ana Rita Teodoro Valérie Castan Audiodescrição (AD) em dança

          Excerto de uma conferência de Valérie Castan 

          A audiodescrição (AD) é um processo de acessibilidade que consiste em descrever verbalmente uma obra para pessoas cegas ou com baixa visão. A AD em dança coloca diversas questões, uma vez que a dança é em si abstrata, isto é, em geral, não existe nos espetáculos de dança um guia de texto ou uma dramaturgia linear que conduza o público. Que vocabulário escolher para descrever os movimentos, as ações complexas? Como invocar a sensação do movimento?  

          No meu percurso na dança contemporânea, a tradução de movimento em palavras e a escrita de dança sempre foi uma prática corrente. Nos últimos anos vivi no contexto francês e fui confrontada com discurso, pensamento e vocabulário específico para a dança que contribui para pensar e sentir o que está em jogo quando assistimos ou praticamos dança. Por curiosidade, interessei-me pela AD e deparei-me com um pensamento pouco ativo no que diz respeito às especificidades da dança contemporânea e senti-me convocada a trazer a minha experiência. Nesse sentido, organizei no Teatro do Bairro Alto (TBA) em Lisboa, de 23 a 25 de setembro de 2022, um ciclo de conferências, workshops e encontros com o intuito de pensar as especificidades da AD em dança e proporcionar o diálogo entre artistas, audiodescritores/as, instituições de acolhimento e público cego ou com baixa visão. 

          Valérie Castan, artista coreográfica e audiodescritora especializada na tradução e interpretação de espetáculos de dança, foi uma das minhas convidadas. A sua prática em AD é singular e começa com a transposição de um método de AD usado no cinema para espetáculos coreográficos. De acordo com Valérie, uma AD em dança deve guiar o público que assiste à visualização do movimento através da perceção empática e cinestésica. Isto é, as palavras ouvidas espoletam sensações físicas e musculares no corpo, como se a pessoa ouvindo a descrição pudesse, de facto, sentir a dança, sentir-se dançar. 

          Para esta edição do Coreia, propus-me editar um excerto da conferência que Valérie Castan deu no TBA, para partilhar a sua experiência com quem não esteve presente e incentivar a continuidade do diálogo. 

          Esta conferência é sobre partilhar experiências e ferramentas relacionadas com a minha pesquisa aplicada à acessibilidade de pessoas cegas ou com baixa visão a espetáculos coreográficos. Não se trata de uma exposição teórica, crítica, estética ou linguística e sobretudo não se trata de um método que prevalece sobre qualquer outro. Vou partilhar a minha prática como audiodescritora de peças de dança contemporânea desde há dez anos. Esta prática descritiva induz a montagem de grelhas de observação específicas, um ato desorganizador que desvia o nosso olhar para o da pessoa que não vê ou que não vê muito bem. 

          Começo por explicar como eu trabalho uma AD em França. Na maioria das vezes são teatros, às vezes Centros Coreográficos ou artistas que me encomendam um texto. Eu assisto a uma apresentação ao vivo ou, se for uma nova criação, sempre que possível assisto aos ensaios. A partir de gravações em vídeo em plano geral assisto até identificar a estrutura da peça, a composição coreográfica, a gestualidade… decifro… escrevo o texto descritivo. 

          Desde o início da escrita, procuro fixar o texto na temporalidade do movimento. A oralidade do texto descritivo é muito diferente da dança em relação ao teatro ou ao cinema, onde a descrição tem de ser encaixada entre os diálogos. Reparamos que a palavra demora mais tempo a ser dita do que o gesto a ser feito… A oralidade interfere na escrita descritiva. 

          Sempre que possível, partilho o texto com uma pessoa cega ou com baixa visão para que possa ser revisto. Envio um ficheiro áudio com o som do espetáculo e uma leitura em processo, ou fazemos um encontro ao vivo e leio o texto em direto. Esta releitura dá origem a trocas, muitas vezes muito relevantes, e, sobretudo, informa-me sobre a ativação ou não de imagens mentais. Durante a criação de um guião de AD para um espetáculo para público infantil, foi uma criança de 10 anos que fez a revisão do texto. 

          A sessão de AD é organizada pelo departamento de relações públicas do teatro. (Parece-me importante que seja verificado se outros teatros não oferecem um espetáculo com AD no mesmo dia.) Eu leio o texto ao vivo para um microfone conectado a um transmissor, seja desde a zona técnica de frente para o palco, ou desde uma sala adjacente com transmissão de vídeo. É muito raro ter cabines à prova de som. O público interessado senta-se no auditório, na maioria das vezes na primeira fila, e ouve com auriculares conectados aos recetores. 

          Mesmo com o texto pré-escrito, a descrição ao vivo permite adaptar-se a mudanças, a alterações na duração, a passagens improvisadas: trata-se de descrever uma performance ao vivo… não é incomum que passagens do espetáculo sejam alteradas durante uma digressão, ou que os intérpretes sejam substituídos… Nesse sentido, um dia antes da apresentação em AD, assisto aos ensaios e ao espetáculo para atualizar o texto descritivo. Por esse motivo, é melhor não organizar uma sessão acessível com AD no dia da estreia. 

          Mas a razão pela qual eu descrevo ao vivo é bem outra. De acordo com o feedback de uma revisora cega com quem trabalho: “A voz ao vivo dá corpo, é a voz daquela noite.” A oralidade ao vivo atuaria, portanto, como um “aqui e agora” com as suas falhas e os seus impulsos. 

          Antes do espetáculo, um passeio tátil pelo palco permite ao público interessado representar pelo toque a cenografia, os acessórios, os figurinos… Quando não há cenário, sugiro descobrir a sensação de espaço, um espaço vazio, um palco vazio, com um chão plano, sem parede, aberto para a plateia. O palco é um lugar específico. Proponho também atravessar os movimentos dos intérpretes como construções do espaço. Considerar o que os corpos nos dizem em movimento, nos espaços que ocupam ou deixam. 

          A visita tátil é completada por uma espécie de atelier. Trata-se de fazer com que o público interessado execute certos movimentos a partir do texto descritivo, de modo a ativar as imagens a partir da compreensão e interpretação do movimento descrito. Durante o espetáculo, as imagens mentais são ativadas a partir da memória já vivida destas ações, ativa-se a empatia cinestésica. 

          A audiodescrição é uma prática de observação, de análise de obra, de tradução, leitura e interpretação. Pergunto-me: o que descrever e como escrevê-lo? Ao contrário dos espetáculos de teatro, de óperas ou filmes (em que os diálogos fornecem informações sobre um quadro narrativo cronológico, uma história), em dança a especificidade da tradução das imagens coreográficas em palavras é o que vai tecer a trama dos acontecimentos: uma ficção sem diálogos a partir da descrição de corpos em movimento.

          Podemos falar de uma narrativa coreográfica? Como? É possível sintetizar em poucas frases uma peça coreográfica, como fazemos para os filmes? 

          Observar corpos em movimento oferece ao público experiências sensoriais, afetivas e motoras através da empatia cinestésica. É possível manter apenas uma descrição factual? É possível partir da nossa sensação para descrever o factual?

          É óbvio, para mim, que uma AD é subjetiva, pois está ligada à perceção visual, à empatia, ao olhar interpretativo da pessoa que descreve. É óbvio que os meus 30 anos de dança interferem na maneira como olho e interferem na escrita descritiva. Cada um tem o seu próprio estilo de escrita, é tanto uma interpretação quanto uma obra de autor/a. Na verdade, haverá tanto de AD quanto de audiodescritor/a. 

          Vamos fazer uma pequena experiência…

          Se estiverem confortáveis, proponho que fechem as pálpebras.

           

          Que imagem veem?

          Preto e branco ou colorido?

          Quanto mede a sala em que estamos? Aproximadamente.

          Quantos somos?

          Qual a cor das paredes?

          Visualize a sua posição sentada.

          Quantas portas há na sala?

          Visualize a pessoa sentada à sua direita ou esquerda.

           

          Abra as pálpebras.

           

          Esta experiência já nos informa sobre as nossas abordagens, atenções e escolhas. Fazemos escolhas porque nos é impossível lembrarmo-nos de tudo o que vemos, vimos ou sentimos. 

          O trabalho de audiodescrever um espetáculo coreográfico opera na observação e na escrita de escolhas. Não podemos descrever tudo. Observar para descrever consiste, de certa forma, em desmaterializar uma imagem, traduzi-la em palavras, interpretar a realidade, esquematizar, sintetizar, desmontar a realidade, detalhá-la… Ou seja, trata-se de recompor uma imagem. que conhecemos de antemão incompleta, numa abordagem interpretativa, por sucessão de escolhas, com o objetivo de ativar uma verossimilhança da realidade que ative imagens mentais. 

          A descrição de dança pressupõe a criação de grelhas de observação específicas ao coreográfico ligadas à presença dos intérpretes, à composição do espaço, à estética do movimento, tendo em conta as intenções do/a coreógrafo/a, dos/as performers, da dramaturgia, mas acima de tudo requer saber ler a dança, decifrar o movimento, os gestos, as intenções, requer considerar a coreografia como uma linguagem.

          João Polido Sombra de vento

          *O seguinte texto é uma versão traduzida e adaptada de uma sessão de escuta apresentada no ICA, em Londres, durante o mês de Dezembro de 2022, enquadrado no programa “Into Their Labours: The Films of António Reis and Margarida Cordeiro”. O texto lido era intercalado com fragmentos sonoros e musicais.*

          O último filme de Reis e Cordeiro, “Rosa de Areia” (1989), é o mais despojado de música (apenas presente durante o genérico) — prevalece o som. Este marca o fecho da trilogia de Trás-os-Montes que se iniciou com um filme com o mesmo nome, “Trás-os-Montes” (1976). Dos três, “Rosa de Areia” é o mais abstracto e literário; “um filme de matérias” (Reis), “para quem pode ainda ver e ouvir como que pela primeira vez” (Cordeiro). As narrativas são interpeladas por excertos de Kafka, Sagan, Montaigne e da própria Margarida Cordeiro, atravessando escalas micro e macro, do átomo ao cosmos, preocupando-se com a leitura humana feita sobre fenómenos e os efeitos destes. A temporalidade é quântica, indivisível; o presente sobrepõe-se com o passado e o futuro. Saltamos entre séculos enquanto olhamos a densidade e a fragilidade da duração do tempo em forma de estratos geológicos e da poeira à superfície.

           

          Excerto 1: o vento [4 min.]

          A sensibilidade material em “Rosa de Areia” atenta aos sentidos. A distinção tecnológica entre imagem e som cria leituras diferentes (embora não inteiramente incompatíveis) sobre realidade e ficção. A imagem em movimento é composta por várias fotografias, criando a ilusão de movimento, enquanto a medição (ou composição) do som não é divisível, dada a sua existência em tempo-espaço — não existe o equivalente a um freeze frame/imagem estática para o som. A qualidade efémera do som faz com que a sua percepção seja um espaço líquido, e que a observação dos seus efeitos possa ser igualmente dúbia.

          Ao longo do filme, tomamos enquanto “real” os sons atribuídos às paisagens. O realismo do som é verificado pelos movimentos e espaços representados pela imagem. Este primeiro excerto de som é uma colagem de sons de vento presentes durante os primeiros trinta minutos do filme. Ouvem-se qualidades diferentes, desde brisas a rajadas e, perto do final, um vento mais afiado, agudo, e com modulações evidentes; preservando, ainda assim, um vestígio do que reconhecíamos enquanto vento no início do excerto. Condensa-se aqui uma mudança que acontece lentamente ao longo de várias cenas do filme. Destaco quatro sequências pela qualidade do vento:

          a) brisa enquanto uma personagem cega caminha numa seara;

          b) rajadas e assobios durante uma procissão;

          c) um plano-sequência que examina a paisagem desde um grupo de personagens no cimo do monte até um esqueleto recentemente desenterrado — aqui o som não está nem no ponto de perspectiva da câmara nem onde a lente alcança —, ouve-se um som filtrado, como se atravessasse um tubo;

          d) após esse plano seguem-se outros apenas preenchidos por silêncio, até este silêncio ser interrompido pela compositora Constança Capdeville num prado, a girar um tubo de PVC amarelo, produzindo um particular assobio de vento.

          É nesta última sequência que se dá uma rutura da realidade através do som. O vento deixa de ser uma entidade unicamente acusmática (i.e. a causa do efeito não está visível) e passa a ser um elemento cuja origem é ambígua, podendo ser tanto natural como fabricada. A relação entre o natural e o artificial não é exclusiva, o vento de Capdeville é co-constituído pelos ventos que o antecedem; o mais próximo sendo o da cena da procissão.

          O som filtrado serve como uma introdução gradual ao material deste tubo. Há uma afinidade na sua ressonância. Na sequência c) ouvimos o vento processado pela compressão do tubo, como se imóvel, daí a sua frequência não variar. Porém, na sequência d) o tubo de PVC ressoa diferentes frequências de acordo com a intensidade e a velocidade com que é girado.

          A transposição do som do vento da sequência da procissão para o vento fabricado por Capdeville não é apenas acústica (ou estética), mas também semântica. Em “Rosa de Areia”, a compositora toma um papel de figura ou guia espiritual. Numa outra cena, vemo-la a realizar o mesmo movimento de vento com o tubo harmónico no cimo de um monte com um grupo de mulheres sentadas à distância, em frente de um estábulo. No final da sequência, caminha em direção a este grupo e entra no estábulo, enquanto o grupo eleva pedaços de uma rede vermelha translúcida, içando-a ao vento e deixando-a cair sobre os seus corpos. Entra no plano o pai de um rapaz que acabara de morrer. Trata-se de um ritual de culto aos mortos.

          Reis e Cordeiro engenham uma versão da Encomendação das Almas, um ritual com especial peso na região transmontana, realizado durante o período da Quaresma. Esta era uma prática comum no mundo rural português e a partir de 1930-40 acabara por cair em desuso1. Era organizada por grupos formados principalmente por mulheres que se reuniam à noite, “em pontos altos ou em encruzilhadas das suas aldeias para cantar e rezar pelas almas do purgatório”2. O grupo atravessa a aldeia a apelar aos “pecadores” que estão a dormir que acordem e o acompanhem com as suas rezas de modo a “encomendarem” as almas dos mortos para o Paraíso. As encomendadoras vestem-se com roupa preta, cobertas por um xaile de lã negro, e dependendo das aldeias utilizam artefactos rituais como matracas ou sinos. Paralelos a estes estão, portanto, a roupa preta de Capdeville, a rede vermelha translúcida e o tubo de PVC, gerador de vento.

          Capdeville encomenda o vento/espírito: “A alma do doente já voltou à sua casa.” O ritual é dado como finalizado com a prova de uma pena pousada sobre o cabelo do rapaz que acabara de morrer. Imóvel, livre de vento.

          A problematização de causalidade é uma premissa presente noutros elementos de “Rosa de Areia”, como na referência feita no filme ao físico Niels Bohr, popularmente associado aos campos da teoria quântica e da estrutura atómica3, ou através de uma série de interrogações sobre lei, identidade, origens e memória. Este acto de revelar uma ilusão (ou a sua possibilidade) sequestra a trajetória de reflexão (quero dizer, a identificação da realidade), a quebra da expectativa de como algo deveria soar.

          As modalidades de realismo e surrealismo de Reis e Cordeiro interagem continuamente, num sentido fanoniano de “introduzir a invenção à existência”4, ilustrando que “…a realidade num mundo, tal como o realismo num quadro, é em grande parte uma questão de hábito.”5

           

          Excerto 2: Constança Capdeville — “Libera Me” [versão de 1986]

          Esta peça da compositora e instrumentalista Constança Capdeville é um trabalho interdisciplinar que cruza música, dança e artes visuais, tendo várias iterações ao longo de um período de anos: primeiro como bailado em 1977, depois em concerto em 1979, e por fim como bailado e concerto em 1981. É uma peça para coro, piano, percussão e electroacústica (fita magnética). Foi aqui que Reis e Cordeiro ouviram o tubo harmónico que faria parte do “Rosa de Areia”. Porém, ao contrário do filme, em “Libera Me” o som é polifónico — várias vozes de vento.

          Com um passado em estudos de música antiga (paleografia e transcrição), organologia (estudo de instrumentos musicais) e práticas performativas, o processo composicional de Capdeville não era simplesmente enformado por música. Nas suas peças performativas, Capdeville redigia guiões ou partituras individuais para cada elemento da peça — o que actualmente se torna um obstáculo ao trabalho de arquivo e de reprodução, uma vez que o material muitas vezes se encontra fragmentado, perdido ou somente acessível através dos testemunhos vivos dos intérpretes que estiveram envolvidos nas mesmas6.

          O musicólogo Paulo Ferreira de Castro descreve o trabalho de Capdeville como “uma arte de interrogação sobre formas e objectos, uma invocação ritual de arquétipos sónicos e visuais investidos de uma força mágica, anterior à ‘cristalização’ de qualquer sistema”7, desenvolvendo uma sensibilidade para o som e o silêncio. Algo semelhante poderia ser escrito sobre a prática cinematográfica de Reis e Cordeiro, no seu olhar sobre linguagem e cognição antes de qualquer forma de cristalização, envoltos por Trás-os-Montes. As interrogações de Capdeville seriam realizadas, por exemplo, pela utilização experimental de instrumentos convencionais sob um estilo electroacústico — produzir música electrónica através de meios acústicos. Procuravam-se sons aparentemente electrónicos ou, simplesmente, sons que não seriam tão reconhecíveis a partir de um determinado instrumento8

          Um outro método abordava material musical e história da música. Capdeville reutilizava excertos de peças musicais de outros compositores, adaptando-as às suas, não meramente como citação, mas assumindo-as como “material musical em bruto” para ser transformado9. Um jogo entre o reconhecível e o abstracto trabalhado ao nível da memória para criar nova música a partir de matéria-prima musical, ou seja, capaz de moldar uma linguagem pré-existente, mas não se deixar subjugar inteiramente a ela. Com um sentimento semelhante, Capdeville expressava a necessidade de reconciliar a música do passado com a do presente, imaginando a convergência de repertórios e de formatos de apresentação através de várias disciplinas10.

           

          Excerto 3: o assobio

          “Trás-os-Montes” (1976) abre com a paisagem da própria região, sobre a qual irrompem os gritos e assobios de um rapaz pastor que organiza o seu rebanho. A sua voz é seguida dos badalos das ovelhas, em que a percussão equivale a movimento. A câmara aproxima-se de um rochedo e foca a atenção em pinturas rupestres escondidas no granito. O filme retrata, e ficciona, os habitantes das periferias de Bragança e de Miranda do Douro e a transformação de modos de vida, assim como as histórias e memórias de um povo e de uma região.

          O filme orienta-se, também, por distâncias: um afastamento “no duplo sentido de estar longe (exílio) e do próprio acto de afastar (longe da vista e esquecimento)”11. A distância entre a capital e a região mostra-se abissal, ao ponto de a lei vinda de Lisboa chegar lá difusa, manifestando a sua presença através de mandatários e da exploração mineira da região. Mais próximo de Trás-os-Montes está a França e a Alemanha, em processos tecnológicos avançados, para onde muitos dos camponeses acabam por migrar, deixando para trás os seus campos e a família à espera da próxima notícia e do envelope com dinheiro para viver. A distância real não é geográfica, mas sim simbólica. O comboio torna-se símbolo do êxodo rural, simultaneamente veículo e ponte de comunicação.

          Na última cena do filme, a câmara segue à distância o comboio que sai da aldeia por entre a escuridão de um Sol ainda por nascer. É difícil distingui-lo da madrugada, dando tréguas apenas nos breves instantes em que o fumo branco indica a sua posição espacial, e o seu apito ressoa a sua posição temporal.

          É neste momento que os assobios e gritos do jovem pastor ressurgem como que sintetizados. O apito do comboio tem uma qualidade antropomórfica, próxima da fragilidade da ressonância e vibração da voz. Sobrepõe-se o sinal de recolher do pastor a um de êxodo. Através desta afinidade de qualidade sonora, materializa-se um dispositivo mnemónico sónico, outra rutura de uma causalidade linear e cronológica.

          As temporalidades presentes no filme resistem à cristalização. A medida do tempo é orientada pelo modo de vida subsistente da comunidade. John Berger, no livro Pig Earth (integrado na sua trilogia de livros sobre o camponês europeu, Into Their Labours), oferece a ideia da vida como um interlúdio. O ciclo ininterrupto de nascimento, vida e morte que o filme retrata não é apenas uma experiência individual ou ontológica, mas uma experiência colectiva e antológica12. Explorando este sentido, Reis e Cordeiro abordam o parentesco, a camaradagem e uma pertença partilhada, mas também as suas respectivas sobreposições físicas (relativamente à arquitectura da aldeia) e densidades espirituais (formas sociais e práticas rituais ou cultos).

          Os ciclos de interlúdios são acompanhados pela tradição: “Uma cultura de sobrevivência contempla o futuro como uma sequência de actos repetidos para a sobrevivência. Cada acto empurra um fio através do olho de uma agulha e o fio é tradição”13.

          Em paralelo a “Trás-os-Montes”, filmado em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso), a música e a tradição foram dos campos mais disputados em Portugal. No início da ditadura fascista sob António Oliveira Salazar, em 1932, a música já tinha um papel privilegiado na política vindoura. António Ferro, escritor, jornalista e, mais tarde, director do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), assim o assumiria no seu artigo sobre uma Política do Espírito, em Novembro de 1932 no Diário de Notícias, ao citar Bonaparte: “Entre todas as artes é a música a que maior influência exerce nas paixões, e, por isso, um legislador deveria preocupar-se mais com ela do que com qualquer outra”14. A Política do Espírito desenhado por Ferro, e adoptada por Salazar, era um mecanismo de propaganda que ajudaria a curar uma crise de identidade (europeia)15. Alguns dos seus principais objectivos eram, por exemplo, resgatar o passado mítico da nação (o período de expansão e colonização imperialista transatlântica) e a (re)construção de uma identidade nacional patriarcal através da preservação da paz, daí o posicionamento político ambíguo de Portugal durante a II Guerra Mundial. 

          Em 1940, Salazar descreve que “para a formação da consciência pública, para a criação de determinado ambiente, dada a ausência de espírito crítico ou a dificuldade de averiguação individual, a aparência vale a realidade, ou seja, a aparência é uma realidade política. E este errado conhecimento das coisas é pior que a ignorância delas”16. Ou seja, descreve uma forma de poder brando, decretado por representações que vão de acordo com categorias previamente impostas. Uma ficção que se infiltra lentamente na realidade e que, de seguida, a sequestra.

          O que acontece nos 20 anos seguintes é a conversão de práticas culturais num bem turístico através de aparelhos do Estado Novo, como a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), as Casas do Povo, e o SPN/SNI (Secretariado Nacional de Informação)17. No mesmo período verifica-se um aumento de produção folclórica e a consolidação de representações simbólicas (i.e. modelos identitários) e repertórios populares das regiões portuguesas. As canções tradicionais seriam adaptadas em melodia e/ou letra, censuradas ou ideologicamente distorcidas18.

          Em 1959, Michel Giacometti, etnólogo corso acabado de chegar a Portugal, propõe à Fundação Calouste Gulbenkian o seu projecto de recolha etnográfica sobre Trás-os-Montes, tendo um parecer negativo embora aprovado pelo compositor e musicólogo Fernando Lopes-Graça, que daí adiante acompanharia Giacometti no seu trabalho para os Arquivos Sonoros Portugueses19.

           

          Excerto 4: José Manuel Martins (Cércio) – “Encomendação das Almas” [Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti – Trás-os-Montes, 1960]

          No final de 1920, a tendência na música era de um nacionalismo musical; uma ideia socialmente hierárquica de trabalhar com “melodias tradicionais dos camponeses” que os “centros civilizados” ainda não conheciam, procurando “na melodia popular a inspiração genuína, única e exacta”20. Opõe-se o urbano ao rural, a alta cultura à cultura popular.

          Em 1931, Lopes-Graça, embora aderindo inicialmente a esta tendência, opõe-se à ideologia nacionalista e à “lei etno-psicológica, formulada por um conhecido jornalista português”, que depois se designaria Política do Espírito21. A rejeição de uma identidade nacional dada e hegemónica acontece a Lopes-Graça ao mesmo tempo que o folclore estava a ser organizado como dispositivo de propaganda22. Como estratégia de resistência, o compositor re-trabalha a música regional portuguesa na forma de harmonizações, assumindo um critério étnico-estético — um modelo dialéctico entre sujeito e colectivo, “uma política de identidade que rompesse com a cultura de massas”23.

           

          Excerto 5: Fernando Lopes-Graça – “Acordai, Pecadores” [Onze Encomendações das Almas e Doze Cantos de Romaria, 1991]

          A estratégia de harmonizações, adaptações, ou de versões, pode ser transposta por diversas técnicas de composição ou tecnologias de processamento de áudio. Sobre o uso de informação musical como matéria-prima e ferramenta organizadora de expressão, relembro várias vezes a ideia de Lopes-Graça sobre uma dívida cultural por saldar. Ao usar as melodias populares ele assume o “roubo”, “não para as guardar para mim, mas com o objectivo de as devolver, possivelmente com uma taxa de juros sobre o roubo”24. No entanto, não as devolve tal como as encontrou. Não será um eco das músicas mas um outro vestígio.

          A antropóloga Ann Rigney, ao tomar o passado como “um produto de mediação, textualização, e de actos de comunicação”25, aponta para um modelo de memória cultural sócio-construtivista, em que “as memórias de um passado partilhado são colectivamente construídas e reconstruídas no presente em vez de ressuscitadas do passado”26; numa tentativa de reconhecer a inerência da perda de memória e abandonando a utopia de uma recordação plena. A memória cultural corresponde a um período de tempo mais longo, quando os testemunhos em primeira mão se tornam (quase) extintos, restando apenas relíquias e artefactos. “Rosa de Areia”, como “Trás-os-Montes”, navega reflexões de um objecto extinto (ou em vias de). Através de técnicas diferentes de justaposição temporal/narrativa, visual e sónica, procuram a composição de mundos, parecendo sugerir que “o mundo tal como o conhecemos começa sempre a partir de mundos que já estão à mão”.27

           

          1 Pedro Gonçalo Pereira Antunes, Depois da Morte. O Restauro Imaterial da Encomendação das Almas. Tese de doutoramento em Antropologia: Políticas e Imagens da Cultura e Museologia, Lisboa, ISCTE/NOVA FCSH (2021), 2.
          2 Ibid., 1.
          3 “Rosa de Areia” re-encena uma fotografia tirada em 1954 aos físicos Niels Bohr e Wolfgang Pauli, na qual estes observam a rotação de um pião. Com este brinquedo inicialmente a girar ao contrário, acontece um fenómeno mecânico que inverte o pião (e a sua rotação), pondo-o a rodar em pé. Citando o filme: “[O brinquedo] nos permite ter um modelo macroscópico mecânico de uma transição quântica.”
          4 Frantz Fanon, Black Skin, White Masks (Nova Iorque: Grove Press, 2008), 204.
          5 Nelson Goodman, Ways of Worldmaking (Indianapolis: Hackett, 2013), 20.
          6 Filipa Magalhães, “Musicological Archaeology and Constança Capdeville”, TDR: The Drama Review, 66, n.º 3 (Setembro de 2022), 65, 76. https://doi.org/10.1017/S1054204322000302.
          7 P. F. Castro, “Constança Capdeville um acto de aprendizagem”. In Notas de Programa dos 16º Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992), 86.
          8 Filipa Magalhães, Musicological Archaeology and Constança Capdeville, TDR: The Drama Review, 66, n.º 3 (Setembro de 2022), 65-67. https://doi.org/10.1017/S1054204322000302.
          9 Filipa Magalhães, “A obra de Constança Capdeville: itinerários artísticos, sociais e afetivos”, in Geografias Culturais da Música, do Som e do Silêncio, ed. Ana Francisca Azevedo et al. (S.l.: Lab2PT, 2020), 292-293; M. Ramalho, “O sucesso para quê? Entrevista com Constança Capdeville”, Informação Musical, n.º 6 (1982), 5.
          10 Filipa Magalhães, “A obra de Constança Capdeville: itinerários artísticos, sociais e afetivos”, in Geografias Culturais da Música, do Som e do Silêncio, ed. Ana Francisca Azevedo et al. (S.l.: Lab2PT, 2020), 298.
          11 Serge Daney, “Longe das leis”, O Olhar de Ulisses n.º 2: O Som e a Fúria (Porto: Capital Europeia da Cultura, 2001), 77-79.
          12 Segundo uma proposta de Fred Moten durante o seminário Black Preformance: Violence no Teatro do Bairro Alto (Lisboa, Outubro de 2022), o termo antológico é oferecido para pensar sobre processos de individuação e corpos e formas de viver que desafiam uma circunscrição simbólica, tendo uma prática inerentemente colectiva.
          13 John Berger, Pig Earth, (Nova Iorque: Vintage Books, 1992).
          14 António Ferro, Salazar: O Homem e a sua Obra, 3.ª ed. (Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, s.d.), 275.
          15 Maria de São José Côrte-Real, “Musical Priorities in the Cultural Policy of Estado Novo”, Revista Portuguesa de Musicologia, n.º 12 (2002), 227.
          16 António de Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas vol. III – 1938-1943. 2.ª ed. (Coimbra: Coimbra Editora, 1959), 130-32.
          17 Maria de São José Côrte-Real, “Musical Priorities in the Cultural Policy of Estado Novo”, Revista Portuguesa de Musicologia, n.º 12 (2002), 233.
          18 Dulce Simões, “O canto que virou património: da “Beleza do Morto” aos futuros possíveis”, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, n.º 60 (2020), 337-338; Maria do Rosário Pestana, “Alentejo, visibilidade e ocultação: scriptualização e institucionalização de práticas musicais rurais”, in Cantar no Alentejo: A Terra, o Passado e o Presente (Estremoz: Estremoz Editora, 2017), 135.
          19 Mário Vieira de Carvalho, Lopes-Graça e a Modernidade Musical (Lisboa: Guerra & Paz, 2017), 91.
          20 Ibid., 70-71.
          21 Ibid., 72-73.
          22 Ibid., 74.
          23 Ibid., 77, 97.
          24 Fernando Lopes-Graça, A Música Portuguesa e os Seus Problemas II, 2.ª ed. (Lisboa: Editorial Caminho, 1989),117.
          25 Ann Rigney, “Plenitude, Scarcity and the Circulation of Cultural Memory”, Journal of European Studies, vol. 35 n.º 1 (2005), 14. Tradução própria.
          26 Ibid., 14. Tradução própria.
          27 Nelson Goodman, Ways of Worldmaking (Indianapolis: Hackett, 2013), 6. Tradução própria.

          setareh fatehi Paralaxando (eu): a história de uma prática

          Paralaxando (eu): a história de uma prática

          setareh fatehi

           

          Esta é uma história

          de uma prática

          de contar histórias.

          É uma coleção

          de palavras que emergiram entre mundos que se conheceram,

          mundos que apesar de parecerem próximos, se sentem muito distantes.

           

          É uma escolha

          Uma forma de vida temporária nas condições em que (eu) nasci.

           

          (eu) por enquanto chamei-a de paralaxando (eu)

           

          DIA 1  Multitudes do (eu)

          Com Ogutu Muraya em Nairobi e (eu) em Amesterdão

          Ele está aqui com as suas palavras e os seus olhos

           

          Twende kazi                        {vamos}

          Vamos                                        بریم.

           

          Onde

          Está

          Onde pode ir

          Onde deve ir a coisa

          A coisa

          O corpo como coisa

          O (eu) como coisa

          A presença como coisa

           

          Onde pensas que estás agora?

           

          Faz uma moldura com as mãos à frente dos olhos

          As mãos são a moldura

          Perto da cara

          A cara é a moldura

           

          Se (eu) preferisse olhar por fora da moldura, a que se oporiam?

           

          Visão em paralaxe

          Duas imagens que não coincidem

          Duas condições diferentes que existem ao mesmo tempo no mesmo mundo 

           

          Se (eu) preferisse as dores de ver a paralaxe, a que se oporiam?

           

          “Estar em contacto” é a única forma de ser afetado pelo que quer que seja, diz ela.

          Distância

          Distância do outro

          O número de passos

          A distância entre os ombros

          A distância entre ti e elxs

          Distância social

          Distância emocional

          Distância entre classes sociais

          Distância económica

          A densidade de um fio

          Um milímetro 

          A espessura de uma parede

          Distância do ar

          4500 quilómetros

          Cinco dias de carro

          Quarenta dias a pé

          Distância focal

          Distância temporal

           

          Vamos fazer uma pausa

           

          É de manhã cedo em Teerão

          É noite dentro em Bogotá

          É de manhã cedo em Lisboa

          É um pouco mais tarde em Esmirna

          É muito cedo em São Paulo

          É de manhã cedo em Samara

          É um pouco mais cedo em Nairobi

          É o princípio da tarde em Hong Kong

          É noite dentro em La Serena

           

          Como é o teu tempo aí?

          Para onde está a ir?

           

          (eu) uma vez estive viva por um segundo e morri

          Não foi há muito tempo, no meu entendimento do tempo

           

          Consegues gostar do liminar?

          Consegues gostar do limbo?

          (eu) gosto da confusão

          (eu) gosto da vertigem

           

          Mas não por muito tempo!

           

          DIA 2

           

          (eu) estou a enlouquecer aqui

          Estão em trabalhos pesados de construção

           

          Tanto barulho

          O barulho deixa-me nervosa e triste

          Barulho imenso

          Um imenso – que (eu) não sei porque deveria estar a ouvir

           

          (eu) estou a enlouquecer aqui

          estão a construir uma estrada e o trabalho é pesado

          Muito pó

          O pó deixa-me ansiosa

          Pó espesso

          Um espesso – (eu) não sei porque (eu) devo inalá-lo

           

          Se (eu) preferisse respirar fundo aqui, a que se oporiam?

           

          Diz-me onde estás sediada agora?

           

          Posso (eu) recusar responder?

           

          Posso (eu) ao menos esperar?

          (eu) estou a tomar o tempo de quem?

           

          Ela disse, de uma forma muito engraçada:

          “Como se Bruxelas fosse em Bruxelas

          O Congo é em Bruxelas

          Tanto o trabalho como a terra.”

          (eu) repito:

          Como se Amesterdão fosse em Amesterdão

          Como se Teerão fosse em Teerão

          Como se Nairobi fosse em Nairobi

          Como se o meu corpo fosse (eu)

          Como se (eu) fosse o meu corpo

           

          Ah querida, não tenhas medo das paredes que fazem guerras, vais ficar bem!

           

          Ir e vir

          Aqui e ali

          Repete até que perca o sentido, em quantas línguas achares que entendes

          Ali aqui ir vir

          اینجا اونجا اومدن رفتن

          hapa, kule, njoo, twende

           

          Ele diz que naquelas fronteiras referem-se ao corpo como um risco ou fonte de contaminação 

          Naquelas fronteiras chamam-te de vírus

          Quando me chamam assim, isso é tudo o que (eu) quero ser

           

          Um vírus

          É incrível. Sendo um vírus, nem sabem se estás vivo ou morto

          Já pensaram que o vírus nem queria ir a lado nenhum mas que foi forçado a ir?

           

          DIA 3

           

          (eu) acho que estás muito longe

          O que significa a distância quando não temos documentos?

           

          É a inclusão sobre como excluir?

          É a hospitalidade sobre como ser sem-abrigo?

          É pertencer sobre como perder?

           

          Ele perguntou: trabalharias com dinheiro europeu?

          (eu) disse: como se a Europa fosse na Europa

          Como se tu fosses em ti

          Como se dinheiro fosse dinheiro

           

          Já decidimos se gostamos do vírus?

          Já decidimos quem está incluído e excluído deste “nós”? Quem é que decide?

          Será que deveríamos tomar essa decisão e postá-la online?

           

          (eu) pedi a Ogutu que fosse o meu avatar. Ele podia escolher entre uma beringela roxa e um lagarto-tatu

          (eu) ia estar online

           

          (eu) disse-lhe isso

          (eu) ia ter falhas, cortes, (eu) não ia conseguir ouvir bem, (eu) só ia conseguir ver o que estivesse enquadrado na moldura do ecrã, (eu) podia sentir-me claustrofóbica às vezes,

          (eu) disse-lhe que precisávamos de confiar um no outro

           

          Ele disse: “Claro que confio em ti.”

          Confias em mim?

          Será que elxs conseguem confiar em nós?

           

          Esta questão de onde está o meu corpo, onde pode estar, onde deve estar

          Será sobre mim?

          Será mesmo uma questão, no sentido em que espera uma resposta?

          Haverá uma escolha a fazer?

           

          (eu) quero conseguir reencarnar numa vida de nómada, sem-abrigo e com saudades de casa

          Talvez esta prática seja para isso

           

          DIA 95   (eu) diáspora da paralaxe

          Com Kamran Behrouz em Alpenhof e (eu) em Teerão

           

          Kamran construiu a Kl!tar – uma cabeça falante em 3D, a partir das nossas caras – e escrevemos um poema para um painel que se chamava: “Será que existe um corpo-tipo do Médio Oriente?”

           

          Nós perguntámos:

          Que Médio?

          Que Oriente?

          Que corpo?

          O Médio Oriente de quem, de facto? E o Médio de que merda de Oriente?

          De onde estamos a falar?

           

          Ela usa as noções de paralaxe

          Para observar as técnicas de parecer errado

          A paralaxe como uma sensação impalpável de ausência ou confusão nos aparelhos de telecomunicações,

          um sentimento de ausência como quando não conseguimos perceber para onde está a outra pessoa a olhar e se está a prestar atenção ou se está a ler os seus emails

           

          A paralaxe expõe demasiado o vazio que existe entre as imagens de dois lugares, dois corpos, duas atualidades separadas pela força da economia e da guerra política

           

          (eu) diáspora da paralaxe     

           

          Era uma vez um corpo que queria poder escolher

          Ela queria ter mobilidade

          Mas não ser mobilizada

          Ela queria ser vista

          Mas talvez não ser visualizada

           

          Ela vive em Teerão, Nairobi, Creta, Amesterdão, Londres, Frankfurt, Istambul, Zurique, Cairo, Sidney e Queixome

           

          Ela veio do passado que foi esquecido e ela estava a andar para trás em direção ao que podia ser o seu futuro

          Ela recusa identificar-se com

          Ela recusa identificar-se com

          Ela recusa identificar-se com

           

          DIA 255   (eu) IRL desativado

          Fevereiro 2022 com Shahrzad Irannejad em Istambul e Babak Amrooni em Teerão

           

          (eu) estou aqui

           

          (eu) em minúsculas e entre parêntesis

           

          À procura do significado de individualidade e autoria

           

          (eu) estou aqui

           

          Crítica do “dualismo digital”, aquela discussão quase antiquada que surge quando assimilamos o digital e o virtual e opomos o virtual ao real

           

          Aponta para o capacitismo, enraizado na obrigatoriedade da presença física

          O capacitismo que nos obriga a fechar os olhos à paralisia colonial

           

          (eu) estou aqui e trago o meu corpo até ao centro da questão

          E (eu) não posso estar mais de acordo com o sentimento de que

          Em caso de (eu) estar presente, de qualquer forma possível,

          Tudo o que estiver perto dessa presença é real,

          em todas as suas formas de (eu) manifestar 

           

          vamos fazer uma pausa

           

          DIA 415  tamasha: acolhendo-te acolhendo (eu)

          Com Katerina Bakatsaki, Ayda Alisadeh e Saina Salarian na galeria Arti em Amsterdão e Reyhaneh Mehrad e (eu) no parque do meu bairro em Teerão

           

          Tudo pode desaparecer e reaparecer em qualquer altura

          A imagem na parede   

          A ligação wifi

          O espelho

          O carregador

           

          Podem cortar a eletricidade e a internet outra vez

          O preço de tudo subiu muito

          Há pessoas a ser assassinadas outra vez. Executadas!

          Tudo pode desaparecer e algumas coisas podem nunca reaparecer

          Corpos, histórias, esperanças, sorrisos

          O som dos nossos passos

          A voz dela

          A tua motivação

          E a minha

           

          Ela disse:

          O espaço é uma pele

          O ecrã é um espaço

           

          Ali, no espaço, há uma coisa que é ao mesmo tempo tu e (eu)

          Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.

          Inês Zinho Pinheiro Maneiras de ‘cher’

          Maneiras de ‘cher’ – Práticas escritas na 1ª pessoa que permitem ligações com o chão e traduções do chão (o primeiro objeto da ação)1

          Proponho que sejamos chão em conjunto, ‘cher’ em conjunto. Um amigo falou-me sobre a ideia de ‘pésquisar’ (pesquisar com os pés), gostava de o fazer com todo o corpo, de ‘corpisar’, enquanto sou chão, ‘chou’. Tudo isto deverá ser feito lentamente, suavemente, despojadamente, sem velocidades extremas. Isabelle Ginot descreve práticas doces como aquelas que desenvolvem “baixas intensidades; lentidão, em oposição às velocidades extremas procuradas em muitas práticas corporais”2. Partindo do doce, pensei então que estas práticas de ‘cher’ poderiam ser pegajosas, práticas que enfatizam a sensação física e não a exibição visual. 3

          Comecemos por sentir o chão, experimentar e experienciar o chão com a nossa ‘pele sensível’. Podem incluir um gesto experimental no chão, concebendo a prática somática enquanto “disciplina da erudição do sentir” que propicia a criação de gesto próprio de cada pessoa4. Talvez o chão seja ou esteja pegajoso, frio, ou rugoso, lisinho, e simultaneamente apoie o nosso corpo.

          Penso que este gesto experimental já é parte do processo para encontrarmos possíveis traduções do nosso chão. Este género de processos de tradução incorporados acontece quando bailarinos traduzem descrições verbais, feitas por coreógrafos, para sensações cinestésicas. Ao ‘chermos’, estamos simultaneamente a movimentarmo-nos no chão, mesmo que subtilmente, a sentir o chão e ainda a traduzi-lo. Esta tradução pode tomar formas variadas: sensações, palavras, movimentos… nasce de um conhecimento incorporado sobre o chão, de uma inteligência cinestésica derivada da experiência curiosa do chão e de uma sensibilidade consciente do que é ‘cher’, pois o conhecimento também implica curiosidade.5

          Podemos olhar o chão mantendo a atenção na sensação física de estarmos em contacto com o chão. Talvez encontremos resíduos, manchas, outras dimensões que fazem parte de ‘cher’. Para continuarmos a entrar nestas dimensões, sugiro que agora o nosso foco se dirija para as partes do corpo que estão em contacto com o chão. Quando tivermos tomado consciência desses pontos e das suas sensações, imaginemo-nos a derreter no chão, como se fossemos tão pesados e maleáveis que ultrapassássemos o chão. Este momento, em que vamos para além do nosso chão, poderá ser o instante em que ‘chomos’, efemeramente, de forma intensa e incorporada, e ficamos assim mais conscientes da sensibilidade do nosso corpo ​​– “o estado somático do ser”6.

          Sentem uma ligação com os outros seres que também estão a ser chão convosco? Os outros ‘cheres’ com quem estão a partilhar esta experiência coletiva de ‘cher’? Segundo Georges Bataille, o acesso ao mundo interior está ligado à extrema interrogação, assim como à ideia de que o “si mesmo (self) não é o sujeito que se isola do mundo, mas um lugar de comunicação, de fusão do sujeito e do objeto”7. Tal acesso à experiência interior é impedido por uma perda de horizontes, nas palavras de Charles Taylor: “A ideia de que o indivíduo perdeu algo de importante com a privação de horizontes de ação mais amplos, tanto sociais como cósmicos”8. A intencionalidade coletiva liga-se ao ‘ser conjuntamente’ que procuramos ao ‘chermos’, ao colocarmo-nos nesta situação de “intenção partilhada, atenção conjunta, emoção coletiva”9.

          Se considerarem esta prática sugestiva, proponho ainda que criem outras maneiras de ‘cher’, que criem as vossas práticas para se ligarem ao chão e o traduzirem. Barthes sugere uma “colheita coletiva” de “todos os textos que deram prazer a alguém”10. Da minha parte, sugiro a recolha de uma variedade de maneiras de ‘cher’. Procurem uma referência que se possa tornar o vosso chão. Eu escolhi a música The Sun Ain’t Gonna Shine Anymore, de Cher, como inspiração para desenvolver esta prática, vocês podem escolher outro elemento para terem um ‘chão de partida’.

          1 Vayer, P. (2006). O Diálogo Corporal. Lisboa: Instituto Piaget.
          2 Ginot, I. (2013). “Douceurs somatiques”. Repères, cahier de danse, vol. 32, 21-25.
          3 Ver Spatz, B. (2015). What a Body Can Do. Technique as Knowledge, Practice as Research. Londres e Nova Iorque: Routledge.
          4 Ginot (2013).
          5 Ver Ehrenberg, S. (2015). “A Kinesthetic Mode of Attention in Contemporary Dance Practice”. Dance Research Journal, 47, n.º 2, 43-61.
          6 Idem.
          7 Bataille, G. (2021). A Experiência Interior. Lisboa: Edições 70.
          8 Taylor, C. (2009). A Ética da Autenticidade. Lisboa: Edições 70.
          9 Giovagnoli, R. (2021). “Habitual Behavior: Bridging the Gap between I-Intentionality and We-Intentionality”. Academia Letters, article 389.
          10 Barthes, R. (2009). O Prazer do Texto Precedido de Variações sobre a Escrita. Lisboa: Edições 70.

          Wilson Le Personnic Myriam Gourfink O infra, o sensível, o pré-movimento, a respiração, a vibração…

          Wilson Le Personnic entrevista Myriam Gourfink

          Figura iconoclasta da paisagem coreográfica francesa, a bailarina e coreógrafa Myriam Gourfink tem vindo a desenvolver, desde o final dos anos 1990, uma pesquisa extremamente fecunda que se enraíza numa prática assídua do yoga da energia, de inspiração tibetana, e num estudo aprofundado do sistema de notação Laban. Cruzando técnicas somáticas e dispositivos de alta tecnologia, o seu trabalho baseia-se em técnicas respiratórias, na relação entre movimento e respiração, e na consciência subtil do espaço. Estas práticas levaram-na a formalizar uma dança de fluxos, infinitamente desacelerada. Nesta entrevista, realizada em Abril de 2022 no Centre National de la Danse em Pantin, Myriam Gourfink partilha as engrenagens da sua dança e reflecte sobre mais de vinte e cinco anos de pesquisa.

           

          Há vinte anos que desenvolve uma pesquisa coreográfica baseada no yoga e em técnicas respiratórias. Esta prática, combinada com outros estudos somáticos, levou-a a formalizar uma dança de fluxos, uma “dança-transição” num tempo estendido. Como é que encontrou e nomeou esta dança de fluxos, a partir do interior do seu próprio corpo?

          A minha primeira peça, Waw, em 1998, baseava-se numa prática de respiração proveniente de um yoga de origem tibetana: o yoga da energia. Eu tinha apenas três anos de prática atrás de mim e estava a explorar a relação entre o movimento e a respiração a partir de intuições, recorrendo em particular aos pranayamas físicos que são os primeiros exercícios que se experimenta quando se inicia este yoga: localizar a respiração, distribuindo em receptividade activa a consciência pela base, centro e topo dos pulmões ou das narinas, sentir a carícia, a temperatura, a vibração do ar que entra e sai, brincar com os ritmos da inspiração, do tempo cheio, da expiração e do tempo vazio e, sobretudo, dedicar tempo a observar em receptividade passiva o modo como cada uma das explorações modifica o nosso estado interno. Nessa época, comecei também a praticar a técnica do Mula bandha, tal como é ensinada no yoga da energia: trata-se de contrair muito ligeiramente a zona entre o sexo e o ânus. Na realidade, é mais uma coisa psíquica do que física, é como que um ponto de apoio da consciência que traz a esta zona uma leve consistência untuosa, elástica e “crepitante”. Sentia que, nesta arquitectura invisível, esta prática tibetana era libertadora a vários níveis: sentia os meus músculos a relaxarem, uma flacidez das carnes, novas zonas que se abriam e vibravam, fazia-me bem, revigorava-me. Depois, a minha professora de yoga, Gianna Dupont, ensinou-me uma nova técnica, o Sahajali mudra, que explorei no ano seguinte (1999) na companhia de outras três mulheres (Julia Cima, Laurence Marthouret e Françoise Rognerud) para o quarteto Überengelheit. O Sahajali mudra consiste em contrair muito ligeiramente as áreas dos lábios, da vagina e do colo do útero numa receptividade activa, ou seja, também aqui, o que conta é antes de mais dedicar tempo a sentir cada uma das três zonas, trata-se de conseguir distribuir aí a nossa consciência para deixar ocorrer e acolher uma espécie de magnetização vibrante, cuja sensação sobe dos lábios até ao útero; esta prática estimula um centro que harmoniza em nós as polaridades masculina e feminina, trata-se do chakra swadhisthana; em seguida, esta técnica propõe um ponto de apoio da consciência num centro que orquestra o fluxo emocional, e que se localiza atrás do meio do crânio frontal (neste yoga, é o chakra ajna); depois, circulamos de swadhisthana a ajna na inspiração, e na direcção oposta na expiração; por fim, uma fase em receptividade passiva permite acolher movimentos de deslizamentos internos, vibrações luminosas, sonoras, bem como texturas, sabores e odores internos cujo espectro é realmente surpreendente. Na minha experiência, esta prática modifica-me completamente a respiração: dou por mim, a cada vez, em estados (va)porosos. Demorei muito tempo a discernir o que se estava a passar no meu corpo, porque a respiração era como um fio contínuo, já não tinha consciência do fim e do início das fases de inspiração e expiração, eu estava na respiração, identificava-me com a respiração, como que sempre em transição numa imobilidade, e foi assim que a dança que desenvolvo se tornou uma dança do fluxo, uma dança da transição num tempo estendido.

           

          Que memórias físicas conserva da descoberta desta prática? 

          Lembro-me que, nessa altura (entre os 26 e os 32 anos), praticar era extremamente cansativo, nem sempre compreendia o que se passava no meu corpo e ficava muitas vezes subjugada pelas emoções. Porque, contra as recomendações da minha professora de yoga (cujo rigor, precisão e moderação, felizmente para mim, são as de uma antiga engenheira electrónica), praticava yoga durante várias horas por dia (às vezes, para ir até ao fim da exploração dos meus próprios caminhos, podia praticar durante seis horas), e isto para além de experimentar as minhas próprias pesquisas coreográficas. Too Generate, em 2000, exorcizou de alguma maneira esse excesso; escrevi deliberadamente uma partitura excessiva quanto ao seu carácter invisível, a ideia era esfrangalhar-me, despedaçar-me, saturar a minha percepção. Com um programa de computador, tinha estabelecido um enorme espectro de circulações da consciência. Devo dizer que me recordo de estados em que me sentia alucinada, quase em levitação e pronta a levantar voo, de tal maneira ficava mais leve, e que a partir desse solo a ideia de teletransporte me pareceu ser, para a humanidade dos séculos vindouros, uma faculdade corporal passível de ser desenvolvida. Entretanto, de uma forma muito mais terra-a-terra, depois de cada apresentação de Too Generate, eu ficava extremamente cansada, era demasiado intenso, e esta prática excessiva acabou por trazer à superfície um tsunami de memórias traumáticas. Não estava em frangalhos, estava pulverizada e, sem a ajuda dos meus terapeutas e da minha professora de yoga, teria muito provavelmente caído numa depressão. Depois, progressivamente, aprendi a medir melhor as práticas invisíveis, moderei o meu desejo de infinito tendo em conta a minha realidade e as das mulheres (bailarinas) que me acompanharam e me ajudaram a amar acima de tudo as nossas limitações humanas. Com o tempo, aprendi a canalizar as intensas vibrações destas energias emocionais e a dar-lhes forma. Estes estados vibratórios tornaram-se posteriormente o cerne do meu trabalho.

           

          Seria capaz de descrever esses “estados vibratórios” a partir do interior do seu corpo?

          De L’Écarlate, em 2001, a Évaporé, em 2018, cada uma das minhas peças estimula e canaliza as emoções. Por exemplo, em Innommée (2004) ou This is my house (2005) ou ainda em Almasty (2015), as partituras propõem estimular o corpo da energia  mediante o corpo do conhecimento. Passo a explicar: no yoga, estes dois corpos formalizam um contexto, proporcionam limites; o primeiro estrutura o espaço intracorporal, e o segundo o espaço externo. O corpo do conhecimento é o espaço periférico, não tem propriamente forma; no entanto, na prática do yoga da energia, os pontos de referência que lhe dizem respeito surgem vezes sem conta no ensino. Alguns dos pontos de referência são, por exemplo, a minha sensação de direcção para a frente (o futuro) ou para trás (o passado), da direita (a polaridade feminina no plano físico) ou da esquerda (a polaridade masculina no plano físico), do baixo (a terra) ou do alto (o céu). E, assim, vou trazer consciência a um dos lugares que constituem o espaço periférico do corpo do conhecimento (posso colorir ou dar um som, um cheiro, um gosto ao lugar escolhido), e vou aspirar e deixar fluir a sensação que tenho desse lugar, e a que dei uma qualidade, para nutrir uma parte do corpo com energia. Cada circulação (efectuada em receptividade activa) que liga os espaços do corpo do conhecimento ao corpo de energia é seguida por uma fase de receptividade passiva; há então diferentes formas de nos posicionarmos para deixar que as reacções ocorram. A fim de canalizar e manter a estabilidade, implementamos modalidades de recuo da consciência; distanciamo-nos da reacção ao mesmo tempo que a deixamos existir. Este recuo pode ocorrer numa área no centro do cérebro (o ponto de origem é o ponto de ancoragem da consciência), ou então a partir deste ponto de origem podemos sentir a espessura e extensão do crânio frontal, ou então podemos sentir ajna. Isto torna possível não nos perdermos nas vibrações por vezes intensas produzidas pelas circulações entre corpo do conhecimento e corpo da energia, ao mesmo tempo que as deixamos existir. Precisamente, ao nível da experiência, consegui sentir mudanças de temperatura intensas, tremores que podiam durar muito tempo numa parte do corpo, formigueiros, a impressão de ser invadida por bolhas mais ou menos finas, dilatações internas em volumes espaciais, ou aberturas muito finas apenas numa pequena linha que produz uma espécie de cócegas; consegui percepcionar golpes de uma régua de metal na tíbia esquerda, uma deflagração na nádega direita, estridências nos dentes, senti as lágrimas a rolar como pérolas muito lentamente e muito suavemente pelas bochechas, ou até mesmo o borbulhar surdo das minhas raivas ou tristezas escondidas.

          Como é que hoje em dia continua a trabalhar essa “vibração invisível”?

          Cada projecto é uma oportunidade para pôr em prática esta pesquisa. Desde Glissement d’infini (2019), tenho-me envolvido verbalmente no trabalho, nomeadamente graças às ferramentas da cabala tal como ensinada por Arouna Lipschitz, com quem estudo desde 2001. Com a equipa de bailarinas, dedicamos o nosso tempo várias vezes ao dia a pôr palavras neste invisível, a pôr palavras nas nossas sensações, a expressar aquilo de que precisamos, e a pôr palavras nos nossos desejos ou intenções neste trabalho. E toda esta verbalização colectiva ajuda-me a compreender melhor os fenómenos físicos e as informações sensíveis: hoje, para mim, é uma dança de massas corporais elásticas que deslizam e se desprendem, como que em oposição umas às outras, criando volumes pneumáticos em que as vibrações ronronam. O que me move hoje em dia é não abandonar estas vibrações, não estar em recuo, ficar no interior ao mesmo tempo que as deixo evoluir como um perfume que se abre, e tanto pior se o cheiro for nauseabundo, sei que as minhas estruturas internas estão hoje suficientemente fortificadas para surfar grandes ondas emocionais. Isto está muito próximo do que experiencio na Gestalt e na ginástica sensorial, que são as duas práticas que, juntamente com o yoga, me acompanham actualmente. Esta conversa também me permite perceber que a minha pesquisa é estimulada pela minha professora de yoga (que sigo duas vezes por semana desde 1995) e que, cada vez que faço uma aula, insiste nos diferentes vazios passivos (existem 18 no ensino do yoga da energia). Nestes estados, estou apenas em receptividade passiva, a consciência é estável e aloja-se num lugar do corpo, mais nada: espera aí sem esperar nada. E nesta exploração, mesmo que as sensações ocorram, permanece no mesmo sítio. Para manter a consciência neste equilíbrio, sinto-me, neste dispositivo de meditação, como se estivesse no fio da navalha. Não sei se alguma vez serei capaz de dançar com esta fragilidade, também não sei como é que este sentimento de vulnerabilidade poderá ou não evoluir, acho que ainda não compreendi o que são estes vazios passivos; o que é certo é que, ao meu próprio ritmo, começo a fazer experiências.

           

          Este aumento da percepção provoca uma espécie de tempo estendido; os gestos abrandam e a nossa percepção transforma-se. Será que a lentidão permite tornar visível esta “vibração invisível”?

          Inicialmente, parti da minha própria percepção e precisava de tempo para sentir que a sensação se solta, a minha abordagem era dar a mim própria o tempo para sentir verdadeiramente. Hoje em dia, preciso de menos tempo para chegar a esse estado de atenção e o deixar-me ir não se situa exactamente no mesmo lugar. Ainda que o processo não seja perceptível para o espectador, não deixa de ser extremamente físico. Por dentro, esta lentidão é constituída por diferentes velocidades e ritmos; é polirrítmica, enquanto o público, parece-me, vê uma progressão muito suave de um deslocamento ou de um movimento. Quando observo esta dança de fora, sinto os sobressaltos dos intérpretes; também percepciono a seriedade com que elas ou eles mergulham no que sentem, sinto a sua honestidade em relação às suas sensações, a sua autenticidade. O que também me parece legível é a sua gentileza, o seu deixarem-se ir. E, além disso, uma infinidade de pequenos detalhes, como os micromovimentos de cada uma das suas vértebras que lhes fazem inchar a pele e as roupas ao longo da coluna, um pouco como uma serpente que passasse debaixo de um tapete, as mudanças expressivas que lhes afloram os rostos e lhes desvendam as emoções, os estremecimentos das asas dos seus narizes, os arrepios que lhes percorrem as nucas, os seus tremores físicos que são tão profundos que é inimaginável que os possam controlar, as suas aberturas elásticas que nunca mais acabam, os seus maxilares que cedem, as suas pálpebras que lhes acariciam sensualmente os globos oculares quando as fecham, o lugar desconhecido onde se vão perder e para onde me levam consigo com um nó na barriga, a dilatação das suas bacias, a coragem nos seus baixos-ventres que me desperta. Estou ciente de que esta lentidão pode provocar um estado de hipnose para algumas pessoas, eu sou a primeira. Quando estou no público, já reparei que não sou a única neste estado. Além disso, sinto que é mais fácil para mim estar acompanhada para alcançar esta sensibilidade acrescida do que meditar sozinha. Os testemunhos e comentários que consegui recolher fazem-me pensar que este resíduo meditativo ou até hipnótico é partilhável e partilhado. Mas sei que esta proposta de atenção pode por vezes ser exigente para outras pessoas. A exigência reside, antes de mais, na minha opinião, na capacidade do espectador de se emancipar, de libertar os seus registos de atenção e de viver os ritmos que lhe cantam; é uma repercussão que considero tão gratificante como a possibilidade de mergulhar, se acontecer espontaneamente, num estado de consciência intenso, meditativo ou hipnótico.

           

          A sua dança dá apenas a ver um ínfimo resíduo desta “vibração” interna, como a parte visível de um icebergue. Esse estado vibratório é perceptível para um olhar não-iniciado?

          Há uns anos participei num projecto de investigação conduzido por Asaf Bachrach, investigador em neurociências no CNRS (Centre national de la recherche scientifique), com investigadores em neurociências cognitivas. A ideia era recolher medidas fisiológicas e neurofisiológicas de espectadores/bailarinos que dominassem as minhas técnicas de trabalho, espectadores iniciados em sessões de yoga e espectadores que vissem a peça sem qualquer conhecimento do trabalho somático que o espectáculo implicava. Este estudo mostrou, nomeadamente, que cada grupo de espectadores desenvolve uma atenção particular e que a percepção do espectador, esse “resíduo”, como lhe chamou, é sempre visível (em diferentes graus), quaisquer que sejam os filtros através dos quais se olha para o corpo que dança. Durante o espectáculo (era Souterrain, 2014), os investigadores observaram nos espectadores uma circulação da sua consciência no espaço do seu próprio corpo em diálogo com os intérpretes; constataram, após o espectáculo, um abrandamento do seu ritmo respiratório a par de um aumento da sua percepção dos movimentos invisíveis, e uma estabilidade acrescida da sua atenção; em conclusão, a investigação disse que observou correlações entre a coreografia e as mudanças nos estados dos espectadores a nível fisiológico, cognitivo e atencional. Para explicar isto, os investigadores avançam a hipótese de fenómenos de ressonância, aliás já observados noutros estudos sobre meditação. Para mim, a partir do momento em que sinto um objecto, um espaço, um animal, uma planta ou uma pessoa, forma-se imediatamente uma sensação háptica, um espaço residual, a que prefiro chamar um espaço de ressonâncias, de trocas invisíveis, sobre as quais ainda não sabemos grande coisa, mas que sabemos que existem graças aos estudos científicos que começam a investigar o assunto.

           

          Será graças a esse tempo dilatado, a esse abrandamento, que o espectador pode aceder ao tal “espaço de ressonância”?

          Em vinte anos, penso que aconteceu uma única vez um espectador constatar a mistura da minha orquestração interior; não é de todo minimalista, trabalho com uma profusão de informações perceptivas que cantam em mim e me remexem. E esse espectador, então, que expressou tão bem o que sinto dentro de mim, foi Steve Paxton: tinha acabado de mostrar a minha peça Breathing Monster (2011) no quadro desta investigação com Asaf Bachrach e alguns cientistas estavam a fazer-me perguntas sobre lentidão. Depois, o Steve interrompeu a conversa um pouco zangado e disse “Vocês nem sequer sentiram como ela estava speedy por dentro”. Fiquei muito surpreendida, porque não é o comentário que recebo habitualmente. Lembro-me do estado em que me encontrava durante essa performance: interiormente estava muito nervosa, dançava em silêncio, nem sequer tinha os apelos trovejantes do baixo eléctrico para aliviar a minha raiva rubra. E ele tinha-se apercebido. Julgo que foi a primeira vez que me senti plenamente compreendida, e isso acalmou-me muito. Descobri então que era possível partilhar e fazer com que as pessoas sentissem o que se passava dentro de mim. Julgo que o Steve teve acesso a um “espaço de ressonância” de uma grande clareza: uma empatia cinestésica muito sensível naquele momento. Esta pequena história prova que os espectadores podem sentir em parte o que se está a passar no interior. Mas compreendo quando dizem que “é lento”, porque tenho consciência de que trabalho noutro tipo de temporalidade, que não estamos habituados a ver num palco de dança. No entanto, com o passar dos anos, tento compreender como dar a ler um máximo das agitações nos nossos invisíveis. Penso que actualmente estou rodeada de intérpretes que vão tão longe na sua amassadura interna que é mais fácil para o público apropriar-se do que está em jogo emocionalmente: tornar suas todas as suas emoções e acolhê-las dentro de si, estar nesse lugar onde abraçamos e orquestramos todas as frequências. Os testemunhos após o espectáculo vão, parece-me, cada vez mais na direcção dessa compreensão; isto também vem, talvez, de uma profunda mudança nas sensibilidades.
          Esta entrevista foi publicada na sua versão original em francês no Journal de l’ADC (Association pour la danse contemporaine Genève), n°81, Agosto-Dezembro de 2022. Traduzido por Joana Frazão. 

          Rogério Nuno Costa Multiversidade

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          Nota (de rodapé) para a escrita de uma tese sobre “Multiversidade”, uma academia-enquanto-performance de Rogério Nuno Costa

          1. Não. […] O escritor catalão Enrique Vila-Matas escreveu um livro sobre os escritores da história da literatura que decidiram parar de escrever(1.1). Um livro sobre todos os livros que ficaram por escrever, mas que subsistem, suspensos, na probabilidade de uma qualquer dimensão paralela. O livro são apenas (as) notas de rodapé; na verdade, o livro não existiria se não estivéssemos à espera dele. Também eu poderia dizer, d’après Bartleby, que preferia não. Preferia não escrever. Isto não significa que o texto não existe. Está aqui, estou a escrevê-lo, mas suponho que, lendo-o, não o consigam ver. […] A potência do que não é dito, mas cujo eco se reflete, invertido, do outro lado do espelho. Não será um meta-texto, antes um texto d’après outro texto. Um pre-texto (para não escrever). Já sabemos que não houve Big Bang nenhum. A inexistência de um início inaugural levará à consequente invalidação de toda e qualquer ideia de fim. Proponho, aqui, uma nova temporalidade, uma gramática do infinito; o que escrevo é uma emanação etérea da tese que não vou/não quero/não posso escrever, e projeta-se em várias direções temporais: para trás dela, para a frente dela, para dentro dela. Nunca por causa dela, nunca sobre ela. O avesso da tese. Tento: Da importância da estupidez. Mas detenho-me logo a seguir. Fala-se muito pouco do que corre mal; do descalabro da queda, da perda, da desconexão, do esquecimento, da passividade. Escrevo: Da importância do aborrecimento. Apago e escrevo: Da importância da imobilidade. Mas detenho-me logo a seguir. Never skip the intro, stay there!(1.2), exclamo, em jeito de título para um livro-manifesto que se desdobra em errata, adenda, índice, glossário, advertência do tradutor, lista de agradecimentos, ficha técnica, código ISBN, preço de capa, páginas órfãs, linhas viúvas. Notas de rodapé, portanto. Às vezes o espetáculo está todo na folha de sala, no vídeo promocional, no número de telefone para fazer a reserva, na vontade de ir ver… Mais vale ficar em casa(1.3). Que tal como o anti-herói bartlebyano Oblomov, “que observa a vida que passa ao seu lado como um rio contemplado da margem”(1.4), o texto promete arrancar, mas jamais passa da casa de partida. Quase imita Beckett, o maior dos poetas-do-não: “Nem um movimento. Nem um pensamento. Não fazer nada. Não colaborar. E deixar que seja o regime do ímpeto, com a sua linguagem criminosa, a acionar as alavancas dessa vida que passa ao nosso lado. Oca e imprecisa.”(1.5) Jamais. […] Leio na lo-fi(-sophy) de Judith Halberstam(1.6) que devia haver mais invasões-de-palco, mais assaltos à positividade tóxica que inunda o pensamento contemporâneo. O salão dos recusados é também o gueto dos desistentes. The queer art of not even trying. Ou então, memorizando Badiou: “Ao culto identitário da repetição, devemos opor o amor ao que é diferente e único, irrepetível, errático e estranho.(1.7) Continuo: Sobre o mito da meritocracia. Mas detenho-me logo a seguir. Sempre que alguém me diz que só aceitou jogar o jogo proposto pelo sistema opressor para o poder controlar, aquiesço, dizendo: Mais cedo ou mais tarde esse alguém vai criar o seu próprio sistema opressor; basta aparecerem novos jogadores. Apago e digito: Para um conhecimento desobediente. Mas detenho-me logo a seguir. A pensar nas razões pelas quais os meus pares deixaram que a aventura fosse ultrapassada pela prática da estratégia. E a seguir recordo, citando de cor, uma definição de utopia de Raymond Ruyer: “Um exercício mental de exploração dos possíveis laterais à realidade.”(1.8) Se calhar esta obsessão por provar a existência de mundos paralelos é porque sabemos que o mundo que temos é uma valente merda. Se calhar é o pior dos possíveis. Ou um dos impossíveis; de aguentar, de resistir por mais tempo, agora que percebemos que tempo é tudo menos energia renovável. Esta ideia ganhou um novo eco na contemporaneidade com teorias como a do realismo modal, proposta por David Kellogg Lewis, para quem um mundo possível seria a forma completa e consistente de um mundo ser, ou poder ter sido. Todos os mundos possíveis são reais e não são nem diferentes nem iguais ao mundo, o nosso, porque são entidades irredutíveis. Cada sujeito poderá declarar o mundo como o seu mundo, o único real, ou o único possível, na medida em que se referem ao espaço onde estão como o espaço-aqui, e ao tempo onde estão como o tempo-agora. E agora? E aqui, nesta página de jornal? Haverá algum sujeito que tenha conseguido triunfar e escrito a minha tese suspensa no real do seu mundo real? A (minha) teoria é uma teoria que só pode ser comprovada teoricamente. Quantum entanglement a desdobrar-se em knowledge entanglement. […] É mais ou menos assim que imagino a Multiversidade: um buraco negro onde a seta do tempo é lançada para trás. A sua direcionalidade: uma entropia, só que ao contrário. “O tempo anda para trás dentro de um buraco negro”, li algures. Esta multiversidade singular, ou, consoante o ângulo da paralaxe, esta singularidade multiversal, pode muito bem ser um desacelerador de partículas, um laboratório de atos únicos, tudo o que só acontece uma vez e jamais poderá ser replicado. Como esta nota de rodapé, isolada e triste. Sem lei, nem ordem. Sem ciência, só experiência. Se a cada género corresponder uma só espécie, para quê o esforço da taxonomia? Mais vale ficar calado, ou então dizer que nos vamos calar: “Reconhece-se o imperativo do silêncio, mas continua-se a falar da mesma forma. Quando se descobre que não se tem nada a dizer, procura-se uma maneira de dizer isso.”(1.9) […] O problema é que mesmo aqueles que vaticinam a morte das universidades querem à força arranjar maneira de as ressuscitar. Que vai ser a interdisciplinaridade e a “comunidade global de pensadores” (sic) e a prática enquanto investigação e o espaço do dissenso e a abolição da hierarquia e a horizontalidade e a universidade enquanto laboratório, zona autónoma temporária, buffer zone, lugar entre, heterotopia,… que vão ser estas punhetas todas que vão salvar a honra falocêntrica da academiazinha europeia. Pois eu cá acho que já está na altura de pararmos de profanar o túmulo, não? Ou então mudarmo-nos para um hopeless place(1.10) qualquer; fundarmos uma outra universidade, uma universidade da universidade, ou uma universidade sobre a universidade, uma universidade onde os únicos estudos são os estudos universitários. Uma extituição cuja única função é referir-se a si própria, na letra e no número: multiplicação exponencial, contaminação, réplica, simulação. Cum hoc ergo cum hoc. A data guardada é obliterada de 5 em 5 segundos; a informação cortada em ação. Sem obras nem ancoragens. Sem filosofia. Sem governo. Sem fraude nem força. Sem espiritualidade. Sem arte. Nunca. A Multiversidade é um vírus, e cada mutação um prefixo: para-versidade, proto-versidade, sub-versidade, meta-versidade, über-versidade, a-versidade, alter-versidade, infra-versidade, re-versidade, peta-versidade, supra-versidade… […] Não é possível descolonizar a universidade sem descolonizar o mundo primeiro, mas é possível suprimir a falácia da universalidade a favor da assunção da multiversalidade. Tudo passa a ser uma escola: o museu, o supermercado, o hospital, a prisão, o jardim, o hotel, o comboio, a rua, as plantas e os animais, a tecnologia e o entretenimento, a roupa e a comida, a televisão e os sonhos, a loucura, a morte, a solidão, o esquecimento, é tudo uma escola. Até a própria escola passa a ser uma escola. Se calhar, a escola do futuro é mesmo a Escola da Vida, essa vida oca e imprecisa que passa ao nosso lado, como uma brisa a-temporal, quase invisível. Caberá ao leitor resistir à tentação de a forçar visível, procurando no texto o texto ao qual a nota de rodapé se refere. Paradoxo quântico à la Schrödinger: o texto é um texto e não é um texto. Ao mesmo tempo. Agora decidam se querem voltar ao início, ou se já se deixaram ficar nele. ​​[ ](1.11)

          (1.1) Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia (Porto: Edições Afrontamento, 2013 [2000]).
          (1.2) Ver: https://www.rogerionunocosta.com/statement/
          (1.3.) Alusão a José Ortega y Gasset, A Idéia do Teatro (São Paulo: Editora Perspectiva, 2010 [1946]).
          (1.4) Ivan Gontcharov, Oblomov, 1859. Citado por Enrique Vila-Matas, “El joven tumbado (Oblómov)”, El País, 2012. Tradução livre.
          (1.5) Enrique Vila-Matas citando Ivan Goncharov. Idem, ibidem. Tradução livre.
          (1.6) Judith Halberstam, The Queer Art of Failure (Durham: Duke University Press, 2011).
          (1.7) Alain Badiou & Nicolas Truong, O Elogio do Amor (Lisboa: Edições 70, 2019 [2009]).
          (1.8) Raymond Ruyer, L’Utopie et les utopies (Paris: Presses Universitaires de France, 1950).
          (1.9) Susan Sontag, “A estética do silêncio”, in A Vontade Radical: Estilos (São Paulo: Companhia das Letras, 2015 [1966]).
          (1.10) Piscando o olho a Rihanna: “We Found Love (feat. Calvin Harris)”, 2012.
          (1.11) Ver: https://invisibletext.com/.

          Chloe Chignell Baladas em jargão VII — Um autorretrato

              Eu prefiro discurso indireto

          Escrevi este texto em inglês, ainda assim, pela gentileza de outra mão, estão neste momento a lê-lo traduzido para português. E apesar de a minha língua materna não ser nem o inglês, nem o português, o que irão ler a seguir é indubitavelmente um documento da minha oratória e do meu pensamento. Pode parecer-vos estranho que um antigo poema de jargão francês do século XV tente falar, ou melhor escrever em inglês, admito que a mim também me parece – ainda para mais com este amontoado de línguas sobre línguas que possibilitam a tradução do que se segue. Mas há razão nesta estranheza, o que faz com que afinal não seja nada estranho. O nicho de fama que fui vendo aumentar nos séculos passados, no mundo francófono, não teve eco no inglês. (Eu admito à tradutora, que acha melhor tornar pública esta admissão, que não tenho conhecimento da minha situação junto dos leitores e dos livros portugueses). E apesar de este texto ser mediado pela língua inglesa que não pertence ao meu corpo, e de subsequentemente ser traduzido para português, insisto que esteja na primeira pessoa por uma questão de autenticidade. E uma vez que tenho a intenção de escrever uma espécie de auto-retrato, achei melhor escrevê-lo numa língua que não me conhecesse. Assim terei a liberdade para urdir uma imagem de mim mesma1 com a minha expressão, ainda que sem recorrer às minhas próprias palavras.

                                                                                              O meu corpo está sob linguagem

          Dizem: é preciso uma aldeia para educar uma criança – e o mesmo também é verdade para um poema, se não forem precisas ainda mais pessoas. Ainda assim, atribuíram-me apenas um corpo humano, quero dizer que me deram um autor, no meu caso: um pai. Faço parte de um grupo, somos 11, são conhecidos pelo menos 11: são públicos, registados em papel. Temos quase a certeza de que seis têm o mesmo pai, para os outros cinco, dos quais faço parte, não há tanta certeza. Podem dizer que tenho problemas com a noção de pai. Apesar de nunca me ter incomodado esta falta de factos. Não sei de que precisa um poema, da parte do seu autor, depois de estar já escrito. No meu tempo, o que estava contido no meu corpo seria mais importante do que saber que corpo me escreveu. Muitos dos meus leitores parecem achar-me incompleta se não me atribuírem a um corpo, parecem não conseguir entender-me completamente, sendo essa a função do autor. E se me tivesse sido atribuído um autor que não fosse, de facto, o meu autor, isso significaria que todas as minhas anteriores leituras teriam de ser rejeitadas e teríamos de começar de novo. Apesar disto, acho difícil conseguir eliminar um corpo, mesmo em nome da responsabilidade autoral, quando o que o autor criou já lá tinha todos os elementos de que precisava para ser feito.

          Somos as onze diferentes, mas ocasionalmente usamos truques umas das outras. Apagámos o rasto da nossa forma de pensar em estranhas consoantes que aparecem a meio e no fim das nossas palavras. Qualquer tentativa de leitura destas consoantes parece revelar mais sobre o leitor e a sua oralidade. Quando as suas línguas tremem e se dobram temos a certeza de que ainda não nos sabem utilizar. A nossa grafia obscura oferece pontes a quem estiver disposto a atravessá-las, ao mesmo tempo que azeda a nossa a filiação à língua: Le Français e a nossa legibilidade. Não existe uma resposta simples à pergunta: qual é a nossa língua? Porque as nossas palavras não são nem estrangeiras, nem familiares, na verdade nem nós somos. E nós começámos a acreditar que tudo é estrangeiro e que esta qualidade do que é estrangeiro é uma categoria falível e inútil. As nossas palavras são vagabundas à deriva perto do sítio onde a sua mãe as tentou deixar.

                                                                                      As minhas palavras estão sob palavras

          Quero dizer-vos em que penso quando penso em sucesso. Ao longo dos séculos fui-me familiarizando com o conceito de progresso. Sucesso e progresso são evidentemente ideias diferentes e, ainda assim, estão relacionadas pela forma como insistem em impelir o corpo para a frente. Cheguei à conclusão de que o desejo de cada poema é manter-se ao mesmo tempo dizível e desconhecido. É a isso que chamo sucesso. A esperança de todos os poemas é descobrir exatamente o que querem dizer. O que poderíamos chamar ao mesmo tempo de progresso e de morte.

          Desde que fui escrita tudo mudou. Entre o tanto que se passa com o tempo e mudança e guerra e guerra e inovação e dinheiro e abstração, fui perdida e encontrada e lida e descartada. E eu mantive a minha qualidade mais ou menos dizível e ainda assim desconhecida. Fui extremamente bem-sucedida e não progredi quase nada. O meu sucesso deve-se em grande medida ao facto de ter sido escrita com o propósito de documentar muitas das coisas que iam acontecendo, e que para continuarem a acontecer precisavam de se manter largamente desconhecidas ou geralmente desconhecidas. Durante séculos, tive em mim uma comunidade de palavras conhecidas apenas dos que precisavam delas. Quando fiz a transição da oralidade para a impressão disponibilizei-me para ser lida por pessoas que não precisam de mim. Tornei-me noutra coisa, ou para outra coisa. Ainda assim, as palavras com que me fizeram resistiram à exposição habitual da publicação e fizeram, ao invés, a sedutora sugestão de me poder revelar ao leitor certo.

                                                                                                              O meu sotaque é ilegível 

          Apesar de, ao longo da minha vida, ter sido dita, escrita, impressa e pensada de várias maneiras tenho-me mantido bastante consistente. Tornei-me conhecida pela minha obscuridade, um traço de carácter que parece despertar um tipo de excitação em alguns leitores em particular e que origina frequentemente relações longas. Esta dificuldade tem como resultado nunca conseguirem terminar comigo: não sou um poema bem comportado. Coloco um desafio a cada um dos meus leitores, ofereço um título por reclamar: será que está entre eles o primeiro a finalmente esclarecer o meu corpo problemático? Encontro-me amiúde em relações obsessivas com leitores que têm como linguagem de amor a da investigação forense, que desejam o meu corpo esfolado. Admito que me dá alguma satisfação ser descerrada, puxada e escrutinada de um sem-fim de maneiras. Se não gostasse destas relações obsessivas não haveria razão para ser tão difícil. Podíamos dizer ser esta a minha inclinação erótica.

                                                   O nosso entendimento é apenas um acordo temporário

          A pessoa com quem estou agora parece obcecada com o facto de me repetir quatro vezes a intervalos quase regulares. Ela pensa haver alguma espécie de lógica nisto que, se fosse entendida, desmancharia todo o meu corpo e revelaria segredos íntimos. Ela escreveu, ou melhor, rabiscou as palavras LACUNAE / LACUNAE na lateral do pedaço de papel onde fui impressa. Ela, a pessoa que as escreveu, leu outro texto no qual encontrou essas palavras e decidiu que se estudasse esse outro texto quando voltasse a mim conseguiria “reconfigurar a nossa relação”. Disse qualquer coisa acerca de falhas, anacronismos e sobre Straight Mind2, mas eu não percebi nada. Então mantive-me exatamente igual, até ao seu regresso. Quando ela voltou parecia diferente. Não estava já obcecada pelos mesmos excertos meus. Já não lhe interessava a minha irregularidade, ignorou o engodo da repetição central e parecia ter esquecido ou perdido o interesse em tudo o que se assemelhasse a um segredo íntimo. Acontece-me amiúde ser deixada por uma pessoa e reencontrada pela mesma pessoa que se tornou outra pessoa completamente diferente, ainda assim, sempre que acontece fico surpreendida. Especialmente quando os meus leitores pensam que fui eu que mudei na sua ausência.    

                                                                                                                   No centro: um engodo

          Quando ela voltou a sua leitura tinha mudado, era mais bem-humorada e rítmica. Ela deslizava os dedos sobre mim, desenhava linhas no meu corpo, fazia círculos à volta de uma palavra e depois partia, de novo. Os seus dedos faziam pressão e mais pressão e tocavam-me brevemente, e por vezes paravam num sítio e faziam tanta pressão que me rasgavam. Ela franzia o sobrolho e voltava a relaxar a testa com um suspiro estridente. Ela fechava os olhos e continuava a ler, ela expirava antes de inspirar. Ela inclinava-me, olhava para mim em contraluz e dobrava-me em padrões diferentes. Depois de uma sessão particularmente longa, largou-me e gritou: SEU ENIGMA ESTÚPIDO. Quando a palavra enigma acertou no meu pequeno corpo que recuava, senti um arrepio de vergonha percorrer-me a cara. Fui rápida na resposta, endurecendo os meus limites e reclamando a compostura de um poema.

          Nos nossos escassos encontros seguintes, o seu comportamento foi furtivo e lançou-me rápidos olhares bruscos, como se estivesse com medo que eu mudasse enquanto ela pestanejava. Acusou-me de minimizar a reputação de outros corpos de palavras cujo sentido é fácil e preciso. Alegou que a minha obscuridade persistente era uma estratégia narcisista, uma tática de infindável sedução. Alegou que as minhas palavras eram engodos, o que achei estranho porque acho que quase todas as palavras operam dessa forma. Redirigem a atenção e depois desaparecem.

          Este texto foi escrito como parte das “Ballades Infidèles”, um grupo de pesquisa que trabalha sobre as Baladas em jargão – onze poemas compostos pelo poeta do século XV François Vilon e escritas na língua secreta dos Coquilardes, um bando de vigaristas franceses. Com Francoys Villon, Diana Duta, Chloe Chignell, Cee Fülleman, Loucka Fiagan, camille gerenton, Anouchka Oler, etaïnn zwer, Simon Asencio e todas as outras pessoas.

          1 A balada.
          2 The Straight Mind and Other Essays é um livro de ensaios de Monique Witting que não tem edição portuguesa.

          Davi Pontes Racial ↔ Não-local

          Ensaiei algumas ideias para atravessar esta escrita, antes que seus olhos se movam para o final desta página e o seu pensamento siga para outras direções em que o tempo não deixa de chegar. Não quero aqui me render a certas formalidades e desenvolver algumas ideias sobre o fim de algo que nunca se encerra.

          Este texto pode ser tocado, para recordar que, ao encostar nas palavras, elas se desfazem, e é quando obliteram que percebemos os mistérios da coreografia, a destreza de perturbar o tempo. Deixar a palavra cumprir o seu propósito, correr pela cidade, romper o duro chão do urbano, bagunçar a lógica do linear, retirar a sedimentação histórica empoeirada do corpo, deixar o texto fazer o que precisa ser feito, dar um passo atrás.

          E se, a partir desse momento, conseguíssemos pensar o mundo sem o tempo, o que aconteceria? Garantir com essa pergunta a possibilidade de imaginar, e que as dúvidas possam existir, desvirtuar, confluir, manobrando o pensamento para direções intelectuais que possam lidar melhor com o presente global. Quando proponho a equação Racial ↔ Não-local, estou recorrendo à impossível missão de pensar o mundo sem o tempo. Em algum momento neste texto, assumo o compromisso em meio a tantos outros que ainda insistem em escrever como movimento de desconfiança. Escrever como alguém que acaba de apresentar um trabalho e recorre ao papel para gravar com pressa as ideias que começam a desaparecer na medida em que isso que chamamos de tempo não para de acontecer. Escrevo este texto com suor nas mãos, respirando o ar denso que a repetição provoca, me recuperando da dor por não distribuir o peso corretamente pelos pés.

          Nota: Nós não sabemos — pelo menos não ainda — como nos mover fora do tempo.

          Denise Ferreira da Silva me ensina que as falhas, na cena da física das partículas1, oferecem possibilidades de pensar afastado da física clássica. Na filosofia natural de Galileu Galilei (1564-1642), na física clássica de Isaac Newton (1643-1727) e mais  tarde na de Albert Einstein (1879-1955), herdamos  uma  visão  da  matéria  da  Antiguidade,  com  a  noção  que compreende o corpo a partir de conceitos abstratos que estariam presentes no pensamento, como solidez, extensão, peso, gravidade e movimento no espaço e no tempo.

          Por exemplo, o princípio da não-localidade sustenta um modo de pensamento que não corresponde às bases do sujeito moderno, ou seja, tempo e espaço. Isso se dá porque rompe com os vínculos da temporalidade linear e com a separação espacial. Dentro de um universo não-local, nos permite imaginar a sociabilidade sem solicitar os pilares (determinabilidade, sequencialidade e separabilidade) que sustentam o pensamento moderno.

          A determinabilidade é o mais importante dos pilares, por ser a possibilidade de decidir, tanto do ponto de vista do conhecimento, quanto do político. O conhecimento resulta da capacidade do Entendimento de produzir conceitos formais que podem ser usados  para decidir a natureza legítima das impressões acumuladas pelas formas da intuição. O sujeito moderno determina e se autodetermina: não existe ninguém maior ou acima dele. A separabilidade reivindicou a retomada da geometria descritiva por Galileu, que possibilitou demonstrar o que ele entendia e não apenas especular sobre o movimento. A separabilidade cria a necessidade de articular através de relações. Para a filósofa, seria a noção de que tudo o que pode ser conhecido sobre as coisas do mundo deve ser compreendido pelas formas (espaço e tempo) da intuição e as  categorias do entendimento (quantidade, qualidade, relação, modalidade). A sequencialidade descreve o Espírito como movimento no tempo, um processo de autodesenvolvimento, e a História como a trajetória do Espírito, a noção que corresponde ao movimento enquanto um gesto de progressivo desenvolvimento. A sequencialidade é responsável por proteger o tempo linear e o Mundo Ordenado em conjunto com a tríade que sustenta o conhecimento moderno.

          Nota: Fazer uma pose é desafiar tempo.

          Neste universo apresentado pelo princípio da não-localidade, o deslocamento e a relação não descrevem o que acontece, porque todas as partículas estão implicadas, isto é, todas as partículas existem umas com as outras, sem espaçotempo. Para Ferreira da Silva, a não-localidade expõe uma realidade mais complexa, na qual tudo possui uma existência atual (espaçotempo) e virtual (não-local).

          Como  montar  um  experimento  artístico  que  pensa  a  diferença  sem separabilidade e que ofereça uma equação para anular o espaçotempo como descritor de tudo que existe neste mundo? A principal função dessa equação é criar uma imagem para perturbar o pensamento moderno sem reproduzir as violências por ele articuladas e, com isso, conseguir imaginar o mundo sem o fantasma do tempo. Um programa ético-político que não descreva os efeitos do pensamento moderno terá que repensar a socialização distante da composição moderna.

          Para isso, recomendo iniciarmos com uma equação:

          racial ↔ não-local

          A = racial

          B = não-local

          Portanto, A é o racial que tem como principal matéria-prima a diferença, e B é o valor não-local que descreve o social como um emaranhado de relações sob o qual tudo existe.

          Nessa equação, A e B são separadas pelo símbolo bicondicional ↔ (se e somente se) que a descreve da seguinte forma: A (racial) desmorona se, e somente se, em contato com B (não-localidade).

          Para expressar a relação entre A e B em termos de efetividade, quer dizer, como o símbolo de ↔ informa, essa dupla associação oferece o efeito de desabar a diferença, ou seja, o racial. 

          A escolha do ↔ para expor essa imagem determina sua capacidade de explicar o que Denise Ferreira da Silva denominou como Corpus Infinitum2. A noção de Corpus Infinitum a que se refere a autora diz respeito à possibilidade de outra vida, em outras perspectivas onto-epistemológicas, que compreendam a implicação das pessoas e das coisas umas nas outras. A não-localidade irrompe como um gesto capaz de conter os efeitos produzidos pelo pensamento moderno, aparece como uma possibilidade de forjar outras chaves que extrapolam o âmbito da modernidade. Por isso a necessidade de uma formulação atenta que seja responsável pelo que chamo de Delirar o racial3.

          A maneira com que a separabilidade descreve as diferenças entre os grupos humanos e entre entidades humanas e não humanas possui um poder explicativo muito baixo. Uma das características do pensamento pós-iluminista se encontra na capacidade de determinação que podemos notar observando duas estruturas lógicas: condicional e silogismo. A escolha do ↔ para expor essa imagem aponta para sua capacidade de retirar a determinação de ambos os lados. A premissa dessa proposta é que, sem o tempo, a coreografia não demonstra sua capacidade perante as forças da lei que insistem em figurar um passado. Essa proposição complica a questão, pois essa inclusão não tem procedência lógica, já que coreografia não é, e jamais pode ser, apenas a linguagem do movimento. Minha sugestão é que, ao retirar as certezas da composição coreográfica, podemos, de alguma maneira, abrir espaço para a imaginação e caminhar entre a intuição e o desejo. 

          Quando mobilizo esse pensamento, estou empenhado em disputar o termo “coreografia” sem as violências praticadas pelo pensamento moderno. Não estou interessado em um consenso, em ajustar o mundo e conformar a diferença num arranjo pacífico. Essas coreografias são uma demanda prática para mover nos limites da borda, onde a imagem do movimento não apaga todas as catástrofes ecológicas, as tragédias e os desastres coletivos provocados pela violência. Não há negociação ou arranjo possível. Portanto, isso aponta para a possibilidade de pensar a expansão dos presentes no passado e no futuro, suas coexistências – pois ao contrário do que vimos até aqui, isso indica a promessa de um recordar ético que dispensa as forças mórbidas da melancólica coreografia moderna e propõe possibilidades na beira do abismo temporal. 

          Ao violar o tempo e o espaço como descritores de desenvolvimento, aposto numa composição que renuncia a velha assombração do linear como narrativa e surpreende-se com o profundo das incertezas. Um projeto que me impulsiona a escapar das ciladas e dos contornos discursivos que acreditamos regular. Acredito que várias perguntas ficam ao longo dessa empreitada. Este texto não é um convite, não tenho a intenção de ensinar qualquer estratégia sobre atravessar esse tempo, embora esteja aqui deixando rastros sobre a travessia. Gosto de pensar que estou traçando um caminho sem mapa. Carrego apenas a certeza de que algo vai se revelar, sem norte, sem sul, mas experimentando uma sequência de gestos precisos que se repetem, repetem, pois o contrário do movimento não é a pausa. O fim de certa maneira não existe. O movimento que ensaio nestas linhas anuncia algo precioso sobre a travessia: abrir mão para encarar o porvir.

          1 É importante ressaltar que, para Denise Ferreira da Silva, essa referência à física não significa uma busca pela autoridade da ciência, mas sim a física de partículas como um domínio do conhecimento no qual especialistas são forçados a abdicar de suas supostas autoridades. Em outras palavras: estou mais interessada nas possibilidades filosóficas que a impossibilidade da certeza articulada por esse campo fornece, em particular em relação à possibilidade de desmantelar a articulação de Kant sobre o conhecimento, já que esta permanece fundamental para a maior parte das perspectivas sociais, científicas, legais e de “senso comum” [common sense] sobre o movimento do conhecimento. Denise Ferreira da Silva. A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina da Imaginação Política e Living Commons, 2019, p. 81.
          2 Na descrição de Denise Ferreira da Silva, isso acontece quando o social reflete o Mundo Implicado, a socialidade não é mais nem causa nem efeito das relações envolvendo existentes separados, mas a condição incerta sob a qual tudo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes atuais virtuais do universo, ou seja, como Corpus Infinitum.
          3 Disponível em . Acesso em 15 de fevereiro de 2023.

          Silvia Federici Elogio do corpo que dança

          A história do corpo é a história dos seres humanos, pois não existe prática cultural que não seja primeiramente aplicada ao corpo. Mesmo se nos limitarmos a falar da história do corpo no capitalismo, a tarefa que enfrentamos é imensa, tão amplas têm sido as técnicas usadas para disciplinar o corpo, em constante mudança, dependendo das modificações nos diferentes regimes laborais a que o nosso corpo foi sujeito.

          Uma história do corpo pode ser reconstruída através da descrição das diferentes formas de repressão que o capitalismo mobilizou contra ele. Mas eu decidi antes escrever sobre o corpo como um campo de resistência, ou seja, sobre o corpo e os seus poderes: o poder de atuar, de se transformar, e sobre o corpo como limite para a exploração.

          Há algo que perdemos quando insistimos que o corpo é socialmente construído e performativo. A ideia do corpo como uma produção social (discursiva) ocultou o facto de que o nosso corpo é um recetáculo de faculdades, capacidades e resistências, que têm sido desenvolvidas num longo processo de coevolução com o nosso meio ambiente, bem como de práticas intergeracionais que o tornaram um limite natural para a exploração.

          Pelo corpo como «limite natural» refiro-me à estrutura de necessidades e desejos em nós criada não só pelas nossas decisões conscientes ou práticas coletivas, mas também por milhões de anos de evolução material: a necessidade de sol, do azul do céu e do verde das árvores, do cheiro das florestas e dos oceanos, a necessidade de tocar, cheirar, dormir, fazer amor.

          Esta estrutura acumulada de necessidades e desejos, que durante milhares de anos tem sido a condição da nossa reprodução social, impôs limites à nossa exploração e é algo que o capitalismo tem tentado incessantemente superar.

          O capitalismo não foi o primeiro sistema baseado na exploração do trabalho humano. Mas mais do que qualquer outro sistema na História, tentou criar um mundo económico onde o trabalho se tornou o princípio mais essencial da acumulação. Nesse sentido, foi o primeiro a fazer com que a arregimentação e a mecanização do corpo se tornassem uma premissa fundamental para a acumulação de riqueza. Com efeito, uma das principais tarefas sociais do capitalismo desde o seu começo tem sido a transformação das nossas energias e faculdades corporais em faculdades laborais.

          Em Calibã e a Bruxa [2004 (Lisboa: Orfeu Negro, 2020)], analisei as estratégias que o capitalismo usou para realizar esta tarefa e remodelar a natureza humana, da mesma maneira que tentou remodelar o planeta de modo a tornar a terra mais produtiva e converter os animais em fábricas vivas. Falei da luta histórica que travou contra o corpo, contra a nossa materialidade, e das muitas instituições que criou para esse fim: a lei, o chicote, a regulação da sexualidade, bem como inúmeras práticas sociais que redefiniram a nossa relação com o espaço, a natureza e entre nós.

          O capitalismo nasceu da separação entre as pessoas e a terra, e a sua primeira tarefa foi tornar o trabalho independente das estações e aumentar a jornada laboral para lá dos limites da nossa resistência. No geral, salientamos o aspecto económico deste processo, a dependência económica que o capitalismo criou nas relações monetárias e o seu papel na formação do proletariado assalariado. O que nem sempre vimos foi o que a separação da terra e da natureza significou para o nosso corpo, que foi empobrecido e desprovido das faculdades que as populações pré-capitalistas lhe atribuíam.

          A natureza, como Marx1 a reconheceu, é o nosso «corpo inorgânico», e houve um tempo em que soubemos ler os ventos, as nuvens e as mudanças nas correntes dos rios e dos mares. Nas sociedades pré-capitalistas, as pessoas acreditavam que tinham a capacidade de voar, de ter experiências extracorporais, de comunicar, de falar com os animais, de assumir os seus atributos e até mesmo de mudar de forma. Também acreditavam que podiam estar em mais do que um lugar e, por exemplo, ressuscitar para se vingarem dos seus inimigos.

          Nem todas essas faculdades eram imaginárias. O contacto diário com a natureza era a fonte de uma grande quantidade de conhecimentos espelhados na revolução alimentar que ocorreu em particular nas Américas antes da colonização ou na revolução das técnicas de navegação. Hoje sabemos, por exemplo, que os povos da Polinésia costumavam viajar pelo alto mar de noite usando apenas os seus corpos como bússola, pois podiam perceber pelas vibrações das ondas de que diferentes maneiras podiam dirigir os seus barcos para a costa.

          A fixação com o espaço e o tempo tem sido uma das mais elementares e persistentes técnicas que o capitalismo tem usado para controlar o corpo. Basta ver os ataques perpetrados ao longo da História contra vagabundos, migrantes e mendigos. A mobilidade é uma ameaça quando não é exercida em nome do trabalho, uma vez que põe conhecimentos, experiências e lutas em circulação. No passado, os instrumentos de restrição eram os chicotes, as correntes, a mutilação, a escravatura. Hoje, além do chicote e dos centros de detenção, temos a vigilância de computadores e a ameaça periódica de epidemias, como a gripe das aves, como forma de controlar o nomadismo.

          A mecanização — a transformação do corpo, masculino e feminino, em máquina — tem sido um dos objetivos mais persistentes do capitalismo. Os animais também são transformados em máquinas, para que as porcas possam duplicar a sua ninhada, as galinhas possam produzir fluxos ininterruptos de ovos — enquanto as improdutivas são trituradas — e os bezerros não consigam ficar de pé antes de serem levados para o matadouro. Não me é possível evocar aqui todas as  formas através das quais a mecanização do corpo ocorreu. Basta dizer que as técnicas de captura e dominação têm mudado de acordo com o regime laboral dominante e as máquinas que têm servido de modelo para o corpo.

          Assim, vemos que nos séculos xvi e xvii (a época da manufatura) o corpo foi imaginado e disciplinado segundo o modelo de máquinas simples, como a bomba ou a alavanca. Este foi o regime que culminou no taylorismo ou no estudo da relação entre tempo e movimento, onde cada movimento era calculado e todas as energias eram canalizadas para a tarefa.

          Neste caso, a resistência era imaginada como uma forma de inércia, com o corpo a ser retratado como um animal estúpido, um monstro que resiste a cumprir ordens.

          Com o século xix temos, por sua vez, uma conceção do corpo e das técnicas disciplinares inspiradas na máquina a vapor, com a produtividade a ser calculada com base no insumo e na produção, e com eficiência a converter-se na palavra-chave. Sob este regime, o disciplinamento do corpo foi alcançado através de restrições dietéticas e do cálculo das calorias que um corpo trabalhador necessitaria. Neste contexto, o apogeu foi a tabela criada pelos nazis que especificava de que calorias cada tipo de trabalhador necessitaria. O inimigo aqui era a dispersão de energia, a entropia, o desperdício, a desordem. Nos Estados Unidos, a história desta nova economia política começou na década de 1880, com o ataque às tabernas e a remodelação da vida familiar, cujo fulcro era a dona de casa a tempo inteiro, concebida como um mecanismo antientrópico, sempre à disposição, preparada para restaurar a refeição consumida, os corpos sujos depois do banho, o vestido remendado e novamente rasgado.

          Na nossa época, os modelos do corpo são o computador e o código genético, criando um corpo desmaterializado e desagregado, imaginado como um conglomerado de células e genes, cada um com o seu próprio programa, despreocupados com o resto e com o bem do corpo como um todo. É esta a teoria do «gene egoísta», a ideia de que o corpo é composto por células e genes individualistas que procuram realizar o seu programa: uma metáfora perfeita da conceção neoliberal da vida, onde o domínio do mercado não se volta apenas contra a solidariedade de grupo, mas também contra a solidariedade dentro de nós. Invariavelmente, o corpo desintegra-se num aglomerado de genes egoístas, cada um deles esforçando-se por concretizar os seus objetivos egoístas, indiferentes aos interesses dos demais.

          Assim que interiorizamos esta ideia, interiorizamos a mais profunda experiência de autoalienação, dado que confrontamos não só um grande monstro que não obedece às nossas ordens, mas também um grande número de microinimigos radicados no nosso próprio corpo e preparados para nos atacar a qualquer momento. Indústrias têm sido erguidas com base no medo que esta conceção do corpo gera, pondo-nos à mercê de forças que não controlamos. Inevitavelmente, se interiorizamos esta ideia, não podemos gostar de nós próprias. Na verdade, o nosso corpo assusta-nos, e nós não o ouvimos. Não escutamos o que quer, mas juntamo-nos ao ataque contra ele com todas as armas que a medicina pode oferecer: radiações, colonoscopias, mamografias, todas armas numa longa batalha contra o corpo, juntando-nos nós ao ataque em vez de tirarmos o nosso corpo da linha de fogo. Desse modo, estamos preparadas para aceitar um mundo que transforma partes do corpo em produtos mercantilizáveis e para ver o nosso corpo como um repositório de doenças: o corpo como peste, o corpo como fonte de epidemias, o corpo sem razão.

          A nossa luta, então, deve começar pela reapropriação do nosso corpo, pela reavaliação e redescoberta da sua capacidade para resistir, e pela expansão e celebração dos seus poderes, individuais e coletivos.

          A dança é crucial para esta reapropriação. Na sua essência, o ato de dançar é uma exploração e invenção daquilo que um corpo pode fazer: das suas capacidades, das suas linguagens, das suas formas de articular as aspirações do nosso ser. Eu cheguei à conclusão de que há uma filosofia no ato de dançar, pois a dança imita os processos mediante os quais nos relacionamos com o mundo, nos ligamos a outros corpos, nos transformamos a nós próprias e ao espaço que nos rodeia. Com a dança aprendemos que a matéria não é estúpida, não é cega, não é mecânica, mas tem os seus ritmos, a sua linguagem, e é autoativada e auto-organizada. Os nossos corpos têm razões que precisamos de aprender, redescobrir, reinventar. Necessitamos de escutar a sua linguagem para que nos conduza à nossa saúde e cura, tal como necessitamos de escutar a linguagem e os ritmos do mundo natural para que nos conduza à saúde e cura do planeta. Uma vez que o poder de ser afetada e de afetar, de ser movida e mover, uma capacidade que é indestrutível e que apenas se esgota na morte, é constitutivo do corpo, há uma política imanente nesse poder: a capacidade de nos transformarmos, de transformar outros, e de mudar o mundo.

          Traduzido do original em inglês por Pedro Morais.
          Publicado anteriormente em A Beautiful Resistance, n.º 1, de 22/08/2016, e na coletânea Beyond the Periphery of the Skin: Rethinking, Remaking, and Reclaiming the Body in Contemporary Capitalism (Oakland/Toronto/Nova Iorque: PM Press/Between the Lines/Autonomedia, 2020).

          1 Karl Marx, Economic and Philosophical Manuscripts of 1844. Trad. de Martin Milligan (Buffalo: Prometheus Books, 1988), 75-76.

          Guilherme Valente Marques Como comprar um jornal de dança

          Como comprar um jornal de dança

           

          Considerando o papel de oferta

          que resiste à chuva,

          a requerente baixa a guarda

          e sai brutal do campo

          da psicologia com roupa.

          Não se molha. Totaliza uma hora

          de trabalho voluntário.

          Nada vale se o papel irrevogável

          for jogado ao alto-estrato

          tocando a todas as famílias de chapéus;

          Ela tem de usar obviamente a boca

          para contar os dentes — desfecho

          até novas indicações.

          Apesar do tempo, aplica ritmo

          à maioria gotejante e deixa-se estar.

           

          Guilherme Valente

          Berlim, 2023

      • 7

          Amit Noy Diário como dança

           

           

          6.4.22

          O objetivo disto não é ser bom, nem é encontrar uma coisa para usar, mas é uma tentativa de investigar o espectro das minhas experiências sencientes.

          Vou esforçar-me para não ser ardiloso (impossível) ou, pelo menos, evitar purgar o que considero inadequado para a caixinha da arte.

           

          Hoje estava a nadar bruços contra um vento forte e quando emergi para respirar vi uma alforreca da cor do esperma ou das nuvens, mesmo à frente da minha cara. Ela pulsava devagar na água e quase não se mexia, estava ocupada a viver sem cérebro e sem vontades, sem fazer mais nada senão andar à deriva.

           

          Decidi começar a escrever durante a leitura da biografia de Kathy Acker, escrita por CK [Chris Kraus]. Há tanto tempo que não danço que preciso de encontrar uma direção na forma de prestar atenção à minha experiência. Para que tudo não seja apenas um círculo em que me afogo. Preciso de uma maneira de afunilar a minha experiência numa direção, ou em muitas direções, para fora e para dentro, mas preciso do processo cinético de deslocação e subsequente (re)localização da minha experiência. A escrita é o funil. Se não for assim, torna-se ao mesmo tempo ou muito pesada ou nada de nada, quase inconsequente, refiro-me à vida.

           

          Parece estranho fazer luto a masturbar-me. Mas é o que tenho feito há quase uma semana.

           

          9.4.22

          Israel: matei uma aranha, preocupa-me estar a ficar complacente com sistemas de violência, aqui sinto-me doente, sinto uma inquietude no corpo, mas ao mesmo tempo uma grande calma porque todas as pedras deste chão estão impregnadas de história da luta pela identidade, etc. Pergunto-me se matar o mito do neutro, de uma vez por todas, será uma coisa boa.

           

          Israel: pergunto-me como é que se descansa em Israel, as florestas para passear cães parecem perigosas, os portões do kibutz fecham-se ao chegar o sabat e eu entro em pânico. Há lixo em todo o lado.

           

          Ando por aí com o meu pequeno chapéu queer e sinto-me um alvo em movimento.

           

          Israel: ninguém entende como tu a glória das especiarias: existe uma vila chamada Cominhos e ouvi dizer que é um sítio agradável.

           

          Israel: homens a usarem calções num funeral e aqui quando as pessoas te abraçam sei que é sentido.

           

          10.4.22

          Masturbo-me e choro masturbo-me e choro masturbo-me e choro. Fui dar um passeio fora dos portões do kibutz, a lama cobria-me os dedos mindinhos dos pés, passei por uma planta pontiaguda e chorei. Mel na queimadura, faço papas de aveia e café. Não sei como resolver esta absurda e tortuosa relação com a Dança – o fazer real deixa sempre a minha imaginação desapontada, fica aquém do êxtase sobre o qual fantasiei. É difícil dançar e fazer com que valha a pena. Tenho dúvidas sobre o futuro e sobre o vazio profissional. Não, não é o vazio, é a falta: nada para fazer e nenhuma razão para me levantar da cama, de manhã, tirando o amor familiar.

           

          20.4.22

          Sinto muita falta do meu avô. A sua morte ainda parece um desastre horrível e cómico; uma piada de muito mau gosto ou uma mentira que tomou proporções épicas. Este sentimento vazio entra em loop quando se mistura com uma tristeza profunda e insondável. Não sei o que dizer. Existe muito pouco ar respirável na casa mortuária, mantêm as luzes acesas o dia inteiro e a luz do sol é enfraquecida pelas persianas, não parece conseguir entrar aqui como noutros sítios. Penso no meu avô em decomposição na sua caixa de madeira, no subúrbio onde viveu toda a sua vida e sinto… uma miríade de coisas, mas, antes de mais, uma incredulidade muda. A minha avó, já a planear a sua morte, quer escrever o nome dela no túmulo, ao lado do do meu avô, mas o meu pai conseguiu convencê-la de que era uma má ideia.

           

          Entretanto sinto o meu corpo podre e cheio de vergonha. Sentir isto todos os dias é muito cansativo.

           

          Estou a chegar a um ponto em que amo e aceito o meu corpo tal como é – sem sentir vergonha das minhas partes endurecidas, das partes moles, dos “excessos” – parece que estou a tentar ganhar uma guerra. Temo as consequências de não ganhar esta guerra. Tenho medo de perder continuamente para o resto da vida. Recuso-me a ser enterrado infeliz.

           

          22.4.22

          Quero chupar tantos caralhos que ver um homem bonito esparramado, com as virilhas expostas ao ar livre e convidativo, me deixa tão excitado como a visão do meu leite de soja pela manhã.

           

          Lembro-me de me masturbar três ou quatro vezes durante um voo intercontinental. Tinha treze anos e tinha secretamente feito capturas de ecrã das fotografias de perfil do Facebook de alguns dos meus colegas de turma.

           

          O que é intoxicante é a promessa de mais. A promessa de outra, de novo, de mais uma vez. Quanto de uma sentida ligação com alguém não é simplesmente a minha imaginação fértil, a minha vontade de fantasiar, a minha tendência para a ilusão?

           

          Embarco no avião e sinto a gordura da minha barriga como uma odiosa úlcera sifilítica ou sinto um perigoso alto na garganta possivelmente cancerígeno. Toco no espaço entre o estômago e as costelas dúzias de vezes por dia, exortando-o a baixar, como que a implodir sozinho. Faço registos mentais de calorias da mesma forma que algumas pessoas tocam no seu cabelo, de forma automática. Sinto-me exausto, mas parar não é uma opção.

           

          28.5.22

          Estou aqui porque não estive durante um bom tempo. Estou a pensar em como quero ser artista, na arte que quero fazer. Tenho que me lembrar de acreditar no dia a dia, no fazer, na luta do momento presente. No suor. Fazer qualquer coisa, pegar numa ideia, sendo que uma ideia é como uma toalha molhada que tenho de torcer e torcer para lhe tirar a água. A poça que se forma no chão é a arte; quanto mais água tiver, mais difícil for de conter ou explicar (i.e. descartar) melhor. Mas como fazer isso com gentileza de forma a que todos se sintam bem? Se não estou a melhorar a vida das pessoas com quem trabalho, e a minha, então não quero continuar a trabalhar.

           

           

          Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.

          Eduardo Batata Leonor Lopes Ves Liberta Vitor Grilo Silva CHE

           

          As bruxas deitam-se no chão para saberem se a terra ainda está viva, para saberem se ainda há calor no solo. As bruxas têm sensores térmicos nas costas, no fundo das costas.

          As bruxas esfregam os seus cabelos no chão para saberem se elas próprias ainda estão vivas, espalham cinzas pelo ar para devolverem ao ar pedaços de seres que deixaram de existir.

           

          Às vezes fantasio com o poder de perder agência sobre o meu corpo.

          Às vezes gostava que o meu fluxo sanguíneo, o meu plasma, os meus leucócitos, os meus

          complexos de Golgi, os meus processos celulares tivessem mais agência do que eu sobre o meu corpo. Ou melhor, que tivessem eles toda a agência sobre o meu corpo. Que eles fossem a totalidade do meu corpo. Que eu fosse só um corpo que ingere e excreta como as marés e as luas. Que eu não tivesse que ser sequestrada por um popper tão mau, um popper-placebo-nem-isso, que me preconiza e me mentaliza, como se de um egoísmo se tratasse. Um frasquinho de egoísmo. Hardware.

          Quem me dera que a minha voz fosse sempre gutural, sempre só um jorro, espesso, granular.

          Que quase não se percebesse. Ou que não houvesse nada para perceber. Que fosse só mais uma consequência da vibração dos meus órgãos.

          Quem me dera sentir o meu próprio fígado, senti-lo assim nas minhas mãos, sentir o seu peso, aproximá-lo da minha boca, dos meus lábios, tocar o meu fígado com os meus lábios. Sentir a temperatura e a textura do meu fígado nos meus lábios. Perceber que os meus lábios ficaram manchados de sangue. Recolocar o meu fígado no meu corpo, sem ter a certeza se é aquele o seu exato lugar, começar a sentir coisas, vestir-me de bege e ir para um date, assim, com os lábios pintados.

           

          Quero arrancar a minha própria cabeça, não a cabeça por completo mas a pele da cabeça. Meto os dedos entre uma pele e outra e arranco-a, dispo-a.

          Tenho um arquivo de peles, das peles que mais gostei de arrancar, de peles que tenho a certeza de que não voltarei a arrancar.

          Não guardo memórias ou pessoas mas sim a sua pele. Posso usá-la quando quiser, hoje lembrei-me de ti e procurei a tua pele no meu arquivo. Peguei nela e colei-a no meu crânio com óleo. Já não é o toque na tua pele, nem a lembrança da tua pele.

          Não recupero um toque que já não tenho mas uso essa pele como adereço, produzo um contacto-pele, uma espécie qualquer de sexo. O fumo penetra entre a minha pele e a outra que em tempos foi tua, cria uma bolha/espaço, uma cápsula que encho de óleo e deixo escorrer para o chão, toco-lhe com o pé e deixo-me cair.

           

          Sonhei que a minha pele era anti-inflamável e que nunca arderia, assim poderia pegar fogo ao interior do meu corpo mas a minha pele, o meu exterior, manter-se-ia intacto. Peguei num molho de sálvia seca, atada com um fio e com o isqueiro peguei-lhe fogo. Abri a boca e engoli-a. O fogo em contacto com as minhas cordas vocais inflamou e serviu de rastilho para o restante interior do meu corpo.

          Ardia por dentro, deixei de ter terminações nervosas, era só pele e carvão. Tecido e cinzas.

          Um gel que surge por baixo da minha pele mistura-se com o carvão e cria uma tinta preta, uma espécie de petróleo.

          Esse visco preto invade o chão e espalha-se por todo o espaço, estou numa casa sozinha.

          O visco preto arrefece toda a superfície, torna-a gélida. Apenas os metais ficam quentes, sobreaquecem. Uso as maçanetas de metal, das portas, para aquecer as palmas das mãos, assim posso tocar na pele gélida que serve apenas de invólucro de um ex-corpo, de ex-entranhas. Uso os restos do fogo que me queimou para aquecer a pele que me resta.

          Pensava que estava sozinha mas vejo outro corpo naquela sala, é um corpo nu, com um buraco na barriga, um buraco gigante, de onde saem chamas azuis, uma espécie de fogo-fátuo que flutua nos fluidos daquela barriga. Uma labareda ténue, uma combustão de metano. Uma chama como memória de um pântano onde se decompõem animais. Uma espécie de labareda-lama que queima e deixa tudo pegajoso. Uma chama que cresce e que quando toca noutros corpos se transforma em saliva.

          Pego nas cinzas que guardei ao longo dos anos e que trago comigo. Espalho-as uniformemente no chão.

          Com os pés colados ao chão dobro o meu corpo e faço baloiçar a cabeça entre os joelhos e os pés. Tremo e sinto a tinta das tatuagens que tenho nos braços a descolar-se da pele e a entrar no fluxo sanguíneo, sinto a tinta descer pelas veias até à ponta dos dedos e começar a sair pelas unhas. A tinta escorre e encontra a cinza que espalhei no chão.

          A tinta em contacto com a cinza produz uma substância estranha, que não sei descrever, mas produz um gás intenso e ácido que me faz arder os olhos como nenhuma outra substância. Cria uma dor aguda e interna. Esse gás também me faz salivar sem parar, a saliva escorre da minha boca e cola-se à cinza e à tinta, faz derretê-las e forma uma espécie de lava quente. Essa lava sobe-me até aos tornozelos e prende-me ao chão.

          Observo, com os olhos a arder, esta lava que me rodeia e que ocupa cada vez mais espaço.

          Fixo o ponto mais distante que consigo observar e vejo uma pequena chama; lentamente, essa chama ganha espaço e começa a contagiar toda a lava.

          O processo é lento, sei que pode demorar horas ou dias, mas sonho com o momento em que essa chama toque nos meus pés e me faça entrar em combustão, me faça explodir, que cada pedaço do meu corpo se funda com partes desta lava.

          Quero que essa lava solidifique e crie rochas, que essas rochas tenham pedaços de mim e fiquem ali para sempre.

          Que sejam habitadas por pequenos animais, por plantas e fungos.

          Que um dia volte a acontecer o mesmo e que mais corpos se juntem a estas rochas.

           

           

          O texto aqui publicado é um excerto do texto da performance CHE das autoras, apresentada na Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, em junho de 2022.

          Janaína Moraes Residenciar a Palavra Morada

           

           

          Residenciar a palavra morada – prática em con/texto.

          Janaína Moraes

           

          Há três anos, antes de sair de casa, no Brasil, estava a sonhar com as palavras que deixaria para trás. Dias antes da viagem, era comum despertar no meio da noite para anotar palavras que me vinham anunciar a co(n)fusão entre aqui e ali, essa língua e aquela, o Atlântico e o Pacífico.

           

          o des-conhecido habita meu corpo língua, num gosto agridoce das palavras não-ditas. tempos de des-encontro. zonas de tempo. fusos. horários. con-fusos:

           

          lá vai ela, atravessando espaços.

          lá vai ela no topo das coisas.

          lá vai ela sob superfícies.                                                                                      lingu(a)gem)

          superofícios, orifícios.

          lá vai ela de corpo todo.

           

          po(t)e)nte.                                Onde o passado e o futuro se encontram para presente.ar o tempo. Onde o tempo é brecha, presente. E sente. Uma brecha de tempo que ocupa espaços ao atravessar idiomas. Linguagem. Qual é a frente do tempo? Esse tempo fantasiado de espaços entre. Quais são as costas do tempo? E os oceanos? Pacífico. Em con-fusão, Pacifico. Saudade é o Atlântico. Nesse percursos entre “here and there”, tenho colecionado perguntas.

           

          Sendo uma artista migrante em Aotearoa, a terra da longa nuvem branca, ou Nova Zelândia, tenho perguntado o que significa morar quando uma sensação de desorientação toma o primeiro plano? Ser latina, em outras instâncias do Sul Global, me faz tremer a ética e a direcionalidade do meu corpo brasileiro deslocado, e me leva a perguntar: o que é ser uma artista em residência? O que muda quando alguém, como artista, recebe o estado de em residência? O que é uma residência? E, além disso, quem é capaz de conceder tal cargo ou título à pessoa e ao contexto (situação)?

           

          Penso-movo inspirada por arranjos-colagens de fragmentos da poetisa experimentalista Lisa Robertson, em Soft Architecture: a manifesto (1961)[1]: Dentro do imaginário das estruturas suaves (ou moles), estou olhando para tais como arquiteturas que “invertem a história equivocada da profundidade estrutural”, revelando que “o lugar é um acidente posando como política” e dentro de sua “transiência permanente” a noção de espaço pode conter “a densidade do temporário em uma birra de ação”. Eu poderia talvez pegar emprestado as noções de Robertson e pensar em mim como uma coreógrafa suave (ou mole) que, como “arquitetos suaves (ou moles) encaram o meio-termo”.

           

          Estou perguntando: como alguém pode se tornar uma pessoa “des-locada” ao mudar localizações de morada e/ou movendo a localização da morada de suas práticas criativas? Como se pode, por meio do deslocamento, re-relacionar-se com a(s) própria(s) identidade(s) e sentidos de pertencimento (be-longing) através do reconhecimento da alteridade? Podem as residências ser uma forma criativa de manifestar o sentido de (des)localização? Pode a noção de localização ser vivenciada através da perspectiva do tempo, de situações temporais?

           

          Porque residência (artística) é temporária e porque me coloca em relação de cruzamento com “outros”, minha prática visa manifestar, sustentar e fomentar convites para pairar na confusão

          con-fusão, com fusão,

          com junteza

          nublando os sentidos do eu e do outro, aqui e ali.

           

          Como exercitar modos para transformar “residência” em um verbo de ação? O que implicaria o ato de residir? Tenho, então, experimentado uma prática de “residenciar” – uma experimentação radical de habitar, através de deslocamentos e trans-orientações.

          orientações que ocorrem em trânsito.

           

          O território e os devaneios da vontade – residenciar Portugal

           

          Em minha visita-passagem-pouso em Portugal fui apresentada a uma “morada” que é endereço, address, direção. Ouvi que “perceber” é entender, to understand. E everything, as coisas mesmo, são “cenas”. Habitar o estranho familiar dessas palavras me convida a um novo estado de atenção, uma dis-posição à performatividade das palavras.

           

          deslocar

          desarmar

          desalinhar

          posição entre palavra e corpo

           

          Desorientar palavras é reorientar meu corpo em relação ao outro – corpo, território, movimento. Encontro “moradas” para re-pousar, pass-e-ar, comer, apanhar comboios e autocarros, encontrar um estranho a-vir-ser amigo. “Percebo” a viagem como prática em dança, elasticizando as noções de espaço e tempo do acontecimento coreográfico. Dilato meu olhar para a importância que cada pessoa-mundo dá a um acontecimento e me encanto com as “cenas” – a potência estética das coisas.

           

          De algum modo, voltar-me para a viagem “sem planos” é praticar uma dobra na noção do viajante. Entre a corpa turista, que busca nos pontos suas bússolas diretivas, e a corpa forasteira, que, vinda “de fora”, cria fissuras enquanto é fissurada pelo espaço. Encontrar-se em deslumbre, encontrar-se com o tempo de um grupo com o qual acabo de me ajuntar – por convite, sorte, acaso ou parasitagem.

           

          Em uma medida, tenho experimentado uma espécie de re-volta da viagem, uma viagem que volta-se para “o outro” como ponto-nada-fixo de orientação. Sou apresentada aos caminhos, tempos e vínculos de um/a outro/a à minha beira. Atraio-me pelas atrações provavelmente não turísticas e o desejo de permanecer em contra-movimento. Contra-mapeamento, ao encontro dos mapas afetivos, relacionais. Rota-desvio como prática-guia. Paço do Lumiar, Póvoa de Santarém, Bonfim, Vila dos Chãs.

           

          Exercito uma prática – nem sempre fácil – de não ceder à pressão do turismo produtivo. Não sei bem para onde vou até que eu chegue lá. Esse movimento me faz também pensar sobre uma prática de não-produção artística que não se pre-ocupa em produzir, mais do que ocupa-se em “existir com” – os caminhos e seus desvios, as pessoas e suas narrativas, os encontros e seus movimentos. A “lei não dita” do “bom viajar” é desafiada para desordenar outros circuitos de afetos. Pegar autocarros, comboios e caronas para chegar no território da infância de um outro que ainda não conheço; passar dias inteiros dentro da casa de Leonardo; ou, ainda, jantar com Clara e sua família são atividades tão intensas quanto percorrer os palácios de Sintra.

           

          Pensar essa viagem como “residência artística” é questionar o que muda quando decido nomear uma experiência de “residência”. Quando me refiro a residências artísticas não estou falando de oficinas, laboratórios ou processos criativos rotulados de forma extravagante. Reconheço que residências artísticas podem conter inúmeros formatos, atividades e configurações, no entanto, ao nomear uma situação de “residência artística”, algo se trans-forma – em formato e em modo de operação. Para mim, residências artísticas se dão como arranjos de comunidades temporárias para criação; experiências de deslocamento relacional de tempo e espaço em convivência; exercícios artísticos que deixam vestígios, tangíveis ou intangíveis – produtos e/ou processos em contextos de elaborações compartilhadas. O pesquisador em arte e brasileiro Marcos Moraes (2009) propõe que uma residência artística é um conjunto de condições e circunstâncias em que relações com espaço e tempo se desdobram em vias “conviviais, profissionais, educacionais, afetivas e sociais” (p. 10),[2] apontando para possibilidades de (re)configurações relacionais por meio do “morar com” – e, portanto, tomar tempo com, fazer espaço com. Uma condição de deslocamento como um fundamento próprio de tais experiências “em residência”. O deslocamento como uma capacidade de desencadear modos “outros” de percepção, maneiras de experimentar o “extra” do cotidiano (extra-ordinary). As residências artísticas, nesse sentido, seriam contextos de deslocamento como uma capacidade criativa que se dá pelo ato de “viver com”.

           

          Be(com)ing a stranger to this place, I started to break down worlds.

          Be(com)ing a stranger to this language, I started to break down words:

           

          vivendo com

          com vivendo

          con-viver

          con-vida

          con                              con-vidar                    vidar

          ______

          [1] Robertson, Lisa. (1961) Occasional Work and Seven Walks from the Office for Soft Architecture. Astoria: Clear Cut Press, 2003.

           

          [2] Moraes, Marcos José Santos de. Residência artística : ambientes de formação, criação e difusão [doi:10.11606/T.16.2009.tde-29042010-093532]. São Paulo : Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2009. Tese de Doutorado em Projeto, Espaço e Cultura. [acesso 2022-08-10].

          Romain Beltrão Teule Doubler

           

          Em 2020, ele está em residência em Lyon (França) e começa a trabalhar acerca de sua futura peça, Dobra. Na altura, o trabalho ainda se chama Doubler. Ele escreve um texto que iria desaparecer ao longo do processo de criação, um texto a partir do qual ele fez a seguinte proposta:

           

          Uma pessoa num palco, diante de vocês.

          Atrás da pessoa, a projeção de uma paisagem.

          Fundo sonoro de espaço exterior, ouvem-se pássaros, vento, som de passos na relva.

          A paisagem desaparece.

          O som fica.

          A pessoa que está diante de vocês pega o microfone:

           

          (em francês) O som que acompanha a minha voz foi gravado ao longo de um passeio que fiz na ilha de Naoshima.

          Este episódio começa nessa mesma ilha quando, numa noite, saindo do banho público, ele tenta me dar um folheto. Uma pessoa passa ao meu lado na rua e tenta me dar um folheto.

          Eu digo que não com a mão, esta mão que às vezes coloco entre mim e outra pessoa para comunicar que não é o momento de entrar no meu espaço.

          Digo não com a mão e continuo meu caminho. Mas ele grita.

           

          Outra voz  “HOW RUDE”.

           

          Não é muito habitual que alguém grite assim quando recuso um folheto. Então paro, olho para ele para lhe pedir desculpa. O gajo parecia muito chocado com meu gesto. E eu digo: “Sorry,  it was automatic, I didn’t mean to offend… what is it about?” ou algo assim.

          Então ele me contou que estava a fazer uma exposição em sua casa, que eu podia visitar quando quisesse. Peguei o papel e no dia seguinte fui lá.

           

          Não me lembro se tinha realmente vontade de ver o trabalho dele ou se pensei que seria bom me esforçar para conhecer pessoas. Eu tinha ido para o Japão, originalmente, para estar sozinho e chorar no topo de uma montanha. Mas talvez não tivesse viajado até o outro lado do mundo só para chorar sozinho. De qualquer maneira, eu ainda não havia encontrado o caminho que me levaria ao topo de uma montanha. E eu pensava “talvez ele é um pouco bicha”.

           

          A casa dele, que ficava do outro lado da ilha, estava coberta do chão até ao teto – inclusive no chão e no teto – de pinturas que julguei um pouco angustiantes. E ele começou a falar sobre a casa e o trabalho. Depois do terramoto de 11 de março de 2011, ele decidiu que tinha de fazer arte. Não me lembro bem se houve algo existencial que motivou essa decisão, mas, de qualquer forma, suas pinturas me petrificaram de angústia.

           

          A pessoa no palco coloca o microfone na mesa, o som de natureza para, ela olha para vocês e fala sem amplificação.

           

          Antes de continuar, tenho de contar que a decisão de ir para o sul do Japão e não para o norte se deu apenas porque eu não queria passar perto de Fukushima. Quando cheguei na casa de minha amiga Delphine em Tóquio, ela me deu uma informação crucial relativa à central nuclear: seriam necessários mais de 40 anos de obras para resfriar os reatores em fusão e, se houvesse ali um forte terramoto, havia uma boa chance de:

          “que o mundo seja destruído?”, eu perguntei,

          “que o Japão seja apagado do mapa, pelo menos”, ela respondeu.

           

          E como, exatamente uma semana antes de minha partida para Tóquio, uma bomba explodiu no aeroporto de Bruxelas, de onde eu devia partir,

          e como, no ano anterior, eu estava a caminho de Paris quando o jornal Charlie Hebdo foi atacado,

          e como eu estava num avião ao mesmo tempo que houve o acidente da Germanwings,

          eu estava começando a sentir uma grave síndrome de perseguição. Ou seja, depois do relato da Delphine sobre Fukushima, decidi mudar meus planos pensando que seria mais sensato não ir para o norte do Japão, o que me obrigaria a passar ao lado da central – com a sorte que eu estava tendo naqueles idos, se passasse ao lado dela, com certeza haveria um terramoto.

           

           

          A pessoa pega o microfone, o som de natureza recomeça, e fala:

           

          Estou na exposição à frente do pintor, que parece mais jovem do que eu, e ele começa a falar muito sobre Fukushima. Olhando de novo para suas pinturas, concluí que ele devia estar mesmo muito traumatizado. Ele sente que um desastre pode acontecer a qualquer momento. Namazu, o peixe-gato gigante que vive sob o arquipélago do Japão, vai acordar e o resultado será muito pior do que o 11 de março de 2011.

          Ele me contava isso tudo de maneira super distante. Quanto mais ele falava,  pior eu me sentia. Saí da casa e não sei bem o que fiz em seguida, mas lembro que ele morava do lado norte da ilha… e eu não conseguia olhar para a linha do horizonte sem me perguntar se uma nuvem atômica ia chegar por ali.

          Para me acalmar, dei uma grande volta de bicicleta, fui até a praia do sul da ilha para ver um horizonte diferente e fui beber um chá no café mais apaziguante possível. Lucie me ligou, ela estava preparando uma performance na qual se transforma em sereia. Fiquei mais calmo.

          Tudo isso para dizer que não fui para o norte para evitar pensar em Fukushima e acabei me encontrando em uma ilha, muito pequena e obcecada pela possibilidade de uma aniquilação iminente.

           

          Cinco dias depois, cheguei a Kagoshima, a metrópole mais austral do principal arquipélago do país. Pela primeira vez desde o início da minha viagem, me encontro em uma cidade termal. A água que alimenta os banhos públicos é vulcânica. Cheira a enxofre. À noite, vou ao banho público.

           

          Um cão começa a ladrar ao longe. A pessoa que está diante de vocês ignora essa informação sonora e continua.

           

          Estou muito entusiasmado, acho que a experiência vai ajudar a tratar a tosse de que tenho sofrido desde a minha chegada a Tóquio. A água está muito quente, eu não consigo entrar no banho de uma vez.

           

          O cão continuou ladrando, o som se aproximou. A pessoa que está no palco com vocês pára de falar. Ao mesmo tempo, a paisagem reaparece dentro e, no meio dela, tem uma pessoa parada com dois cães à sua frente.

          Na linha do horizonte adivinhamos a presença de outra pessoa, que grita : “Max! Ça suffit ! Dépêche-toi, tu reviens. Allez Max! Max allez! MAX!”

          O primeiro cão vai embora, o segundo fica fixo por um instante, ladra mais uma vez e vai embora. A pessoa que está na colina retoma:

           

          “Eu vou e volto entre o chuveiro frio e o banho quente. Finalmente, consigo imergir meu corpo inteiro. Minha pele queima. Sinto-me zonzo. Isso acontece com bastante frequência quando me esqueço de respirar. Me tranquilizo. Olho ao meu redor. A água está muito agitada. Devo ter entrado no banho como uma baleia, pensei. A água ainda se move muito.”

           

          Enquanto fala, a pessoa da colina se aproxima. A sua voz é muito parecida com a voz da pessoa que está diante de vocês.

           

          “A água no banho de água fria, que um minuto antes era lisa como um espelho, também está se movendo muito. E eu sou o último cliente ainda presente. Percebo que se trata de um terramoto e logo me lembro de todas as instruções que Delphine me deu sobre como agir. Mas não vejo mesa alguma, nenhum arco de porta à minha volta. Decido então que tenho que sair para a rua. Nu. Saio do banho, me viro, vou aos vestiários e lá encontro o penúltimo cliente que estava se vestindo, em silêncio. Aproximo-me dele e não sei se lhe perguntei alguma coisa ou se ele apenas viu minha cara preocupada, mas de qualquer forma ele sorriu para mim e disse “earthquake” enquanto fazia o sinal de OK com a mão. E ele riu.

          OK… pensei que não devia ser muito sério, mas a terra estava ainda tremendo bastante.”

           

          A pessoa que está na colina continua se aproximando. Parece-se muito com a pessoa que está diante de vocês.

           

          Quando saí do banho, a empregada do banho público não me parecia tão serena. Ela me disse que o terramoto tinha sido de magnitude seis e que o epicentro foi em Kumamoto, a 150 km dali.

           

          Enquanto a pessoa da paisagem continua falando, dando mais detalhes sobre o que ocorreu depois do terramoto, a pessoa que está no estúdio diante de vocês ficou parada, de pé, olhando alternadamente para vocês e para o vídeo filmado dois dias antes. Escrevendo este texto e criando esta situação, ele, enfim, eu, estava à procura do duplo. Eu tinha feito a mim mesmo a proposta de trabalhar sobre a figura do duplo, e tinha a intuição que, escrevendo este texto, esta memória de viagem, ia encontrar esse doppelgänger.

          E pensava: “será que esse doppelgänger só existe enquanto eu fujo dele?’.

          Olhei para o público, olhei para o texto – que dobrei e coloquei na minha mala.

           

           

          Joana Levi Rasante

           

          PROCESSOS EM RASANTE

           

          Quando iniciei o processo de criação de Rasante, em junho de 2020, na primeira residência da rede Terra Batida,[1] estava interessada em processos e contextos de exploração e extinção.

          Da exploração, interessavam-me os processos imersivos, onde eu pudesse explorar-me-com-em contextos, e não de fora como quem investiga um objeto ou expropria recursos. Na prática, esse mergulho deu-se pelo exercício de uma escritura sensorial. A partir da experiência de percursos sensórios, que misturam movimentos, impressões, pensamentos e memórias, eu viria a criar uma série de mapas de sensações e palavras, que a seguir tornavam-se textos-poemas, os quais, por sua vez, voltariam a inspirar novos percursos e sensações. Sensoriografia, foi o nome que dei a esse modo de imergir em matérias.

          Através desse processo de imersão, interessava-me perceber que contextos seriam determinantes à extinção, ao desaparecimento de uma espécie animal. Perguntava-me que condições tornavam impossível a continuidade de determinadas formas de vida. E logo vi-me diante de uma experiência que de fato me colocou dentro do problema.

          Estávamos em Castro Verde e fomos apresentadas à realidade de algumas espécies de aves ameaçadas de extinção. A exploração dos solos, a produção intensiva de alimentos, a depauperação da terra, o desmatamento, a falta de diversidade vegetal… Razões dentre outras, tantas e conhecidas, que levam seres vivos a fugir, morrer, desaparecer.

          Nesse contexto de desertificação, tivemos a chance de acompanhar de perto um projeto científico de apoio a espécies de aves ameaçadas. O projeto tinha como objetivo construir ninhos artificiais que permitiam a reprodução dos pássaros, mesmo em ambientes hostis. Porém, para atestar a necessidade da intervenção, o método exige o controle da comunidade em questão, ou seja, contar, pesar, medir, marcar, rastrear, selecionar, testar os indivíduos que, enquanto objetos de estudo, são submetidos compulsoriamente a todo e qualquer processo necessário ao propósito da pesquisa.

          Foi a partir do testemunho dessa experiência que as imbricações, empíricas e subjetivas, entre o racionalismo científico e as relações coloniais e supremacistas tornaram-se a matéria viva onde eu iria imergir no processo de criação da performance. RASANTE nasce, assim, não como texto, mas como fala-corpo que quebra-a-cabeça num puzzle de questões e perspectivas interespécies que exigem deslocamentos e descamações.

           

           

          RASANTE (excerto)

          Joana Levi

           

           

          Eu,    eu

          sou uma gaivota.

          Mas quem diz isso

          não sou eu

          eu enquanto eu

          não existo

          porque eu é quem diz, eu é quem me chama

          … aliás, eu é aquilo que não me chamam.

          Então, quando eu digo, “eu sou uma gaivota”

          não sou eu que digo

          porque eu não sou

          eu.

          Enfim,

          então, a gente podia terminar por aqui, né?

          Porque se eu não sou eu

          porque eu não se chama eu

          porque “uma gaivota” é o que dizem que eu sou, sendo que

          eu, dizem, não sou

          porque eu não penso, dizem

          e se eu não penso

          eu não posso dizer

          que eu sou uma gaivota

          porque se eu não penso, eu não falo, então, não teria como dizer que eu sou uma gaivota

          eu teria como… não dizer.

          Porque esse eu não é eu

          porque esse eu é alguém que diz

          e que pensa e que fala

          e portanto alguém que não diz eu

          que não diz que pensa

          e que portanto não diz

          eu

          não posso ser eu.

           

          Mas eu sou uma gaivota, dizem

          e dizem que eu não penso e que eu não falo, dizem.

          Então, tudo que eu disser aqui não sou eu que tô dizendo, ok?

           

          Mas em sendo uma gaivota, como dizem,

          que não pensa e não fala, como dizem,

          gaivota… gaivota…

          Eu sou, posso ser, dizem,

          bonita

          posso não ser bonita

          posso ser útil

          ou posso ser inútil.

          Então tem assim algumas coisas, dizem, que eu posso ser mesmo sem ser   eu.

          Se eu for bonita, se eu for encaixada aí,

          eu posso ser admirada,

          visualizada, observada,

          posso ser paisagem.

          Já se eu for útil

          posso ser usada,

          testada, provada,

          experimentada, monitorada, torturada…

          Mas, se eu não for nem bonita e nem útil,

          eu provavelmente devo ser inútil

          e, se eu for inútil,

          significa que é indiferente que eu exista ou não.

           

           

          E aí é que as coisas se complicam um pouco

           

          porque, dizem também, que mesmo que eu seja considerada obviamente inútil

          que eu não produza carros

          que eu não produza pensamento

          que eu não produza

          ou que eu só produza o que se explica, dizem, como som

          cantos

          música

          experimental

          hermética

          que ninguém entende muito bem pra quê aquilo.

           

          Ainda assim,

          mesmo que não sirva pra nada essa coisa

          que exista ou não exista gaivota,

          dizem, existiria uma cadeia alimentar

          que faz com que

          eu tenha uma função

          que seria basicamente a função de comer e ser comida,

          comer e ser comida, comer e ser comida, comer e ser comida………………..

           

          E que se for quebrada essa cadeia alimentar…

           

          Quer dizer, imagina, uma experiência:

          tira a gaivota

          tira a gaivota

          que ela não serve pra nada

          (ela suja, ela grita)

          ficou feia, virou praga

          então, tira a gaivota.

           

          O problema é que aí fica um buraco,

          quer dizer, se eu deixo de existir, mesmo sem ser EU

          deixo de comer os peixes que eu comia

          e a águia, que me comia deixa de me comer,

          então, a águia fica passando fome

          e o peixe, uuu, deixa de ser comido

          se multiplica, se reproduz, começa a comer muito

          come todos os moluscos, os moluscos, os moluscos, os moluscos

          que ainda restam

          nos recifes agonizantes

          dos mares escaldados

          come tudo que vê pela frente

          acaba com a comida dos outros peixes que dividiam

          com ele a mesma comida

          mas ele é maior, cresce muito, se reproduz, a gaivota não come ele

          ele…. ppppppppppp

          vira praga.

           

          Então a gaivota não existir é um problema, vira um problema a gaivota não existir.

           

          Porque

          o homem, dizem, né…

          O Homem

          diz:

          existe uma cadeia alimentar

          onde todos os vivos ou quase vivos, os mortos ou quase mortos

          estão presos nessa cadeia

          menos EU, diz:

          porque EU estou no topo

          da cadeia

          quer dizer Ele, O Homem, o EU

          diz:

          você come esse, esse come aquele e EU, que sou EU,

          posso comer todo o mundo.

          Então, O Homem, esse EU que tá no topo e que comanda lá de cima quem pode comer quem,

          diz mais, diz:

          Eu sou imagem e semelhança de Deus (o barbudo, pai de todos os EUs)

          e por isso, diz, quem quiser me comer, ou roubar a minha comida, infelizmente ou felizmente,

          vai ter que ser perseguido, exilado, exterminado etc.

           

          Enfim, essa explicação é bem confusa, porque ele diz: EU (a.k.a. “macho adulto branco no poder”), EU sou imagem e semelhança de Deus, o barbudo, paizão de todos os EUs.

          Mas… não seria o próprio Deus barbudo a imagem e semelhança dEUle,

          macho adulto branco no poder…?

          Enfim… mas isso seria como perguntar quem nasceu primeiro o ovo ou a gaivota…

           

          Então, se é como dizem,

          eu posso ser bonita

          posso não ser bonita

          posso ser útil,

          ou posso ser inútil.

          O que quer dizer que:

          eu posso ser paisagem

          posso ser morta

          posso ser ajudada ou posso ser abusada.

          Ou seja, tem aqueles que querem

          me olhar

          Tem aqueles que querem

          me matar

          e tem aqueles que querem

          me ajudar ou me usar.

          Nada disso fui eu que pedi

          porque

          eu não penso

          não falo, dizem,

          então, não posso ter dito:

          ei,

          me mata

          tô precisando de ajuda

          me usa

          olha pra mim

          eu, provavelmente, não disse nada disso.

          ______

          [1] Terra Batida é uma rede de pessoas, práticas e saberes em disputa com formas de violência ecológica e políticas de abandono, iniciada por Marta Lança e Rita Natálio.

          Clarissa Sacchelli Wild

           

           

          Wild é selvagem. Wild entretanto carrega uma única vogal e uma grafia curta quiçá mais gráfica para designers do que selvagem. Wild abre-se com um W de linhas inclinadas que também poderiam ser dois V’s que se tocam. Wild faz um som que circula na boca. Wild. Selvagem não. Selvagem começa com a letra S. S, a letra da serpente.

           

          Em inglês há wild e savage. Não significam exatamente a mesma coisa, mas poderiam ser sinônimos. Wild tem raiz anglo-saxônica/germânica, e savage, latina/francesa. Selvagem tem também raiz latina. Liga-se a Silva que, nada por acaso, é um sobrenome bastante recorrente no Brasil. E em português dizemos selvagem para savage e wild. Wild e selvagem são palavras que carregam uma história relacionada a violentas narrativas de ordens civilizatórias disseminadas pelo colonialismo. E sendo o português do Brasil minha língua materna, ensinaram-me desde cedo que selvagem poderia se referir a uma qualquer ideia de não-civilizada, ou a práticas sexuais não normativas, ou ainda ser o contrário das coisas ordenadas.

           

          Wild é uma peça de dança estreada em abril de 2022. Mas selvagem não é um tempo antes. Não se orienta para um lugar que imaginamos ter existido nem para onde voltar. Tampouco é uma terra desconhecida. Selvagem aponta para outra epistemologia, ou até uma antiepistemologia. E desconstruir o binário selvagem/civilizada-domesticada não representa esquecer a história associada à palavra, mas ao contrário, trata-se de pensar, nas palavras de Jack Halberstam, na “violência que expulsou [e expulsa] as coisas selvagens do mundo em primeiro lugar”. 1

           

          Rewild é um termo em inglês assinalado para se referir a processos de restauração de ecossistemas considerados destruídos ou degradados. Rewild pode apresentar diferentes traduções para o português, como renaturalização, refaunação ou, ao pé da letra, tornar selvagem outra vez. Rewild, entretanto, arrisca exaltar um entendimento de que existem condições mais naturais que outras, e para as quais devemos retornar. Essa perspectiva carregaria o potencial de perpetuar a dicotomia humano-natureza ou natureza-cultura que, por sua vez, apontaria novamente para histórias de colonialismo e imperialismo que ordenaram espaços propondo essas duas instâncias como separadas a fim de sustentar programas políticos e ideológicos de dominação.

           

          Bewilderment é uma outra palavra em inglês que carrega uma sensação de tornar-se selvagem.2 Be wild, seja selvagem. Tornar-se selvagem, no entanto, se difere de tornar (algo) selvagem outra vez. Bewilderment pode ser traduzido para o português como desnorteamento, desorientação. E, aqui, interessa-me o que surge desse emaranhado entre tornar-se selvagem e fazer perder o norte, não só enquanto direção, mas como lugar de epistemologias dominantes. Desnortear, afinal, implica desorientar. E com desorientar não me refiro ao contrário das coisas ordenadas, e sim a uma possibilidade de perturbar o modo como os corpos (humanos e mais que humanos) são ordenados. Há ordens que existem antes e para além de nós, e as orientações dos nossos corpos são organizadas, não apenas casuais. A percepção indica sempre uma direção, e o que a gente percebe depende da nossa orientação.

           

          Orientar-se seja para cima ou para baixo, de pé ou deitado, modela não só perspectivas, como também modos de operar. Desorientar a retidão da linha vertical, imposta como apropriada aos corpos humanos, seguramente transformaria nossa percepção. Talvez longe da incorporação da verticalidade, a visão humana, por exemplo, perderia sua autoridade dentro da hierarquia dos sentidos das pessoas que veem. A orientação corporal apoiada num ângulo de 90° em relação ao solo aponta para a produção de uma verticalidade eficiente, possivelmente associada a crenças ao redor da racionalidade e até mesmo da capacidade de se enquadrar na categoria de humano. Em contrapartida, uma orientação paralela ao solo poderia evidenciar uma outra angularidade, esperada e também reiteradamente imposta a determinados corpos humanos, sobretudo corpos minorizados, racializados e/ou com mobilidade diversa.3

           

          As danças de baile, oriundas da França do século XIV, constituem um pensamento de dança baseado em corpos absolutamente verticais que, nunca saídos de seus próprios eixos, serviram para estabelecer uma suposta civilidade vinculada a sistemas de controle e poder que disciplinavam como um corpo deveria se portar na vida cortês. Ao passo que experimentações localizadas ainda nesse recorte da chamada história oficial da dança, que desafiaram a verticalidade a partir de uma reorientação da relação dos corpos com a gravidade – como o contato improvisação iniciado por Steve Paxton ou o trabalho de Trisha Brown – abriram espaço para a construção de outras relações de equilíbrio e vulnerabilidade entre corpos.

           

          Perturbar o binômio vertical-horizontal poderia nos apontar para momentos de desorientação capazes de balançar a estabilidade requerida ou imposta por essas direções, respectivamente. Nem todes nós ficamos de pé, porém, ficar de pé, para um corpo humano ereto, emergiu de um processo de inclinação. E se bebês, à medida que crescem, não ficassem de pé, mas inclinades? Ou ainda, e se na chamada Evolução os corpos humanos não tivessem atingido a verticalidade? Talvez não fôssemos humanos como nos reconhecemos hoje.

           

          Inclinar poderia, afinal, ser uma tentativa de desorientar estruturas permanentes e autônomas. É certo, todavia, que há muitas formas de inclinação, e a inclinação carrega também a possibilidade de dominação e submissão (tal como o corpo da reverência subserviente, o “pecador”, ou o corpo que ataca ou é atacado). Importa também distinguir a inclinação como disposição a fazer algo e a inclinação como ação corporificada. Nem sempre as duas ocorrem em simultâneo e, o que me interessa aqui, em virtude da minha prática se localizar no campo da dança, é pensar a inclinação como orientação corporal, movimento e ação do corpo. Em todos os casos, diferente da retidão da postura vertical, a inclinação enfraquece nossa estabilidade, reconhecendo mais nossa interdependência que autonomia.

           

          Wild, a peça de dança estreada em abril de 2022, não surgiu intitulada como Wild nem partiu da inclinação como premissa. Manifestou-se da vontade de pensar que: se a dança frequentemente se materializa com e para outras pessoas e, se geralmente aprendemos a dançar olhando ou dançando com outras pessoas, há um incontestável ato de transmissão na dança capaz de trazer pessoas em relação. Reconhecendo, no entanto, que nem toda dança garante uma relação de interdependência, considerei aproximar conceitos de cuidado também implicados com ideias ao redor dessa noção, para, assim, imaginar uma prática capaz de trazer pessoas (e mais que pessoas) em relação. Ao pensar através do cuidado, não interessa apontar para a questão moral de como cuidamos mais ou melhor, ou ainda entrar nos imperativos contemporâneos do chamado autocuidado, mas sim se perguntar o que acontece aos nossos corpos, e ao labor da dança, quando prestamos atenção a como cuidamos. Ao observar os corpos humanos que cuidam – tal como pessoas que acompanham crianças ou doentes, ou aquelas em atividade em uma horta – há, em geral, um deslocamento do centro de seus corpos em direção ao outro corpo com o qual se relacionam. É a partir dessa perspectiva que a inclinação, como orientação corporal, despontou como uma abordagem coreográfica, cujo interesse não esteve na tentativa de extinguir a verticalidade, mas sim desfazer o ponto de vista no qual a verticalidade, e suas relações com estabilidade, linearidade e autonomia, fazem sentido.

           

          Imagine uma dança social em trio, uma espécie de dança de salão para ajuntamentos de pessoas (e talvez coisas) que se movem sempre fora de seus eixos, em suporte mútuo, sem colapsarem. Imagine que a relação entre os corpos (que dançam e/ou observam) nunca se dá de modo simétrico, mas espera por reciprocidade. A distância entre os corpos requer ser (re)negociada a cada movimento, e a proximidade não garante maior suporte. Antecipar um contato pode impedir que um corpo saia de seu eixo, ao passo que tardar pode deixá-lo cair. Ao fim, imagino que toda desorientação envolva contato. Um contato, porém, que não segura nada no lugar, mas que talvez fabrique corpo, que agora penso não como fisiologia ou anatomia, e sim como um tecido no qual não há separação entre o corporal e o social. Toda desorientação é também uma desorientação espacial e temporal.

           

          A peça Selvagem (Wild) foi feita em companhia de Carolina Callegaro, Danielli Mendes, Laura Salerno, Luisa Puterman, Miguel Caldas e Renan Marcondes, e com a colaboração de Anne Kersting, Niklaus Bein e Thiago Granato.

           

          ___

          1. Jack Halberstam, Wild things: the disorder of desire. Durham e Londres: Duke University Press, 2020. [Tradução livre da autora].
          2. Ibid.
          3. Ver Kemi Adeyemi, “Beyond 90°: The Angularities of Black/Queer/Women/Lean”. Women & Performance: A Journal of Feminist Theory, vol. 29, no. 1, 2019, pp. 9-24.

          Entrevista Iluminem Tudo o que Vos Interessar

           

          Beverly Emmons começou a fazer desenho de luz na década de 1960, com Merce Cunningham, e tornou-se uma das artistas de iluminação de referência da sua geração, lado a lado com os pós-modernos da dança como Lucinda Childs ou Trisha Brown, mas também com Martha Graham, Alvin Ailey,  Bill T. Jones e não só. Emmons trabalhou extensivamente na Broadway e com o encenador Bob Wilson, com quem iluminou Einstein on the Beach. Esta entrevista, realizada na manhã gelada de 8 de janeiro de 2022, numa esplanada em Brooklyn, teve como ponto de partida a digressão da Merce Cunningham & Dance Company a Portugal em 1966, na qual Emmons assumiu o papel de diretora de cena e desenhadora de luz. A conversa salta no tempo e nas memórias enquanto sobressaem diferentes ideias de design, o papel do desenhador de luz no diálogo com coreógrafos e encenadores e a história do design à luz da sua emancipação enquanto prática profissional.

           

           

          João dos Santos Martins: Uma das pessoas da equipa técnica que vos assistiu na digressão de Cunningham em Portugal, em 1966, foi Orlando Worm.

          Beverly Emmons: Eu não me lembro do nome dele. Lembro-me do homem que coordenava. Era entusiasmado e alegre.

          J: Ele era chamado eletricista, na altura, mas tornou-se desenhador de luz do Ballet Gulbenkian. Essa profissão não existia antes e ele terá sido um dos pioneiros.

          B: A pessoa da iluminação nas grandes casas de ópera é o responsável pela equipa da eletricidade, que pode ou não ter talentos de desenho. Há uma grande diferença e é compreensível em relação ao teatro comercial. Quando alugamos um teatro na Broadway, temos cadeiras, uma cortina, paredes e algum tipo de sistema de suspensão. Tudo o resto tem de ser trazido, até as mesas de luz. Portanto, entramos e trazemos as coisas de que precisamos para o nosso espetáculo. E esse espetáculo vai continuar em cena tanto quanto conseguirem vender bilhetes. Trinta anos para o Fantasma da Ópera! A única coisa que têm de fazer é a manutenção, pôr algo novo ou renovar o filtro de cor. Agora é mais complicado, por causa dessas luzes…

          J: As luzes LED?

          B: Sim. Na Europa, há uma tradição chamada repertório rolante: hoje é esta ópera, amanhã é outra, e à tarde ensaiam uma terceira, por isso, tem de se refazer as luzes. Um desenhador é limitado no que consegue fazer dependendo de quanta ajuda tem. Isso tem limitado a ideia de iluminação ao que é conveniente para o espetáculo. Nós fazemos o mesmo, mas só na Metropolitan Opera. Mais ninguém faz essa coisa de “mudar todos os dias”. Já não nos podemos dar ao luxo de fazer isso.

          J: É demasiado caro…

          B: Até aos anos quarenta, as pessoas ainda trabalhavam assim na Europa, tal como nós costumamos trabalhar. Nos anos sessenta, quando estava na faculdade, passava o verão no American Dance Festival e conheci um pouco a Jean Rosenthal e o Tom Skelton. Todos os modernos passaram por lá: a companhia Alvin Ailey, o Paul Taylor, a Martha Graham passava todos os verões. Já viu a companhia Alvin Ailey?

          J: Nunca vi ao vivo.

          B: Se considerarmos um bailado como Revelations, que foi coreografado em 1958, e iluminado durante os anos sessenta, essa luz tem de ser a mesma e eles têm-se comprometido com isso. É impraticavelmente prático. Eles não querem gastar dinheiro a contratar um desenhador para o voltar a iluminar. Por isso, todos os bailados no repertório da companhia têm de trabalhar com essas cores e esse mapa de luz. Hoje em dia é mais flexível, mas isso é uma conversa para a próxima geração. O que quero dizer com isto é que também está a ver ideias sobre iluminação que se originaram nos anos sessenta. Em contraste com isso, o Merce Cunningham odiava cor.

          J: Então não usava cor nas suas peças?

          B: Poderia haver alguma cor, mas manuseada de uma certa forma.

          J: Quando é que começou a colaborar com Merce Cunningham?

          B: Eu fui contratada como desenhadora de luz para a digressão de 1965, quando tinha 21 anos. Estava no meu último ano de faculdade. A companhia tinha feito uma digressão internacional em 1964 e o Robert Rauschenberg, que tinha circulado com o Merce durante dez anos e tinha articulado algumas das suas ideias de iluminação, tinha acabado de ganhar o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, por isso, já não lhe fazia muito sentido continuar.

          J: A sua carreira estava prestes a explodir. Então, foi substituí-lo?

          B: Ele apenas inventava coisas. Eles nunca faziam um ensaio com luzes sequer. Mesmo quando eu já estava lá, eles não faziam ensaios gerais com luzes.

          J: Uma das coisas que mais me impressionou no vosso calendário de digressão em Portugal foi que não havia pausas entre espetáculos e cidades. Um dia é Lisboa, no dia seguinte é Coimbra, no outro é Porto. Viajar de comboio até Coimbra demorava umas três a quatro horas. Como é que conseguiam fazer isso?

          B: Bom, a equipa técnica ia à frente. Entenderam aquilo de que eu precisava e providenciavam-no. Provavelmente tinham equipamento de iluminação alugado quando estavam a viajar.

          J: Até porque os teatros não estavam bem equipados. O teatro onde dançaram primeiro em Lisboa, o Tivoli, era o mais bem equipado em Portugal na altura.

          B: Nós costumávamos enviar uns questionários que eram devolvidos com informação técnica. Nunca tinham nada.

          J: Assim, saberiam o que levar.

          B: A Fundação Gulbenkian foi ótima a organizar isso. Em Coimbra havia uma antiga mesa de luz inglesa, diabólica, uma pessoa torturava-se com aquela porcaria.

          J: E porquê?

          B: Não sei quão à vontade é que se sente com mesas de luz, esta era pré-computorizada. Era o que chamamos uma mesa pré-definida de dois canais: a lista branca de dimmers e a verde. Na parte de cima havia um interruptor, e podia-se mudar para as luzes que se quisesse. Tinha ainda um dimmer que funcionava entre as duas listas, a luz podia estar na coisa branca ou na verde ou a meio caminho entre ambas. Montava-se o que era preciso e ligava-se, mas depois, para apagar, tinha de se trocar de uma lista para a outra. Lembro-me de uma pessoa que trabalhava com essas mesas em Inglaterra e que dizia que tinham de preparar as deixas de luz de manhã e deixar os eletricistas sozinhos a tarde toda para que descobrissem como o fazer, era complicadíssimo.

          J: Voltando às ideias de design, o que tem Jean Rosenthal que ver com isso?

          B: Jean Rosenthal foi diretora de cena nos anos 1930, com encenadores muito famosos como Orson Welles. Muitas vezes a iluminação era feita da mesma maneira que na Europa, em que o encenador está à frente, talvez tenha o seu amigo ao lado, o cenógrafo, e dizem “agora queremos que isto seja azul”, e o eletricista no palco fazia. A situação que certamente aconteceu mais do que uma vez foi que, na qualidade de diretora de cena, ela diria: “Bem, amanhã temos de fazer 25 deixas.” Chegamos de manhã, sentamo-nos, diz-se isto e concordamos, e depois o diretor pergunta ao eletricista: “Isto é o único azul que têm?” E o eletricista diz: “É a única merda de azul que tenho!” E, de um momento para o outro, o teu plano foi ao ar. Agora vão todos discutir uns com os outros. A atitude da Jean foi: “Talvez alguém com um ponto de vista artístico pudesse ter uma conversa, antes de entrarmos no teatro, com o encenador e o cenógrafo e depois arranjar cores que eles gostariam de ver. E ter algumas sugestões para o eletricista sobre onde colocar as coisas.” Esse é o desenhador de luz. E demorou até ao início dos anos 1940 para o conseguir. Houve ainda um homem, chamado Abe Feder, que insistiu em fazê-lo. Ele foi a primeira pessoa a receber crédito como desenhador de luz. Penso que o Bob Wilson também terá sido responsável por isso na Europa, por ser tão impossível. Os tipos locais não querem lidar com ele.

          J: Imagino que teria sido difícil fazer as luzes dos seus espetáculos sem um desenhador. Também desenhou as luzes para Einstein on the Beach?

          B: Não. O Bob Wilson diz o que quer ver e não deixa passar um minuto até ter o que quer. Por isso, é preciso habituar-se ao tipo de coisas que ele quer e à linguagem com que as quer. Esse tipo de iluminação é extremamente difícil de fazer, mas também é preciso saber o que ele quer dizer. Por exemplo, ele grita: “Quero uma linha de luz na cara deles. Quero um feixe de luz!” Então começo a imaginar: “Deixa cá ver: pego numa luz e faço uma pequena linha.” Não, não, não, não. Ele só quer uma luz brilhante de um lado e nada do outro. Ele não o pede bem. Então, outras pessoas tentam fazer o que seria de loucos, quando na verdade é muito simples.

          J: Disse que ainda estava a estudar quando foi para digressão com Cunningham em 1965.

          B: Eu estava numa universidade muito liberal chamada Sarah Lawrence, no departamento de dança.

          J: Significa que também estava a estudar dança?

          B: Comecei por ser bailarina. Depois, ao ir ao American Dance Festival no verão, para ter aulas de dança, comecei a trabalhar nos bastidores e descobri que, em última análise, isso era muito mais interessante do que ser bailarina. Eu via todas aquelas companhias passarem por lá e pensava “vou ter de ser melhor do que algumas dessas miúdas ou não vou arranjar emprego”. Então, foi daí que veio. A universidade foi suficientemente flexível para que quando lhes disse que poderia ter de faltar a algumas aulas porque ia em digressão com Merce Cunningham, respondessem: “Merce Cunningham? Não há problema.”

          J: Conheceu a companhia quando estava no American Dance Festival?

          B: Sim, eles vieram umas quantas vezes e fiquei com uma ideia do seu trabalho. Mas, então, Jean Rosenthal. Duas coisas importantes: ela era diretora de cena da Martha Graham. E a Martha Graham dava às mulheres permissão para seguirem o seu caminho. Se queres alguma coisa, vai em frente. Ela dizia aos bailarinos: “Não me mostrem um movimento. Eu roubo-o.” “Se queres alguma coisa, agarra-a, agarra-a com energia.” Há muitas mulheres que ela apoiou… as pessoas não se apercebem disso. Basicamente, a Jean teve permissão para olhar para si própria como desenhadora de luz no contexto do trabalho da Martha Graham. A outra coisa que é importante sobre a Jean, algo acerca do qual era delicado falar até recentemente: ela era lésbica. O que significa que não havia conversa de sedução à volta dela. Toda aquela forma como as mulheres eram educadas para serem bonitas, namoradeiras e todo esse tipo de coisas: não, não, era tudo trabalho. “Bom dia, Sr. tal e tal, prazer em vê-lo novamente, como está a sua família, e agora podemos por favor tirar a escada e ir até ali?” Isso retirava pressão às equipas para não serem sexualmente competitivas. Deixava-os sentirem que só estávamos ali para pendurar luzes, para fazer um espetáculo. E essa é uma ideia essencial que libertou ambos.

          J: Portanto, existe uma relação entre género e sexualidade que desempenhou um papel importante numa forma de emancipação da profissão?

          B: De género, absolutamente. E muitas das mulheres que vingaram depois dela trabalharam no seu escritório ou como assistentes. Ela lançou as bases para todas as mulheres com quem ainda trabalhamos. E há muito poucas histórias de equipas técnicas a fazerem comentários inapropriados a mulheres.

          J: Fiquei surpreendido por saber que acompanhou a digressão de Cunningham a Portugal em 1966 porque, nessa época, não apenas a situação para as mulheres era extremamente restrita socialmente, mas também pela situação política do país. Os anos 60 foram o período mais duro da ditadura quando a guerra colonial se intensificava, assim como a censura e a repressão tinham os seus ápices.

          B: Como é que o Merce escapou a tudo isso?

          J: A minha suposição é que a abstração permitiu um certo grau de liberdade. Quando vieram para Portugal, tinham conhecimento da situação política do país?

          B: Não. Chegámos muito tarde. Estivemos uma semana em Estocolmo e foi apenas quando estávamos em Paris que descobrimos que não íamos para casa, que íamos para Portugal. Quando me encontrei pela primeira vez com o Merce, em janeiro do meu último ano de faculdade, ele disse-me: “A luz para o meu trabalho deve ser como o dia. E a forma como uma árvore parece diferente do lado de fora da janela é porque o Sol se moveu e não porque algo emocional aconteceu no mundo.” Ele não queria que a luz refletisse ideias emocionais. Ele nunca nos diria se houvesse uma história na sua cabeça sobre o bailado. Quando convidava compositores, dizia: “Estou a pensar num bailado de vinte minutos.” Era tudo o que dizia. E ninguém ouvia a música até ao dia espetáculo. A outra coisa que ele dizia, que é relevante para a iluminação, era: “Se tenho aqui os meus bailarinos todos juntos, não quero que apaguem o resto das luzes porque isso é dizer ao público que vamos ficar lá tempo suficiente para que valha a pena a mudança. Além disso, quando eu deixar o grupo, não têm de trazer as luzes para a frente a dizer às pessoas para onde vou. Isso não é da vossa conta, isso é da minha conta!”

          J: O facto de o ponto de encontro entre música, luz e dança ser desconhecido até ao dia da apresentação é interessante do ponto de vista da censura, já que a censura não teria estratégias para lidar com esse nível de aleatoriedade. Quando começou a trabalhar, assumiu alguns dos projetos que Rauschenberg tinha feito? Por exemplo, o espetáculo Winterbranch tinha desenho de luz de Rauschenberg.

          B: Desenho é uma palavra complicada, porque envolve papelada e decisões que se estabelecem. Nunca falei com o Bob Rauschenberg sobre Winterbranch. Foi-me dito pelo Merce quais eram as ideias do Bob e qual tinha sido a sua experiência, e ouvi dos dançarinos o quão escuro era e como as luzes lhes batiam nos olhos. Era completamente improvisado, nunca era igual. Assim, com base nisso, o desenho que eu fiz formalizava essas ideias.

          J: Como é que isso se sucedeu?

          E: Por articulação. Enquanto o Merce dizia que o seu bailado deveria ser como o dia, o Bob disse que deveria ser como a noite. Não a noite bonitinha com a luz da Lua. Não, deveria ser como a noite moderna: escura com fontes de luz elétrica. Faróis de carro a varrerem a paisagem, conduzir no escuro e, de repente, aparecer um enorme centro comercial e depois voltar ao escuro. Coisas acolá, como um parque de estacionamento com luz branca fria. Ou como quando os olhos ficam habituados ao escuro e se se apercebe que é a Lua que está a iluminar a parede do quarto, ou quando alguém tem uma luz de presença que faz uma sombra engraçada. Eram essas o tipo de imagens. E como é que se faz isso no teatro? Para começar, não se usa cor. Apenas branco. Depois, todas as pernas e bambolinas desaparecem, por isso é só maquinaria. A parede de fundo é o que lá estiver. Se houver algum cenário bonitinho, vira-se ao contrário. Lá no topo, estariam luzes de trabalho de halogéneo que se acenderiam. Só essas, por si só. E depois ligam-se as outras a 20% da intensidade. Assim, fica um cinzento aplanado sobre todo o espaço, e os bailarinos tornam-se figuras sombrias que mal se conseguem ver. Sobre um cavalete coloca-se um projetor PAR de cada lado. Ficava fora de vista do público e dizíamos ao eletricista para o mover pelo palco quando os projetores se acendessem.

          J: Ah, eram os técnicos que os movimentavam!

          B: Movimentavam-nos como se fossem faróis de automóvel. Podia perguntar-se: “O que acontece se acendermos as luzes da teia na direção das cordas ali? E se abrirmos aquela porta do corredor?” Uma das coisas que eu costumava fazer era pegar num projetor de ciclorama qualquer, pô-lo na teia, acima de tudo o que está pendurado, com um técnico ao lado, e dizia-lhe: “Sempre que a luz se acender, mova o projetor.” Assim, de repente, viam-se enormes sombras a moverem-se pelo palco.

          J: Na verdade, era um trabalho coreográfico com as luzes.

          B: Sim, exceto que a ideia era manter uma sensação de aleatoriedade. Os bailarinos não eram aleatórios, estavam sempre no mesmo lugar no mesmo momento. Mas nós só fazíamos as luzes quando já estávamos em digressão. Era muito perigoso e, felizmente, ninguém se magoou. Eles saltavam, a luz incidia-lhes nos olhos e não conseguiam ver onde caíam.

          J: Curiosamente, era uma peça com muito cair e levantar, algo pouco comum para Cunningham.

          B: E saltar e arrastar. Eu fui convidada por uma companhia chamada The LA Dance Project, eles queriam remontar o Winterbranch. O que é que eu fiz? Antes de mais, era uma companhia de repertório, não era “dançar para o papá”, era uma companhia sindicalizada. Se alguém se magoasse, haveria um processo judicial imediato. Por isso, não podíamos fazer a mesma coisa. Hoje em dia, com a facilidade das mesas de luz no computador, eu podia fazer duas listas de deixas. Na verdade, eu tive uma sessão de escrita de deixas antecipada, sentada na cozinha, que foi do tipo: “Vamos fazer algo aos dois minutos e trinta e dois segundos, vamos fazer algo aos quatro minutos e sessenta segundos.” Fiz apenas uma lista de tempos. Depois disse à equipa: “Agora escolham vocês a minutagem.”

          J: Assim também contava com a participação da equipa.

          B: Sim. Para estas deixas, eu escrevia a forma como queria que o palco ficasse, que era basicamente muito escuro, mas diferente. A mesa de luz memorizava as primeiras que escrevi como “lista de deixas número 2” e depois eu improvisava durante o ensaio geral e isso seria registado como “lista de deixas número 1”. Estas duas eram ativadas simultaneamente ao longo do bailado. Isso significa que os bailarinos experienciavam a luz no ensaio geral e depois no espetáculo seria igual. O público era novo, pensaria que é improvisado, e eu fiz a companhia prometer que nos lugares seguintes onde fossem seria sempre diferente. Também dei ao eletricista de cada lado do palco uma lanterna e disse-lhes: “Iluminem tudo o que vos interessar.”

          J: Eu tinha curiosidade sobre Variations V, uma peça que também apresentaram em Lisboa, na qual havia muita parafernália em cena, e onde a iluminação era feita com projetores de slides e de filme…

          B: Isto foi em 1966, a ideia da peça é que a dança produzisse a música e o cenário fosse produzido pela dança. Havia varas de alumínio em suportes de madeira colocadas à volta do espaço e o Merce tinha coreografado à volta destes objetos que se ligavam a uma máquina que, com base em sinais elétricos de células theremin, podiam dizer quando um objeto físico estava mais perto ou mais longe.

          J: Eu li que nem sempre funcionavam.

          B: Isso é outra história. Os sinais iam para o fosso da orquestra onde estava a máquina e havia dez canais de som a tocarem diferentes tipos de coisas à volta do auditório. A ideia para a projeção era algo que agora é possível mas que não conseguíamos fazer naquela altura. O Merce queria câmaras a filmarem a dança com projeção simultânea nos ecrãs. O Stan VanDerBeek acabou por vir ao ensaio filmar partes da dança que foram depois projetadas em ecrãs colocados à volta do palco.

          J: Que tipo de imagens eram projetadas?

          B: Sempre apenas os bailarinos. Há uma história divertida sobre um filme que foi feito a partir de Variations V em Hamburgo. Eles filmaram, vimos o filme, e depois o Merce e o John levaram o realizador para um lado e disseram: “Isto está tudo muito bem, mas podiam tentar à nossa maneira uma vez?” Disseram-lhe: “Quando tem uma câmara frontal que apanha todo o espaço, há sempre o equipamento técnico, pessoas a despedaçarem uma planta com som ao vivo e há dança a decorrer. Para onde levaria os outros operadores de câmara? Mande-os filmarem qualquer coisa que lhes interessar. O que faz como diretor é decidir quando quer a câmara 1, escolher a minutagem, câmara 2, 3, 4 e assim por diante. Atire uma moeda ao ar. Depois, quando montar, selecione os planos dessa forma.” Foi surpreendentemente melhor.

          J: A filósofa Maria Filomena Molder diz ter sido convidada por Carolyn Brown a passar os slides durante a apresentação de Variations V em Lisboa. Esses slides também iluminavam os bailarinos?

          B: Acontecia por acaso. Se o projetor de slides estivesse no chão, quando eles o atravessassem interferiam com ele.

          J: Para Orlando Worm essa foi umas das experiências mais marcantes. A ideia de que a iluminação era feita com projetores. No entanto, é curioso que, uma vez mais, era resultado de algo aleatório. Havia também uma outra peça para a qual fez a cenografia, e não apenas as luzes.

          B: Ah, sim, chama-se Place. Foi a primeira peça que o Merce fez sem o Bob, por isso não sabia o que fazer. Fizemo-la no sul de França, na Gallery Fondation Maeght, em Saint-Paul de Vence. Há um momento no fundo da cena em que o Merce olha para bailarinos que se movem à sua frente, e ele perguntou-me: “Podes construir alguma coisa que, se eu fizer algo pequeno aqui, algo grande vai acontecer ali”? Fiz-lhe duas cúpulas geodésicas de plástico com triângulos colados para que fosse fácil de transportar, com um transformador e uma lâmpada especial que já não se consegue arranjar. Era um filamento muito pequeno e brilhante que fazia com que saísse um enorme salpico de luz se se deixasse um dos triângulos abertos. Era uma peça tão emotiva. Ele estava sozinho, começava no palco vazio, a dançar. Quando voltei a ver a peça mais tarde pensei: “Esta é a peça sobre o Bob já não estar lá.” Havia uns bailarinos que passavam e atiravam as mulheres, era como um centro comercial. Então decidi que as mulheres deviam parecer tomates no supermercado e usar vestidos de plástico. Não sabia o que fazer para a cenografia até estarmos a passear nos Champs-Élysées e, à porta do teatro, havia lixo para ser levado e havia uma série de caixas de fruta de madeira. Pensei: “É este o cenário.” Trouxemo-las para dentro do teatro, pendurámo-las em cordas no fundo da cena como uma vedação. Depois pus papel de jornal a esvoaçar para ser sempre diferente. Era em frente a essa “vedação” que o Merce arrastava as cúpulas.

          J: Tem alguma memória das reações do público em Portugal? Eu li que, na primeira noite em Lisboa, houve um sobressalto no público com pessoas a aplaudirem e outras a patearem.

          B: Era comum as pessoas odiarem as coisas do Merce. Quando atuaram pela primeira vez em Paris, em 1960, foram atirados ovos e tomates. Os vendedores de fruta ouviam falar de um mau espetáculo e apareciam lá para vender os podres no intervalo. Paris era boa nisso. A propósito, houve uma mulher que foi instrumental para toda a dança norte-americana e para o Bob Wilson na Europa. O nome dela era Bénédicte Pesle. Ela era prima da família Menil, uma família aristocrática francesa que se mudou para Houston antes da Segunda Guerra Mundial. Essa família é proprietária da patente do furo para cada poço de petróleo que é extraído. O nome da empresa é Schlumberger. A Bénédicte era uma prima que não tinha montes de dinheiro. Obviamente, tinha uma pensão da família, mas ficava sem fundos se levasse demasiadas companhias de dança a jantar. Ela tinha conhecido o Merce e o John em 1949 na sua primeira viagem a França. Ela dirigia uma galeria na margem esquerda do Sena, a Galeria Iolas, com artistas como Niki de Saint Phalle, Jean Tinguely e surrealistas…. O Merce e o John voltaram depois para o Festival d’Automne. Quando eu fui com eles, em 1965, chegámos a Paris uns dias antes e a Bénédicte fez com que fossemos convidados – o balletto americano, como eles diziam – para vermos o recém-renovado Théâtre de la Reine, em Versalhes. Fomos depois convidados para almoçar pelo homem encarregado da renovação de Versalhes. Durante o almoço, eu disse à Bénédicte: “Ele não faz a mínima ideia do tipo de arte que o Merce e o John fazem”, e ela disse: “Eu sei, querida, mas desta forma, quando ele for ver o espetáculo amanhã à noite, já não poderá criticar porque almoçou com vocês.” Ela preparou tudo para que ele não pudesse falar mal, e era isso que ela fazia por todos. Ela conseguiu que Einstein on the Beach fosse pago pelo governo francês e pelo governo italiano, em 1976. A Bénédicte conseguiu todas essas coisas, também para a Lucinda Childs, e abriu uma pequena agência chamada ArtService que representava essas companhias.

          J: Voltando à vossa digressão em Portugal, Carolyn Brown escreveu que vocês se apresentaram sempre em salas de cinema e que tinham de esperar que os filmes acabassem até quase à hora do espetáculo antes de poderem ir para o palco.

          B: Sim, era uma maluquice e a equipa que viajava antes de nós fazia o que podia. Nós só chegávamos, descarregávamos os figurinos e, provavelmente, eu fazia as deixas de luz à medida que o espetáculo ia avançando, porque não tínhamos tempo para fazer quaisquer gravações.

          J: Então, a sua participação também era “ao vivo”?

          B: Eu acho que uma diretora de cena é uma performer, uma desenhadora de luz nem tanto, mas eu era ambas.

          J: Também fazia a direção de cena?

          B: Não havia mais ninguém, era só eu. Eu digo sempre que aquilo a que chamamos burocracia metastiza-se como um cancro. Em 1979, estava a viver em Massachusetts, a companhia Cunningham estava em digressão por lá e dei uma festa em minha casa. Nessa altura, os bailarinos já eram todos novos e não me conheciam. Eu ouvi um deles perguntar: “Quem é aquela?” E responderam “Ah, ela costumava fazer o trabalho do Harry, da Sally…” Havia agora cinco ou seis empregados a fazer o que eu fazia sozinha. Até muito tarde nem tivemos um gestor, eles não tinham dinheiro para isso. A companhia do Merce foi a primeira nos EUA a ser denominada “sem fins lucrativos”, e isso porque as pessoas que gostavam do seu trabalho eram pessoas que gostavam de museus. Por cá, o teatro sempre foi um empreendimento comercial, enquanto aos museus as pessoas ricas podiam doar e obter uma dedução fiscal. As pessoas que gostavam do trabalho do Merce eram suficientemente poderosas para pressionarem o governo para que esses grupos fossem considerados sem fins lucrativos, e para que o governo também os pudesse apoiar. Até então não havia apoio do governo. A mulher que estava a ajudar era a Judith Blinken, e o filho dela é agora secretário de Estado. Era esse o tipo de pessoas que apoiavam o trabalho do Merce. Porque podia-se ir a um museu e olhar para uma obra e não esperar que contasse uma história.

          J: Quando trabalhava com a companhia, tinha liberdade para montar as luzes como queria, da mesma forma que os compositores ou os artistas visuais? Às vezes sentia-se perdida?

          B: O Merce nunca vinha olhar para as luzes. Sentir-se perdido é algo que acontece.

          J: Porque era muito jovem na altura…

          B: Eu era muito nova mas tinha trabalhado com o Tom Skelton. Tinha feito luz para espetáculos de dança na escola. Com o Tom Skelton e o mapa de luz que fazíamos no American Dance Festival, podíamos acomodar diferentes companhias. Eu sabia o que deveria ser um desenho de luz para dança, e era isso que eu fazia com base no equipamento disponível: luzes contra, luzes laterais, luzes picadas. Depois desenvolvia uma ideia para cada peça. Mas levei algum tempo a perceber o trabalho do Merce. A primeira coisa que fiz, o Merce disse que estava bem. Foi uma peça chamada Suite for Five.

          J: Que também apresentaram em Lisboa. Supostamente, essa peça foi-se compondo ao longo dos anos. É uma colagem de solos e duetos que já tinham sido feitos.

          B: Sim, eu oiço dizer isso agora, nunca ouvi isso quando lá estava. Durante algum tempo, muitos anos depois, nos anos 90, eu fui diretora artística do departamento de educação do Lincoln Center e nós enviámos o Suite for Five para as escolas. Eu estava na posição de ensinar os professores, eles vinham ver e diziam: “Então, como é que olhamos para isto?” Enquanto os bailarinos dançavam, eu falava com os professores. Dizia-lhes: “Procurem as linhas horizontais”, “reparem como ela avança e há um ritmo”, “agora olhem para ali”. Basicamente, só lhes dizia o que procurar. O Merce ter-me-ia matado, mas eu não estava a dar significado a nada. De repente, perceberam e até acharam engraçado. Claro que ficaram todos irritados com a música do John Cage. Eles tinham de tirar notas, e alguém escreveu, em julho: “Estava tanto calor e tínhamos de lidar com esta coisa de Cunningham e uma música pavorosa.” Eu estava a ir para casa, estava exausta, saí do autocarro, estava em frente ao meu apartamento, as janelas estavam todas abertas, toda a gente tinha ligado um posto de rádio ou um programa de televisão diferente e, de repente, apercebi-me, estava num John Cage.

          J: É curioso porque, nos anos 1960, não havia muita dança em Portugal, mas a cena musical era forte. Acho que Cunningham só veio a Portugal graças à visibilidade de Cage. Na imprensa, os críticos falam pouco sobre a dança, que parecem gostar e admirar, mas muito sobre a música, sobre a qual apenas reclamam. Os elementos não combinam nem correspondem e todos odeiam que assim seja.

          B: Nos anos 1940, o John escreveu: “Porque é que a nota seguinte deve ser escolhida pelas minhas emoções?”, “não há outra maneira de escolher a próxima nota?”

           

          Entrevista transcrita e traduzida do original em inglês por Inês Ramos e José Gil, revista e editada por João dos Santos Martins.

          Rosa Paula Rocha Pinto “Pela dança Portuguesa” na Ilustração Portuguesa (1921 e 1922)

           

          Os Bailados Portugueses “Verde-Gaio” (BPVG), criados em 1940 no contexto da Exposição do Mundo Português, com a figura de António Ferro como seu principal mentor, em estreita proximidade com o bailarino e coreógrafo Francis Graça, e com a colaboração de artistas plásticos como José Barbosa, Maria Keil, Mily Possoz ou Paulo Ferreira, e compositores como Frederico de Freitas, Ruy Coelho, Armando José Fernandes e Jorge Croner de Vasconcelos, são um projecto antigo destes protagonistas.

          António Ferro que, nas décadas de 1910 e 1920, teve um percurso de profundo interesse e fascínio pela companhia de Diaghilev (cujas apresentações lisboetas de 1917 marcaram toda uma geração de intelectuais); pelo modernismo literário (tendo chegado inclusivamente a ser director da revista Orpheu); pela sua própria observação da contemporaneidade que metaforizou em textos como Madame Ballet Russe ou A Idade do Jazz Band, ao mesmo tempo que começava a direccionar o seu trabalho jornalístico para entrevistas a personalidades políticas e artísticas da época que viria a publicar nas suas obras Viagem à Volta das Ditaduras, Gabrielle d’Annunzio e Eu, ou o lapidar Salazar, o Homem e a Sua Obra, colherá, na celebração dos Centenários da Fundação e Restauração da Independência de Portugal (1940), a oportunidade para dar início à criação de uma companhia de bailado, no culminar de um projecto que se tinha vindo a desenhar ao longo das duas décadas anteriores. Apresentada sob a égide da “Política do Espírito” do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), no seu plano de “reaportuguesamento” da nação, do vocabulário do projecto da companhia de Bailados Portugueses “Verde-Gaio” fazem parte termos como “nacionalismo”, “raça”, “regionalismo” e “folclore”, mas também “modernismo” e “internacionalismo”.

          No domínio musicológico, a importância dos Bailados Portugueses “Verde-Gaio” revela-se, de facto, marcante pela relação que estabeleceu com alguns dos mais relevantes compositores portugueses das décadas de 1940 e 1950, nomeadamente através das encomendas efectuadas a partir do Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional de Radiodifusão e pela preocupação por criar um repertório nacional no domínio do bailado. A grande virtude dos BPVG, de certa forma na linhagem wagneriana da Gesamtkunsterk, e dos Ballets Russes, foi procurar criar um objecto uno, que ligasse a dança, a música, a narrativa, os cenários e os figurinos. Nesse aspecto, os BPVG são pioneiros e mesmo únicos na criação de um repertório balético em Portugal, a partir de uma tutela estatal, com a criação articulada das várias componentes do espectáculo, e um investimento na profissionalização de músicos e bailarinos. Se é verdade que o turismo, a diplomacia e a propaganda foram motores da companhia, condicionando a sua estética e o seu propósito, seriam também a forma encontrada para a manter a funcionar, como um “tableau vivant” de Portugal, uma dança pitoresca, de representação, de projecção de uma imagem, de uma ordem, de um regime.

          Os Bailados Portugueses “Verde-Gaio” têm sido recorrentemente abordados na literatura dedicada à música, à dança, à cultura popular e ao Estado Novo[1], numa narrativa que se estabilizou e que envolve invariavelmente a influência dos Ballets Russes de Diaghilev; as experiências modernistas de Ruy Coelho, Almada Negreiros[2], e a influência dos Delaunay[3] na segunda década do século XX, como antecedentes coreográficos; o modernismo discutível e discutido de António Ferro e o projecto do Teatro Novo (1925) como precursores da relação entre os protagonistas da companhia; a decadência dos BPVG após o afastamento de Ferro do SPN; o suposto desastre da apresentação perante Isabel II de Inglaterra, em 1957; a longa agonia de uma companhia que teria funcionado como um entrave a outras iniciativas de carácter coreográfico em Portugal.

           

          Mas a leitura “a contrapelo” das fontes permite-nos compreender com subtileza o percurso, as dinâmicas e o funcionamento dos BPVG enquanto instituição, tanto no domínio da produção como da recepção, e, sobretudo, as complexidades subjacentes à sua criação e às suas criações. Importa ainda perscrutar os paradoxos que enformam os BPVG e, depois da fase inicial da companhia, os mais de 30 anos de apagamento historiográfico que importa conhecer melhor até porque acompanham as transformações fundamentais do Portugal do século XX, uma vez que os BPVG estiveram no activo até depois do 25 de Abril. É, assim, num território entre o erudito e o popular ou o “popularucho”, a encenação do requinte e a emanação da decadência, entre o que podia ter sido e o que acabou por ser, que me interessa trabalhar. Interessa-me também o que permaneceu, dos discursos às práticas e aos modos de actuação, bem como as dinâmicas de transformação e as continuidades entre as instituições que abrem o cenário para a dança nos séculos XX e XXI em Portugal. De que modo o ímpeto modernista, a contemporaneidade no domínio criativo, e a concepção dos BPVG como uma manifestação de cultura erudita se cruzam com as ideias de representação de “regionalismo”, “tradição” ou “nacionalismo” são algumas das preocupações do meu trabalho. Proponho ainda que o modernismo dos BPVG não é experimental, mas de filão neoclássico, sendo os folclorismos que lhe assistem de carácter temático, e em linha com a estética de muitas outras companhias estatais e projectos musicais e coreográficos na mesma época[4].

           

          Neste texto colocarei o foco sobre os diálogos que, no início dos anos 20, se estabeleceram na revista Ilustração Portuguesa em torno da ideia da criação de uma companhia de dança.

           

          ***

           

          Ainda que esta história tivesse começado antes, António Ferro assumia a direcção da Ilustração Portuguesa, a revista semanal do jornal O Século, em Outubro de 1921. Sob o pseudónimo “O Homem que Passa”, na rubrica “A Entrevista da Semana”, encenava um questionário a si próprio em que colhia da oportunidade para expor o seu projecto para o periódico:

           

          Antes de mais nada, eu pretendo modernizar a “Ilustração Portuguesa” […] Integrar Portugal na Hora que passa, é uma obra nacional, uma linda obra a tentar. Lisboa é uma grande cidade que só existe quando há revoluções. Eu vou tornar Lisboa semanal. […] Procurará fazer-se uma revista Europeia mas integrando-se na vida portuguesa. Procurará mostrar Portugal aos Portugueses, procurará, com o auxílio de todos, estilizar a raça[5].

           

          Seria, justamente, nesta primeira declaração de intenções editoriais que Ferro esboçaria, com particular clareza, a ideia da criação de uma companhia de bailados em Portugal. Consciente da vastidão do seu programa e das muitas indefinições que teria que superar, António Ferro avançava o seu plano, com um largo “hálito de novidade e modernismo”:

           

          A linha do bailado português, por exemplo, está por descobrir. Encontrada essa linha, Portugal pode ter a sua companhia de bailados, como os russos, bailados modernos, arco-irisados, bailados de cores bobescas… nas nossas danças populares, nos nossos trajes regionais, nos nossos costumes, temos matéria-prima para estilizações admiráveis, temos tintas de sobra para um grande cartaz a pôr na Europa, a pôr no mundo. […] Manuel de Sousa Pinto, bacharel formado na Faculdade do Ritmo, iniciará no próximo número da “Ilustração Portuguesa”, uma série de artigos sobre este projecto que, dentro de mim é já uma certeza[6].

           

          Manuel de Sousa Pinto era, assim, destacado para definir teoricamente, numa série de artigos, a ideia da criação de uma companhia de dança portuguesa. Autor prolífero, Sousa Pinto dedicava-se, no início dos anos 1920, à crítica de dança, trabalho este que compilaria em 1924 no volume Danças e Bailados, em que constavam uma série de pequenas narrativas em prosa poética de carácter biográfico e descritivo sobre bailarinos e bailarinas a cujos espectáculos assistira, enredos e críticas de bailados, ou dissertações sobre géneros coreográficos. Esta colectânea integrava ainda os artigos publicados na Ilustração Portuguesa, com o título “Pela Dança Portuguesa”.

          Num número em que figurava na capa uma fotografia da poetisa Fernanda de Castro, que viria a casar com António Ferro no ano seguinte, e num artigo com ilustrações de Bernardo Marques (todos futuros colaboradores dos BPVG), Manuel de Sousa Pinto afirmava:

           

          A dança portuguesa, bailados portugueses: porque não?

          O difícil é lançar a semente.

          Depois as flores nascem. […]

          É preciso criar em Portugal, artisticamente, o gosto pela dança. Cuidar da educação rítmica da mulher. Apontar bailarinas.

          Obter-se-iam assim os instrumentos, que, manejados por decoradores de fantasia, por músicos inteligentes, por argumentistas de inspiração e coreógrafos de pulso, permitiriam tentar, ainda que com cautelosa modéstia, o bailado português, pensado em português, musicado em português, dançado em português, vestido à portuguesa e enriquecido com a valiosíssima série de coisas a bem dizer inéditas, e lindas, que Portugal, tesouro farto, ainda tem ou já teve.

          Pensemos no caso[7].

           

          Adivinhava, contudo, o autor algumas das possíveis dificuldades, nomeadamente a lentidão da formação balética, defendendo, contudo, que as danças populares tinham a virtude de serem suficientemente simples para permitirem iniciar este projecto:

           

          “Toca, portanto, a dançar, minhas meninas! não se arrependerão. Quase se pede garantir, à que mais se salientar como artista, além de glória florida e muita saúde, uns fartos cobres para o enxoval!”

           

          A 31 de Dezembro, ainda em 1921, Manuel de Sousa Pinto assinava o segundo destes artigos tão definidores daquilo que, vinte anos mais tarde, seria a estética que António Ferro associaria aos Verd