• Sobre

      • PT

          Coreia é uma publicação fundada em 2019 de carácter experimental, crítico e discursivo a propósito das artes em geral, firmada numa relação umbilical com a dança. De tiragem semestral, o jornal pretende ser um forum independente e internacionalista focado no discurso produzido pelas obras e pelos artistas, preocupado em divulgar formatos vários como partituras, manifestos, entrevistas, crónicas, ensaios, críticas e reflexões em língua portuguesa.

          Coreia é impresso em papel e distribuído gratuitamente em Portugal e na CPLP em colaboração com o Camões — Instituto da Cooperação e da Língua. A cada nova edição, é disponibilizada online a edição anterior.

      • EN

          Coreia is a publication of experimental, critical and discursive nature about the arts in general, with special affiliation to the medium of dance. Published twice a year in Portuguese, Coreia intends to be an independent and internationalist forum focused on the discourse produced by the works and artists, while it is concerned with disseminating various formats such as scores, manifestos, interviews, chronicles, essays, reviews and reflections. Coreia is printed on paper and distributed for free in Portugal. With each new edition, the previous edition is made available online.

           

      • Estatuto Editorial

           

          COREIA é um projeto independente feito de afinidades várias, autores, géneros, gerações e cosmovisões, tendencialmente inclusivas e democráticas, em sintonia com uma perspetiva plural e multivocal, de abrangência local, mas global.

          COREIA é um jornal semestral de carácter crítico e experimental que produz conteúdos a partir e a propósito das artes em geral, com especial incidência numa reflexão sobre as performativas e, particularmente, as coreográficas, numa relação umbilical com a dança.

          COREIA tenta participar na construção de um espaço comum no meio das artes em geral e da dança em particular, e contribuir para uma permanente reactualização dos discursos que possam estimular esse espaço.

          COREIA está focado em divulgar formatos vários como partituras, manifestos, entrevistas, crónicas, ensaios, críticas e reflexões, assim como na tradução e publicação de textos seminais de artistas de dança nunca publicados em língua portuguesa.

          COREIA é uma contribuição para uma partilha crítica dos modos de ver e fazer dança em Portugal, que se querem expandidos.

           

           

      • Lançamento

          #10

          Lançamentos + Performance de Nome de Filme por Bibi Dória

          2 mar 17h Montemor-O-Novo

          O Espaço do Tempo

          3 mar 16h Coimbra

          Auditório Salgado Zenha | Centro de Estudos Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra/Linha de Fuga

          4 mar 19h Lisboa

          Espaço Parasita

          9 mar 16h Vila do Conde

          Centro de Memória, Circular Associação Cultural

           

           

          #9

          Lançamentos + Performance de Claralinda, Juliana, Inês, Irene, Isabel por Luísa Saraiva

          26 set 18h30 Coimbra

          Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha/Linha de Fuga

          28 set 19h Setúbal

          A Gráfica – Centro de Criação Artística, Setúbal

          29 set 19h Almada

          Casa da Dança

          30 set 18h Vila do Conde

          Capela da Nossa Senhora do Socorro/Circular Festival de Artes Performativas, Vila do Conde

          4 out 18h30 Beja

          Festival das Marias/CADAC – Companhia Alentejana de Dança Contemporânea, Beja

           

          #8

          23 mar 20:30 Lisboa
          Culturgest — Maratona para o Gil — com João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda e Pedro Pinto

          4 abr 18:30 Coimbra
          Salão Brazil/Linha de Fuga — com João dos Santos Martins e João Polido

          7  abr 16:30 Lagos
          Festival Verão Azul (Clube Artístico Lacobrigense) — com João dos Santos Martins e João Polido

          16 abr 16:30 Loulé
          Festival Verão Azul (Sul, Sol e Sal) — com João dos Santos Martins e João Polido

          18 abr 18:30 Vila do Conde
          Conservatório de Música, Teatro e Dança de Vila do Conde/Circular Associação Cultural — com João dos Santos Martins e João Polido

          24 abr 18:30 Braga
          Livraria Centésima Página — com João dos Santos Martins

           

          #7

          Lançamentos + Performance de Submission Submission (unplugged) de Bryana Fritz

          21 set 19:00 Coimbra
          A Fábrica/Linha de Fuga

          22 set 19:00 Lisboa
          Espaço Alkantara

          24 set 18:30 Faro
          DeVIR CAP

           

          #6

          A Parasita e a Circular disponibilizarão esta edição do Coreia para envio ao domicílio após os eventos de lançamento. O jornal é gratuito. Os portes de envio ficam a cargo do requerente. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          Lançamentos + Performance de um capítulo de She gave it to me I got it from her de Clara Amaral

          08 mar 18:00 Lisboa
          Galeria Zé dos Bois

          09 mar 14:00 Porto
          ESMAE

          09 mar 19:00 Vila do Conde
          Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude

          10 mar 17:00 Coimbra
          Laboratório Chimico/Linha de Fuga

          11 mar 19:00 Ponta Delgada
          vaga

           

          #5

          A Parasita e a Circular disponibilizam esta edição do Coreia para envio ao domicílio. O jornal é gratuito. Os portes de envio ficam a cargo do requerente. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          Lançamentos + Performance Ehera Noara de Hwayeon Nam com Ji-hye Chung

          22 set 18:00 Lisboa
          Atelier Museu Júlio Pomar

          23 set 18:00 Coimbra
          Museu Nacional Machado de Castro/Linha de Fuga

          24 set 19:00 Faro
          DeVIR CAPa

          25 set 17:30 Vila do Conde
          Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas

           

          #4

          Dadas as extraordinárias circunstâncias actuais, a Parasita e a Circular disponibilizam agora esta edição do Coreia para envio gratuito ao domicílio. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          18 fev 15:00 Santarém — Cancelado
          Teatro Sá da Bandeira

          20 fev 11:45 Vila do Conde — Cancelado
          Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde

          22 fev 18h30 Lisboa — Cancelado
          ZDB

           

          #3

          Lançamentos + Performance de Preste atenção a tudo a partir de agora de Daniel Pizamiglio

          11 nov 18:00 Gafanha da Nazaré
          Fábrica Ideias – 23 Milhas

          19 set 18:00 Vila do Conde — Com Melissa Rodrigues
          Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas

          27 set 18:00 Lisboa
          Espaço Alkantara

           

          #2

          Dadas as extraordinárias circunstâncias actuais, a Parasita e a Circular disponibilizam agora esta edição do Coreia para envio gratuito ao domicílio. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          13 Mar 18:45 Vila do Conde — Cancelado 🦠
          Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde

          13 Mar 21:30 Porto — Cancelado 🦠

          Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural

          14 Mar 18:00 Lisboa — Cancelado 🦠
          Estúdios Victor Córdon no âmbito do evento Navegar é preciso? Sentidos para a internacionalização da dança

           

          #1

          Lançamentos + Performance

          21 set 18:00 Vila do Conde — Com Luísa Saraiva
          Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas

          26 set Lisboa — Com Joana Sá e Sorour Darabi
          Estúdios Victor Córdon

          4 out Cartaxo — Com Marta Cerqueira
          Ponto de encontro do Festival Materiais Diversos

           

          #0

          Lançamentos + Performance de Orifice Paradis de Ana Rita Teodoro

          21 Fev 17:00 Porto
          Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

          22 Fev 17:00 Coimbra
          Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (Auditório do Círculo Sereia)

          23 Fev 16:00 Vila do Conde
          Vila do Conde – Biblioteca Municipal José Régio

          23 Fev 18:30 Braga
          Livraria Centésima Página

          24 Fev 18:00 Lisboa
          Rua das Gaivotas 6

           

      • Ficha Técnica

          #10

          CONTRIBUIÇÃO #10 Alaa Abu Asad, Alina Folini, Bibi Dória, Célio Ucha Dias, Filipa César & Sónia Vaz Borges, João Pedro Soares, Julián Pacomio, Marlene Monteiro Freitas, Mickaella Dantas, Raquel André, Tadáskía, Talles Lopes, Yvonne Rainer TRADUÇÃO Joana Frazão, Pedro Cerejo, Pedro Morais REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena COLABORAÇÃO DESIGN GRÁFICO Nuno Maio APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua CO-PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural

           

          #9

          CONTRIBUIÇÃO #9 Alaa Abu Asad, Daniel Lühmann, Dori Nigro & Paulo Pinto com Georgia Quintas, Giulia Damiani, Janeth Mulapha, João Bento, Katarina Lanier, Lior Zisman Zalis, Luísa Saraiva, Projecto Decorporeidades (Daniel Moraes & Filipa Cordeiro com Gio Lourenço & Angelo Custódio), Projecto Indíralo (Andreia Neves Marinho, o Centro Ciência Viva de Alviela, Andreia Sofia Cardoso Lima, a floresta, Patricia Conde, Fernando Pedro dos Santos, João Henriques, a gruta, Valentina Parravicini, Cristina Fuentes Ávila, o rio Alviela, Francisco Weber Ruiz, Gustavo Vicente, María Jerez, Quim Pujol e os espíritos), Teresa Fabião, Tiran Willemse, Vicente Escudero, Zia Soares TRADUÇÃO Patrícia da Silva, Pedro Cerejo REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Fátima Ribeiro, Mariana Rezende DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena COLABORAÇÃO DESIGN GRÁFICO Joana Lourencinho Carneiro APOIOS NO LANÇAMENTO Casa da Dança (Almada), CADAC – Companhia Alentejana de Dança Contemporânea (Beja), A Gráfica (Setúbal), Linha de Fuga (Coimbra) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Maria Ángeles e Julio César Fraile Sandonis, sobrinhos-netos de Vicente Escudero, Arquivo fotográfico Museo Reina Sofia, Pedro G. Romero

           

          #8

          CONTRIBUIÇÃO #8 Ahn Vo, Ana Rita Teodoro & Valérie Castan, Chloe Chignell, Davi Pontes, Diana Niepce, Estelle Nabeyrat, Gil Mendo, Guilherme Valente, Inês Zinho Pinheiro, João Polido, Myriam Goufrink & Wilson Le Personnic, Pope.L, Rogério Nuno Costa, setareh fatehi, Silvia Federici, Tiago Amate TRADUÇÃO Joana Frazão, Marinho Pina, Patrícia da Silva, Pedro Morais REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral EDITORES COREIA GIL João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda, Pedro Pinto DESIGN GRÁFICO #8 Isabel Lucena DESIGN GRÁFICO COREIA GIL Nuno Beijinho APOIOS NO LANÇAMENTO Culturgest (Lisboa), Escola de Dança do Centro municipal de Juventude de Vila do Conde, Festival Verão Azul (Lagos, Loulé), Linha de Fuga (Coimbra), Livraria Centésima Página (Braga) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Galeria Mitchell-Innes & Nash, Pope.L, Myriam Gourfink, Thomas J. Lax, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Albert E. Dean, Gisela Casimiro, Ariana Furtado, Journal ADC, Anne Davier, Michèle Pralong, Dançando com a Diferença AGRADECIMENTOS COREIA GIL Ana Bigotte Vieira, Cristina Peres, Cláudia Galhós, Dora Fonseca, Duarte Bénard da Costa, Francisco Camacho, João Fiadeiro.

           

          #8 PARA O GIL

          Este caderno especial do Coreia integra a homenagem a Gil Mendo realizada  na Culturgest, em Lisboa, de 23 a 25 de março de 2023, e organizada por um grupo alargado e voluntário de pessoas da comunidade da dança contemporânea em Portugal. TEXTOS Gil Mendo, entrevistas com Ana Bigotte Vieira, Cristina Peres, Madalena Perdigão e Pina Bausch EDITORES João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda, Pedro Pinto DESIGN GRÁFICO Nuno Beijinho CAPA João Penalva PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, Cláudia Galhós, Cristina Peres, Dora Fonseca, Duarte Bénard da Costa, Francisco Camacho, João Fiadeiro

           

          #7

          CONTRIBUIÇÃO #7 Amit Noy, Beverly Emmons, Bryana Fritz, Clarissa Sacchelli, Edna Jaime, Eduardo Batata, Leonor Lopes, Ves Liberta & Vitor Grilo Silva, Germaine Acogny, Joana Levi, Janaína Moraes, Nikita Kadan, Paula Rosa Pinto, Renan Marcondes, Romain Beltrão, Sabine Macher, Viktor Ruban TRADUÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários), Joana Frazão, Patrícia da Silva REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Fátima Ribeiro TRANSCRIÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários) PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena APOIOS NO LANÇAMENTO Alkantara (Lisboa), Linha de Fuga (Coimbra), Devir-Capa (Faro) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua AGRADECIMENTOS Archivio Carol Rama, Helmut Vogt, Marcela Levi e Lucia Russo, Peter Angelo Simon.

           

          #6

          DIRECÇÃO EDITORIAL E EDIÇÃO João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ángela Millano & Julián Pacomio, André Lepecki, Andrei Bessa, Giovanna Monteiro, Leonor Mendes, Roberto Dagô & Vicente Ramos, Carla Fernandes, Chiara Bersani & Diana Niepce, Clara Amaral, Emiliano Aversa, Guilherme Figueiredo, Isabel Cordovil, Jan Ritsema & Jonathan Burrows, Miguel Pipa, Miguel Teles, Piny, Renan Marcondes, Vânia Gala TRADUÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários), Joana Frazão, Pedro Cerejo, Paula Caspão, Sara Santos REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann TRANSCRIÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários) PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde, ESMAE (Porto), Galeria Zé dos Bois (Lisboa), Linha de Fuga (Coimbra), Vaga (Ponta Delgada) AGRADECIMENTOS Alkantara, Eleonora Fabião, Maus Hábitos

           

          #5

          DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Alice Dusapin & Christophe Wavelet, Anna Halprin, Bruno Zhu, Dani Issler & Frédéric Sayer, Gaya Medeiros, Henrique Neves, Hwayeon Nam 남화연, Leandro Souza, Leticia Skrycky, Min Kyoung Lee 이민경, Paula Caspão, Raimund Hoghe, Sara Graça, Sara Wookey TRADUÇÃO Joana Frazão, José Maria Vieira Mendes, Patrícia Silva, Sara Godinho REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Mariana Monne, Leonor Courtoisie TRANSCRIÇÃO Cyriaque Villemaux EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Atelier-Museu Júlio Pomar, Devir Capa, Linha de Fuga, Residências Artísticas Polo Cultural das Gaivotas Boavista AGRADECIMENTOS Heaju Kim, Ji-hye Chung, Luca Giacomo Schulte, Ricardo Valentim, Stephanie Earle

           

          #4
          DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Bhenji Ra, Bruno Levorin & Ignacio de Antonio, Carmen de Brito, Calixto Neto & Luiz de Abreu, Jean Capeille, José Maria Vieira Mendes, Micael Ferreira, Miguel Teles & Daniel Pizamiglio, Pedro Marum, Rita Natálio & Vânia Doutel Vaz, Tânia Carvalho TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Suiá Ferlauto EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Teatro Sá da Bandeira — Santarém, ZDB, APOIOS Teatro Sá da Bandeira — Santarém, ZDB, Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, Carlos Manuel Oliveira, Daniel Tércio, Filipe Viegas, Luísa Carles, José Carlos Duarte, Maus Hábitos, Pedro Antunes, pepe cobo y cía, Sara Ramos, Vicente Trindade, Vítor Brotas, Vanessa Carvalho

           

          #3
          DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ação Cooperativista, Christophe Wavelet, Diana Niepce, Elisabeth Lebovici, Francisco Camacho, Henrique Furtado, João Fiadeiro, Liliana Coutinho, Lula Pena, Melissa Rodrigues, Mierle Laderman Ukeles, Miguel Teles, Miguel Wandschneider, Min Kyoung Lee, Vera Mantero, Volmir Cordeiro TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Patrícia da Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Duarte Bénard da Costa EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Alkantara AGRADECIMENTOS Duarte Amado, José Carlos Duarte, Matheus Martins, Mierle Laderman Ukeles, Ronald Feldman Gallery (Nova Iorque)

           

          #2
          DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Pi, Clara Amaral, Diego Bagagal, Filipe Pereira, Hélio Oiticica, Miguel Castro Caldas, Rita Natálio, Teresa Castro, Tom Engels, Vânia Doutel Vaz, Vânia Rovisco, Zeina Hanna TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Patrícia da Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Sónia Baptista, Pedro Cerejo EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Centro Municipal da Juventude de Vila do Conde, Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural, Opart/Companhia Nacional de Bailado/Estúdios Victor Córdon AGRADECIMENTOS André e. Teodósio, Ariane Figueiredo e César Oiticica do Projecto H.O., Claraluz Keiser, Daniel Pizamiglio, Donatella Cacciola, Duarte Amado, ESMAE, Frank-Manuel Peter, Sebastian Bardin-Greenberg, Sergio Zalis, Vânia Rodrigues

           

          #1
          DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Jotta, Carlos Manuel Oliveira, Carlos Azeredo Mesquita, Christophe Wavelet, Dasha Birukova, Duarte Nuno Amado, Joana Sá, Luísa Saraiva, Poorna Swami, Rita Natálio, Valeska Gert, Sergei Eisenstein, Sílvia Pinto Coelho, Sorour Darabi TRADUÇÃO Ana Matoso, Joana Frazão, José Maria Vieira Mendes, Larysa Shotropa, Patrícia da Silva REVISÃO Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Duarte Bénard da Costa, Cyriaque Villemaux EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Circular Associação Cultural WEBSITE Sara Orsi APOIOS Associação Parasita, Opart/Companhia Nacional de Bailado/Estúdios Victor Córdon, Festival Materiais Diversos

           

          #0
          DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Rita Teodoro, Christophe Wavelet, Cyriaque Vilemaux, Carlos M. Oliveira, Duarte Amado, Eros404, Felipe Ribeiro, Marcelo Evelin, Moriah Evans, Takashi Morishita, Tatsumi Hijikata, Rita Natálio TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Daniel Lühmann, Marta Morais, Patrícia Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Carlos M. Oliveira EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Circular Associação Cultural CO-PRODUÇÃO Associação Parasita WEBSITE Sara Orsi APOIOS Biblioteca Municipal José Régio – Vila do Conde, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Livraria Centésima Página, Rua das Gaivotas 6 AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, André e. Teodósio, Christine Greiner, Cyriaque Villemaux, David Cabecinha, Hugo Dunkel, José Carlos Duarte, Kazuki Fujita, Patrick De Vos, Pierre-Louis Denis (William Klein Studios), Sabine Macher, Takashi Morishita (Centro de Arte da Universidade de Keio, Japão), Tomo Kosuga (Masayuki Fukase Archives)

           

          ISSN 2184-4461
          Direção: João dos Santos Martins
          Periodicidade: semestral
          Distribuição gratuita
          Depósito legal: 452179/19
          ERC: 127238
          Impressão: FIG — Indústrias Gráficas, SA — Coimbra
          Tiragem: 3000 exemplares
          Fontes: Glossy Display, F Grotesk

           

          Proprietário: Circular — Associação Cultural. Sede da redação/Sede do editor: Praça Luís de Camões, 9 – 1.º, 4480-719 Vila do Conde. NIF 507590767

           

          A Circular Associação Cultural conta com o Alto Patrocínio da Câmara Municipal de Vila do Conde e é uma estrutura financiada pela República Portuguesa/Cultura, Direcção-Geral das Artes.

  • Edições

      • 9

          Clara Amaral Editorial

          Escrevo este editorial entre duas serras. À minha esquerda, a serra da Estrela, nas minhas costas a serra da Gardunha. Sentada num pequeno escritório, entre duas serras, aqui estou na casa dos meus pais. Ainda que enquanto escrevo não olhe diretamente para elas, bem sei que estão à minha beira. Uma sensação que não nasce somente dos olhos, mas acima de tudo da perceção, um saber que se alojou na pele. A cidade onde vivo – Amesterdão – é plana, aliás o país onde vivo – Países Baixos– é plano, não há maciços montanhosos que desafiem a vista. Desde há algum tempo para cá, anseio o momento de chegar ao Fundão. Se no passado este lugar não me empolgava, neste momento é-me muito prazeroso estar aqui: acordar e ver a serra da Estrela ao longe numa manhã de verão, os seus contornos perfeitos e o céu de um azul invejável; virar a cabeça e ver o manto verde da serra da Gardunha; o pôr do sol que se vê da varanda da casa dos meus pais; as andorinhas, o seu voo, o seu canto durante o crepúsculo. Muitas vezes pensei no porquê desta mudança, todas estas coisas existiam antes, mas, por algum motivo, eu não as via.
          Agrada-me, quase sempre, narrar o “eu”, claro que não posso garantir em absoluto a veracidade desta narração, de todas as formas, aqui fica: há uns tempos, enquanto caminhava pela Avenida da Liberdade – no Fundão também há uma – apercebi-me de que esta cidade e tudo o que a envolve foi o primeiro sítio que os meus olhos viram e que, de alguma forma, viu os meus olhos. Nesse mesmo dia, um pouco mais tarde, pensei: ainda que este tenha sido o primeiro sítio que os meus olhos viram, este recém-enamoramento pelo Fundão e seus arredores não poderia ter surgido antes, pois necessitava de distância para ajustar o olhar, re-olhar, permitindo assim uma outra leitura de uma realidade tão familiar. Ressalvo aqui a importância da palavra “leitura”, quero resgatá-la, ao jeito da crítica e teórica indiana Gayatri Spivak para o espaço do mundo, pois a leitura que praticamos no espaço do jornal é uma preparação para a leitura que praticamos diariamente no mundo. E o mundo, tal como Spivak diz, pede para ser lido como um livro:
          “Toda a gente lê a vida e o mundo como se fosse um livro. Até os chamados «iletrados». E especialmente os «líderes» da nossa sociedade, os não sonhadores mais responsáveis: a gente da política, gente dos negócios, gente que faz planos. Sem a leitura do mundo como um livro, não há profecias, não há planeamentos, não há impostos, não há leis, não há prosperidade, não há guerra. No entanto estes líderes leem o mundo em termos de racionalidade e médias, como se fosse um caderno de exercícios. No entanto, o mundo escreve-se numa complexidade incorrigível, em vários níveis, e com a abertura de uma obra de literatura. Se através do nosso estudo da literatura, conseguirmos aprender e ensinar outros a lerem o mundo de uma forma rigorosa e arriscada, e a atuarem nessa lição, talvez nós, pessoas literárias, não fôssemos para sempre vítimas tão indefesas.”
          Cada uma das contribuições que fazem parte deste Coreia #9 lê o mundo de forma rigorosa e arriscada, como se fosse um livro, que se abre numa multiplicidade de capítulos, todos distintos mas com uma matriz semelhante, a de desafiar a nossa leitura. Assim o faz Alaa Abu Assad quando viaja pela flora da Palestina e reflete acerca do papel da fotografia na sua representação; ou João Bento, que desenhou um léxico de movimentos de O Limpo e o Sujo de Vera Mantero, trazendo esta peça para o presente e permitindo-nos um diferente olhar sobre ela. Os artistas Dori Nigro e Paulo Pinto e a curadora Georgia Quintas escrevem acerca da exposição Vento (A)Mar, que esteve presente na Bienal‘23 Fotografia do Porto. Durante a abertura da exposição, uma das salas foi encerrada pela administração do Hospital Conde de Ferreira com a anuência da Santa Casa da Misericórdia. Em seguida, a obra foi exposta fragmentada – um triste episódio de censura. No Coreia #9, os artistas reclamam a narração deste evento e deixam um tributo às avós dos artistas, avivando a sua presença no aqui, no agora deste jornal. Prosseguindo com um gesto de reclamação da narrativa, Zia Soares escreve-nos a partir da sua performance FANUN RUIN, que trata sobre questões de restituição de restos humanos pilhados no período colonial. Todos estes temas ainda carecem de muita atenção, pensamento e ação em Portugal. A distância temporal é essencial e permite-nos perceber, a pouco e pouco, a complexidade e brutalidade destas Histórias.
          Como sempre, mantém-se a tradição de publicar um texto histórico e nesta edição traduziu-se pela primeira vez para português Vicente Escudero, uma figura importantíssima do flamenco do início do século XX. A bailarina e coreógrafa moçambicana Janeth Mulapa, com uma voz generosa e urgente, partilha o seu projeto Vozes, que nos permite vislumbrar as complexidades e a beleza extrema do universo feminino da dança contemporânea em Maputo.
          Num tour de force encontramos Daniel Lühmann com O VaIvÉm – uma contribuição destemida, uma lengalenga, um encanto. De encanto para Encanto, com Lior Zisman Zalis através da dança colocamos o estado pra baiar. Giulia Damiani, e o abrandar de um coração, este texto disfarça-se de pesquisa, e pouco a pouco, qual montanha transformada em vulcão, revela uma performance que se vai construindo na nossa imaginação. Gio Lourenço e ngelo Custódio são entrevistados por Daniel Moraes acerca das suas práticas artísticas numa colaboração do Projeto Decorporeidades com o Coreia. Luísa Saraiva reflete acerca da saúde mental nas artes performativas. Teresa Fabião pensa a relação entre corpos HIV- e HIV+ e a importância de práticas artísticas de forma a repensarmos a relação entre corpo e vírus. Tiran Willemse é uma multiplicidade de “eus”, que se desdobram num espaço não linear. Com Andreia Neves Marinho, o Centro Ciência Viva Alviela, Andreia Sofia Cardoso Lima, a floresta, Patrícia Conde, Fernando Pedro dos Santos, João Henriques, a gruta, Valentina Parravicini, Cristina Fuentes Ávila, o rio Alviela, Francisco Weber Ruiz, Gustavo Vicente, María Jerez, Quim Pujol e os espíritos, entramos numa palavra inventada– Indíralo – e a partir daí o mundo reconstrói-se numa pluralidade de línguas. E, finalmente, Katarina Lanier pensa de forma afetiva o espaço da cidade de Escópia (capital da Macedónia do Norte).
          Tal como na edição anterior, também nesta, Isabel Lucena convidou uma designer gráfica para repensar duas páginas do Coreia, nesta edição esse repensar ficou a cargo de Joana Lourencinho Carneiro que fez o design das duas páginas referentes a Vicente Escudero. É também de mencionar que a tiragem do Coreia aumentou – viva! – de 3000 para 3500 exemplares.

          Ao escrever estas linhas finais não estou já entre duas serras. Estou pela primeira vez em São Paulo, no Brasil, para, entre outras coisas, visitar a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel. Não me posso ainda alongar nessa experiência, pois, não só ainda não “está vista” como também ainda não tenho a distância necessária que, possivelmente e esperançadamente, me permitirá uma leitura rigorosa e arriscada, não só da mais antiga Bienal da América do Sul como também da experiência de estar no Brasil, primeiro país da América Latina que visito; ainda que a enumeração crie hierarquias, a minha experiência de ambos está intimamente interligada.
          Afastando-me suavemente, com toda a suavidade que as palavras permitem da ideia de distância e da sua importância, quero aqui deixar um momento de uma conversa que tive ontem. Escolho deixar este “ontem” sem data, para que sempre que se leia este editorial este “ontem” se volte a evocar e assim sendo se repita. Alguém que conheci brevemente, disse-me: “O tempo em São Paulo é como o dinheiro, uma pessoa pensa que tem, e na verdade não tem.” Aqui deixo estas palavras, este feitiço, esta magia, desejando assim que o tempo, tal como o conhecemos, se deixe de usar.

          Janeth Mulapha VOZES

          Vozes foi uma iniciativa que surgiu após as aulas de rotina que acontecem em Maputo — aulas abertas, com maior participação masculina entre coreógrafos moçambicanos —, e impulsionada por uma fraca adesão de bailarinas de danças tradicionais em palcos convencionais e na dança contemporânea em geral em Moçambique. Umas talvez pelas suas escolhas e outras pela submissão. Desistência, teimosia, crenças… Aqui ainda se diz que o lugar da mulher é em casa, nas panelas, a cuidar das crianças e do lar…

          Vozes surgiu também de provocações de alguns que perguntavam sobre o meu legado. O que estaria a acontecer, afinal, com o universo feminino na dança contemporânea? Já faz tempo que vemos os mesmos rostos, porquê a resistência das mulheres a realizar projectos até agora dominados por homens? Porque está a sua auto-estima enfraquecida, quando são as mais fortes? Onde estaria eu a cultivar o meu legado? Onde está a minha machamba e o que pretendo deixar afinal? Queria responder a estas questões, não com palavras, mas com experimentos. Daí surgiu a iniciativa da INCUBADORA DE PESQUISA COREOGRÁFICA PARA MULHERES, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo (CCFM).

          Recebi muitas mensagens de mulheres que queriam aderir. Muitas de várias disciplinas, até no campo das ciências, da linguística… — eram engenheiras, advogadas, empresárias —, e muitas também sem formação nenhuma, porque cedo abandonaram a escola, consequentemente, mães aos 13 anos, avós aos 28; ironia, o ciclo se repetia, a filha e a neta tiveram o mesmo destino, como se estivesse no DNA marcada essa sina.

          Muitas perguntavam sobre os horários, as condições, quanto iriam receber. Quanto tempo teria este processo e se, até lá, estariam a dançar, magras, gostosas — porque estavam ameaçadas de serem trocadas pelos corpos esbeltos de sereias preenchidas de botox e calcinhas da Loja das Damas, cabelos lisos, touch my bunda, salto 21 e weus acessíveis às 13 horas do intervalo, ao invés das crespas saídas da maternidade que cheiravam ao leite fresco que enchia os seus peitos a apodrecer, consequência de maternidade precoce que, segundo o plano, não era de mútuo acordo: “Esse era o teu plano, sou muito jovem, quero curtir”… diziam, e elas se submetiam a ouvir esses actos bárbaros violentos e covardes para não serem trocadas e prevalecer a ideia de um lar feliz, porque … “O importante é que serás vista com bons olhos, serás um exemplo na sociedade.”

          Elas buscavam ali e queriam somente prover garantia para a sua independência financeira, muitas com vontade, mas impedidas por deveres na sua agenda humana: filhos, maridos, família, sociedade, e, pior, pela acção a que se queriam dedicar e por rebelar se dançassem! “Hummmm, ISSO É PARA PUTAS”. “Não se vive de dança aqui, estás a perder tempo”; “quem vai cuidar das crianças, organizar a casa, cuidar de mim?” “Estou muito stressado, te quero no quarto”; “se não aguentas mais, tem uma bicha de mulheres à procura de um lar”; “volta para casa dos teus pais se estás cansada”; “AUKATHI HI UKATHI”. Lar e sexo.

          As histórias ganhavam uma forma, mas tínhamos, ao mesmo tempo, questões que faziam com que sempre tivéssemos ausências. Enquanto caras novas contavam suas histórias, lá fora, do outro lado, estava a acontecer; números diferentes: eram caras novas reduzidas a nada, e mais desistências. As tarefas domésticas que as chamavam eram mais um impasse e, assim, tínhamos um processo que não avançava. A repetição tornava-se o nosso dilema. Um impasse que nos condenava a estarmos esmorecidas.

          Durante os nossos encontros, queria sempre, dia após dia, saber o que as trouxera ali, e porque não desistiam. Afinal, os rostos que ali estavam eram de infinitas emoções, mas quase nenhuma deixava transparecer alegria. Pouco a pouco, as máscaras, na sua subtileza, iam caindo, e eu via ali aquela mulher, menina, corajosa, com pensamento astuto e próprio da sua época, pronta para enfrentar qualquer que fosse seu inimigo. Pela força física que eu exigia, me perguntava porque voltavam, afinal, se as novas cicatrizes estavam ali frescas e visíveis; mas, porque surgiram de transformações do “eu”, da sua liberdade, não doía e eu gritava: “Avança Sempre, não recues!” Foi por essa força que desistiram outrora, a mesma força que as trazia de volta para a repetição do quotidiano.

          As perguntas prevaleciam: o que esperavam dali? O que estava a mudar nelas? Como queriam contar suas histórias? Seus relatos tinham pontos comuns: feridas e cicatrizes que, por mais que aparentassem estar saradas, tinham memórias vivas. Daí iniciaram o ciclo de desabafo falado, que depois transferiram para o corpo, para dar movimento. Muitas mulheres, apesar de nunca terem dançado, já apregoavam suas técnicas, seus estilos; sua voz era audível, tornava-se viral e contagiante de uma para outra. Se desafiavam a dançar seus enredos escritos pelo tempo de suas vivências curtas, mas de longo percurso. Um mês e meio tornou-se pouco. As aulas eram extremamente físicas para quem nunca tinha dançado. A magra Maria era preguiçosa e não queria descer ao chão e voltar em tempo binário suíço, mas I DON’T GIVE UP; eu vou até ao fim, era ela com ela mesma! Enfim, quem te chamou aqui? Parecia um treino psicofísico militar…

          Ficávamos na primeira posição em demi-plié, e a donzela Maria, que estava sempre no canto inferior esquerdo, via aquele ponto como espaço para incubar seus enjôos; dela poucas histórias ouvíamos, talvez estivesse à procura de conhecimento das mais crescidas. Ficávamos então de pé e ela voltava para o chão sem medir tréguas! Maria sentia cada vez mais enjôos — verão africano, manhã de 34 graus, fresquinho para a nossa realidade consecutiva — e não parou por aí. “Ela está grávida”, a fofoca se espalhou. Kuni ndzava. QUEM? EU?… Deveres de casa, levar os filhos à escola, cozinha, lavar. Assunta não foi diferente, duvidava dela própria, pior, com o marido no serviço militar, estava a viver com os sogros, não era fácil. “Amanhã não consigo vir, não tenho dinheiro para o chapa”, aproximadamente 15 meticais (2 cêntimos do euro). “Hoje andei tanto, acordei, fui buscar água, não temos há quase uma semana, não tinha sequer para beber”; “eu acordei às 4 horas para vir ao ensaio, apanhei 3 chapas supercheios, me pendurei e ainda cheguei atrasada”; “eishiii, venha viver para a cidade!”; “Impossível! O meu irmão mais novo vive cá há quase 3 anos, meu pai diz que não sou capaz de me governar, só saio com um marido que se responsabilize por mim.” A engenheira pugilista Maria (boxeira, por nós vista), vidente, o que fazia na dança? “Não te formámos para seguir com essa brincadeira”; “Tem uma vaga nos Caminhos de Ferro de Moçambique garantida”. Posterga e ou relega a sograria, não tem o mesmo nível social por quem se deixou apaixonar…

          Já nada mais nos parava, queríamos mais tempo para estarmos juntas, mais tempo para a movimentação, mais tempo para ouvir os clássicos da nossa terra no palco do parque do CCFM, mais tempo para ouvir a mim e a ela, a voz da outra a contar o que sucedera minutos atrás em casa ou naquela esquina, para fazermos da história dela nossa história e juntas chorarmos as dores em simultâneo; uma sororidade única. Muitas queriam vir e nunca mais partir, era uma sensação de liberdade adquirida; as quatro, cinco horas de estúdio tornavam-se poucas e claramente escassas.

          Daí o CCFM convidou-me para fazer uma peça. Não tinha estrutura nem elenco, tinha somente mulheres sem experiência em dança, histórias, feridas, relatos sobre violência vivida, ouvida, vista por e com elas. Que história iria contar? Resolvi convidar alguns colegas para apoiarem com sua energia, com o propósito de as impulsionar. Mas era com elas que queria provar que podemos, apesar das adversidades. A conjuntura nacional estava um caos e as histórias não paravam: casos de Cabo Delgado, epicentro dos grandes ruídos, insurgentes matando e levando mulheres, mulheres vítimas de violência. Logo nos vimo-nos misturadas com alguns homens que partilhavam relatos parecidos. Violência não acontece somente com as mulheres, somente em larga escala somos nós. Acabámos numa mistura de Vozes em palco, mas ficou a sensação de missão abortada, pois eu queria que fossem somente mulheres.

          Nasceu então o projecto VOZES NACIONAIS NO FEMININO. Sentia a necessidade de ouvir outras mulheres, a nível nacional, e trabalhar com mulheres de diferentes proveniências, diferentes línguas, texturas, hábitos, costumes, idades, cores, fisionomias, estados civis. Se todas essas mulheres viessem juntas, numa única voz, épico!, orquestrar uma sinfonia do corpo com diferentes linguagens, sem preocupação com a técnica e a rigidez da dança, demonstrar suas conquistas, seus desafios, suas revoluções, vozes de liberdade, demonstrar como o drama do próximo, ou do mais longínquo, afecta as nossas vidas e como a informação afecta e transpõe fronteiras viajando através dos corpos peculiares, definidos pela experiência de vida, contendo mulheres de grande impacto adormecido. Ser Mulher só, aqui, é um desafio…

          Se eu conseguir educar e consciencializar a rapariga desde tenra idade, teremos uma sociedade mais justa, equitativa, com igualdade de género, capaz de suprir o desenvolvimento sociopolítico, económico e cultural para uma humanidade menos doente, pois formar um homem é apenas formar uma pessoa, mas formar uma mulher é formar uma família e, por conseguinte, é formar a humanidade.

          Giulia Damiani Heart Brake – Pensar através de um sentimento expandido no movimento

          Heart Brake1

          No princípio era o ritmo2. O pulsar de um coração que abranda. Abranda-o. No princípio era o ritmo. Depois, com o ritmo, surgiu uma história. Abranda-o. Tic. Ainda bate com força. Como criar palavras a partir deste movimento? Ou são estas palavras que o fazem mover? Esta história antiga. Abranda-o. Como posso demorar-me neste sentimento desconfortável, abrandando-o? Que espaço cria ele? No ritmo do batimento. Põe a tua mão sobre ele. Palpitação, toque; é acolhedor. Porque temos medo de habitar esse espaço? E estas palavras, o que se consegue digerir do processo de passar por isto?

          Primeiro, apresentar uma imagem. No princípio emerge do escuro o som de um metal que bate numa superfície dura. Tic. O som é nítido, semelhante à forma como conseguimos escutar uma gotícula de água a cair num espaço vazio. Em segundos, o som acelera e alguma coisa parece estilhaçar-se. À medida que as luzes sobem vê-se alguém que martela um escopro numa laje de cimento. Dói. Tic. O escopro parte o cimento. A falha expande mais um pouco com cada martelada. Tic. Ferro em cimento. São construtores ou estão a destruir uma coisa? Magoa. O movimento acelera e aparecem várias fendas, e há uma maior ao centro. Depois uma respiração mais rápida. Os sons transformam-se em música. O corpo da personagem entra na música, entra na falha.

          Relaxa. Mergulhamos na falha.

          Desacelera o bater do coração. Sente um peso no peito. Coração abrandado. Ao entrevistar mulheres mais velhas aprendi que estar de coração partido pode ser muito mais do que apenas uma condição temporária3. Pode descrever um sentimento de desilusão com a realidade que se pode manifestar em certo momento. É a constatação da impossibilidade de concretizar o nosso potencial criativo e político dentro da sociedade, tal como ela é. A desilusão que pode surgir quando as mulheres têm de desistir da procura pela sua própria identidade integral para dar espaço a relações heteronormativas (a compreensão da sua experiência tornou-se então na minha; eram vozes proféticas nas quais me recusei a acreditar). As relações com homens cis e heterossexuais só podiam falhar. As mulheres que entrevistei expressavam um forte sentido de separação depois de muitos anos de esforço. Eram feministas, algumas delas artistas, e falavam sobre uma fratura interna, mas também externa: ao observarem as camadas de exploração e degradação do ambiente. Esta era uma questão que interessava muito ao grupo feminista Le Nemesiache, de Nápoles, grupo que investiguei e com quem trabalhei durante vários anos. A fundadora do grupo, Lina Mangiacapre, escreveu sobre lógica como uma “fissura no pensamento” e descreveu a separação entre corpo e pensamento na sociedade ocidental4. Juntas trabalharam em performances, filmes, ações políticas e criativas entre os anos 1970 e 1980, que mostravam claramente como as categorias ocidentais procuravam separar as pessoas do ambiente ao negligenciar as imensas relações de interdependência entre os dois. Mangiacapre dizia que a filosofia da alienação nasceu de uma ferida, de um corte5. Como entender um sentimento negativo enquanto espaço gerador?

          O grupo Le Nemesiache procurou estabelecer relações com o panorama envolvente para encontrar novas formas de harmonia e unidade. Ligadas ao poder e à lava do vulcão Vesúvio, elas entendiam a identidade das mulheres como algo que emergia inesperadamente. Da mesma forma que o Vesúvio é habitualmente visto como apenas uma montanha até se revelar um vulcão, criando assim uma “rutura epistemológica”, um choque cognitivo na cabeça das pessoas, a identidade emergente das mulheres vai chocar e agitar tudo mais uma vez. Talvez haja muito a aprender com a paisagem no que diz respeito à perda das referências convencionais. O que acontece quando nos tornamos permeáveis à paisagem? Neste sentido de profunda desilusão, Le Nemesiache acreditava que emergiriam revelações dos seus corpos dançantes na sua paisagem. Deixa o calafrio entrar. Uma voz-off diz: “Era uma vez, há muito tempo, a história de uma mulher. Viajou. Existiu. A história de uma mulher. Uma longa pausa. Coração Abrandado. Uma longa pausa. Coração Abrandado. Uma amiga minha disse-me que este sentimento era uma forma de ligação profunda; de ter a oportunidade de olhar para qualquer coisa de novo. De olhar umas para as outras. De tentar alcançar. Outra vez.”

          Sentir um aperto no peito. Esta história antiga. A trabalhadora das obras deixa cair o escopro e o martelo, mas mantém o movimento de perfuração. Outra personagem emerge de um dos lados do palco e tenta absorver o movimento. Uma força gravitacional entre elas. Uma forte intuição. Viaja. Um charme trémulo. É uma dança. Incapaz de relaxar. Abranda-o. Sentir-se empurrado para baixo. A palma da mão morna que pressiona outra. Um fogo interno, que sai através da respiração. Como o corpo reage ao stress. Como o corpo performa o stress. Respirar. Toda a sala a pulsar, luzes trémulas de cores diferentes. É assoberbante. Esgueira-se. Blackout. Liberta.

          Agora as duas pessoas juntam os fragmentos partidos para criar uma pequena montanha. É colocada uma estrutura sobre a montanha. Um holofote brilha sobre ela. Entra uma outra personagem chamada Wilgefortis que se derrama na placa vertical. Wilgefortis é uma santa popular também conhecida na Alemanha por Kümmernis, que significa sofrimento ou ansiedade. Liberta. Ela é uma das personagens do drama épico, de 1981, Freak Orlando, de Ulrike Ottinger6. A voz-off do filme narra que, segundo reza a lenda, a barba cresce a mulheres de coração partido. Wilgefortis, com um vestido de noiva e uma coroa, é amarrada a uma cruz, enquanto outra mulher lhe serve um martini seco, num copo fino e muito alto. Com um belo canto lírico ela denuncia a sua vida e o seu martírio; interpreta também a voz do seu pai que a castigará e sacrificará por não ter aceitado casar-se com um príncipe poderoso: “Em Portugal, o rei cristão fala com a sua filha Wilgefortis: imploro-te, por razões de estado, que cases com o sátrapa, o potentado, o que é poderoso do outro lado do oceano, ou não mais serás filha minha”7. A filha riposta, suplica a Deus que a transforme em alguém com quem seja impossível casar e, em resposta, é-lhe oferecida uma barba. O pai vai ficando cada vez mais furioso com ela e ela deixa de verbalizar e recorre a lindos sons. É assassinada. Existe algo cómico nesta tragédia, o martini seco e o tom geral aligeiram as coisas. Esse pode ser o último sítio de resistência. A permissão para que nem tudo seja subjugado. Não perder a autoironia. Deixar de se identificar como uma vítima. Abandonar um papel ao mesmo tempo que se continua a ser uma referência para outras. A lenda atravessou os séculos e Wilgefortis tornou-se a padroeira das mulheres que se querem livrar de relações abusivas com os seus parceiros. Wilgefortis foi também tomada como alguém que transgrediu as fronteiras do género, já que a sua barba e o seu vestido longo alimentaram a confusão entre as suas representações e as de Cristo. No final foi excomungada. É realmente transcendental. Ela flutua.

          Deixa-te atravessar pelos calafrios. Está a abrir-se uma brecha. Respira. A trabalhadora das obras e a outra personagem pegam num balde com bolas a pingar tinta e atiram-nas para os lados do corpo de Wilgefortis. É ela o alvo. As personagens marcam a sua silhueta rindo e aplaudindo de cada vez que as bolas falham o corpo. Wilgefortis também se ri. Faz sons. A voz-off fala: “Deixo crescer a minha barba como modo de ser. Eu seguro-te. Aproxima-te. Já tinhas visto alguma coisa tão bela? Vá lá, não sejas tão duro comigo. Sei que também gostavas de ter o mesmo. Mais logo ensino-te um truque para o fazeres. (Um guincho de uma das personagens). Ok, agora pega no balde. Aplica a cor nas bochechas, depois no nariz e no queixo. Aqui vamos nós. Agora outra camada. Muito bem. Sorri. Confiança. Pisca o olho ao público. Faz uma dancinha. Bate um pouco no rosto. É isso mesmo. Assume as consequências de uma puta de uma decisão. É isso mesmo. Castigada. Pensavas estar a aprender como estabelecer fronteiras. Espalha mais. Respira fundo. Isso mesmo. Sacode. Ó miúda, estou atraída por ti.” Uma personagem aproxima-se de Wilgefortis e beija-a. Começa a ouvir-se a música da Shakira, Addicted to You, e as três dançam.

          Dizem que a dor de um coração partido está no cerne da consciência revolucionária, uma prática ainda por revelar8. Uma força gravitacional entre corpos que descobrem algo de novo. Uma atração fatal. Neste work in progress aparece uma imagem final. As cores de Io, a lua de Júpiter e o corpo celeste geologicamente mais ativo do Sistema Solar, brilham no ecrã que está no palco. Uma atração fatal. A superfície de Io vai-se renovando com as suas vastas montanhas vulcânicas sempre a mudarem debaixo dos constantes rios de lava. Este ambiente extremo é causado por uma profunda fricção que existe dentro de Io e pela força gravitacional de Júpiter. Tons de amarelo, roxo, laranja, preto, verde. As mesmas cores da tinta à volta de Wilgefortis. Aproximam-se, beijo. Continuam inesperadamente a explodir. Continuo a sonhar com este espaço e a partir dele com a transmissão de um sentimento de lenta rutura. Apesar da ansiedade latente, o final será surpreendentemente alegre.

          1 O título do texto é um jogo com as palavras “heartbrake” que significa “coração partido” e “brake” que significa “abrandar”, aludindo assim a um coração que abranda.
          2 Hans van Bülow, maestro alemão do século XIX. Agradeço à minha aluna Sophie Refsgaard ter partilhado comigo esta referência.
          3 Integradas no projeto internacional intergeracional de entrevistas “Transmissões Feministas”, com Gabby Moser e Helena Reckitt. O projeto consiste em entrevistas orais com mulheres que participaram na segunda vaga do movimento feminista em Itália, com especial foco na autorrealização e no trabalho coletivo. O projeto incluirá uma exposição e uma publicação com as respostas de artistas contemporâneas de Toronto, Amesterdão, Londres e várias localidades de Itália.
          4 Lina Mangiacapre, Cinema al Femminile (Pádua: Mastrogiacomo, 1994), 2.
          5 Ibidem
          6 Freak Orlando, de Ulrike Ottinger, com Magdalena Montezuma e Delphine Seyrig, 35mm, 126 min, 1981.
          7 Wilgefortis em Freak Orlando, disponível aqui https://www.youtube.com/watch?v=7lWR2Bm2YzQ [consultado a 29 de julho de 2023].
          8 Gargi Bhattacharyya, “We, the Heartbroken”, Pluto Press, https://www.plutobooks.com/blog/we-the-heartbroken/ [consultado a 17 de julho 2023].

          Alaa Abu Asad Flores Plantas silvestres da Palestina

          Aconteceu estar a acompanhar uma amiga e a sua família até um pedaço de terra que lhes pertencia, e onde faziam agricultura biológica, quando vi as tulipas vermelhas. O seu talhão fica algures entre a vila palestiniana de Kobar e o colonato israelita de Halamish; ao lado de outros talhões que pertencem a outros palestinianos, a maioria plantados com oliveiras e vegetais da época. Os terrenos eram conspicuamente delimitados por muros baixos de pedra e com terraços em cascata, condizendo com o seu nome em vernáculo palestiniano: sanasel (سَناسِل). Tradicionalmente, estes terraços foram formados por paredes de pedra erguidas pelos locais, que assim transformaram o terreno acidentado em socalcos mais adequados para a agricultura. Os terrenos foram também firmemente vedados para prevenir incursões de animais selvagens – sobretudo javalis e colonos raivosos –, capazes de entrar e destruir tudo; ou de simplesmente atear fogo às oliveiras.

          Foi ali, no encantador planalto isolado, que encontrei as túlipas vermelhas. Simples e vívidas, bastante grandes e ainda assim delicadas, semelhantes às que podemos encontrar em floristas e ramalhetes. Foi a primeira vez que me apercebi da sua existência selvagem na flora da Palestina e o pai da minha amiga insistiu: “Estas são as túlipas de al-Jabal, tulipa montana”. Imensas espalhadas em grupos por toda a montanha, ficam orgulhosamente juntas, de pé, como se para uma performance, exibindo o seu encanto desejável e deixando-me mudo, fascinado pela irresistível beleza pura e pela maravilhosa combinação de cor, estrutura e forma. Desafiando os limites da minha conformidade com o instinto da propriedade, dei por mim a apanhar algumas destas cobiçadas túlipas vermelhas e a levá-las para casa. Muito entusiasmado com a sua qualidade, tentei, várias vezes, fotografá-las e sublinhar a sua presença selvagem e natural, o seu charme latente, ou até mesmo mostrar a sua forma de ser: desgrenhada.

          Por altura de março de 2016, fui convidado pelo Museu Palestiniano, em Birzeit, para acompanhar professores do departamento de biologia e bioquímica da Universidade de Birzeit (BZU) na sua visita semanal de observação de flora endémica e de recolha de informação. Fomos conduzidos por um jovem taxista da vila de Kobar que parecia bastante familiarizado com a área e os seus trajetos mais selvagens e recônditos. Durante mais de três meses, passámos as viagens a localizar as plantas que figuravam na nossa lista, por entre montes e vales, perguntando a aldeões por quem passávamos se conheciam os nomes de determinadas plantas e a sua utilização. Contudo, não nos foi possível realizar um estudo e um levantamento exaustivos da flora palestiniana, uma vez que as nossas visitas se limitaram aos territórios situados na Cisjordânia (excluindo os colonatos israelitas, as bases das Forças de Defesa de Israel (FDI) e outras zonas restritas). Geograficamente falando, e devido ao sistema de separação do apartheid e às circunstâncias da ocupação, a nossa área (de investigação) estava confinada entre Jenin (جِنين), a norte, e as colinas de Hebron (الخَليل), a sul; a viagem em si poderia passar por muitos postos de controlo militares e soldados e colonos desenfreados.

          Preocupado com a qualidade das imagens que tinha para fornecer ao museu, passei um tempo considerável a procurar referências visuais. Curiosa, mas não surpreendentemente, acabei por encontrar um conjunto de fotografias antigas intituladas Wild Flowers of Palestine (de cerca de 1900-1920), que se encontram na Coleção Matson, na Biblioteca do Congresso, na cidade de Washington, nos Estados Unidos da América. Cento e vinte e três fotografias, a maior parte a preto e branco, de flores silvestres e plantas que cresciam em diferentes sítios da Palestina. Entre as flores e as angiospérmicas estavam:
          cebola rosa selvagem,
          erva-dos-gatos selvagem,
          alho selvagem,
          cercefi selvagem,
          arruda selvagem,
          campo de mastruço selvagem,
          campo de mostarda rosa,
          tremoço-azul,
          arum-da-Palestina,
          estrela-de-Belém,
          papoila-síria,
          bananas,
          amendoeira em flor,
          flores de alfazema espinhosa,
          mandrágora em flor,
          lírio do campo,
          cardo-mariano,
          camomila,
          flor de milho,
          túlipas,
          orquídeas,
          clematis,
          olho-de-faisão,
          ranúnculos,
          folha-de-leão, e muitas outras. As fotografias mostravam plantas cuja escala variava entre herbáceas de pequeno tamanho até arbustos maiores e árvores, e forneciam informação elementar, mais sobre a codificação das próprias fotografias e documentos do que sobre a flora capturada nas imagens. Uma análise detalhada das justaposições, em algumas fotografias, das plantas e da paisagem circundante, por vezes da arquitetura e, noutros casos, dos seres humanos – habitantes da Palestina vestidos com os seus trajes tradicionais – levantaria questões mais profundas sobre o objetivo dessas fotografias e sobre o papel (político) da prática da fotografia no Levante e no Norte de África desde essa época até hoje. Esse tipo de fotografia, que transmitia um olhar orientado sobre o lugar e as suas gentes, captava paisagens, em particular na Palestina, e servia os projetos coloniais posteriores, que se concentravam deliberadamente em determinadas áreas vazias do território, ignorando qualquer cultura existente. Também sublinharia o posicionamento dos repositórios de imagens no que diz respeito ao mapeamento (como ferramenta de soberania) e, finalmente, a possibilidade de (mal) representar um lugar.

          A iniciativa conjunta de acompanhar os professores da Universidade de Birzeit nas suas visitas de observação foi promovida pelo Museu Palestiniano no âmbito da preparação da sua cerimónia de abertura. O museu pretendia fornecer aos seus convidados uma brochura impressa com fotografias e informações básicas sobre as plantas cultivadas (endémicas da Palestina), enquanto os convidados se passeavam pelos seus jardins. E assim foi. Apesar da abundância na coleção de factos e informações que fiquei a conhecer sobre a flora palestiniana ao longo destas visitas organizadas, dei por mim mais fascinado pela paisagem montanhosa e pela topografia multifacetada, mas apelativa, da Cisjordânia, em particular da zona oeste-norte de Ramallah e Birzeit (رام الله وبيرزيت), e das aldeias circundantes. Atravessar as trajetórias deste lugar, repleto da sua própria história e carregado com o seu silêncio tenso, fez com que se tornasse impossível não deixar os meus olhos percorrerem as memórias invisíveis e os incidentes desta terra. Uma experiência visual omniativa que a fotografia e as imagens nunca poderiam garantir por completo.

          Quem é provável que receba a informação?

          Estas viagens de observação permitiram-me voltar a olhar para as minhas fotografias, recordar como a fotografia pode ser agradável e inferir o seu potencial pedagógico – embora altamente político e seletivamente vago pela sua qualidade fantasmagórica e de vigilância1. Para além disso, através da sua presença digital generalizada e da miríade de formas de utilização e aplicação, a fotografia tem sido amplamente mal utilizada e, sobretudo, mal interpretada. Na sua contribuição para a exposição Visibility Machines: Harun Farocki & Trevor Paglen2, a investigadora Hilde Van Gelder afirma que, devido à atitude, tanto da fotografia quanto do filme, de pretenderem testemunhar sobre [um acontecimento], consideram-se ambos como uma forma de abordar a realidade não só como o resultado de um determinado processo de investigação, mas também como uma experiência de registo que é pessoal. Assim, “a fotografia e o filme”, continua, “tornam-se um instrumento privilegiado [através da sua utilização alargada e ‘democrática’ na era da tecnologia das redes sociais] que pode contribuir artisticamente para imaginar um mundo mais igualitário”3. No entanto, a fotografia deveria ser um instrumento didático que incentivasse o espectador a ver para além da informação óbvia e a olhar para o que está escondido dentro da própria imagem. Ou seja, o papel urgente da fotografia e das imagens é o de capacitar o espectador, incentivando-o a olhar a realidade quotidiana de um ângulo diferente.

          Foram estas peculiares viagens que me orientaram para as tulipas vermelhas nas montanhas da Palestina, para as torres de vigia de balões plantadas em Tall Asur (تل عاصور – o ponto mais alto da Cisjordânia), para a sua função e para as fotografias de arquivo da Coleção Matson que fazem o levantamento das flores silvestres da Palestina. Todas elas me chamaram a atenção para os atributos potencialmente fanatizantes e alegóricos da fotografia e das suas várias práticas e utilizações. A integração da fotografia e da produção de imagens tem vindo a constituir-se, de forma proeminente, como um elemento estrutural nos domínios do turismo (capitalista),
          do lazer,
          da observação,
          da espionagem,
          da vigilância,
          do domínio,
          da cidadania,
          da migração,
          dos media,
          etc., mas é informativamente restritiva. Tal facto só acentua as lacunas e o desequilíbrio da chamada cultura visual e, por conseguinte, o conceito de conhecimento-como-poder a um nível mundial (Sir Francis Bacon)4. Também me faz pensar até que ponto a fotografia, enquanto ferramenta, prática e recolha de informação pode ou não ser objetiva e não etnográfica. Questiono-me ainda sobre qual a imagem “representativa” que um museu, ou qualquer outra instituição na Palestina, está a tentar transmitir. Poderá alguma imagem da paisagem palestiniana representar verdadeiramente a Palestina?

          1 Ver Eduardo Cadava, Words of Light: Theses on the Photography of History (Princeton: Princeton University Press, 1998).
          2 Curada por Niels Van Tomme e organizada pelo Center for Art, Design and Visual Culture na Universidade de Maryland Baltimore County, em 2014. (N. E.)
          3 Hilde Van Gelder, “Reclaiming Information, Rebuilding Stories: Reinventing Fundamental Rights”, em Visibility Machines. Harun Farocki and Trevor Paglen (Baltimore: UMBC Centre for Art, 2014), 66.
          4 Ver Azamfirei L. “Knowledge is Power”, Journal of Critical Care Medicine (Universitatea de Medicina si Farmacie din Targu-Mures), 2, n.º 2 (2016): 65-66. https://doi.org/10.1515/jccm-2016-0014.

          Daniel Moraes Gio Lourenço Angelo Custódio Projeto Decorporeidades

          Projeto Decorporeidades

          Este é um projeto de pesquisa teórica sobre a produção artística de pessoas com deficiência no âmbito das artes visuais e performáticas. Idealizado por Daniel Moraes, artista e pesquisador brasileiro, em colaboração com Filipa Cordeiro, investigadora e artista portuguesa, o Projeto Decorporeidades visa gerar, reunir e divulgar conhecimentos sobre as relações entre arte e deficiência. Durante o primeiro semestre de 2023, foram realizadas entrevistas audiovisuais com os artistas ngelo Custódio, Diana Niepce, Gio Lourenço, Marta Sales, Nazareth Pacheco e Tony Weaver, no intuito de investigar suas poéticas, produções e identidades artísticas concernentes às pautas da corporeidade da deficiência (a que chamamos decorporeidade). Neste número do Coreia publicam-se as entrevistas com ngelo Custódio e Gio Lourenço, que foram transcritas e editadas pela equipa do projeto.

          Entrevista com Gio Lourenço

          Daniel Moraes (DM) — Que vivências iniciais marcaram a sua trajetória artística?

          Gio Lourenço (GL) — O meu primeiro campo artístico, sem eu o saber, foi a dança. Mas aos 14 anos decidi o que queria para a vida e fui estudar teatro e animação num curso para pessoas inadaptadas e com deficiência.

          DM — Como foi a sua relação com as pessoas na escola e o seu convívio com outras corporeidades?

          GL — Estudei na CERCICA [Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais], uma escola em que todas as pessoas têm algum tipo de deficiência, visível ou invisível. A primeira impressão que tive foi que estava numa escola de malucos. Pensei: “Se estou numa escola de malucos, então devo ser maluco.” Mas ao mesmo tempo que estava assustado, encarava aquilo com naturalidade. Lembro-me de haver quem tivesse ataques de pânico ou de raiva e de me aperceber de como é que ia lidar com cada pessoa e a sua deficiência. Cada um fazia os movimentos da sua corporalidade e isso era muito interessante, porque os corpos não estavam em competição, mas em aceitação. Fazíamos exercícios de aquecimento como meridianos, tai-chi e chi kung, e trabalhávamos a fala, o texto, o corpo. Era uma formação bem alargada. Sentia-me apoiado pelos meus colegas e ninguém falhava a nível físico — e com aqueles corpos. Estava tudo muito bem equilibrado, porque a nossa forma de trabalhar ia quase no sentido de atingir a perfeição, porque o nosso desafio era totalmente maior. Era um trabalho de grande intensidade, mas ao mesmo tempo de grande respeito. Durante o curso, a Amélia Videira, que foi minha professora, propôs que eu fosse ao casting para o musical Cabeças no Ar [2004, enc. Adriano Luz], e foi com essa peça que me estreei como ator profissional no Teatro Municipal São Luiz [Lisboa]. Na altura, não imaginava que iria marcar a minha vida.

          DM — Hoje no Brasil se discute muito a questão da educação inclusiva, onde não se segmenta uma classe para os deficientes. A gente aprende muito com a deficiência do outro. Eu só muito tarde tive acesso a pessoas com deficiência e comecei a perceber que existia uma proximidade de experiências, apesar de as deficiências serem diferentes. O que você vive, eu vivo de outras formas com a minha deficiência nas mãos, que possuem uma deformação congênita e a ausência de alguns dedos. A nossa corporeidade vai se construindo a partir dos embates conflituosos com o ambiente social que nos cerca. Quais as características ou sintomas que você reconhece no seu corpo que incorporam essas memórias significativas da sua trajetória?

          GL — Identifico-as quando falo. É comum as pessoas não entenderem o que quero dizer — logo a compreensão não é muito imediata, logo é complicada e parece que tem de haver uma tradução. Talvez seja uma fala disléxica. Digamos que há tempos normativos em que as pessoas encontram o raciocínio para dizerem o que querem dizer. O que sinto em relação à minha fala é que ela tem momentos partidos.

          DM — Acha que a forma de você lidar com a sua fala se reflete no seu modo de pensar o movimento do corpo no seu trabalho?

          GL — Sim. Quando me é custoso articular um discurso, prefiro primeiro traduzi-lo no corpo em dança. A partir daí é que nasce a fala — mas ela pode vir primeiro em dança.

          DM — Então existe uma conexão que lhe permite encontrar outros meios de o corpo se manifestar com uma certa fluidez? Talvez seja uma relação de permuta e não tanto de compensação.

          GL — Existe mesmo, o corpo toma conta e coloca-me num lugar onde eu queira caminhar enquanto artista.

          DM — O reconhecimento próprio enquanto pessoa com deficiência é algo que se vai construindo, mas muitas vezes é o outro que encontra problemas numa corporeidade que difere das características normativas. Você encara a questão da sua fala enquanto ferida ou cicatriz?

          GL — Por vezes, quem me ouve faz correções. Algumas são válidas, mas depois surgem correções atrás de correções e o outro apercebe-se de que a minha fala não é normativa. E isso pode traduzir-se até numa situação física, porque tudo leva à desconfiança a partir do teu verbo.

          DM — Você fala de correções que ferem e isso é muito marcante. A pessoa vai corrigindo, e o que é educativo acaba por se tornar uma agressão.

          GL — A certa altura questiono-me se a correção é positiva ou se começa a incomodar. E quando incomoda, já pode ferir. Há um jogo duplo, não é? Sei que a outra pessoa me corrige para me ajudar mas, se fica sempre nesse campo, ou faço uma travagem ou ela vai mais a fundo. E aí penso: “Vamos lá ver se essa pessoa realmente quer tocar na minha ferida.” Não a vejo como uma ferida frágil, levo-a comigo e aceito-a. Mas há um aspecto físico, um manejo da boca que expressa, e o olhar do outro está sempre a tentar perceber a partir desse lado físico se tens um lado intelectual muito presente ou não. Mas só vê o corpo e a fala quotidianos, não espera que sejam trabalhados como corpo artístico e em dança. Muitas vezes encaro essa cicatriz com leveza, mas há momentos em que também a encaro com melancolia e dor.

          DM — A deficiência tem uma coisa, é que ela te acompanha sempre. Eu encaro-a muito mais como cicatriz do que como uma ferida aberta. Está ali, você convive com ela, mas sabe que muita gente ainda vai colocar o dedo — não na ferida, mas na cicatriz —, e você vai ter que remontar e justificar toda uma situação cotidiana. A deficiência sempre está em coisas simples, que são minimizadas, e o fato de a gente tentar amenizar essa presença gera sofrimento. Mas não precisamos falar da deficiência apenas enquanto sofrimento, e acho que os artistas contribuem para expandir essa discussão.

          GL — Eu nunca fiz terapia da fala, aprendi ouvindo, falando, conhecendo a sonoridade do meu ouvido. Adquiri muletas no quotidiano para me defender, mas chega o momento em que elas desaparecem, porque eu apareço na minha forma de ser. Enquanto artista, estou a começar a assumir uma coisa desafiante e não sei como é que certos grupos ou contextos artísticos vão ver a deficiência, que é algo que cria estranheza ou choque, e que muitas vezes é colocado num lugar de condescendência. Mas se eu não tivesse a deficiência intelectual que tenho, não seria o criador que sou hoje. Também faz parte de mim.

          DM — Em novembro de 2022 presenciei sua performance Boca Fala Tropa no Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, e entendi que a dança ali surge como um manifesto, o que tem muito a ver com a história do kuduro.

          GL — O kuduro foi o primeiro contacto que tive com a arte, antes da representação, e é uma das coisas que me mantém ligado às minhas raízes africanas em Angola. O kuduro tem uma relação de proximidade com a deficiência, porque nos anos 1990 a maioria dos bailarinos eram mutilados de guerra e assumiam-no. É bonito ver alguém dançar assim, sem pudor, e as pessoas olharem o corpo deficiente sem preconceito. A guerra é um trauma — pode levar uma perna, pode levar um braço, pode matar —, e os corpos mutilados são exemplos nesse sentido. A maioria dos passos de kuduro, como o aleijado, o brututo, o jaracuza, o gato preto ou o tá maluco, foram criados por pessoas com deficiência e depois incorporados por cada um da sua forma. Lá está, corporeidades. O facto de haver esse tipo de inclusão no kuduro é incrível. No Boca Fala Tropa não podia deixar de estar em contacto com a guerra, porque trago um corpo com deficiência, presente, mutilado: um corpo-manifesto.

          DM — O que acaba transformando a deficiência em corpo cultural.

          GL — O título também faz alusão à boca que fala de forma agressiva. Os kuduristas têm uma forma muito específica de cantar: quando rimam, é como se estivessem a disparar balas e não houvesse respiração. É o que acontece na fala, não é? A boca dispara, coloca questões, é política. Ao ouvir o kuduro, dou atenção ao lado poético e político. Como a guerra esteve presente, os movimentos nunca vão ser suaves. Há um barulho. Contudo, Sebem, um dos fundadores do kuduro, dizia: “Como é que eu canto a felicidade no tempo da guerra?” Ele cantou a felicidade no tempo da guerra, e as pessoas que cantam o kuduro agora, no tempo da paz, cantam o tempo da guerra. É bem louco isso.

          DM — Você traz também uma questão sobre a sua cicatriz no rosto e, para mim, ficou nítido o quanto a experiência corporal atravessa o seu trabalho.

          GL — Fiz essa cicatriz em Angola, em tempo de guerra, mas ela tem várias camadas. Simboliza uma transição, a minha vinda de Angola para Portugal. Houve alturas em que nem sabia que a tinha. A Sofia Berberan, fotógrafa e produtora artística de alguns dos meus projetos, sugeriu ficcionar essa parte do meu corpo, também ela rachada, e o espetáculo começa com o corte. Dessa “Angola imaginária” também trouxe para o Boca Fala Tropa as festas que a minha mãe fazia no meu bairro, o Bairro do Fim do Mundo, em São João do Estoril. Estava tudo junto: a festa era a guerra, a guerra era a festa. A felicidade é um manifesto, não é? Uma vez perguntaram-me: “Mas porque é que trazes as festas do Fim do Mundo para as tuas peças?” E houve uma vez em que soube responder: “A festa é a minha mãe.” Nesta peça, que é um tríptico, uso a palavra “festa” como um código, mas sei que é a minha mãe. O espetáculo parte do corte, vai para a festa e por fim para a amnésia. Essa amnésia é algo que ainda não soube resolver direito — ainda estou a descobrir o que é, ao longo dos espetáculos que vou fazendo.

          Entrevista com Angelo Custódio

          Daniel Moraes (DM) — Como você percebe a relação entre a sua produção artística e a sua identidade corporal enquanto pessoa com deficiência?

          Angelo Custódio (AC) — Utilizo metodologias que vêm de uma relação pessoal com o corpo não-normativo: práticas relacionadas com a escuta, que iniciei com o ato de ouvir internamente o meu corpo e as suas necessidades na relação com o mundo, ainda em criança, e que mais tarde trabalhei no bacharelato em Canto Clássico, no conservatório de música de Amesterdão. A adaptação a um mundo que não foi pensado para nós e a capacidade de improvisação são dados muito presentes na vida de uma pessoa com deficiência, e eu incorporo isso na minha prática artística. No texto “Queering the Body: Sensation and Curiosity in Disrupting Body Norms”1, Rae Johnson afirma que, ao cultivar processos de escuta do corpo através da componente somática, a interrupção de normas corporais torna-se não só numa estratégia de resistência contra a opressão como também um processo criativo de investigação sensorial, que cada corpo estimula enquanto prática de libertação. A isto junta-se uma desestabilização das convenções, o que na minha vida e prática artística é tanto uma escolha como uma consequência. O processo de vigilância do olhar do outro e de perturbação das normas sempre aconteceu, pois quando escolho não esconder a deficiência, essa desestabilização acontece.

          DM — Poderia falar um pouco mais sobre o seu percurso acadêmico?

          AC — Depois de ter estudado canto, quis fazer a transição para as artes plásticas e encontrei o Sandberg Instituut, em Amesterdão, onde há temporary programs, mestrados que acontecem apenas uma vez. Um deles foi o Master of Voice (2016-2018), onde estudei artes plásticas em relação com a performance, a voz e questões de género e tecnologia. Foi a partir daí que construí a minha prática que, tal como a minha identidade, tem um posicionamento interseccional feminista queer e crip.

          DM — Como foi o processo de criação de QueerAble Adaptations (2019) e de QueerAble In/Stabilities (2020)?

          AC — A investigação partiu da memória física da minha experiência com o corpo em criança. Eu não nasci com uma perna amputada — a amputação veio bastante mais tarde, aos 19 anos. Quando era criança, não conseguia andar verticalmente, mas tinha um movimento bastante fluido sem prótese ou aparelho. Queria traduzir essa prática de movimento em som, usar a voz e a linguagem para desestabilizar o que é, ou pode ser, um corpo com deficiência, mas também as normas existentes e os agentes que as mantêm presentes no dia a dia. Nestas peças refiro uma cantiga cuja origem desconheço, mas que terá uma base militar: “Um, dois, esquerdo, direito, encolhe a barriga e estica o peito.” É uma forma disciplinar transmitida pela cultura oral que a minha avó costumava cantar-me, e que eu incorporava sem me aperceber do quão desconectada estava da minha experiência. A cantiga reproduz a ideia de uma postura vertical “correta” — também muito presente no canto clássico —, mas a verdade é que um corpo que respira está em constante movimento, nunca está fixo. Estas normas são feitas por nós, para nós — portanto, cabe-nos a nós entendê-las e decompô-las. QueerAble Adaptations foi uma primeira investigação sobre o movimento e o elemento prostético. Em QueerAble In/Stabilities substituí a minha prótese por uma barra metálica, que servia de interface entre o movimento do meu corpo e a materialidade do espaço. Este contacto era amplificado e manipulado eletronicamente. Mais tarde, o material foi transposto para um contexto instalativo em que o público experimentava o movimento-som no seu próprio corpo, através de um interface háptico de vibração.

          DM — Que artistas são referências para você na abordagem à corporeidade não-normativa?

          AC — Muitas vezes, a questão do corpo não-normativo na arte fica-se pela representação. Como esta perspetiva me parece insuficiente, tendo a olhar para outras abordagens artísticas e para a literatura académica. Gostava de referir Constantina Zavitsanos, artista americane queer com deficiência, que investiga novas estratégias e espaços a partir das relações da identidade queer-crip com o mundo, e a Isabel Lewis, uma artista sem deficiência, com formação em literatura e coreografia, que a partir de uma perspetiva queer cria momentos não lineares e mais vivos de relação entre o público e os performers. Em termos bibliográficos, os escritos de Robert McRuer sobre decomposição de formas predeterminadas, em ressonância com uma noção mutável de identidade, que se relacionam de outra forma com a escrita de Karen Barad, que mistura filosofia e física quântica para abordar, numa perspetiva materialista, a questão da indeterminação e da multiplicidade, fazendo um paralelo entre natureza e sujeito.

          DM — No Manifesto Contrassexual (2000), Paul B. Preciado entende a queeridade de uma forma próxima à deficiência, o que me desconcertou: “Espera aí! Porque é que ele se considera deficiente? Porque é que a deficiência está tão próxima da experiência queer?”

          AC — Preciado fala muito sobre monstruosidade, e os mundos da identidade queer e da deficiência provocam um sentimento de repulsa à comunidade normativa. Mas talvez uma pessoa com deficiência não sinta sempre a necessidade de desestabilizar as normas corporais — embora já o faça, apenas por existir.

          DM — Como você acha que as instituições artísticas lidam com a corporeidade da deficiência?

          AC — Varia conforme as instituições e os países, mas acho que a aceitação da arte com conteúdo relacionado com a deficiência tem sido o último dos movimentos de libertação no campo cultural. Os movimentos de descolonização, de identidade de género ou de orientação sexual abriram as portas para que isso acontecesse e se repensasse o que é que o conceito de corpo não-normativo pode incluir. Mel Baggs, blogger não-binário que escreveu bastante sobre autistmo e deficiência, tem um texto muito interessante onde refere que há uma hierarquia vertical da opressão que, na maioria das vezes, tem por base o capacitismo2. Mas falar de deficiência é conflituoso, porque as pessoas não querem abordar situações debilitantes, nem pensar no facto de que a deficiência não acontece só à nascença, nem lidar com uma estética muito diferente da que é promovida pelo capitalismo neoliberal. Na Holanda, onde vivo, há cada vez mais interesse nestas temáticas, mas o ponto de entrada geralmente não é o corpo não-normativo, mas sim a acessibilidade da cultura.

          DM — O que é problemático, não é? “Acessibilidade” é um termo que amplia muito o discurso, tal como “multiculturalismo”. Ao usar estes termos, se perdem aspectos singulares. “Acessibilidade” ou “inclusão” são palavras necessárias para penetrar nas instituições, mas quando a gente desenvolve o próprio trabalho não precisa falar delas. No seu trabalho, você fala de muitas outras coisas e há atravessamentos que não o tornam necessariamente “acessível”. Esse é um ponto ainda problemático nas pautas de curadoria sobre a não-normatividade do corpo e talvez seja o nosso maior desafio hoje: sair das garras da acessibilidade e ocupar outros espaços.

          AC — Exatamente.

          DM — Como foi para si o processo de concepção da performance O Permuto que criamos juntos em 2021 a partir de trocas e interlocuções de experiências pessoais com a deficiência física?

          AC — Quando começámos a conceber o projeto, ainda não nos conhecíamos. Foi um blind date, coisa que não costumo fazer em contexto de trabalho. Por isso, partimos da partilha das nossas experiências com a deficiência, que se traduziu no título: O Permuto. Reconhecemos uma certa similaridade de experiências na relação com as estruturas familiares, académicas e laborais, mas também diferenças. Depois trabalhámos o modo como o desporto e o canto clássico disciplinaram e treinaram os nossos corpos e, dessa forma, as nossas mentes, e investigámos a interseção destas disciplinas com o corpo não-normativo, olhando para a falha, a falta, o défice e o desvio.

          DM — De fato, o trabalho nasceu da aproximação entre nós e do que desconstruímos a partir dela. O processo foi conflituoso, mas não de uma forma violenta: foi um conflito em que houve suavidade. Nesse encontro, a minha queeridade se tornou mais clara. Na minha identidade, a deficiência e a queeridade somam forças, uma vez que o facto de ser gay e deficiente tem um significado diferente do que teria uma experiência heteronormativa da deficiência.

          AC — O facto de teres uma deficiência e te identificares como queer foi o ponto de partida para eu aceitar o convite. Adoraria trabalhar mais vezes com pessoas com deficiência, pois nesta partilha há uma sobreposição de experiências e um entendimento — o que não significa que tenhamos de concordar. O meu percurso artístico deu-se em lugares onde não convivia com pessoas com deficiência, por isso é raro ter momentos de troca com alguém da comunidade que também entenda os processos artísticos. Isso é extremamente importante e espero poder repetir este tipo de experiência.

          Rae Johnson, “Queering the Body: Sensation and Curiosity in Disrupting Body Norms”, em Embodied Philosophy, URL: https://www.embodiedphilosophy.com/queering-querying-the-body/.

          Teresa Fabião Diálogos entre arte e vírus

          Há algum tempo tenho atuado em torno de uma dimensão social da dança. Em 2011, recebi o diagnóstico de hiv +, o que aprofundou uma jornada de cura emocional e criou uma enorme reorientação pessoal e profissional. Viver com o HIV trouxe-me um novo corpo, uma nova identidade social e condição de vida. Obrigou-me a encontrar novos sentidos e a refazer afetos. Ao longo destes doze anos, a dança, por sua vez, transformou a minha relação com um corpo e uma identidade fraturados pelo hiv. Foi neste contexto que surgiram dois projetos de vida – o espetáculo UNA (2021/ trabalho em processo) e o projeto comunitário IMUNE (2023).

          Desde 2016, está provado cientificamente que as pessoas que vivem em tratamento mantêm uma carga viral indetectável e, portanto, não podem transmitir o vírus. Vivemos numa época em que o HIV não é tanto um vírus físico, mas um vírus social. Entendê-lo assim permite ir à “raiz do problema”, concluindo que só a proximidade e o diálogo ajudam a dissolver o preconceito e a transformá-lo em empatia e corresponsabilidade.

          Estamos na era Indetectável=Intransmissível (I=I); porém, essa informação não é suficientemente divulgada. I=I quer dizer que as pessoas hiv+ se tornaram protagonistas no controlo da epidemia: uma pessoa que sabe o seu diagnóstico, que está a ser medicada mantendo o vírus intransmissível e que faz rastreios gerais de seis em seis meses, é um corpo a menos no cenário “roleta russa”. Ou seja, nos últimos anos, a realidade inverteu-se.

          A proposta de UNA e IMUNE é também inverter a narrativa sobre o(s) vírus, vendo-o(s) menos como inimigo(se mais como experiência(s)-portal, catalisadora(s) de processos de transformação individuais e coletivos. Estes projetos surgem com essa intenção: a de partilhar uma perspetiva sobre o que é viver com hiv atualmente, em discurso direto e multifocal.

          HIV: DE LIMITAÇÃO A EXPANSÃO

          Sou a primeira mulher em Portugal a assumir o hiv no seu discurso artístico. Trazer este facto, ao invés de uma suposta reclamação de mérito, evidencia o nível de preconceito ainda vigente no país. Nesse sentido, é também pioneiro o Coletivo VIRAL, cofundado por mim, Paolo Gorgoni aka Paula Lovely e Luca Modesti aka Er Baghetta, em 2020, que propõe uma ressignificação dos imaginários sobre hiv/sida através das artes performativas, celebrando a visibilidade e reivindicando a centralidade das pessoas que vivem com hiv. 

          Entendo o processo criativo como um modo de conhecimento e criação de sentido sobre o mundo. Foi precisamente por via de um processo criativo que não só revisitei as minhas feridas como explorei os efeitos advindos deste diagnóstico e as diferentes capacidades que o vírus foi acordando em mim.

          Em 2021 criei UNA, uma pesquisa sobre o hiv baseada em questões biográficas, biomédicas e sociopolíticas. UNA veio refletir sobre as transformações no corpo e na identidade causadas pela infeção, convidando a olhar para o vírus – e para a vida – a partir do lugar da reinvenção. A ideia expandiu-se através de entrevistas a outros corpos positivos realizadas em diferentes países (Brasil, Estados Unidos e Espanha), que abordaram temas complexos como a discriminação, a opressão e a resiliência dos corpos em diálogo com estas questões: como dar corpo ao invisível? Como falar do tabu? Como (de)mover e desconstruir preconceitos?…  

          A partir da relação indissociável entre arte e vida, interessou-me pesquisar e tensionar sentidos: o vírus do ponto de vista médico, o imaginário da saúde e da biologia, o vírus do ponto de vista social (estigma, relação entre público e privado, rejeição, cuidado, entre outros). Este aspeto relacional fez-me procurar uma dramaturgia com base em metáforas e estados corporais associados à convivência com o vírus. Como é que o facto de eu viver com hiv interfere na relação com o outro, como é que isso interfere comigo, e, por consequência, como é que isto se expandiu a partir do momento em que o assumi publicamente?… Interessou-me igualmente mergulhar no modus operandi do vírus, relacionando-me com ele como se de uma entidade se tratasse; ou até mesmo ver o vírus na sua qualidade de “falha no sistema”/colisão/disrupção… Tudo isso serviu como inspiração para UNA que, assim como o vírus, é mutante e um trabalho em processo.

          Por perceber que é um tema que tende a fazer emergir muitas emoções e tensões, faço conversas com o público após todas as apresentações. Uma vez, uma pessoa da produção de um festival onde atuei procurou-me no camarim, lavada em lágrimas, para partilhar que o seu irmão tinha falecido por complicações associadas a um quadro de sida. O facto de ter assistido à peça fê-la entrar em contacto com uma série de emoções não processadas, como os anos que passou a ir buscar medicação para o irmão ou os últimos meses em que este desistiu de tomar a medicação e acabou por morrer. Situações deste género evidenciam o quanto esta pandemia que dura há quarenta anos continua envolta em silêncio e o quanto trabalhos que abordam esta temática podem ser uma forma de atravessar a dor em conjunto, e não mais de forma isolada e silenciada.

           Foto de Giulia Ferrari no ato fundador do Coletivo VIRAL, a 1 de dezembro de 2020 no Terreiro do Paço (Lisboa).

          Como evolução desta peça, criei e dirijo, desde o início de 2023, o IMUNE, projeto comunitário sobre o vírus como motor de transformação social, que conta com o GAT/Grupo de Ativistas em Tratamentos como entidade promotora, e que irá desenvolver-se na cidade do Porto até 2025.

          Combinando criação artística, arte-educação e artivismo, coloca pessoas hiv+ e hiv- em diálogo, investigando o potencial da dança e das artes expressivas como motor de desconstrução do estigma e de ressignificação desta condição de saúde. O projeto surge igualmente para gerar mais qualidade de vida e incentivar diferentes níveis de visibilidade hiv+ em Portugal. Dentre as suas atividades fazem parte: um grupo de interpares artístico-terapêutico hiv+; um programa de formação com artistas e artivistas; um laboratório de criação & espetáculo comunitário; intervenções urbanas como flashmobs e ações nas salas de espera dos serviços de Infectologia; palestras em escolas; a realização de um documentário que contribua para uma maior representatividade e um estudo de impacto pela Faculdade de Motricidade Humana (Universidade de Lisboa).

          O IMUNE quer não só trazer um tema pouco explorado no panorama performativo nacional como enfatizar a importância de ser discutido em discurso direto — o slogan “Nada sobre nós, sem nós”, resume essa intenção. Paralelamente, o IMUNE propõe a criação de algo até então inexistente: uma comunidade hiv+ em Portugal. Aliás, quer criar uma comunidade que inclua também corpos aliades, permitindo que quem não pode assumir o hiv possa também participar e envolver-se. Quando menciono a escassez de coletivos, hoje em dia, na segunda maior cidade do país, Porto, nem a Abraço (maior ONG dentro da causa) tem um grupo ativo. Obviamente, nem todas as pessoas hiv+ vão querer buscar outros pares, porém, é importante que o possam fazer. 

           

          Compreender o hiv num lato sensu tem-nos permitido conectar com outros vírus sociais. No IMUNE, a adoção de uma lente interseccional, atenta à opressão e ao privilégio das diversas pertenças sociais, convida a perspetivar o hiv como uma causa encruzilhada, destacando a sua transversalidade com outras causas não-normativas. O facto de ser uma diferença invisível e de não haver propriamente um perfil associado ao hiv, leva a que, ao desmantelar o preconceito em torno deste vírus, possamos contribuir para desconstruir outros vírus sociais como o sexismo, a homofobia, o racismo, o classismo, o capacitismo e outros tipos de preconceito. 

           

          HIV: DO INDIVIDUAL AO COLETIVO

          A dimensão que tomou a pandemia de Covid-19 deixou expostas as nossas fragilidades e privilégios. Atravessámos um trauma coletivo que não está a ser tratado dessa forma. Neste momento, a arte e, principalmente, as artes do corpo, pode(m) ser um caminho para refletir e dar sentido aos desafios, ao luto, à reinvenção que está em curso. Urge repensar o que entendemos por imunidade; urge não esquecer a “comunidade enquanto imunidade”1. Urge ver a presença do vírus nas nossas vidas menos como um inimigo e mais como um mensageiro ou pedagogo2. Estes são alguns dos diálogos que UNA e IMUNE têm fomentado, querendo olhar para as ressonâncias entre ambas as pandemias — de Covid-19 e hiv —, no sentido de trazer à luz a experiência de vida daqueles que já se confrontaram com a sua própria mortalidade e estão há muito a viver face à incerteza. 

          A relação com um vírus acorda as nossas respostas traumáticas. Se o mundo terá que seguir a adaptar-se a novos vírus, é essencial compreender que eles não estão contra nós, eles fazem parte de nós. Isso é o que nos move nestas pesquisas: ver o vírus de uma forma expandida, natural, metafórica, inclusive como uma linguagem para entender as relações humanas, a opressão, a diferença, a marginalização. Para isso, precisamos de mais aliades.      

           

          NOTA: A sigla hiv é utilizada em letras minúsculas propositadamente, com a intenção simbólica de suavizar o peso associado ao vírus. 

          1 Paul B. Preciado, “Aprendendo com o Vírus”, El País, 2021, acedido a 14/08/2022, https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html.
          2 Boaventura Sousa Santos, O Futuro Começa Agora: Da Pandemia à Utopia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021

          Luísa Saraiva Saúde mental nas artes performativas

          O ambiente e as condições de trabalho nas artes do espetáculo criam um conjunto específico de desafios no desenvolvimento de identidades profissionais, na criação de um sentido de carreira e na gestão do equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. Na comunidade da dança – na qual a maioria dos artistas trabalha como freelancer – o padrão é o emprego intermitente e precário. Esta precariedade traduz-se não só em períodos de trabalho instáveis, mas também está associada a stress financeiro; elevados níveis de competitividade; pressão para estar constantemente disponível e ser flexível com o seu tempo; dificuldade em definir metas profissionais e medidas de sucesso; falta de um sentido de estabilidade, muitas vezes ligado a um estilo de vida transnacional.

           

          A investigação académica mostra sistematicamente que instabilidade, insegurança e más condições de trabalho têm um impacto negativo significativo na saúde mental1 [2]. Nas artes do espetáculo, as relações contratuais são fluidas e caracterizadas por uma falta de regulamentação, proteção social e desequilíbrios de poder. Ao mesmo tempo, nos contextos laborais, os níveis de autoexigência, desempenho, responsabilidade e pressão são elevados e constantes. Nas últimas décadas, a escassa investigação psicológica disponível2[2] mostra que os profissionais da dança são uma população especialmente vulnerável no que diz respeito à saúde mental, com uma maior prevalência de depressão, ansiedade e distúrbios alimentares do que a população em geral. É, assim, necessário abordar as consequências imediatas e a longo prazo da cultura de trabalho na saúde mental e no bem-estar desta comunidade.

           

          O processo de individuação e diferenciação da identidade pessoal e profissional é particularmente complexo na área da dança, uma vez que a condição de saúde física (como lesões ou doenças) e decisões privadas (como a parentalidade, só para citar a mais óbvia) têm um impacto direto e imediato nas possibilidades de trabalho. A maior parte dos profissionais da dança iniciou a sua formação em idades precoces, o que contribui para uma interligação, ou utilizando jargão da psicologia, para um enredar da identidade pessoal e do estilo de vida com as decisões profissionais. Estes aspetos permeiam todas as dimensões do desenvolvimento da carreira e das relações de poder, criando uma teia de vulnerabilidades com diferentes pontos de intersecção.

           

          No que diz respeito à saúde mental existem poucos recursos estruturais, quer no contexto educativo quer no profissional, para dar resposta às exigências e desafios do sector. A responsabilidade recai sobre cada um, individualmente, para procurar ajuda de forma independente, o que muitas vezes acontece já em situação de crise ou psicopatologia instalada. Está implícita a convicção de que cabe a cada pessoa assegurar a sua regulação emocional, encontrar soluções individuais para problemas sistémicos e definir limites e fronteiras. Isto embora o mal-estar e o sofrimento psicológico surjam associados ou até como consequência direta das dificuldades em navegar no mundo do trabalho e da sua relação, conflito ou interferência com outros contextos de vida. Este tipo de lógica remediativa pode reforçar desigualdades e favorecer um pensamento empresarial de auto-otimização. O que significa, ainda, que aqueles que não dispõem de redes de apoio e/ou que provêm de meios menos privilegiados são deixados em posições ainda mais vulneráveis. Isto é particularmente verdade para as comunidades LGBTQIA+, com deficiência e etnicamente diversas, que têm de lidar com múltiplas camadas de stress e discriminação.

           

          A pandemia de Covid-19 funcionou como uma lupa para os problemas de saúde mental mais prementes no sector. A dramática interrupção do trabalho durante a pandemia exacerbou os sintomas e aumentou a consciência da necessidade de um apoio mais consistente. Embora os efeitos a curto prazo das medidas de confinamento tenham sido amplamente debatidos (ou seja, stress, solidão, ansiedade, depressão), sabemos muito pouco sobre a forma como a experiência da perda, as pressões e os desafios dos dois anos de pandemia e o aparente regresso a uma vida profissional “normal” se repercutem na perceção atual do bem-estar. 

           

          É urgente criar espaços de discussão adaptados às necessidades da comunidade. Paralelamente às valiosas e necessárias iniciativas de cuidado e bem-estar entre pares, é importante facilitar o acesso a apoio psicológico especializado para a comunidade da dança em todo o território nacional. Este apoio deverá dar resposta às necessidades do sector através da intervenção precoce e contínua na gestão das exigências do trabalho freelance, do desempenho/performance/audição/digressão e da conciliação de diferentes papéis profissionais; nas implicações profissionais e psicológicas associada a situações de lesão e doença; e na promoção do desenvolvimento de competências interpessoais, sócio-emocionais e de estratégias de resiliência. Neste momento existe apenas uma estrutura em Portugal, a Fundação GDA, que proporciona o acesso comparticipado a psicoterapia para a comunidade artística. No entanto, nessa lista de profissionais consta uma única psicoterapeuta associada. Um primeiro e importante passo seria alargar ao país inteiro a lista de profissionais associados.

           

          Antes de iniciar a minha formação profissional em dança estudei psicologia e trabalhei como investigadora associada do Centro de Psicologia da Universidade do Porto. Durante todo o período da licenciatura em dança na Universidade de Artes Folkwang fui representante estudantil e trabalhei em conjunto com os serviços para a igualdade de oportunidades e de género da universidade. Enquanto estudante fiquei surpreendida, e até chocada, com a resistência e a falta de preparação do ensino artístico para integrar as chamadas competências transversais na formação de bailarinas e bailarinos, reconhecendo que as competências técnicas são apenas uma parte da formação e não são suficientes para poder navegar os desafios de uma carreira artística. Deparei-me com as dificuldades em encontrar ajuda especializada, atempada e regular para os pedidos de apoio que me chegavam (por exemplo, falta de motivação, sentimentos de incerteza e desesperança em relação ao futuro, dificuldades na gestão de stress, situações de abuso e discriminação). Esta perceção tornou-se ainda mais clara durante a pandemia, em que recebi inúmeros pedidos de ajuda e era notória a discrepância entre as necessidades e as possibilidades de apoio disponíveis. Por esta razão, em 2020 comecei a pesquisar sobre a investigação psicológica existente no âmbito da saúde mental nas artes performativas e tenho desenvolvido workshops e materiais de sensibilização com o objetivo de aumentar a literacia do sector e defender um melhor acesso ao apoio à saúde mental. 

           

          Em maio de 2023, no âmbito do programa Pista 3, o Alkantara – em colaboração com a Loja Lisboa Cultura (serviço da Câmara Municipal de Lisboa) – promoveu uma edição do Fórum Cultura sobre a Saúde Mental nas Artes Performativas, no qual estive responsável pela moderação. No fórum, com um formato de discussão e debate aberto, procurou-se reunir profissionais de diferentes áreas que trabalham com/ou investigam sobre questões de saúde mental e sobre a relação entre condições laborais e saúde mental. Foram abordadas as questões mais prementes no sector das artes performativas e a sua articulação com a sociedade civil e os desafios associados ao desempenho de funções de organização, direção e gestão em estruturas artísticas, contrapondo perspetivas e práticas, identificando as principais necessidades e recomendações de medidas a adotar e a implementar. É urgente reconhecer a necessidade de nos envolvermos em políticas de promoção de condições dignas de trabalho e da saúde mental que incluam não só artistas, mas também produtores, pessoal dos teatros, programadores, decisores políticos e de organismos de financiamento. O objetivo é garantir a criação de espaços seguros e de uma cultura de apoio, definir e implementar boas práticas de trabalho, e redirecionar recursos das instituições para projetos continuados de apoio à saúde mental. Todos os conteúdos abordados durante o fórum foram compilados num relatório que está disponível e pode ser descarregado no website do Alkantara. 

           

          1 Ver 1] Chirban, Sharon A, e Miriam R. Rowan (2017), “Performance Psychology in Ballet and Modern Dance”, em Psychology in Professional Sports and the Performing Arts: Challenges and Strategies, ed. Robert J. Schinke e Dieter Hackfort. Routledge: Nova Iorque.
          2 Clemens, Lucie (2022), Equity Global Scoping Review of Factors Related to Poor Mental Health and Wellbeing within the Performing Arts Sectors. Equity Mental Health Report. https://www.equity.org.uk/media/6188/mental-health-report5.pdf.
          3 PISTA é um programa modular de formação e de fóruns, com vista ao desenvolvimento e atualização de competências profissionais, à partilha de boas práticas e à discussão pública de temas da atualidade cultural.

          João Bento Matéria inédita

          Em 2015/2016, durante a criação da peça O Limpo e o Sujo, de Vera Mantero, fiz uma série de desenhos que são um léxico de movimentos contidos numa única frase de dança que percorria toda a peça. Estes desenhos serviram para analisar ao pormenor estes movimentos e também registar os seus nomes particulares, estudando assim sonoridades próprias para cada um deles. Os desenhos feitos a partir dos intérpretes da peça em movimento (Vera Mantero, Elizabete Francisca, Volmir Cordeiro) foram esboçados de forma rápida ao longo de vários dias no estúdio do Rumo do Fumo, constituindo assim uma longa linha de tempo. A música foi também, e sobretudo, um corpo presente e participativo na construção da coreografia dos três intérpretes, como um elemento aditivo na criação da própria peça, dialogante e iniciador de gestos e movimentos. Às premissas de limpeza interior e ecologia do eu – físico e espiritual -, procurei captar sons que refletissem sobre noções de ritual individual e coletivo.

          Vicente Escudero Mi baile (A Minha Dança)

          Vicente Escudero (1888-1980) protagonizou uma viragem no flamenco ao dar um caráter moderno a uma arte considerada tradicional, ao mesmo tempo que buscando as suas raízes na tradição cigana. A sua obra Mi baile, publicada em 1947, é um dos raros esforços teóricos no meio, a par do seu “decálogo” onde enumera dez mandamentos para o bailarino masculino: “1. Dançar como um homem; 2. Sobriedade; 3. Virar os pulsos de dentro para fora com os dedos juntos; 4. Ancas quietas; 5. Dançar de forma clara e sem vaidade; 6. Harmonia de pés, braços e cabeça; 7. Estética e plástica sem mistificações; 8. Estilo e acento; 9. Dançar com indumentária tradicional; 10. Manter uma série de sons no coração, sem chapas nos sapatos, nem outros acessórios.” A masculinidade do manifesto, testemunha do seu tempo, contrastava com a sua forma de apresentação, num poster cor-de-rosa, escrito à mão delicada e ornamentadamente pelo próprio. 

          Escudero foi também um respeitado pintor. Durante três anos viveu em Paris onde se cruzou com os protagonistas dos movimentos cubista, surrealista e dadaísta, cuja influência ficou espelhada numa performance em que Escudero dançou, em vez da guitarra típica ao vivo, ao som difundido de “dois dínamos de diferentes intensidades”. Mas a sua referência foi La Argentina, a bailaora com quem teve uma relação de amizade e forte discussão artística, e que se espelha num dos textos aqui publicados

          Vicente Escudero veio várias vezes a Portugal. A primeira visita foi nos anos 1920, quando foi nomeado de “zapateador inimitável”; voltou em 1943 com a Companhia de Arte Coreográfica Espanhola, ao lado de Carmina García, com quem protagonizou Amor brujo no Teatro Nacional São Carlos. Em 1951 regressa, por último, ao Teatro Tivoli, para dançar entre sessões de cinema.

           

          Mi baile (1947) A Minha Dança 

          Vicente Escudero 

           

          Antonia Mercé “Argentina”

          É tal a admiração que sempre senti pela arte desta genial artista que quis dedicar-lhe não apenas este imprescindível capítulo escrevendo sobre a dança espanhola, mas sim todo o livro, como sincera homenagem à sua memória.

          Antonia Mercé foi a criadora de uma escola de dança tão própria, tão genuína, que dela partiram e a ela foram parar todos quantos pretenderam ou tentaram dar universalidade à dança espanhola.

          A arte de “Argentina” inspirou-se em todas as modalidades pitorescas do bailado espanhol dos finais do século passado, que entrançaram os passos de Los panaderos de la flamenca, El olé de la Curra, La maja y el torero1… e que tamborilaram no “riá, riá, pitá”2 das sevilhanas. Mas ela soube elevar o nível destas manifestações artísticas populares, e dá-lo a entender e a admirar a todos os públicos do mundo.

          A sua figura alcançou proporções tão gigantescas que a sua fama só teve como rival a de Ana Pawlova, a outra eminente dançarina da altura.

          Foram muitas as polémicas a que esta rivalidade deu azo, e eu lembro-me de ter tomado parte em não poucas delas.

          Um dia alguém disse:

          – Ana Pawlova é, sem dúvida, a bailarina do século.

          – Y “Argentina” é a de todos os séculos – repliquei eu.

          – Ana Pawlova – continuei –, quando dança, dá a impressão de que não pousa sobre a impureza do palco. É como um pássaro no ar, como uma estátua grega num pedestal invisível. Antonia Mercé também não toca a terra, nem abandona o voo, mas sabe tirar, milagrosamente, por um lado, torrentes de sons rítmicos e, por outro, capturar no ar vibrações maravilhosas. Por isso, a arte da minha compatriota não tem comparação.

          Na realidade, Pawlova e “Argentina” foram dois temperamentos, duas inquietudes de uma mesma arte, e representam dois pontos de partida para o porvir da dança.

          Para o triunfo definitivo de Antonia Mercé contribuíram de forma eficaz a sua cultura artística e uma infinita aspiração de depuração estética, ambas necessárias para não se cair no falso, algo infelizmente tão frequente em certos meios da nossa atual coreografia.

          É sabido, por todos quantos seguiam o movimento artístico da dança espanhola, que “Argentina” e eu não nos entendíamos do ponto de vista artístico, e que andávamos sempre “como o cão e o gato”. Mas no fundo sempre estivemos de acordo, mesmo apesar de as nossas tendências serem completamente opostas. Ela era muito disciplinada e estudiosa; trabalhava as 24 horas do dia se tal fosse necessário. Eu, indisciplinado e boémio, só estudava de vez em quando.

          Para as minhas danças inspirava-me em Picasso; ela não passava de Zuloaga3. Eu nunca fui grande amigo da música, que só utilizava seguia em casos imprescindíveis; ela admirava-a e seguia-a fielmente, ensaiando até que música e dança estivessem completamente sintonizadas; e só então apresentava a dança no palco, com aquele seu maravilhoso estilo pessoal.

          Foi assim que a sua genialidade alcançou o grau máximo de expressão com os “palillos”4, o que lhe valeu o título de “rainha das castanholas”. Um trono que ficou vago desde a sua morte. Foi realmente um caso único na história da dança espanhola.

          Certo dia perguntei-lhe:

          – Ouça, Antonia: como é que os utiliza para tirar sons tão diversos a esses dois “pedacitos” de madeira? A senhora parece um prestidigitador que está constantemente a apanhar no ar diferentes castanholas, sem que ninguém saiba de onde as tira.

          – Não vale a pena falar disso – respondeu-me –; isto não se aprende, vem de longe… 

          E, sorrindo, alongou uma das suas mãos e produziu um pianíssimo que parecia acabado de chegar de não se sabia onde.

          Pensando nesta prodigiosa habilidade, eu não fazia outra coisa que não fosse dar voltas à minha cabeça, olhando as minhas castanholas por todos os lados para ver se eram diferentes das dela ou se tinham algum defeito.

          Um dia chegou-me às mãos um folheto de publicidade da dita artista que tratava desta questão:

           

          Quando era pequena (talvez 5 anos) ouvia constantemente em casa dos meus pais, que davam aulas de dança, o ruído pesado e monótono de grandes castanholas.

          Este ruído antimusical irritava-me de tal forma que me refugiava na última divisão da casa para não ouvir o seu eco. Aí exercitava os meus dedos de menina em cima de um par de castanholas, muito pequenitas, que o meu pai me tinha oferecido, esforçando-me inconscientemente – com aquela idade não se raciocina – para retirar do meu instrumento sons que não me ferissem os ouvidos, como os outros.

          Esses foram os meus inícios na arte que pratico, e posso muito bem dizer que o gosto que ganhei pelas minhas castanholas veio do desgosto que me inspiravam as de todos os outros.

          Pouco a pouco, o que não era mais do que instinto transformou-se em vontade própria, e pus-me a estudar minuciosamente a maneira de obter com a ponta dos meus dedos sonoridades cada vez mais pronunciadas. Procurava a razão do porquê de as castanholas, até então, em vez de serem dóceis aos dedos, lhes oporem constantemente o obstáculo da sua pesada uniformidade. Seria por causa dos cordões e seria necessário modificar a sua espessura? Conviria aumentar ou diminuir o diâmetro dos furos por onde passam esses cordões? Deveria acentuar-se, mais ou menos, a concavidade da própria castanhola? No fim, foi este problema que atraiu a minha atenção.

          Então encomendei ao fabricante toda uma gama de castanholas com concavidades distintas. Este ficou furioso, dizendo que lhe estavam a tentar ensinar o seu ofício. Respondi-lhe que da minha parte podia vender ao mundo inteiro as castanholas que costumava fabricar, mas que eu, para mim, precisava de outras. E foi desta forma que consegui, por fim, os meus propósitos.

           

          Depois de ler este folheto fui, pela minha vez, a um fabricante de castanholas, que também a contragosto acabou por me dar o que lhe pedia.

          Fechei-me no meu quarto e comecei as minhas experiências. Mas apesar de passar o dia todo naquilo, sacava sempre o mesmo som.

          Não me serviu de nada nem mudar a grossura do cordão, nem o diâmetro dos furos, nem a concavidade das castanholas. Apesar da minha habilidade e das sucessivas alterações, o resultado continuava a ser o mesmo.

          Eu acho que o segredo estava mesmo nela e levou-o para o céu para sempre visto que, até hoje, ninguém conseguiu dar com ele, nem o vai conseguir. Porque embora ela tenha sido a criadora desta escola que hoje todos cultivam, falta-lhes o génio da professora.

          Da minha parte,  ao ver que nunca conseguiria nada nesse sentido, mudei de tática. Por intermédio de um amigo consegui que numa fundição me fizessem umas castanholas em ferro, outras em bronze e outras em alumínio. Nestas últimas é que todos os fatores tinham influência: a concavidade, o furo, o peso. Tivemos que fazer uma infinidade de testes para no final, à força de paciência e de dinheiro, conseguirmos umas que soassem bem.

          Estreei-as num concerto na Sala Pleyel, em Paris, e não quero referir o que deram que falar em todos os meios artísticos parisienses. Em todos os sítios aconteceu o mesmo. Aqui em Espanha muitas pessoas lembram-se delas e perguntam-me porque é que já não as toco. A única razão é que as perdi juntamente com um baú, por causa destas guerras e por causa da extraordinária dificuldade em conseguir fazer outras.

          A nossa tão chorada artista, quando soube que as usava, dizia a toda a gente que só um louco poderia ter tido uma ideia daquelas. Isto sem saber que tinha sido ela a causadora da minha doença.

          No entanto, quando nos encontrávamos ou me chamava para colaborarmos juntos nalgum bailado, nunca chegou a falar-me das minhas castanholas metálicas.

          Antonia Mercé foi, na sua vida, uma pessoa encantadora, possuía uma simpatia que “assustava” e a sua bondade só era comparável à sua arte. Mas no trabalho tinha um temperamento forte e severo.

          Lembro-me de que enquanto ensaiávamos uma sequência do Amor brujo5 no grande teatro de Bordéus, ao ver-me sentado, descansando num cantinho, me disse com o sotaque duro que a caracterizava:

          – Vicente, o que estás a fazer aí? Ala, vamos ensaiar! 

          – Pois agora não ensaio. Ah! Além disso, eu não preciso de ensaiar – respondi.

          Este incidente criou uma atmosfera de nervosismo e o ensaio rapidamente acabou. 

          Mais tarde contaram-me que ela tinha comentado: “Este Vicente é um demónio; conseguiu pôr-me nervosa; ensaia sempre de qualquer maneira, e a verdade é que quando vai para o palco cai sempre de pé como os gatos.”

          No dia seguinte, quando nos encontrámos, continuámos a ensaiar como se não se tivesse passado nada.

          Noutra ocasião, em Paris, o seu empresário, Meckel6, foi procurar-me para pedir a minha colaboração para montar o Amor brujo com os Ballets Internacionais7, em que cada país com algum significado no mundo coreográfico apresentava o seu bailado.

          Como já tinha sabido que, além do bailado, Antonia também ia apresentar uma secção de danças a solo, respondi-lhe que aceitaria sempre com muito gosto quando eu próprio também pudesse dançar a solo.

          – Estou farto – disse-lhe – de não fazer mais do que tontices de mudo nesse bailado, limitando-me a andar de um lado para o outro pelo palco, nessa pantomima tão comprida.

          Ficou Meckel de lhe transmitir a minha resposta e pouco depois de ele se ter ido embora apareceu ela pessoalmente no meu estúdio “Gallinero bohemio”.8

          – O que é que se passou com o Meckel? – perguntou ela sem me cumprimentar.

          – Nada. Ele não lhe disse?

          – Sim, e por isso tenho de te dizer que andar por um palco é mais difícil do que dançar. A mim agradar-me-ia, mas são os organizadores que querem que mais ninguém dance na parte das danças.

          – Então, os organizadores que dancem o meu papel.

          Sem me responder, saiu como um relâmpago, batendo com a porta com tanta força que partiu os vidros da parte superior desta. 

          A partir daí pensei muitas vezes em dançar um dia com umas castanholas de vidro e parti-las num golpe final (ainda que me cortasse), reconstituindo na sua memória aqueles cacos de vidro que nos mantiveram separados durante tanto tempo. 

          Porque aquele incidente artístico deixou-nos afastados durante quatro anos, nos quais não voltou a dirigir-me a palavra, apesar de eu ter procurado o momento uma infinidade de vezes, quando coincidíamos em concertos e receções.

          Foi pouco antes da sua morte que nos reconciliámos. Coppicus9, o empresário nova-iorquino, quis montar um “ballet espanhol” e contratou a “Argentina” na condição de que eu também dançasse.

          Quando soube que ela tinha aceitado fiquei muito mais contente pela alteração da sua atitude do que pelo contrato. Fui imediatamente cumprimentá-la e de repente estávamos outra vez muito amigos, como se nada se tivesse passado.

          Isto aconteceu em Nova Iorque em março de 1936. Voltámos para Espanha, onde nos apresentámos com o Amor brujo no Teatro Español (Madrid) e depois fomos a Paris montá-lo no Teatro da Ópera.

          Ao terminarmos a nossa atuação, ela ficou em França e eu voltei a Espanha para vir buscar alguns artistas para os bailados, e nunca mais voltei a vê-la.

          No início de agosto do mesmo ano, ao passar de novo a fronteira para me juntar a ela, o comandante do posto francês deu-me a terrível notícia.

          Foi uma das emoções mais fortes que sofri na minha vida. A minha disposição já estava influenciada pela tragédia que Espanha atravessava10 e o choque foi tremendo. Com Antonia Mercé, a excelente amiga, perdia ao mesmo tempo o meu maior estímulo artístico.

          Os meus olhos enevoaram-se e se não me tivesse lançado instintivamente para um banco que ali estava poderia ter rodopiado pelo chão. 

          Já reanimado dirigi-me a Baiona, o sítio em que morreu, e depois a Paris. Não recordo nada destas viagens pois fi-las quase como um sonâmbulo, e assim continuei durante algum tempo.

           

          Os meus primeiros passos de dança

          Comecei a dançar em Valladolid, a minha cidade natal. A minha infância foi passada entre ciganos. Pela atração que exerciam sobre mim o seu carácter e as suas roupas, julgo que o meu primeiro gesto de criança deve ter sido o de bater “palmas”.

          Todos os rapazitos que eram meus companheiros de brincadeira, quando eu tinha apenas 10 anos, sabiam fazer algum “redoble”11 e eu imitava-os. Com frequência também via os adultos a dançarem em casamentos e batizados, em que jovens e velhos competiam dando as suas “vueltecillas” de aficionados.

          Dava-me tão bem com os ciganos que, mais do que uma vez, em miúdo, me lembro de os ter ajudado nas suas “trafulhices” e na venda de bugigangas.

          Nunca me esquecerei da primeira vez que, numa feira, tive de chorar abraçado às patas de um esquálido cavalito gritando:

          – Não me separem dele, que é um cavalo muito “güeno”12, que nunca encontrarei outro tão “santito”, não mo tirem!

          O compadre comprador, convencido pelos meus prantos, formalizou a compra e montou em cima dele. Não tinha ainda passado um minuto quando caiu dele abaixo, mas não demorou menos tempo a levantar-se e a começar a correr atrás de mim vociferando:

          —Agora é que vais chorar a sério, malandro!

          Ainda bem que naquela altura eu corria mais depressa do que um comboio.

          Embora vá tentar sempre limitar-me o mais possível ao tema da minha dança, por vezes não poderei evitar que surjam historietas como a anterior que, embora não tenham uma relação direta com ela, servirão no entanto para ajudar a compreender a formação do meu carácter. 

          Os primeiros “redobles” produzidos pelos meus pés ouvi-os a ecoarem numa tampa de esgoto, ganhando-lhes tal gosto que passava o dia a correr de uma para a outra, para comprovar os diferentes sons.

          Todas as vezes eram diferentes, e por isso as preferia em vez do chão que não ressoava ou das madeiras das mesas que tinham uma vibração mais opaca.

          Muitos desgostos me causou esta paixão, e mais de uma multa teve o meu pai de pagar por causa dela, visto que como eu lhes dava com tanta força acabava sempre por parti-las e os guardas andavam atrás de mim.

          Até o próprio Ayuntamiento [Câmara Municipal] teve de levar a coisa a sério e chegou uma altura em que nem eu próprio sabia de onde podia sair tanto representante da autoridade. E tive de mudar o meu campo de operações.

          Numa das margens do rio Esgueva havia uma árvore que tinha sido derrubada há muitos anos por um vendaval e que atravessava o seu leito; muitas pessoas  utilizavam-na para passarem para o outro lado. Em cima desse tronco continuei as minhas experiências. Aí tinha que lutar não só com a dificuldade do som que produzia, muito mais apagado do que nas chapas metálicas, mas também com o equilíbrio, o que era para mim um novo aliciante, que me valeu mais do que um “mergulhanço”.

          O medo que tinha dos mergulhos fez com que chegasse a adquirir um equilíbrio fantástico, que conservo desde então.

          O guarda da zona não devia ser admirador das minhas proezas, porque cada vez que me surpreendia atiçava-me o cão, pelo que tinha que suspender o meu treino.

          Nessa altura, o meu pai conseguiu empregar-me numa tipografia, onde comecei a aprender o ofício de marcador de provas. Mas como a minha verdadeira paixão continuava a ser a dança, o ruído das máquinas atraía-me enquanto trabalhava, e nele descobria ritmos que tratava de traduzir em passos, sapateando em cima dos degraus. Esquecia-me de colocar o papel na máquina ou deixava-o cair em rolos e distraía o resto do pessoal do seu trabalho. Por esta razão fui despedido, uma por uma, de todas as tipografias de Valladolid.

          Ao ver-me sem trabalho vali-me da rudimentar técnica adquirida com os ciganos, nas tampas de esgoto, na árvore, nos degraus das máquinas e nas esquadras. (Os guardas conseguiram apanhar-me mais de uma vez quando partia as tampas, e levavam-me para a esquadra, onde nunca faltava um comissário castiço que me punha a dançar e que, depois de uma boa reprimenda, acabava por me dar um par de reais, o que na altura representava muito dinheiro para um rapazinho.) Decidi então dedicar-me completamente à dança, e comecei as minhas primeiras escapadelas para as aldeias da província, atuando em praças e cafés durante as festas locais.

          Como era o tempo das capeias13, viajava sempre na companhia de toureiritos, e por mais de uma vez reparti com eles o que ganhava e… até os riscos. Uma vez insistiram tanto comigo e picaram tanto o meu amor-próprio que decidi ir para arena e espetar um par de bandarilhas, o que consegui fazer não sei se lá muito bem; o que sei sim é do medo que senti e que me subiu uma coisa tão estranha pelo corpo todo que anos mais tarde, em Paris, esse momento me inspirou um desenho que intitulei “Os touros e o baile”, porque o baile… desenrolava-se aqui por dentro.

          Eu dançava uma dança a que chamava O comboio, visto que me tinha inspirado, nas minhas constantes viagens clandestinas, no ruído que as rodas produziam enquanto iam variando de velocidade nas curvas e nas retas do trajeto por cima dos carris. As pessoas das aldeias ficavam entusiasmadas, sobretudo quando reproduzia com os pés as entradas e saídas nas estações. Arrancava com um pianíssimo, ia matizando em crescendo a velocidade e alcançava o máximo.

          Gostavam mais desta dança do que a de outros “bailaores”14 que atuavam acompanhados por guitarristas, sapateados e tanguillos15 cómicos ou de “brincadeira”. E no meu prato caíam sempre as “pesetinhas” imprescindíveis para ir vivendo.

          No entanto, o meu desejo era chegar a dançar com guitarra, o que me parecia algo bastante difícil, já que era conhecida a tradição de os flamencos não se ensinarem de uns aos outros nem nos mais ínfimos detalhes. Há que captar tudo à força de tempo despendido, vendo e ouvindo. É algo dificílimo, que por vezes chega a parecer um mistério e, todavia, não é senão um segredo zelosamente guardado por todos os artistas deste género, desde tempos imemoriais.

          Isso induziu muitos escritores a qualificarem-no como mistério, chegando inclusivamente a dizer que há duendes16 pelo meio e não sei mais quantas coisas. Mas na realidade trata-se de um segredo que, se fosse ensinado de boa-fé, seria facilmente aprendido, mas que não o sendo leva muitos anos a desvendar.

          Além disso, todos os que escrevem ou falam sobre ele não estão “inteirados”, que é como se diz na linguagem do flamenco.

          Estar “inteirado” consiste em conhecer não apenas o compasso ou o ritmo que deve ser usado em cada dança, mas também saber em que momento é preciso assinalar ao guitarrista, com um gesto e um passo, as mudanças que se querem fazer no compasso e no ritmo – ou seja, passar às “falsetas”17, aos “desplantes”18 e aos meios “desplantes”, etc., até ao final. É claro que isto só se consegue se o guitarrista também estiver “inteirado”.

          A primeira vez que dancei “a sério” com acompanhamento de guitarra, e digo a sério porque esse também é um termo do flamenco (até então só tinha dançado acompanhado por aficionados, tão pouco sabedores como eu), o guitarrista perguntou-me:

          – Ouve lá, rapazinho, tu estás mesmo “inteirado”?

          Eu respondi que sim, meio enfadado, para despistar. Na primeira atuação numa aldeia e ao começar os primeiros compassos, parou em seco e disse-me bem alto, para que todos os espectadores ouvissem:

          – Chavalo, tu enganaste-me, tu não estás “inteirado” nem pouco mais ou menos.

          Como o público não sabia do que se tratava, e como o que eu estava a fazer lhes agradava, tomaram o meu partido e gritaram-lhe:

          – Ei tu, toca e cala a boca, ou vamos ter de te pôr a guitarra ao pescoço. Nas festas anteriores trouxeste-nos um “bailaor” que era uma “porcaria” e não lhe disseste nada.

          – Sim, mas para aquele eu podia tocar porque ele estava “inteirado” – desculpava-se timidamente o guitarrista.

          – Toca a tocar e a calar. Vamos, chavalinho, “saca” outra dança.

          Encorajado, dancei-lhes O comboio e depois continuei a bailar à guitarra aquilo que me ocorria. O guitarrista, algo assustado por um lado, mas prevendo uma boa quantia por outro, foi-me seguindo como podia, saltando por cima das regras do flamenco, e assim continuou comigo durante uma temporada. Nunca me disse nem me explicou nada e eu continuei por aldeias e cidades sem me “inteirar”.

          Traduzido do original em espanhol por Pedro Cerejo.

           

          1 Formas de dança relacionadas com o flamenco antigo da escola bolera (N. E.).
          2 Cantos e bailes típicos de Sevilha e de outras províncias da Andaluzia (N. E.).
          3 Ignacio Zuloaga Zabaeta (Eibar, 1870-Madrid, 1945) foi um importante pintor espanhol conhecido pelos seus quadros costumbristas e retratos de estilo naturalista (N. E.).
          4 Nome dados às castanholas na região de Andaluzia. O nome surge do artesão que fabricava palillos, chamado palillero, que usava palos (pequenos pedaços de madeira) para os fabricar (N. E.).
          5 El amor brujo foi um bailado composto por Manuel de Falla para a bailaora Pastora Imperio. Estreou em 1915, em Madrid, e foi sofrendo alterações até 1925. Foi dançado, entre outros, por Vicente Escudero e La Argentina e Carmita García (N. E.).
          6 Armando Meckel foi um importante empresário responsável por lançar bailaores, nomeadamente a carreira de La Argentina em Paris, em janeiro de 1926, na Sala Gaveau (N. E.).
          7 Existem poucos dados sobre a Compagnie des Ballets Internationaux, que terá sido impulsionado por Jean Weinfeld, em estreita colaboração com Julia Marcus, e que reuniu um conjunto de artistas exilados em Paris no auge do nazimo no final dos anos 1930 (N. E.).
          8 Estúdio de Vicente Escudero em Paris (N. E.).
          9 Francis C. Cuppicus (1880, Alemanha-1966, EUA) foi empresário, sobretudo de ópera, de estrelas como Enrico Caruso, Foedor Chaliapin, Maria Jeritza, influente no Metropolitan Opera em Nova Iorque (N. E.).
          10 Golpe militar de nacionalistas contra o governo republicano legitimamente eleito, que daria origem à Guerra Civil Espanhola e ao início do Franquismo. La Argentina terá falecido de síncope ao tomar conhecimento do golpe em julho de 1936 (N. E.).

          Indíralo Indíralo: como não fazer algo individualmente

          Este texto resulta de exercícios de escrita coletiva realizados no contexto de “Indíralo: como não fazer algo individualmente”, um workshop com María Jerez e Quim Pujol que teve lugar entre 5 e 9 de julho de 2023 no Centro Ciência Viva do Alviela (Alcanena, Portugal), no quadro da Escola de Verão: Na Prática, uma parceria entre o Materiais Diversos e o Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no âmbito da Linha de Investigação em Discursos Críticos nas Artes Performativas. Este workshop convidava a trabalhar com o imperativo de um verbo inventado: “indíralo”. A definição desse verbo é “não fazer algo individualmente” e designa uma prática em que decididamente não se age de forma isolada. Nesta prática, o corpo coletivo é incontornável e as ações, descobertas e composições têm sempre de ser definidas à medida que ocorrem na comunidade, entendendo esta como algo humano e não humano. Este imperativo é a decisão de propor, de forma coreográfica, outras formas de fazer que se afastam de ações autónomas, sublinhando que os processos são sempre coletivos, interdependentes e ecossistémicos. Trabalha-se na coreografia de um cérebro múltiplo e divergente que não se desloca numa só direção, mas antes ao longo de muitas linhas simultâneas que não foram acordadas, para nos relacionarmos com o que não conhecemos e ainda não foi definido. Trata-se de um estado de incerteza coletiva.
          Sabemos que estamos juntos “nisto”, mas “isto” nunca é definido, é um enigma que mantemos entre todos nós, humanos e não humanos. Como podemos relacionarmo-nos com o que suspende o sentido e o significado? “Indíralo” é a celebração deste relacionamento, desta junção no enigma.

          Nesta prática os participantes da oficina escreviam indistintamente em português, espanhol, catalão e também utilizavam anagramas e palavras inventadas coletivamente durante as sessões de trabalho. Os humanos e não humanos que permitiram que emergissem estes textos em modo de diário, aforismo, pergunta… são Andreia Neves Marinho, o Centro Ciência Viva Alviela, Andreia Sofia Cardoso Lima, a floresta, Patricia Conde, Fernando Pedro dos Santos, João Henriques, a gruta, Valentina Parravicini, Cristina Fuentes Ávila, o rio Alviela, Francisco Weber Ruiz, Gustavo Vicente, María Jerez, Quim Pujol e os espíritos.

          5 julho 2023

          Sol es va més ràpid, però juntes arribarem més lluny i en cara que mai atrapem l’horitzó, mos servirà per a seguir caminant. La resposta està al nostres peus. Estou só quando me desconecto do presente, e quando sinto que o outro não me compreende. Entra menos la luz de fuera pero todo lo de aquí dentro brilla más ahora -o así lo respiro-. Respirar é difícil: encher-me de ar, mastigá-lo, deitá-lo fora. Procuro não pensar respiradamente. Outros respirarão comigo. Hacer cosas juntas puede hacerte sentir solo y hacer cosas solo puede hacerte sentir con otros. Para salir de la configuración por defecto, tal vez sirva hacer “otra cosa”. Procuramos uma identidade coletiva diversa. A diversidade como o não-antagonismo da identidade. Componer juntas en tiempo sincrónico. Crear un beat entre dos pulsos cardíacos. En realidad, todo respira al mismo tiempo. Dentro de los cuerpos está un yo invisible que no para de moverse. (Pulso). Puede tocarse. Eu? O Outro? Nós no mesmo espaço, um todo de muitos mil-folhas, à procura do estar e do fazer, a caminhar. Fragmentar la sincronía en múltiples tiempos lineares. Eu procuro a palavra (…) ¿Has visto la película Nostalgia de la luz [2010, Patricio Guzmán]? A sesta, o momento de dormir acompanhados, guiados pelo som dos pássaros até um sonho comum, ou um fio de baba. “Eu sou porque tu és.” Ubuntu — coletivo versus individualidade — busca por um território comum. La vra pa a cu ro pro eu… Se atuássemos em comunidade, com a consciência de que “eu sou porque tu és”, talvez conseguíssemos libertarmo-nos da preocupação de encontrar culpados e não criássemos tanta solidão. Eu ro pro cu a vra la pa… Sentir ou ir na corrente da maré? Estar entre, no limbo, procurando pontos de encontro e de conspiração. Que importância damos à palavra e ao lugar da fala? A noção de ficar só, de solidão ou solitude é um mil-folhas com muitas camadas. A relação criadora do indivíduo e do coletivo não é uma relação unidirecional, como o provérbio do ovo e da galinha, mas sim bidirecional, impossível de estabelecer uma ordem hierárquica entre objetos.

          6 julho 2023

          Es mejor negociar fonéticamente. Há beleza na precariedade do material e no desapego da ideia. Yo soy muchas pequeñas cosas puestas en relación con otras. São esculturas de rastos que se encontram no ponto marcado a meio. Múltiplos rastos fazem uma vida. Perdí algo que nunca foi meu para un nós. Cravo, cravi elei, cravi elái, botomparani. O cessopro me cocei… a palavra ntinuoco (…) A Alegria no trabalho. Água-movimento-fluxo. Fomititas, ambno, nefleno, nixainifrin, bruslam, nosvaliti, bashaliti, enbnochoco, nalestian e braistrocia. Escolher atuar a partir do que há. O espaço nunca está vazio. O espaço entre não é aquilo onde estamos sempre? Comecei o processo… Continuo à procura da palavra (…) Un objeto no es una imagen. Dejar que acontezca y hacerlo acontecer. Respirar en distintos sitios te cambia el cuerpo. Gerar visibilidade é um gesto de apagamento. Su meda baina vollo fa. Não há culpados nem inocentes no fazer… cei come o ssocepro… Nuo conti rando procu a laprava. Es mejor recoger materiales juntas. Respirar é difícil. Los procesos artísticos siempre pueden encontrar una salida airosa. Escuto a respiração do espaço e procuro afinar-me com ela. Trabalho a partir do que está disponível. Na linha do horizonte, o meu corpo está ao mesmo nível da pedra. La realitat depèn dels ulls en què una la mira. Braistocia é uma ilha onde se respira para transformar.

          7 julho 2023

          Abrir the affordance de los huecos como práctica de estar juntos. O corpo introduz-se pelas mãos. Vamos juntxs cuando la cosa va sola. Um rio contradiz corpos, encontra rostos dispostos numa floresta… (…) A cesta. A roda das gerações segue enraizada. En un diálogo siempre hablan como mínimo tres personas. Sobre a toalha. Debaixo da toalha. Ou fora da toalha. Mas sempre na toalha. Uma canção que ia e vinha, mais mmmm, mais praidiosa. A água com que lavamos os pés é a água do nosso batismo. Los pliegues de las manos de nuestras abuelas estaban aquí hoy. La escultura es el arte de lo inmóvil pero todo se mueve al mismo tiempo. Que a palavra seja ou não seja dita de todo. Que se suspenda a vontade até que chegue a decisão.

          8 julho 2023

          Zahorí, agua, azar. Zahorí, azar, agua de azahar. Para que los objetos disfruten, los cuerpos humanos han de desaparecer. Escuto a cigarra, a minha vontade e a do outro? La naturalesa dona veu a coses mai dites. Pergunta a caneta o que quer escrever no espaço, escuta a resposta que se escreve, continua perguntando outra outra vez. Claro, oralc, raloc, dizemos no escuro. As pessoas que estranham a nossa romaria, as cigarras que não querem saber das nossas conversas, as pedras que ignoram as nossas intenções. Impasse in passe impas se i mp asse im pas sei mpa ss ei mpass e. No ceder ante la nitidez, permanecer en la borrosidad del instante perdido. Oxigénio/Para deixar de respirar…/Resfriar com um rio-mar/Caminhada/Tudo e nada/À procura do que/Não se sabia o que é…/Floresta…/Teremos descoberto/O que se queria?

          9 julho 2023

          A cigarra engoliu o morcego, o canto litúrgico matou o que sobrava. Tudo é uma escolha e que privilégio o nosso podermos escolher. O desejo de desejar devora-me às postas. Uvas, romã, laranja, limões e outros frutos múltiplos. Ojalá la naturaleza (de las cosas) nunca deje de hablarnos -y ojalá siempre saber escuchar-. Pensar com o corpo, ser-se um objeto, falar indiralês. Experimentar, respirar juntos, numa floresta fazer a festa com poucos-muitos. É possível colaborar sem ceder? Cr ausência cr presença cr cr craus cr crcrcrcr. 11 voces 10 voces 5 voces 1 voz 1 voz 2 voces 5 voces 10 voces 7 vozes 1 voz 3 voces 1 voz 1 voz 1 voz 3 voces 1 voz. O vento, o mar, as ondas, estão cheios de ausências. Tocar un material es invocarlo.

          Paulo Pinto Dori Nigro Georgia Quintas Vento (A)Mar

          A exposição Vento (A)Mar dos artistas Dori Nigro e Paulo Pinto, que esteve presente na Bienal‘23 Fotografia do Porto, realizada de 18 de maio a 2 de julho, investigou o território simbólico-poético da ancestralidade e os espaços de memória entre Pernambuco (estado de origem dos artistas) e a cidade do Porto (cidade onde residem). Ao longo de suas trajetórias, os artistas têm estabelecido, enquanto discurso crítico-afetivo, elos entre intenção poética e relações em rede no tocante à história colonial, às narrativas auto-ficcionais, à desconstrução de álbuns familiares e ao silenciamento de mulheres pelo patriarcado.

          Nessa ação criativa, os artistas trouxeram, para além dos trabalhos autorais, a relação com o artista cearense Mestre Júlio Santos, um dos mais importantes profissionais da fotopintura brasileira. Esse diálogo revela retratos e registros de aspectos sociais sobre o imaginário dos álbuns de família e sua representação para a memória da alteridade.

          A prática vernacular da fotopintura em Vento (A)Mar promove o retorno de imagens de mulheres e famílias apagadas pelo seu próprio tempo. Em conjunto, os artistas avivam matriarcas, dão-lhes a presença da identidade. Os retratos tomam esse caminho da confluência de histórias familiares, das conexões mesmo de memórias de sofrimento, injustiça e opressão contra mulheres, diluídas por seus papéis sociais num Brasil enraizado pela diáspora africana e colonial. As cores nos retratos (pintados) potencializam ancestralidades, dão corpo simbólico enovelado ao presente do passado, provocam a arqueologia da força vital do feminino.

          Durante a abertura da exposição, uma das salas onde estava a obra Adoçar a Alma para o Inferno III foi encerrada e depois exposta fragmentada, sem a autorização dos artistas e da curadora Georgia Quintas, pela administração do Hospital Conde de Ferreira com anuência da Santa Casa da Misericórdia. A censura revela a dificuldade das instituições de reconhecer o perfil escravista do seu patrono, Joaquim Ferreira dos Santos1, primeiro Conde de Ferreira, que com o dinheiro da venda de cerca de 10 mil pessoas escravizadas financiou a educação, a saúde, a banca portuguesa e a causa política de D. Maria II, rainha de Portugal e Algarves2 (que lhe concedeu três títulos de nobreza), além de obras de caridade.

          A violenta dupla censura (encerramento da sala e exposição da obra fragmentada), reflexo do colonialismo incrustado na sociedade portuguesa, contribuiu para o apagamento das histórias das nossas avós, que disparavam a criação da exposição. Em reparação às suas memórias, nossa ancestralidade, partilhamos seus retratos e histórias.

          Elisabete e Antônia, retratos das avós de Dori Nigro.
          Provocação do artista partilhada com o fotopintor Mestre Júlio Santos, 2023.

          Elisabete

          A imagem à esquerda é o último registro de minha avó materna, Elisabete. É das poucas fotografias do nosso álbum de família que resistiu às enchentes consecutivas que assolam a comunidade onde cresci, iniciadas desde o aterramento dos mananciais da Marim dos Caetés (terra indígena) para construção de engenhos de cana-de-açúcar, obra autorizada por Duarte Coelho, portuense donatário e primeiro governador da capitania de Pernambuco entre 1534-1554.

          Meu pai, autor da imagem à esquerda, capturada durante meu aniversário de cinco anos, revelou-me o entristecimento do seu olhar. Segundo ele, durante o ato fotográfico, o flash da máquina deixou-a assustada. Era a metáfora utilizada pelo meu pai para apaziguar a dor da doença terminal de minha avó. Ela morreu logo após meu aniversário de seis anos.

          Na ausência de mais fotografias dela, o seu rosto adornado em flores no velório era a única lembrança que tinha. Essa imagem foi meu primeiro contacto com a morte.

          Meu olhar vagueia pela fotografia na tentativa de compreender quem foi essa mulher camponesa, com um pé fincado no catolicismo e outro no candomblé; que morreu à espera de reparação de sua dignidade, por ter sido injustamente acusada do assassinato de um líder camponês e, assim, acabou presa por esse crime forjado pela ditadura militar brasileira.

          Revivo com raiva legítima as dores de minha avó quando esbarro na violenta censura que sofreu a exposição Vento (A)Mar.

          Antônia

          Nunca tivemos em casa fotografias da minha avó paterna, Antônia, mas guardo dela boas lembranças. Ela encantou-se na minha adolescência. A notícia de sua morte veio de manhã, anunciada por um dos meus tios. Eu, em cima de uma árvore, escutei a conversa angustiante entre meu tio e meu pai. Aquela mangueira era meu espaço de conforto diante da realidade concreta.

          Meus tios diziam-me que minha avó morrera com medo da morte. Viveu sem deixar que o medo a paralisasse. Antônia tinha a voz doce. E era com essa doçura que nos recebia. O cheiro do bolo recém-saído do forno anunciava o caminho até a cozinha. Ela adorava doces de todos os tipos. Morreu de diabetes mellitus (tipo II), patologia que acomete corpos negros com maior frequência3.

          Muito tempo depois de sua morte voltei à casa de meus tios em busca de fotografias dela. Encontrei um retrato de seu casamento com meu avô, apagado pelo tempo, com o vidro da moldura rachado em várias partes.

          O casamento de minha avó não foi fácil. O machismo cerceou sua vida. Antônia era uma mulher forte e sábia. Sabia esperar o tempo das coisas. Tinha o corpo forte e a voz mansa.

          Aquela imagem rasurada de seu casamento parece querer denunciar uma outra história de apagamento. Ao olhar para ela, penso no abismo que me separa de minha ancestralidade negra. Desconheço as imagens dos meus bisavós e tataravós negros. Nossas histórias foram apartadas em navios negreiros.

          Talvez tenham sido os meus ancestrais os corpos escravizados trazidos nos navios comandados pelo Conde de Ferreira que desembarcaram na capitania de Pernambuco, a que deu mais lucro à coroa Portuguesa.

          Alcides e Elita, retratos das avós de Paulo Pinto.
          Provocação do artista partilhada com o fotopintor Mestre Júlio Santos, 2023.

          Alcides
          Dizem que era como o arroz-doce que bem sabia fazer, alma de açúcar.
          Tecia nas mãos linhas da vida, fios de algodão, filhos do amor puxado como alfenim. Doze, dois partidos anjos no início de ser mãe e quase fim. Zelosa em criar, nutrir, vestir, cuidar. Cozia, cosia, cantarolava, benqueria.
          Doce, apurando-se em dores de ausências assombradas, rebordada por dentro sem cuidado médico mental, como a maioria das mães em suas incomensuráveis jornadas. Sofreu como um pássaro Sofreu4. Pouco sei do que pouco falam, moem. Dores em gerações.
          Sempre-viva, como toda fotografia parada no tempo, como as flores miúdas de seu vestido no último retrato, à esquerda. Trinta e três anos e sonhos de passear quando a cria criasse. Promessas rurais de sonhos urbanos, de praça, feira, festa, parque, missa, quermesse.
          Não viu a cria voar, construir ninho. Não viu netos, não vi vó. Lançou filhos de muitas sementes: sertão, litoral, travessias das águas do Rio Salgado, mitos do Boqueirão e da nação Calabaças.
          Mistura de gentes da terra, das matas, das águas, do sangue das invasões, tráficos, entradas, bandeiras, guerras, espadas, crucifixos, candelabros, estrelas de Davi.
          Mo(v)eu-se na vida como pode, vertendo-se em garapa de cana-de-açúcar sem fermentar. Na memória centenária dos que a conheceram: agonias de duas asas partidas não cuidadas em doze seguidos partos desde menina-moça-menina. Na memória dos filhos: fartura de grãos, alegria mel em todos os cantos da casa… ceifadas por lágrimas, desespero e fúria.
          Em desassossego viu-se árvore, galho e folhas a balançar ao vento em melodia de paz. Amplificadas as dores da alma, sem cuidados devidos da saúde pública, “decidiu” partir.

          Elita
          Criança, olhava o retrato pintado de minha avó materna e tinha certeza de falar com ela. Imagens falam, crianças ouvem, artistas e gentes al(m)adas também.
          Quadro grande de moldura de boniteza dourada envelhecida. Minha primeira paixão pela fotografia e pela alma capturada de uma pessoa amada que nunca conheci.
          Quando nasci, as pessoas que mais amava já haviam começado a partir. Meus olhos desde sempre são testemunhas de muitas ausências afetivas.
          Esse retrato de vó materna despertou a curiosidade de querer guardar o amor nos olhos, como relicário de recortes de reminiscências, para ilustrar as histórias latejantes de quem foi e do que passou.
          A imagem de vó me chegou porque alguém antes de mim se tornou guardiã da memória familiar. Minha mãe dedicou-se a aglutinar passados congelados que pontuaram pessoas, lugares, situações, condições. Delicada pedagogia que me cativou no interesse sobre as gentes, suas micro-histórias e cruzamentos com macro-histórias.
          Foi o retrato de minha vó materna, santificada por minha mãe, que me fez questionar sobre a ausência da imagem de minha vó paterna, sua prima. Meus avós eram primos, os quatro. Heranças de misturas ancestrais de tradições judaicas e afro-ameríndias, forjadas na zona rural do sertão, na agricultura de subsistência.
          Elita é o meu primeiro amor imaterial que se fez presença numa fotopintura encomendada por minha mãe a um fotopintor ambulante.
          Dizem que vó Elita sabia fazer doce de leite como ninguém; tinha cintura finíssima ressaltada pelo uso de anáguas armadas em goma; gostava de usar um pequeno decote com um pingente de trevo; era bem humorada e festiva; apaixonada por música, dança, costura, por meu avô e seus filhos.
          Teve sete filhos e viveu a dor da morte de um deles. Aos trinta e três morreu num parto de outra Elita, que só vingou até a primeira infância. Mortes vaticinadas pelo descaso da saúde pública nos sertões rurais de heranças coloniais.

          1 CAPELA, José. Conde de Ferreira & & C.ª. Traficantes de Escravos. Lisboa: Edições Afrontamento, 2012.
          2 ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins. Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa: Zairol, 1989.
          3 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política do SUS, 3a edição. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2017.
          4 Nome popular do pássaro Corrupião, também conhecido como Sofrê, Xofreu, Concriz. Espécie endêmica do Brasil de canto melodioso e capacidade de imitar o canto de outras aves.

          Zia Soares FANUN RUIN abrir o lugar do luto

          Há uma casa que habita em mim.
          Sei das cobras, vermelhas, que sempre guardam a casa e só se deixam ver quando há perigo. Na outra noite sonhei que uma delas repousava nos meus ombros. Antes que a visse, pressenti-a. E como antecipasse qualquer reação, silenciosa, esgueirou o seu rosto para junto do meu. Fixou-me. E eu a ela. 1

          Atravesso salas, corredores, os meus olhos passam agilmente em revista todos os aglomerados de ossos mais ou menos compartimentados, catalogados, arquivados: não, não, não…
          Não, não, não são estes.
          Não, não, não…
          Não, não, também não…
          Estou parada, mas o meu corpo, todo o meu corpo, teima em pesar-me apenas para um lado, obrigando-me a virar a cabeça num gesto rápido, preciso, como se em busca de equilíbrio. É então que os vejo, mesmo antes dos meus olhos. Agora estou diante de vós e nunca mais saio daqui.
          E é isto noite após noite: atravesso salas, corredores, os meus olhos passam agilmente em revista todos os aglomerados de ossos mais ou menos compartimentados, catalogados, arquivados: não, não, não…
          Não, não, não são estes.
          Não, não, não…
          Não, não, também não…
          É então que os vejo, mesmo antes dos meus olhos. Agora estou diante de vós e nunca mais saio daqui.

          Precisava de acabar com aquilo, precisava de acabar com a angústia que ia ocupando os meus sonhos e pesadelos e pensamentos.
          Então invento o FANUN RUIN — que se traduz do tétum [língua nacional de Timor-Leste] para português, Chamar Ossos — uma performance onde expelir o confronto com a morte sem rosto, onde me apaziguar. A mim…
          Então chego a mim, também é sobre mim, eu, convergência extemporânea onde Timor Lorosa´e se encontra com Angola para depois derivar em Portugal. Ponho na voz a minha vida:

          Timor. Em 1959, um grupo de homens timorenses revolta-se contra o regime colonial. São presos e desterrados – durante vários dias viajam no vapor “Índia” para um destino que desconhecem. Um desses homens é o meu pai.

          Angola. 1960… Um grupo de homens com rostos desfocados. A fotografia mais antiga que tenho é a do meu pai com os companheiros na cadeia do Bié. No Bié, o meu pai conhece a minha mãe.

          Portugal. 1882. Uma coleção de crânios usurpados. Na parte oriental da ilha de Timor têm lugar os ritos de caça de cabeças, exortados pelos invasores portugueses. De entre os decapitados, 35 crânios foram desterrados para Portugal. Jazem num armário no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra.2

          De volta ao necrotério.
          Enunciam-se as perguntas:
          Como eram os rostos dos decepados?
          Quais os seus nomes?
          Quando retornam os ossos usurpados?
          Quem os espera?
          Quem ainda se lembra?
          Quem quer esquecer?

          No que diz respeito aos crânios de Timor, e ao contrário do que tem sido defendido por alguns activistas (…) e investigadores, a historiadora mostra reservas em se proceder à restituição sem que haja pedidos de devolução por parte do próprio país. “Em abstracto poderia concordar, mas isso levanta problemas. Restituir a quem? Em que moldes? É preciso ter uma noção prática; não basta meter estes espólios numa caixa e enviá-la. A UC [Universidade de Coimbra] ainda não recebeu nenhum pedido”, nota Luísa Trindade. “O ponto principal deve ser o diálogo e a partilha.” 3

          Afinal, quando alguém se apodera de algo que não é seu, usurpa portanto, e tem verdadeira intenção de se retractar, deve ou não dar o primeiro passo? E se sim, no caso da coleção de crânios timorenses, os insepultos cativos em Portugal há mais de 140 anos, quando tenciona o Governo Português, e a Universidade de Coimbra dar esse passo, iniciando “o diálogo e a partilha” com o Governo Timorense?
          Afinal, volvidos mais de 140 anos, quanto tempo mais necessita o Governo Português, e a Universidade de Coimbra, para “ter uma noção prática” de como processar o retorno dos crânios?
          Afinal, como está a ser tratada ou para quando se prevê alguma partilha pública sobre o desenvolvimento dos processos de inventariação dos restos mortais e dos artefactos pilhados dos países anteriormente colonizados por Portugal?

          Escavo, folheio, desenterro o mal concretizado, conspurco-me uma vez mais com as certezas mortas do arquivo fundado em violência.
          É imperativo rasgar as fronteiras da História!
          É urgente desfigurar a arquitetura do arquivo!

          Perante o estratégico apagamento contínuo das narrativas que contrariam a univocidade do colonizador, pode ser muito sedutor, e por vezes enganador, tentar preencher esse espaço tornado lacuna, ousar criar carne para os ossos: urdir a partir do nada, do vazio, buscar apaziguamento onde aparentemente não o há. Como reparar a violência senão com a coragem de a expor, produzindo e provocando configurações outras dela mesma, e ainda sem submeter os insepultos a um novo trauma?
          É preciso performar a ferida, repetir sem tréguas a partitura do soçobro até que se torne obsoleta:

          Eu sei. Sei da catana no pescoço. Sei do joelho no pescoço. Sei da bota na cara. Sei do derradeiro suspiro quando não se consegue respirar. 4

          Não, não é sobre reescrever a História, mas sobre escrevê-la, protagonizando-a e performando-a, aceitando antecipadamente que ela, ainda, permanecerá inacabada. Trata-se de abrir o lugar do luto, do cerimonial, onde a incomensurável violência da estropiação, da violação, da desumanização dá lugar ao silêncio e só o sussurro pode irromper qual veneno que se propaga vagarosamente e se enraíza no inadiável pulsar da ulteridade.
          Não, não me detenho a historiar a Guerra de Laleia5: Emancipo-me dela: Atuo.

          — Hau iha imi nia oin.
          Hau la sai daar hosi nee too ita nia rain hatudu imi nia oin.
          Manu kokoreek ona, asu la harii ona.
          Ita nia Uma Lulik6 hein imi.
          /
          — Estou diante de vós.
          Nunca mais saio daqui até que a nossa terra revele os vossos rostos.
          O galo já cantou e o cão não ladra mais.
          A nossa Uma Lulik [Casa Sagrada] vos espera.

          1 Zia Soares, FANUN RUIN, 2022.
          2 Zia Soares, FANUN RUIN, 2022.
          3 Mariana Duarte, “Restituição de bens culturais, três debates nacionais para descolonizar os museus”, Público, 21 de junho de 2023.
          4 Zia Soares, FANUN RUIN, 2022.
          5 Foi durante a Guerra de Laleia, entre 1878 e 1881, que guerreiros timorenses, ao serviço do governo colonial português liderado por Hugo de Lacerda, decapitaram timorenses tidos como rebeldes, pertencentes a uma comunidade que vivia nas montanhas (no litoral a leste de Díli) onde se refugiou o rei de Laleia, D. Manuel Salvador dos Remédios, considerado líder dos opositores à missão e ao governo português.
          6 Uma Lulik é a casa sagrada e tradicional timorense, o espaço central da cultura e da identidade do povo maubere. Cada aldeia tem a sua Uma Lulik onde a família armazena as relíquias sagradas dos seus antepassados. Na Uma Lulik — reservatório de memórias e saberes ancestrais — realizam-se os rituais que permitem o encontro entre os mortos e os vivos.

          Tiran Willemse Acolho muitos eus

          Ainda não está acabado, mas estou quase. Multiplicar, irá seguramente fixar. Lembro-me de pessoas que já não estão vivas. Lembro-me de dançar à morte de manhã. Como se olha para uma coisa que não se consegue ver. Como nos tornamos humanos? Proximidade e experiência. Suficientemente grande para todos. Negociar o espaço, acomodar e resistir. Está no ritmo, está no som. O fluxo que não está em perfeita harmonia.

          A loucura humana. Uma falta de sentido, tal como eu gosto. Um estado não-binário. O lugar esquecido do qual nem sequer falamos, mas que preciso de levar mais longe. Qual é o meu processo? Um eu na prateleira. O meu corpo começa a falar. A dança despedaça-me o corpo. Uma noção diferente de articulação. Ainda há um longo caminho a percorrer. Dividir, sentar, protestar, destruir. Linhas que transformam fronteiras em horizontes. Linhas direitas transformadas em curvas e círculos. O que é natural? Da África do Sul à Inglaterra à Suíça à Alemanha a Bruxelas a Estocolmo à Alemanha e Suíça, de certa forma, estou presente. Expressar para dividir. Levanto-me, sento-me, para ficar emocional, para ficar funcional e levantar-me e entregar-me. Ordeno o movimento, a escuta e a transição. A arma sobre a carne. Como é que vieste aqui parar? Consegues sentir? Magoa? Não tenho a certeza, tu gostas? Gostas assim? Está tudo bem? Ele está aqui? É sempre ele? Como é que a dança te despedaça o corpo? Por onde andei eu num futuro imprevisto? Música clássica a tocar ao fundo. Como não sacrifico quem sou? Às vezes magoa. Ele não está sempre aqui, mas está perto. Difícil e pesado, e eu levo mais longe. Posso falar sobre dança negra? Celebrar rituais e cerimónias. Música e celebração. Sinto-me assim aqui onde estou agora. Como é que eu faço sempre isto acontecer? Existiram diferentes períodos de dança negra.

          Estudando, o feminino dentro de mim intriga-me. Nervos, o que quer que faça: sempre sem t-shirt. Não cor-de-rosa. Nostálgico como o caralho. Não consigo explicar. Tão limpo, um cheiro remotamente delicioso nos ecrãs. Uma rapariga bonita. Clavícula proeminente. Sentindo pelo meu prazer. Nível teórico. Entre silêncios dou estalos na minha cara. Expirar, mas ouvir apenas a minha boca a mexer e sentir o meu peito inflado. Passar por estados fantasmagóricos. Suá-los para fora de mim. Retirar a base para ser verdadeiro.

          Um processo estranho, limito-me a aceitá-lo? Uma vastidão a abrir e fechar para encerrar a escuridão dentro de si. Espaço público. Como agir nele com normalidade? Está na hora de deixar a cidade, tenho sonhado comigo no campo. A dormir à noite em silêncio absoluto. A olhar para a árvore e a pensar que nem sequer acredito na natureza. É a altura ideal para desfazer este trabalho. A precisar de mais ferramentas políticas para o fazer. Uma sensibilidade anarquista para fazer um caos líquido e pétreo, monstruoso e nodado, aguçado e selvagem, sem controlo, uma desgraça sobre o caos, tempo dentro de uma instituição, insanidade mistura-se com obscuridade, um natural insuportável. NÃO OLHES. Proibido mergulhar. Partir e sair. Continuar e entregar. Apaixonar-me e desapaixonar-me. Lembro-me de estar num monte na Cidade do Cabo e de o meu irmão sorrir para mim. A dançar e a adorar.

          Música ao fundo a tocar. Grito, é o meu processo, mas ninguém acredita em mim. E por isso movemo-nos num padrão formal, pelo beco vazio. A margem castanha, cheia de água, ao nascer do sol. A superfície a brilhar, refletida no estúdio. Passa uma nuvem e está tudo vazio. A luz reúne-se em qualquer ângulo. A água é um elemento não humano. Estou sozinho, isto desliga-me de um universo sónico. Agarro-me, é como se estivesse a flutuar. Em certas circunstâncias, mergulho no meu vasto corpo de água sem espaço lá dentro. Sem maldade, não zangado, nem sempre certo, com más intenções. Esforça-te muito, mas sê divertido. Duro e não quero simpático. Generoso e complicado.

          Sou um marinheiro, rapaz estrela, doutor, com um vocabulário de género tão diferente que até posso tornar-me monstruoso. Recusar esta ideia do sentido do corpo num acesso semiótico. Constrangimentos específicos de raça e classe, leituras dentro disto. Não há um corpo de género e ainda não é. O perdedor, não por eu ser queer, negro, um millenial ou por gostar de cor-de-rosa, mas porque a verdade é demasiado difícil de engolir para a maior parte de nós.

          Todos ligados romanticamente ao início da minha experiência performática.

          Forças invisíveis como meio de construir forma. Lidar com a luta que expande as nossas vidas e as coisas que nos acontecem ou as coisas onde existimos faz-me pensar em margens que têm qualquer coisa que ver com uma coisa que se assemelha a um culto – um atípico. As impossibilidades de um corpo ou da experiência de um corpo e a impossibilidade de uma margem dentro de um contexto institucional. Entro para o meio da sala, faço uma vénia, as pessoas aplaudem, avanço 1 vez, recuo uma outra, vénia. Avancei outra vez e fiz uma última vénia e todo o espetáculo colapsou para o subsolo. Foi o fim? As caras das pessoas estão confusas. Algumas sorriem, outras odeiam, outras estão assustadas. Eu olho para toda a gente com um grande sorriso, a pensar quem são vocês e o que estou eu a fazer à vossa frente? Tenho medo de vocês e vocês parecem estar sempre com medo de mim.

          blackmilk, o meu primeiro solo, marca um momento na minha prática, comecei a ter uma relação diferente da que tinha com mostrar o meu trabalho. Essa tinha sido uma conversa recorrente sobre ser negro, no que diz respeito à sobrevivência. No meu espetáculo acabei a escoltar o público até lá fora, quase um a um. A estranha classe social a que pertence um artista que performa. Estar na posição de artista é, amiúde, estar entre as posições de classe e ter uma visão do excesso. O meu trabalho sempre assentou na ideia de colonialidade como uma forma de excesso: pensar a expansão territorial, a condição de violência.

          Esta dança faz parte de um outro amanhã, de outro tipo de linguagem. Falar das coisas da natureza, da naturalidade, de como deve ser. Falar das coisas da negritude acerca do vazio. O vazio sem fim. O poço sem fundo que te rodeia.

          A questão da autenticidade para mim sempre foi sobre reverter expectativas de transparência. O facto de estar em palco e de recusar um final tradicional aponta para a realidade da performance. Para mim ,isto está assente na minha política, no meu mundo social, no meu ambiente, a troca de poder que tenho com o público e com as instituições. Existe tensão em simultaneamente suspender a autenticidade de estar juntos de forma consciente.

          Olhando para os meus espetáculos como um processo constante de transformação, enquanto desafio os limites das minhas políticas na esfera teatral, entendo o meu trabalho como um processo a caminho da ambiguidade, manifestação do inacabado ou do fora de ordem. O meu processo artístico implica uma colisão de culturas criativas. Invisto na exploração de estratégias de uma estética negra, desenhando a experiência de ser negro nas artes performativas e de como isso se relaciona com a vida, a morte e o conceito de se ser humano. Estou a investigar linguagem que manipule a minha prática ao mesmo tempo que procuro ofícios que manipulem o teatro e criem um sentido do que é político.

          Katarina Lanier O TERRENO AFETIVO. Notas sobre metodologias para corpos em espaços públicos

          Em junho, participei no Summer Lab de 2023, em Escópia (capital da Macedónia do Norte), enquadrado no programa europeu Arte Clima Transição. Fui enviada pela Culturgest, de Lisboa, e recebida pela Lokomotiva, em Escópia. O tema era a função do espaço público no ambiente urbano. Um grande foco do nosso trabalho foi relacionarmo-nos com as consequências do programa Escópia 2014, um projeto multimilionário, coordenado pelo partido então no poder VMRO-DPMNE, para a construção de monumentos e edifícios com a intenção de criar atrações mais clássicas. Este projeto transformou a cidade num estaleiro do poder, reescreveu o espaço público e a memória histórica e alterou a vida quotidiana dos cidadãos de Escópia.

          Durante o tempo em que estive em Escópia, fiquei com uma série de questões que se relacionam entre si: em que história estou a mergulhar? Será que esta é a história recente da cidade, a história da ex-Jugoslávia ou é a história da etnia dos povos desta região? O que fazer e como lidar com o peso da história?

          Um participante perguntou à nossa guia, Ivana Dragsic, o que faria ela com todos os edifícios do programa Escópia 2014, se fosse a presidente de câmara da cidade. Ela respondeu que destruiria a maior parte deles. Pensei para mim mesma que se tratava de uma metodologia artística. Fabricar possibilidades como esta cria fantasias e práticas especulativas que, a concretizarem-se, não seriam tão simples como destruir as construções de 500 milhões de dólares, nem provavelmente teriam as consequências que Ivana estaria a imaginar.

          Perguntaram-me várias vezes nesta viagem qual é a perspetiva da minha mãe, uma vez que cresceu em Sarajevo, que esteve cercada durante os três anos da guerra dos anos 90. Pensei para mim própria: como posso resumir a sua experiência e por onde começar? Com o avançar da discussão, nos últimos dois dias, sou lembrada da forma radicalmente diferente como as regiões da ex-Jugoslávia viveram a separação da nação comunista-socialista de Tito. Duas senhoras ficaram com pele de galinha quando comecei a falar-lhes de Sarajevo. Não tenho a certeza se foi a forma como falei que desencadeou a reação física ou se foi uma dor empática que elas próprias nutriam pela população de Sarajevo durante a guerra. Trata-se de outra prática artística: partilhar fantasmas. Pensar com outros sem um objetivo estabelecido a não ser ver uma parte do prisma da experiência humana. A curiosidade em relação ao que não pode ser quantificado: aquilo que só pode ser vivido em primeira mão ou através da tentativa de nos relacionarmos com outra pessoa.

          Durante a nossa pesquisa coletiva, cheguei ao conceito de terreno afetivo. Uma tarde, um pequeno grupo, composto por Arshia Ali Azmat, Merel Smitt e eu própria, criou uma estratégia de mapeamento da cidade que incluía o registo de elementos arquitetónicos e comerciais como edifícios vazios, monumentos anteriores a 2014, negócios informais e de registo da presença de grupos historicamente marginalizados como a comunidade Roma, os recoletores de lixo e os sem-abrigo. Esta estratégia de mapeamento incluía vários exercícios, tais como: perguntar a um transeunte “onde estou?” ou escolher um transeunte e segui-lo até ao seu destino. Ao atravessar a cidade com a nossa caixa de ferramentas, cheguei a um ponto em que tudo o que conseguia fazer era sentar-me num banco de rua e ouvir um jovem que estava a cantar na ponte entre a praça central e o velho bazar. Esta ponte é uma ligação fundamental, onde diferentes corpos que são agentes da cidade se encontram. Quando me sentei a ouvir o rapaz a cantar senti-me aliviada. Afastei-me dos grandes monumentos, virei as costas ao jovem cantor e senti o meu corpo a relaxar. Permiti-me abandonar o meu cérebro analítico e deixar o meu corpo senciente escolher ir para um sítio de conforto. Depois disto, atravessaríamos a ponte e a nossa última paragem seria num café do bazar, para comer juntas um kunefe – símbolos do jugo otomano, da herança islâmica e da sociabilidade quotidiana.

          A cidade afetiva não se conforma à malha ortogonal e ao mapeamento das ruas por drones. Não diferencia entre a esfera pública e a privada, apesar de parecer tentador no contexto de espaços urbanos e dos seus tradicionais equivalentes da esfera íntima. É um lugar de mudança onde vales e cantos escuros e espaços de conforto correspondem a afetos individuais e partilhados, que existem na perceção, na memória e no imaginário. É uma proposta: relacionarmo-nos com relações visíveis e invisíveis entre micro e macro-histórias, coisas mundanas e experiências sociopsicológicas. É um convite à construção do mundo e à sua transformação partindo da experiência do emocional e do psicossomático.

          Daniel Lühmann O VaIvÉm

          existe um texto. ele é lido primeiro na sua integralidade, numa tentativa de compreender o que está em jogo ali e que virá a se apresentar quando da sua tradução em outra língua, langue, tongue pra se tornar texte, text também. nessa altura, são identificados os termos recorrentes, as eventuais pedras encontradas pelo caminho. pegar um texto pela mão. depois, esse mesmo apanhado de páginas é relido em pedaços, os chamados blocos de trabalho. esses pedaços de texto se tornam morceaux de texte, pieces of text, or would they be slices?, que são relidos à medida que são concluídos. dois pra lá, dois pra cá. os pedaços são então reunidos e tornam-se fragmentos maiores, digamos, capítulos, que são relidos novamente uma vez promovidos a chapitres, chapters, deux pas en avant, deux pas en arrière. não se deixe enganar por esse plural de aparência tão simples: um mero s que transforma um capítulo em vários significa que a mesma operação foi refeita, isto é, uma única letra concentra horas e heures e hours de trabalho, boulot, trampo, ou apenas work work work work work, como quem sacode uma canção pop e, ao fazê-lo, põe também a bunda, les fesses, the ass a mexer. two steps forward, two steps back. é importante lembrar que a unidade livro, bouquin, livre, book leva tempo e que, nesse decorrer, os sentimentos se transformam do amor à raiva à indiferença à falta de vontade de vê-lo na frente e ao amor de novo, à euforia de começar a vislumbrar o fim, la fin, this is the end. não, não, ainda não: é preciso reler a totalidade, reestudar termo por termo, resolver as últimas questões, dúvidas, doubts, doutes, elaborar as notas de rodapé, dar explicações mais palatáveis a determinadas escolhas e tudo isso com calma, pois ele precisa de tempo, o texto. seria besta reduzir os esforços e tentar ganhar do relógio justo nessa altura do castelo de cartas. num futuro próximo, ele também virá a operar um retorno depois de ser percorrido pelos olhos, les yeux, the eyes de outra pessoa, someone else, quelqu’un d’autre, mas isso é só depois.

          * * *

          é mais ou menos assim que eu trabalho, que aprendi a trabalhar, uma maneira inscrita no meu modo de leitura e interpretação do mundo. é também assim que eu danço.

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          trata-se de observar com fineza aquilo que se manifesta, que insiste em aparecer sob diversas formas em torno de um mesmo tema que decidiu se intrometer no interesse. feito uma suspeita de gravidez inesperada que afia o olhar e multiplica os indícios de barrigões e bebês em volta, viés de confirmação. ou seu pleno contrário, o caso raro de alguém que sente uma dor na barriga e, pensando ser um desconforto banal, sai do hospital com um bebê nos braços. não é questão de inventar ou criar, está mais pra deixar-se impregnar, being pregnant, fecundado, prenhe de alguma coisa até então desconhecida. pra começo de conversa, o hospedeiro se põe a mobilizar referências. primeiro os textos, que ajudam não só a encontrar saídas, mas servem também pra colocar em palavras os pensamentos. eles são literários, teóricos, oriundos de domínios variados e variáveis. imagens, diagramas e outros se acrescentam a essa massa ainda amorfa pra acompanhar a operação de transformar tais indícios em práticas, gestos, sequências, matéria de improviso. daí esse conjunto começa a se desenhar em formas mais ou menos precisas, mas de costuras e encadeamentos ainda turvos. será que é nesse momento que isso começa a se chamar coreografia ou a atividade já vale enquanto tal desde o princípio? a última opção me parece mais justa, pois um texto só se concretiza depois de disposto em paradigmas e sintagmas, mas não pode existir sem o conteúdo que o informa, a experiência cotidiana e acumulada, as relações estabelecidas no sentido mais amplo, enfim, tudo aquilo que compõe quem escreve(m). munido então desse léxico performativo, de cânones e canhões, a etapa seguinte é a formalização de uma linha de ações e/ou movimentos e/ou operações organizadas numa espécie de escrita movente, que pode variar mais ou menos durante essa produção de narrativa ao vivo, aos vivos.

          * * *

          seria isso o fim dessa operação de contaminação cruzada, desse vaivém entre texto e movimento?

          * * *

          no documentário “foucault contra si mesmo” (2014) de françois caillat, a trajetória do filósofo e da sua obra são analisadas por especialistas que dão a ver um pouco da sua maneira de costurar cada elemento constitutivo do seu corpus, particularmente o fato de o trabalho seguinte começar sempre a partir do fim do anterior – uma continuidade quase óbvia, exceto que nem um pouco. tem também a questão essencial de se deixar levar pela escrita, de ter um tema sem saber aonde ele irá, mas de se jogar nele mesmo assim e acolher de maneira crítica o que sair desse buraco. tais aspectos, somados a seu percurso erudito e exemplar, mas que se autorizou, quiçá até mesmo ousou mover os limites de diferentes domínios de conhecimento, tornando-se quase um historiador sem sê-lo de fato, operam um borrão nas fronteiras dos conhecimentos, e eu acho que é aí que se encontra o xis da questão.

          * * *

          pera pera pera,
          você está se comparando ao foucault,
          é isso mesmo?

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          a resposta às duas últimas perguntas interpostas vem na forma de um sonoro não, non, nananinanão, no no no, necas de pitibiriba. a atividade performativa, depois de ter revirado tanto e continuado sua existência num palco ou fora dele, opera coisas que precisam ser mastigadas, digeridas, formuladas uma vez mais, retrabalhadas em palavras, paroles, paroles, paroles. mutatis mutandis, é no gesto editorial que esse ciclo encontra um fim provisório e oscila de texto a movimento, depois novamente em texto, apontando um vínculo com outros ainda, tornando-se movimento de novo, pra daí retornar à forma textual e assim por diante. esta é a tentativa aqui, tanto no que se lê quanto naquilo que se escreve sobre um corpo, passando por diferentes estruturas e registros de escrita pra demonstrar uma composição individual múltipla, um grande hematoma. como quem tenta tatear as fronteiras invisíveis e intocáveis e, fazendo isso, avança um passo em direção à dissolução delas ou, pelo menos, à constatação da sua limitação irrisória. respostas completas, iluminações e totalidades não são esperadas, é mais uma questão de encontrar um buraco, uma pedra, um desejo que passe de um domínio a outro, até que um novo entrave ou vontade surjam e convoquem o outro lado. ou a simples, reconfortante e luxuosa possibilidade de deixar algo descansar e ir ruminando sua decantação enquanto se faz outra coisa e, assim, colocá-las em contínuo diálogo. pois, dançando, a escrita pode assumir outros contornos e, escrevendo, a dança também abre outras facetas, um ciclo que se persegue sem se arretar mas não sem arestas.

          * * *

          ce dont on parlerait à présent aquilo de que se falaria agora what we would talk about then was the middle of the way era do meio do caminho du milieu du chemin, mais y a-t-il besoin tem necessidade is it really necessary? the impression que fica a impressão that remains l’impression qui reste est que non, não, no, absolutely not. carlos had said a while ago já faz um tempo que ele disse il avait dit, non? depuis un moment qu’il y avait une pierre que tinha uma pedra, there was a stone no meio do caminho, in the middle of the way, au milieu du chemin, ou à mi chemin? que tinha um caminho no meio da pedra, maybe a path in the middle of the stone, un chemin au milieu de la pierre peut-être, et qu’elle, la pierre, the stone, a pedra talvez fosse o caminho, serait peut-être le chemin, it would perhaps be the way itself que talvez maybe perhaps again peut-être encore nem caminho tivesse, there would be no way, il n’y aurait pas de chemin, only pierre, juste stone, só pedra, just, que les rétines as retinas the retinae would already já estavam be seraient déjà bien fatiguées, cansadas, tired, exhausted and that it was quite possible, era bem possível, il était assez possible, probable même, sans doute, even likely, provável até, que eles se apedrejassem, yes, they would se lapider, ils allaient se lancer des stones, lapidate, throw pierres les uns sur les autres at each other.

          este texto integra horror vacui, uma publicação e performance que consiste em cobrir o corpo de escritos, ambas trazidas ao mundo no contexto do programa de mestrado exerce de ici-ccn em parceria com a université paul valéry em montpellier, frança.

          Lior Zisman Zalis Políticas da caída ou como colocar o Estado pra baiar

          “É preciso girar para colocar a força em movimento. Tem que ficar tonto mesmo, é assim que eles vêm”, foi o que me disse Maria quando perguntei o que tinha que saber se quisesse baiar1 o Terecô, religião de matriz africana natural da cidade de Codó, interior do Maranhão (Brasil). Eles, a que se refere Maria, são os encantados, seres espirituais. Eles vêm ao se incorporar nos brincantes – como se chamam os seus praticantes e médiuns. Segundo dizem, os encantados tiveram uma vida terrena como nós, mas não morreram. Driblaram a morte e encantaram-se. Vêm ao nosso plano para trabalhar, utilizando o corpo dos médiuns. Quando não estão trabalhando, baixam2 nos festejos para brincar, dançar, beber cachaça e cerveja, fumar e participar do tambor das tendas, dançando Terecô por dias seguidos. O ritmo do Terecô é chamado de ritmo da Mata, acompanhado de tambores, cabaças, marimbas e, em alguns momentos, flautas. 

          Próprio da cidade de Codó, esse ritmo conforma certo elemento distintivo do Terecô em relação, por exemplo, ao do Tambor de Mina, religião de matriz africana presente em São Luís, capital do Estado do Maranhão. Também é por meio dele que se criam certas condições para que os encantados baixem. Estas são moduladas pela força com que o ritmo é tocado, dependendo de fatores variados que vão desde a força dos músicos a trabalhos religiosos feitos pelos pais e mães de santo ou à situação espiritual dos presentes, entre outros. Além do toque, é através da dança que a força é colocada em movimento. Como um dinamizador religioso, junto às doutrinas – pontos cantados –, aos músicos e aos instrumentos, o corpo transforma-se em aparelho, termo usado para designar o corpo do médium. Essa aparelhagem coreógrafa transforma-se em um veículo de outras ontologias. Acelerado, no ritmo da Mata os brincantes baiam girando, individual e coletivamente, criando uma corrente3. À medida que os corpos giram no espaço e sobre si mesmos, os encantados vão pegando as pessoas. Gestos de tontura, fraqueza nos pés, necessidade de apoiar o corpo e outras expressões do transe começam a povoar os corpos que, um a um, vão caíndo e recebendo seus encantados. 

           

          Quando estive em Codó fazendo meu trabalho de campo do doutorado4 entre 2022 e 2023, a expressão cair, além de designar a incorporação, aparecia também em certas memórias sobre o tempo em que o Terecô era perseguido pela polícia.5 A perseguição às religiões de matriz africana no Brasil esteve presente desde o começo do tráfico transatlântico de pessoas negras da África para o Brasil. Junto ao racismo estrutural e institucional, a tipificação do crime de “curar feitiço”, “charlatanismo”, “baixa medicina”, “curandeirismo”, “feitiçaria” e “pajelança” em distintos instrumentos legais (Códigos Penais e Códigos de Postura) começa a aparecer a partir do século XIX, aplicada majoritariamente às religiões de matriz africana no Brasil. 

          Segundo contam os mais velhos, em Codó, essas histórias aconteceram entre 1920 e 1950. Os terecozeiros eram presos, e o tambor, proibido. No entanto, para resistir a essa perseguição, desenvolviam-se algumas táticas não apenas para dar continuidade à prática religiosa, mas para escapar à violência policial. Uma das principais figuras da perseguição era um policial chamado de Tenente Vitorino, conhecido por sua crueldade e ódio às religiões de matriz africana. Mas por mais que o tenente tentasse proibir o Terecô, não conseguia. Dona Cleude, moradora do Quilombo Santo Antônio dos Pretos, localizado a 70 km do perímetro urbano de Codó, contou-me sobre o dia em que o Tenente Vitorino tentou acabar com o Terecô, mas acabou caindo nele.

          Em Santo Antônio, antes de haver salão – nome usado para designar os espaços de culto –, o tambor era feito em um local identificado como ilha, mais afastado da zona residencial do quilombo, situado no meio da mata e rodeado por olhos d’água. Era difícil chegar lá. A polícia não conseguia. Segundo os mais velhos, quando a polícia estava no caminho, as matas se fechavam: os policiais andavam, andavam, andavam e não encontravam o tambor. Às vezes ouviam o tambor de um lado e, quando iam naquela direção, escutavam o tambor em outro lado, perdendo-se nas matas. 

          Um dia, os encantados souberam que o Tenente Vitorino vinha com um grupo de policiais, mas, ao invés de despistá-los, combinaram de deixá-los encontrar o tambor. Vitorino vinha lá de Codó. Colocou seus policiais num camburão e trouxe mais quatro carros. Nesse dia a mata não estava fechada, era via livre para eles encontrarem. Tenente Vitorino, quando entrou no salão, foi recebido com um encantado de um lado e outro do outro, no meio estava Colin Maneiro6, que montou no Tenente Vitorino e dançou Terecô em cima dele a noite toda. Depois, pegaram o carro, colocaram o pessoal lá, com tambor e tudo, e foram até Codó continuar brincando de Terecô. Entraram na delegacia baiando, tudo com seu Colin Maneiro montado nele. Depois disso, ele não só liberou o Terecô, como passou a frequentar todos os anos o festejo por lá. 

          Chave nas histórias de perseguição ao Terecô, a figura do Tenente Vitorino delimita um marco temporal – “no tempo do Tenente Vitorino” –, um tempo de silenciamento, repressão e fuga. Poucas das pessoas que estão vivas hoje em Codó o conheceram, e são muitas as versões das histórias em que ele aparece. Existe, contudo, uma noção comum a todas elas: seu fracasso. O Tenente Vitorino é, na memória do Terecô, uma cifra narrativa do fracasso do poder repressivo do Estado frente à agência do Terecô. Provavelmente ele era um militar de alta patente responsável pela região e, como contam, chegou a Codó para proibir o tambor. Sua relevância no Terecô é tanta que fizeram uma doutrina sobre ele:

           

          Baia, baia, baia, 

          Baia, baiadô (x2)

          Tenente Vitorino quer acabar com o terecô

           

          Tenente Vitorino é homem não é menino, 

          Quer acabar com o terecô com cipó de Tamarindo.

           

          Tenente vitorino é um homi muito malino,

          Quer acabar com o terecô, com cipó de Tamarindo.

           

          A música, dizem alguns, foi cantada no momento em que Vitorino caiu em Santo Antônio dos Pretos e começou a dançar. A estratégia foi combinada: utilizar o corpo dos policiais e fazê-los baiar. Forma-se uma inusitada coreografia que invade a repartição pública. A incorporação, nesse caso, é distinta daquelas usadas nos cultos e nas obrigações religiosas pelos médiuns ou, como chamam em Codó, aparelhos. É uma incorporação instrumentalizada à resistência. Trata-se do uso do aparelho estatal para dançar a noite toda e sustentar aquilo mesmo que se buscava reprimir. Dançar o tambor é uma forma de manter a força circulando e fluindo, sustentando a energia vital do terreiro.

          A relação entre dança e política ganha aqui particular mutação. A resposta à violência estatal é o controle de um corpo que é posto a girar no ritmo da Mata. “Quis acabar com o Terecô mas acabou caindo nele”, me disse a mãe de santo Maria dos Santos quando contava as histórias daquele tempo. Cair alude também a uma política da derrubada. Tanto o corpo como a autoridade caem, sucumbem a uma rítmica, a um poder. São arrastados por uma força. Essa caída é da mesma ordem do tombo, o “tombo da maresia”, como disse a mãe de santo Luizinha referindo-se ao momento em que os encantados pegam a pessoa. Um tombo não para fazer cair no chão ou interromper um percurso, mas para transformar e continuar corpo de outra forma. É um corpo que cai ao mesmo tempo em que é capturado para não mais deixar o sujeito dono de si mesmo.

          Nessa política da caída, a resistência não pode ser desvinculada da sua dimensão religiosa. Como um movimento tático, os corpos não se confrontam. São tomados. Diferente das barricadas, dos protestos e das passeatas, a agência política é um corpo condicionado ao movimento. Um corpo que, mais que interrompido, mais que assassinado, mais que atingido, é apreendido. Na história de Cleude, submeter-se ao ritmo do Terecô é transformar a autoridade performativa do Estado, subjugando-a e colocando-a em outro lugar. De alguma forma, através dos corpos que dançam, o poder é deslocado. É, ainda, desmoralizado, invertido, desconstruído. É um gesto de sobreposição da força do Terecô à do poder Executivo. O Estado sucumbe à dança.

          1 A palavra baiar refere-se genericamente ao ato de dançar – bailar – o Terecô. Ao longo do texto, as palavras em itálico referem-se a conceitos êmicos, utilizados pelos interlocutores para indicar experiências, práticas e conceitos nos seus contextos.
          2 Essa expressão é utilizada para referenciar o momento em que as entidades incorporam no médium. Além dela, escutamos também expressões como a entidade subiu em cima, montou, pegou ou também que a pessoa caiu.
          3 Corrente é um termo polissêmico que remete tanto a essa atmosfera criada durante a gira quanto à organização e hierarquia dos encantados de uma pessoa.
          4 Este texto é resultado do trabalho de campo que realizei em Codó entre 2022 e 2023 para a minha tese de doutoramento no âmbito do programa em Pós-Colonialismo e Cidadania Global no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. A minha pesquisa de doutorado centra-se na agência política de seres não humanos dentro das relações de racismo institucional, perseguição e conflito com o Estado Brasileiro e seus agentes.
          5 Sobre os instrumentos legais e a perseguição institucional às religiões de matriz africana no Brasil, ver Dantas, Beatriz Góis (1988), Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janeiro: Graal; e Maggie, Yvonne (1992), Medo de feitiço: relações entre magia e poder no Brasil, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. Sobre a perseguição de religiões de matriz africana e pajelança no Maranhão, ver Ferretti, Mundicarmo (2001), Encantaria de “Barba Soeira”: Codó, capital da magia negra?, São Paulo: Editora Siciliano; Ferretti, Mundicarmo (2015), Um Caso de Polícia! Pajelança e Religiões Afro-Brasileiras no Maranhão (1876-1977), São Luís: EDUFMA.
          6 Os encantados dividem-se em linhas e famílias, estabelecendo relação de parentesco uns com os outros. Colin Maneiro é um encantado da família de Légua. Alguns dizem que é um dos primeiros filhos do encantado chefe da linha da mata de Codó, Légua Boji Buá Ferreira da Trindade, enquanto outros sugerem que é seu irmão. Conheci seu Colin Maneiro em cima do pai de santo Zé William, da Tenda Espírita de Umbanda Santa Bárbara em Morada Nova, quilombo localizado cerca de duas horas de carro de Codó. Sua fama de grande feiticeiro e curador é disseminada pela região. É um encantado velho, gosta muito de cachaça e sempre quando baixa tira a camisa, bota um chapéu e amarra um pano atravessado no corpo.

      • 8 Para o Gil

          Gil Mendo O que queremos levar connosco?

          No final dos anos 1990, afirmavam-se e proliferavam novos festivais onde dança, performance art e outras linguagens se cruzavam e se fundiam – sendo o festival Mergulho no Futuro um dos seus emblemáticos exemplos. Na publicação do seu programa, em 1998, Gil Mendo fazia o ponto de situação desse movimento de desfronteirização e mobilidade das disciplinas artísticas, ao mesmo tempo celebrando a possibilidade de novas hibridizações, novos desejos artísticos. Nessa antecipação de devires ainda por imaginar, Gil Mendo perguntava à comunidade: “O que queremos levar connosco?” Um quarto de século depois, no âmago das nossas imaginações coletivas sobre o futuro da arte e do mundo, continuamos a perguntar-nos o mesmo como exercício ético de cidadania – e assim deveremos continuar a fazer.

          De todas as transformações a que temos assistido, no campo das artes performativas, nas duas últimas décadas deste século, aquelas que terão mais duradouras repercussões no futuro serão porventura as que derivam do esbatimento de fronteiras entre disciplinas artísticas e da consequente mobilidade dos criadores no seu interior.

          Mobilidade, eliminação de barreiras, foram causas emblemáticas do movimento da “Nova Dança” e do “Novo Teatro”, que tão fortemente marcaram a década de oitenta. Sublevação tácita de uma geração de autores contra fórmulas predeterminadas e imobilistas que, do seu ponto de vista, reduziam a actividade performativa a um repisar de artifícios inadequados às novas realidades sociais e culturais, este movimento não pretendeu instaurar novas fórmulas em substituição das que recusava. Pelo contrário, opôs-se ao purismo a favor da contaminação, de uma maior aproximação à vida, ao quotidiano das pessoas. Ao quotidiano passaram os autores a ir buscar a sua principal matéria de trabalho, não para operarem uma transposição pura e simples da vida para a cena mas para criarem em cena algo que poderia ser transposto para a vida. Cada novo projecto passou a desenvolver-se num processo de pesquisa envolvendo autores e intérpretes, a linguagem passou a ser definida por esse processo em vez de o predeterminar.

          Passou assim a praticar-se uma permanente reaprendizagem de linguagens, a fronteira entre autor e intérprete esbateu-se, passando este a desempenhar um papel tão fundamental como o daquele no processo de criação, e uns e outros passaram a sentir a necessidade de aprofundar conhecimentos e desenvolver perícias além das fronteiras estritas de uma determinada disciplina a que estivessem à partida ligados.

          O que de fundamental resultou daqui não foi, por isso, o regresso a um “teatro total” em que todas as disciplinas coexistiram paralelamente, mas a explosão de múltiplas formas em que elementos tradicionalmente atribuídos a diferentes disciplinas são manipulados pelo mesmo autor e, o que é talvez mais consequente, pelos mesmos intérpretes, sem que para isso tenham que desaparecer as diversas disciplinas, enquanto repositório de saberes e perícias que não têm cessado de se aperfeiçoar e desenvolver.

          A geração que irá marcar o início do novo milénio é a geração dos discípulos deste movimento, uma geração não marcada pela ruptura estética dos anos oitenta, para quem a multiplicidade de vias abertas para as artes performativas ao longo da década de noventa constitui um campo a explorar bem mais excitante e lúdico do que quaisquer querelas ou antagonismos.

          A década de noventa não tem sido uma década de rupturas neste campo, mas não deixa por isso de ser uma década de fortes personalidades criativas e inovadoras. Não estando circunscritos a movimentos redutores, os autores do nosso tempo podem, a cada momento, seleccionar influências e fontes de inspiração para o seu trabalho. O que é importante nesta década não é o que se pôs de lado, ou abandonou, mas o que se ganhou, o que se acrescentou. Aliás, como toda a gente, também os autores neste fazem um balanço, questionam e reinterpretam, à luz dos conhecimentos actuais, figuras e momentos emblemáticos do século XX, especulam sobre a memória, interrogam-se, interrogam-nos, sobre o que de essencial levamos daqui para o próximo milénio.

          A forma vertiginosa, ainda que subtil, como os desenvolvimentos tecnológicos deste fim de século invadiram o nosso viver quotidiano e transformaram o convívio social não poderia deixar de reflectir-se, de mais de uma maneira, na evolução das artes performativas. A apropriação artística de novas tecnologias, com tudo o que deixa antever de renovação de formas e dispositivos cénicos e de novas relações possíveis entre obra e espectador, não será talvez a mais significativa. Mais significativo poderá ser o que trarão de novo as gerações para quem o convívio com um quotidiano altamente mediatizado e globalizado, em que o real e o virtual coexistem, é já um convívio natural e isento de perplexidade.

          Mas a generalizada mediatização, a transferência do espectáculo e da espectacularidade para outras esferas que não são a da arte e da criação artística, determinou também uma redefinição do campo artístico e, nomeadamente, do espaço em que as artes performativas actuam e da forma como procuram interagir com a sociedade. Tornou-se mais íntima e emocional a relação entre performer e espectador, duma intimidade e emocionalidade que só o confronto ao vivo permite e que é dificilmente apropriável pelas indústrias do entretenimento. O processo de criação, a pesquisa, o trabalho em progresso, a obra em aberto, ganham terreno sobre o produto artístico e a obra acabada. A relação com o espectador é mais provocadora do que apaziguadora, não pela intenção de agredir mas pela insistência em levantar questões, em despertar, em provocar no espectador a identificação e a emoção, sem lhe oferecer respostas redentoras. A cumplicidade que procura estabelecer-se com este espectador não se baseia no domínio comum de linguagens codificadas, mas numa comum vontade de preservar a experiência individual, a diferença individual, a memória individual. E talvez isto, este instinto não reaccionário de preservação, seja o que de mais fundamental as artes performativas transportem para o novo milénio.

          Gil Mendo A sua última apresentação pública

          Dos inúmeros eventos e momentos que marcaram a sua vida, houve um que Gil Mendo tinha especial prazer em relatar, tanto em conversas informais como em apresentações públicas dedicadas à história da dança: a vinda de Maurice Béjart a Lisboa em 1968, em plena ditadura fascista em Portugal. Neste texto de 2017, Gil Mendo recorda a fatídica noite da apresentação de Romeu e Julieta no Coliseu dos Recreios, retratando-a como um episódio de resistência política, uma indelével fratura no regime censório que oprimia os desejos dissidentes (artísticos e outros) da sua geração – e toda a vida do país.

          Em 1968, no âmbito do Festival Gulbenkian de Música, os Ballets du XX Siècle, dirigidos pelo Maurice Béjart, apresentaram, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o seu Romeu e Julieta. O bailado era um libelo contra a tirania e continha, a certa altura, uma gravação fictícia de notícias radiofónicas, nas várias línguas dos intérpretes, e que incluía um excerto em português, que mencionava uma revolta de estudantes em Coimbra e a brutalidade da repressão.

          O Coliseu estava à cunha e no final do espectáculo houve uma enorme apoteose. Aconteceu que, nesse mesmo dia, o Robert Kennedy (irmão do Presidente John Kennnedy e candidato à Presidência dos EUA) tinha sido assassinado. O Maurice Béjart veio ao palco, disse “Mesdames et Messieurs, Robert Kennedy est mort victime du fascisme et de la violence” (senhoras e senhores, o Robert Kennedy morreu vítima do fascismo e da violência) e pediu um minuto de silêncio, após o que disse “Les jeunes, battez-vous contre toute forme de dictature” (jovens, combatam todas as formas de ditadura). Foi um pandemónio, e um numeroso grupo de estudantes que estava nas galerias cantou A Internacional.

          No dia seguinte, de manhã, a PIDE foi ao Hotel Borges, no Chiado, para prender o Maurice Béjart. Algumas bailarinas rodearam-no e ele conseguiu aceder ao telefone da recepção e telefonar ao Embaixador de França (o Béjart era de nacionalidade francesa). O Béjart acabou por sair do hotel acompanhado do Embaixador e da polícia (veio depois a saber-se que o tinham conduzido à fronteira e aí deixado). A polícia política apagou também a parte da gravação em português. O Embaixador da Bélgica (a companhia era belga), mandou cancelar o segundo espectáculo e pediu que toda a companhia abandonasse o Coliseu antes da chegada do público.

          O Maurice Béjart só voltou a Portugal cerca de duas décadas depois para ser condecorado pelo Presidente Jorge Sampaio, numa cerimónia no Palácio de Belém em que lhe pediu publicamente desculpa pelo sucedido. (Uma curiosidade: por esses dias, salvo erro mesmo o dia que deveria ter sido o da segunda representação do Romeu e Julieta, era também a primeira apresentação, no Teatro Nacional de São Carlos, da Giselle dançada pela Margot Fonteyn e pelo Rudolf Nureyev. Correu o boato, mas não sei se é verdade, que o Rudolf Nureyev queria vir à boca de cena, perante o então presidente Américo Tomás, declarar que não dançava por solidariedade com o Maurice Béjart, e que terá sido a Margot Fonteyn a conseguir demovê-lo.) Em qualquer caso, este incidente terá porventura ditado o fim do Festival Gulbenkian de Música, que foi uma das muitas iniciativas de Madalena Perdigão que permitiram ao público português o contacto com figuras cimeiras das artes (como o Igor Stravinsky, entre muitos outros).

          Texto escrito para o projeto “Para uma Timeline a Haver — Genealogias da Dança como Prática Artística em Portugal”, no âmbito do qual Gil Mendo fez a sua última apresentação pública, na Fundação de Serralves.

          Gil Mendo Introdução da Coreologia como disciplina em Portugal 

          Ao longo de quarenta anos, Gil Mendo foi professor de coreologia, nomeadamente do sistema Benesh, inventado pela bailarina Joan Benesh e pelo matemático Rudolf Benesh na década de 1940. Para além do registo rigoroso do movimento, Mendo realça, numa época em que o vídeo impera, o contributo da coreologia para a composição de movimento.

          Introdução da Coreologia como disciplina em Portugal 

          A Coreologia como disciplina foi introduzida no Curso de Dança do Conservatório Nacional, na sequência da Reforma do Conservatório de 1973, por Maria Bessa. Eu próprio tornei-me professor de Coreologia da Escola de Dança do Conservatório Nacional no ano lectivo de 1975/1976, após conclusão do curso do Benesh Institute of Choreology, e mais tarde ensinei notação Benesh na Escola Superior de Dança, até à minha aposentação. Nos meus primeiros anos de ensino deste sistema de notação, com Maria Bessa, contribuímos para a graduação de alguns estudantes, e alguns professores, em Portugal, em colaboração com o Benesh Institute, o Conservatório Nacional e a Academia de Dança Contemporânea de Setúbal. O ensino da Benesh Movement Notation mantém-se hoje, penso, com carácter regular, apenas na Academia de Dança Contemporânea de Setúbal. Mas outras instituições (nomeadamente a ESD) mantêm o ensino da Labanotation (pelo menos em ligação com a análise de movimento baseada na teoria Laban). Hoje podemos, penso, considerar a Coreologia uma disciplina mais ampla do que o estudo de um dos sistemas universais de notação de movimento, até porque se continua a pesquisar no campo da preservação das obras e matérias dos processos coreográficos, com os muitos meios tecnológicos hoje disponíveis. Mas continuo a pensar que o estudo de uma notação (uma escrita) é um contributo importante para a criação de hábitos de organização, visualização, concepção e memorização do movimento. 

          Texto escrito em 2017 para o projeto “Para uma Timeline a Haver — Genealogias da Dança como Prática Artística em Portugal”. 

          Gil Mendo Vinte anos depois: Algumas considerações pessoais

          Atento observador do desenvolvimento do tecido profissional e da programação de dança na cidade do Porto, Gil Mendo integrou o júri do projeto “Interfaces”, onde o NEC produzia trabalhos de colaboração entre jovens criadores independentes. Neste texto, que integra a publicação Ensaio Aberto- Núcleo de Experimentação Coreográfica: Abordagens à Produção Artística, lançada em 2005 aquando da comemoração dos 12 anos do NEC, Gil Mendo descreve uma das suas características éticas enquanto agente das artes, nomeadamente, a não hierarquização entre espaços de apresentação, obras, artistas e carreiras.

          Passadas quase duas décadas sobre o movimento de ruptura aglutinador que se convencionou chamar da Nova Dança Portuguesa (NDP), muita coisa mudou em Portugal. Aquilo que na altura era um movimento herege conduzido por um grupo de criadores jovens que o establishment da dança olhava com desconfiança, veio a ser progressivamente aceite à medida em que o mais vasto movimento de renovação europeu e internacional, no qual a NDP se inseria, se estendeu a Portugal e foi, como era inevitável, pacificamente incorporado.

          Como é natural, e como sempre aconteceu com todos os movimentos de renovação e todas as revoluções, o seu triunfo e a sua generalizada aceitação trazem também consigo a sua banalização. Mas neste caso, porque se tratava de um movimento antidogmático, que precisamente se rebelava contra a imposição de conceitos, formas, processos e vocabulários rígidos, a sua banalização corresponde sobretudo a uma generalizada aceitação da diversidade.

          Não se trata apenas da diversidade de géneros ou de correntes artísticas, daquela diversidade que nos separa claramente embora nos não incompatibilize irredutivelmente e veja-se como foi generalizada no meio da dança a reacção negativa e a sensação de perda, de risco e de empobrecimento provocada pela súbita extinção do Ballet Gulbenkian. Não, a diversidade que é verdadeiramente significativa, aquela que é uma directa consequência do movimento renovador dos anos oitenta do século vinte, é a diversidade que existe no seio duma mesma corrente artística e que nos convida a olhar para cada objecto artístico como se fosse totalmente novo, mesmo se pertencente a uma corrente ou resultante de uma postura artística que julgamos nossas conhecidas.

          Um dos aspectos, da história da dança portuguesa recente, que me parece mais singular é a enorme resistência dos principais protagonistas do movimento da NDP a deixarem-se aprisionar numa fórmula ou encobrir num rótulo, a despeito do sucesso artístico e da aceitação que entretanto alcançaram. Essa postura, de permanente busca e questionamento, faz com que ainda hoje estejam na vanguarda e com que a influência maior que projectam sobre as gerações seguintes seja a de uma ética de verdade e não a de um legado de fórmulas e de processos.

          Pergunto-me por vezes se seria hoje possível um movimento de ruptura, ou que forma poderia assumir um movimento de ruptura neste ambiente de aparente abertura a todas as formas e a todas as pesquisas, embora ainda parco em infra-estruturas para as acolher.

          A minha maior angústia nestes últimos tempos, no entanto, tem sido a de não conseguir acompanhar tudo o que se passa à minha volta. Rara é a semana em que não perco a oportunidade de conhecer um projecto ou o trabalho de um autor que ainda não conheço ou que conheço mal. Pessoalmente, procuro olhar para um projecto ou uma obra com o mínimo possível de preconceitos. Não hierarquizo os autores segundo as idades, isto é, não espero que um projecto seja mais ou menos consistente, ou mais ou menos inovador, consoante a idade e a experiência do autor. Não hierarquizo as obras segundo a dimensão, isto é, não penso que um solo tenha menos peso numa carreira artística do que uma peça de grupo, nem que uma obra muito curta tenha menos peso artístico do que uma obra muito longa.

          Não hierarquizo os lugares: não considero um grande auditório mais do que uma sala estúdio, nem um espaço formal mais do que um espaço informal, em termos artísticos. Tampouco menosprezo as carreiras criativas efémeras: o processo coreográfico contemporâneo induz ao envolvimento criativo dos intérpretes e estimula o desenvolvimento da autoria, e é bem possível que uma experiência de criação que não tenha continuidade numa carreira de coreógrafo tenha um valor e uma importância artística relevante. Assim como não menosprezo o trabalho artístico desenvolvido em meios escolares ou comunitários, à margem do circuito artístico profissional: não apenas por ele ser fundamental para o desenvolvimento artístico e cultural, mas porque no seu seio podem dar-se acontecimentos artísticos que são notáveis precisamente em termos artísticos, independentemente da sua repercussão pública.

          O que é importante é que todas estas hipóteses correspondam realmente a escolhas e não a recursos. Ora eu penso que nós talvez ainda não tenhamos adaptado totalmente o nosso olhar analítico e crítico à dança como ela é hoje (e aqui estou a falar da dança criada por uma geração que não viveu a ruptura da Nova Dança, que cresceu artisticamente já no ambiente de presumível abertura, transdisciplinaridade e informalidade que essa ruptura fomentou), nem adaptado totalmente a rede de infra-estruturas às necessidades para a produzir e difundir. Nisto eu vejo de facto um grão de crise. Mas não é uma crise apenas portuguesa. Nem é crise de maior. É-o em grau suficiente para ir forjando soluções e alternativas que se afiguram marginais, mas que são porventura, em termos de futuro, aquelas onde germinam as coisas mais relevantes. É importante estar-lhes atento. Acredito que, mesmo num clima de abertura e abrangência como aquele em que, felizmente, temos vivido, há sempre um establishment e há sempre margens. E acho importante estar atento às margens, sem nelas procurar interferir, para não ficar prisioneiro de visões estreitas, julgando-as largas, ou duma consciência pobre da realidade que me cerca, julgando-me homem do mundo.

          Gil Mendo Um corpo liberto de ideias feitas

          Para a sua tese de doutoramento sobre as transformações culturais ocorridas em Portugal na década de 1980, vistas a partir do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, a investigadora Ana Bigotte Vieira chega a Gil Mendo para com ele entender o momento que então se vivia na dança, nos corpos, nas instituições e nas práticas.

          Ana Bigotte Vieira: Encontro-me, então, de roda do Serviço ACARTE, e como o Gil Mendo é um especialista em dança vou tentar focar-me nesta área, mas o ACARTE é maior…

          Gil Mendo: É, de facto, e uma das coisas muito importantes do ACARTE é precisamente o cruzamento de linguagens (embora este estivesse na altura já inscrito no que se chamou a Nova Dança, Novo Teatro e Nova Música), mas para mim há um aspecto muito importante do ACARTE que é o cruzamento de públicos: os públicos das formas novas.

          Gostava de começar um bocadinho mais atrás, para perceber onde é que o ACARTE se inscreve quando aparece em 1984. No que diz respeito à dança, o que é que existe então em Portugal, em termos de companhias, programação e ensino?

          Nessa altura havia duas companhias institucionais, que eram a Companhia Nacional de Bailado e o Ballet Gulbenkian; havia uma escola oficial que era a Escola de Dança do Conservatório Nacional e depois existiam uma série de estúdios particulares, como o Estúdio da Ana Mascolo.

          Já nessa altura havia alguns grupos independentes, mas estruturavam-se muito à semelhança do Ballet Gulbenkian, embora houvesse uma tendência para uma menor hierarquização das funções. Já existiam os Estúdios Coreográficos do Ballet Gulbenkian – e é importante falar nisso porque ligo muito aquilo que começou a acontecer nesses Estúdios com o que depois o ACARTE veio apoiar e amplificar, que é surgirem alguns autores – bailarinos do Ballet Gulbenkian – que se começavam a fazer notar por um público mais interessado no novo: os casos da Vera Mantero, João Fiadeiro…

          Depois, fora desse âmbito, também já existia o Grupo Experimental de Dança Jazz, que deu origem à Companhia de Dança de Lisboa e que foi fundado pelo Rui Horta; existia o estúdio do Rui Horta, que acolhia também alguns jovens emergentes como era o caso da Clara Andermatt, o caso do Francisco Camacho e outros. E, portanto, já havia um fenómeno de geração, uma geração que já tinha começado quando saía de Portugal para ir para o estrangeiro fazer estágios, estudar durante alguns períodos: já iam não tanto à procura do aperfeiçoamento técnico, que era o que acontecia tradicionalmente (ou seja, as pessoas iam estudar o que estudavam em Portugal mas com outros mestres, em Londres, em Paris e alguns em Nova Iorque), mas de outras coisas a que não tinham acesso em Portugal (nomeadamente, gente da dança que ia para o Lee Strasberg estudar teatro, ou gente que ia estudar dança de forma mais participativa e criativa: a improvisação, o contacto-improvisação, etc.). E, portanto, já existia essa geração nascente. O ACARTE veio amplificar tudo isto, porque veio dar a estas pessoas a possibilidade de conhecerem muito do que se passava nessa altura na Europa e nos Estados Unidos, mas não apenas, e fazê-los perceber que, na sua ânsia de uma forma diferente de trabalhar com o corpo e de trabalhar com a dança, não estavam sozinhos, que havia um movimento vasto na Europa nessa altura. 

          É preciso também enquadrar o que acontecia antes de existir o ACARTE, há alguns nomes que acho que é justo que citemos, sobretudo dois: um é o da Paula Massano, o outro é o da Olga Roriz, que já tinha um percurso no Ballet Gulbenkian. Ah! E o nome da Elisa Worm: em relação ao que se fazia no campo da dança independente, [espelhava] já uma tentativa de se organizar de uma forma diferente e, sobretudo, quebrar a distinção entre o coreógrafo e o intérprete. O coreógrafo até aí esperava do intérprete um corpo dócil que pusesse em prática a sua ideia, e a partir desta altura começa a surgir em Portugal a vontade de um trabalho em que o intérprete também é um criador, e, portanto, há algo de coreógrafo também no intérprete e a distância hierárquica entre o coreógrafo e o intérprete esbate-se.

          E em relação ao ensino? Como era então o ensino, nomeadamente na Escola de Dança do Conservatório Nacional e, claro, na recém-criada Escola Superior de Dança?

          A Escola de Dança do Conservatório Nacional era uma escola que assentava em duas técnicas: a técnica da dança clássica e a modern dance, que nessa altura era a técnica Graham. Quando nós criámos a Escola Superior de Dança, embora continuássemos a ter essas técnicas como técnicas-base — a escola de dança teve instalação a partir de 1983 e abriu os seus cursos em 1986 —, já houve uma grande influência do que se estava a passar…

          Em 1986, o ACARTE já se encontra em funcionamento…

          Já houve influência, a ideia-base já era o primado da criação e da criatividade e, portanto, quando abriu a escola esta tentava já estar a par do seu tempo. Naturalmente, o Conservatório Nacional a partir daqui também teve uma evolução bastante grande, nomeadamente em relação às técnicas contemporâneas. Nesta altura, meados dos anos 1980, as pessoas, quando pensavam no contemporâneo, pensavam só na técnica Graham, mas já havia muitas outras coisas. E as coisas depois evoluíram bastante. Nesse aspecto eu também considero o contributo do ACARTE muito importante.

          Nas técnicas?

          Noutras maneiras de trabalhar com o corpo. 

          Pois, o que vai de encontro a outra das minhas perguntas. Este tipo de dança, que tipos de corpo cria? Não o corpo dócil a que se referiu…

          Sim, e atlético e moldável. Com o ACARTE — agora já saindo do âmbito dos profissionais da dança — houve nesta altura (final dos anos 1980, início de 1990) bastante querela estética. Ou seja, pessoas que rejeitavam completamente o novo e pessoas que queriam rejeitar completamente o que estava para trás. Mas, em relação ao público em geral, acho que o ACARTE lhe deu oportunidade de descobrir muita coisa do que se estava a fazer no mundo: nomeadamente, a recusa de um modelo de corpo, de uma ideia de dança totalmente pré-determinada, de um trabalho com vocabulários restritos. E em que o coração do movimento quotidiano… em que o coração da voz… o trabalho com o corpo tal como ele é (naturalmente, trabalhando-o para o poder utilizar) [se torna possível, por contraponto a] uma ideia rígida de qual é o corpo possível para a dança, [que] deixou de existir.

          Qual é a relação entre a criação da Escola Superior de Dança e a reforma do Ensino Artístico levada a cabo pela Dra. Madalena Perdigão?

          Madalena Perdigão tinha estado ligada à reforma Veiga Simão, que foi feita em 1971, onde se reformou também o Conservatório. Depois houve umas tentativas de reforma do próprio Conservatório, de reconversão. O Conservatório tinha cinco escolas: a Escola de Música e a Escola de Teatro, que eram do Conservatório original, e depois foram acrescentadas a Escola de Educação pela Arte, a Escola de Cinema e a Escola de Dança.

          Que ainda não são escolas superiores?

          Não, embora o Conservatório em conjunto fosse tutelado pela Direcção-Geral do Ensino Superior. Mas o Conservatório tinha estudantes, na Dança e na Música, desde os sete anos de idade; depois no Teatro, no Cinema e na Educação pela Arte já eram estudantes com o ensino secundário completo.

          Embora na altura não fosse exigido, havia uma separação grande entre a parte académica e a artística. Fizeram-se várias experiências, a Escola de Dança teve a primeira experiência de ensino integrado que depois só viria a ser retomada mais tarde… mas depois houve várias tentativas de reestruturação, porque estas escolas todas cabiam mal naquele edifício e isso deu azo a grandes dificuldades de entendimento, porque em todos os cruzamentos que se procurara fazer, havia sempre a questão do espaço e do que era sentido por quem lá estava há mais tempo – neste caso, a Música – como uma invasão do seu território e isto tornou muito difícil o entendimento. A Madalena Perdigão esteve ligada a todas estas tentativas de reforma. Mas, na realidade, já não foi com ela, em 1983, que foram finalmente criadas por decreto, no papel, as Escolas Superiores. E que se decidiu que elas seriam escolas autónomas e que estariam no Ensino Superior Politécnico. 

          Tinha havido um projecto muito interessante, ainda sob a égide de Madalena Perdigão, que era um curso de Educação pela Arte que fornecia o apoio pedagógico para a formação de professores destas áreas todas. Acabou por não se conseguir entendimento à volta deste projecto…

          É a seguir a este projecto que a Dra. Madalena Perdigão regressa à Fundação Calouste Gulbenkian e funda o ACARTE…

          Não me lembro se houve alguma coincidência entre o estar neste Gabinete do Ensino Artístico no ministério e o ACARTE. A Madalena Perdigão esteve sempre ligada à Fundação Gulbenkian: já tinha sido a criadora do Festival Gulbenkian de Música, já tinha sido a criadora do Ballet Gulbenkian, e  fundou o ACARTE, que abriu em 1984, e depois vieram os Encontros ACARTE [em 1987]. Embora a actividade do ACARTE fosse uma actividade ao longo do ano, havia este momento no ano que eram os Encontros ACARTE, que era um festival, em Setembro, todos os anos. Houve algumas coisas muito inteligentes que a Madalena Perdigão fez: uma delas foi ela chamar a trabalhar consigo como co-directores dos Encontros ACARTE o George Brugmans, que é um holandês, na altura director do festival Springdance, e o Roberto Cimetta. Porque é que isto era muito importante? Porque existia nesta altura na Europa uma rede: tinha-se começado a constituir uma rede de profissionais, programadores e produtores, que procuravam garantir a sobrevivência destas novas formas. Até aí o que é que acontecia? Os teatros trabalhavam sobretudo com as companhias, companhias estabelecidas, com um corpo permanente de bailarinos ou actores, ou o que fosse, e este movimento novo de renovação na Europa tinha sido compreendido por estes programadores, que eram muito próximos desta geração de criadores… E, para garantir o sucesso e a sobrevivência destes artistas, destas formas [artísticas], era necessária uma circulação internacional. Eles não podiam mais existir completamente encerrados nos seus países. Então começaram a criar essa rede e eram muito atentos ao que se estava a passar em cada país. E, nesse aspecto, o George Brugmans e o Roberto Cimetta foram preciosos co-directores com a Madalena Perdigão. Era uma grande qualidade que tinha: saber fazer-se acompanhar de pessoas informadas e não fazer as coisas meramente porque achava que era assim. E depois havia este festival que era uma coisa fascinante, porque, sendo uma coisa organizada muito profissionalmente – os espectáculos começavam à hora certa, etc. –, tinha um clima… que era um clima de festa! E juntava, de facto, os públicos… Os públicos de teatro, que tinham começado a ir lá para ver o Novo Teatro, começaram a ir também para a Nova Dança e a Nova Música, e o mesmo acontecia com os outros. E estes momentos eram também momentos de cruzamento de públicos com artistas. Depois a outra coisa muito importante foi que foram organizadas uma série de conferências em que se juntavam alguns dos nomes mais importantes que escreviam,  nessa altura, sobre dança e que apoiavam – em termos teóricos – a dança e não só… já  também com portugueses que começavam a despertar para estas coisas e era muito informativo para o público. Ou seja, as bases teóricas que sustentavam este movimento estavam ao alcance dos espectadores. Por outro lado, paralelamente à programação de espectáculos, havia a organização de workshops e os artistas portugueses tinham acesso ao contacto com os artistas de outros países que, digamos assim, lideravam este movimento, e que vinham apresentar o seu trabalho em Portugal.

          Lembra-se da abertura do Centro de Arte Moderna [CAM], em 1983? Será que é relevante o facto de o ACARTE estar localizado no primeiro museu de arte moderna do país?

          A criação do CAM teve que ver com a necessidade que o José Azeredo Perdigão sentiu, a certa altura, de ter um lugar onde expor tudo aquilo que a Fundação Gulbenkian foi adquirindo já depois da morte de Calouste Gulbenkian. E, naturalmente, isto foi também muito importante porque foi um espaço de amostragem da arte contemporânea. E o facto de, junto a isto, se criar o ACARTE com um auditório, uma sala polivalente, e de começarem a ter as artes performativas ao lado da arte contemporânea, fazia todo o sentido, eram mais barreiras que tinham sido quebradas. Era importante que as pessoas não continuassem a dizer: “Eu sou espectador desta forma de espectáculo” ou “Eu não, eu gosto é de pintura ou escultura”, esse cruzamento foi realmente muito importante. Mas quando o ACARTE surgiu, a sua intenção era também pedagógica; aliás, tinha também o Centrinho para crianças [noutro pavilhão].

          Como conheceu Madalena Perdigão?

          Já não sei exactamente como a conheci. Conheci-a no âmbito do funcionamento do ACARTE. Também em relação à Escola Superior de Dança, tivemos na altura uma revista da Escola e eu lembro-me de, logo para o primeiro número, a ter entrevistado.

          É possível traçar umas linhas do que pode ser a filosofia de Madalena Perdigão para as artes, procurando esboçar uma continuidade entre o Ballet Gulbenkian, os Festivais Gulbenkian de Música e a reforma do Ensino Artístico?

          Eu acho que teve um papel fundamental, em várias alturas, em Portugal. Era uma pessoa, por um lado, muito prática – a formação dela era de Matemática –; por outro, de trato fácil. Uma pessoa com uma grande visão, com um grande sentido de serviço público – e em relação às artes. A sua linha condutora, parece-me, foi sempre que, por um lado, Portugal estivesse a par do universo que consideramos mais evoluído e, por outro lado, que isso fosse acessível ao comum das pessoas – e daí esse interesse pela pedagogia, pelo trabalho artístico com as crianças, pela Educação pela Arte, onde também foi muito importante. Era uma pessoa que queria favorecer o desenvolvimento artístico profissional, mas também tornar a criação artística acessível a toda a gente. Para mim, trabalhou sempre nestas duas áreas.

          Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte – ACARTE. Em que debates se inseriam estas palavras?

          Pois, animação era uma coisa de que já se falava bastante em Portugal, na altura, e que tinha que ver, de facto, com levar as actividades artísticas à população, falava-se muito em animação, era uma palavra que tinha entrado no nosso vocabulário a seguir ao 25 de Abril e que tinha que ver com a divulgação e a acessibilidade. E Educação pela Arte tinha que ver com a pedagogia e tinha, na altura, uma corrente de trabalho artístico com crianças e de favorecer o desenvolvimento humano através da prática artística. Criação artística, obviamente, o ACARTE, para além de acolher muitas coisas estrangeiras, também co-produzia e apoiava…

          Uma ideia de que a cultura não é apenas o acesso às obras-primas, como nos anos 1950… mas também a criação contemporânea.

          Exactamente. Que é o que está a nascer neste momento, o que está a ser criado neste momento.

          Tentando entender mais a fundo os anos 1980… Por exemplo, e penso em algum teatro, é como se o 25 de Abril “levasse as artes para a rua”, como se costuma dizer etc. Mas há uma série de outras coisas, entre elas a abertura de um museu de arte, que demoram mais de dez anos a acontecer… 

          Em primeiro lugar, a história do teatro é diferente da história da dança. O teatro já tinha uma tradição de resistência política, e já existiam os grupos independentes, que tinham sido criados na fase final do salazarismo. Depois houve ali um período em que o que começou a acontecer foi que os mais jovens, os que já tinham chegado ao teatro depois disso, sentiam-se com pouco espaço. E então houve ali alguma fricção. Depois foi ultrapassado, sobretudo porque os grupos de teatro independente, esses que existiam já antes, também a certa altura compreenderam a necessidade de se abrirem aos outros e de darem espaço aos que tinham acabado de chegar. Portanto, a história do teatro é um pouco diferente, eu julgo que aqueles mais jovens que se reviam completamente no ACARTE eram realmente esta geração, uma geração já pós-25 de Abril e que teve também ali a oportunidade de conhecer muita coisa, porque o ACARTE trouxe o teatro físico… enfim, muitas coisas que eram pouco conhecidas em Portugal.

          Para além do ACARTE, que outras coisas havia? Penso em instituições, ou mesmo em termos de consumos culturais. Ou seja, o ACARTE move massas numa altura em que ainda não há concertos de estádio… há a Festa do Avante que é também um fenómeno… há o Rock Rendez-Vous…

          Daquilo que conheço, daquilo que vivi e em que participei, no campo da dança havia a Companhia Nacional de Bailado, que nesta altura era uma companhia de repertório clássico. Havia o Ballet Gulbenkian, que tinha tido uma evolução muito interessante a partir do Milko Šparemblek – e depois essa evolução ganhou consistência com o Jorge Salavisa, que decidiu tornar o Ballet Gulbenkian uma companhia contemporânea. E havia também o estúdio coreográfico do Ballet Gulbenkian, que também tinha sido criado pelo Milko Šparemblek, e que também foi muito apoiado pelo Jorge Salavisa. Na dança estes eram os principais. E depois existiam, de facto, algumas companhias e alguns coreógrafos que trabalhavam já no universo independente, numa altura em que não havia os apoios que há hoje – que são uma coisa que a Portugal chegou tardiamente –, mas as pessoas tentavam realizar o seu trabalho. Houve a experiência do Rui Horta, ele foi talvez quem demonstrou que era possível a existência de uma dança independente. Depois, no Porto, havia o Pirmin Treku, que era o expoente no campo da dança clássica, e havia o Ballet Teatro, da Né Barros e da Isabel Barros, que era a escola, o centro contemporâneo, que também teve importância. 

          A sociedade portuguesa, está a mudar muito rapidamente nos anos 80. O aparecimento da “noite”, do rock, uma série de novos consumos… o Frágil foi-me referido frequentemente em entrevistas como o local onde se continuava a noite depois dos espectáculos.

          Em Lisboa houve esse fenómeno do Frágil. Nós íamos todas as noites e era o local onde nos encontrávamos ou onde prolongávamos o dia… tínhamos ido a um espectáculo no ACARTE e a seguir íamos ao Frágil, normalmente os artistas também vinham. Nesse aspecto, o Frágil juntou a noite lúdica com a troca cultural, depois mais um bocadinho para a frente isto espalhou-se para o Majhong, então era ali, naquela Rua da Atalaia: subia-se e descia-se, as pessoas encontravam-se nas esquinas… As pessoas nessa altura dialogavam muito, na medida em que, com os parcos apoios que existiam, não estavam completamente absorvidas no seu trabalho. E então tinham muita oportunidade de se encontrar, de falar, de trocar. E era curiosa a “noite” quando nasceu: era uma extensão da actividade cultural.

          Sim, entrevistei o Paulo Graça [um dos primeiros desenhadores de luz no país] e ele a dada altura também faz luzes para coisas no Frágil, para as Manobras do Maio…

          Claro, o ambiente era propício. Depois havia outras coisas que iam acontecendo; por exemplo, a galeria d’Os Cómicos, que acolhia também alguns espectáculos… enfim, alternativos, não eram espectáculos para palco… havia uma sede de trabalhar de maneira diferente, por um lado, mas depois havia uma vontade muito grande de afirmação de uma geração.

          Uma geração que se demarcava da anterior?

          Em parte, sim. Claro que eu, em termos de idade, sou mais velho, mas senti-me completamente identificado com esta geração. Demarcava-se na medida em que queria afirmar uma forma diferente de trabalhar. E teve algumas resistências, que mais tarde se esbateram. Há uma figura, infelizmente desaparecida, que é importante referir, que foi muito importante para muita gente das várias áreas artísticas, que era o José Ribeiro da Fonte. Foi outra personalidade com esta grande capacidade de abrangência: muito importante para essa geração. Era um homem um pouco mais velho, com peso social, chegou a ser director artístico do São Carlos e era um homem, por um lado, muito aberto ao novo, de uma cultura muito vasta e transversal, e que foi um apoio muito grande a esta geração de criadores. 

          É possível ver aqui uma escola? Que forma uma geração, até a nível teórico…

          Não sei se lhe posso chamar uma escola, mas, de alguma forma, sim. O ACARTE favoreceu os encontros. Não era por acaso que se chamavam Encontros ACARTE, porque eram realmente encontros, encontros de pessoas com funções diversas. Encontros entre artistas, entre artistas e programadores, entre artistas e teóricos, entre teóricos, e encontros de toda esta gente com o público. E o público sentia-se realmente participante. É impossível reproduzir isto, mas eu recordo-me bem daquela ligação no jardim da Gulbenkian entre o CAM, o auditório ao ar livre e depois o edifício mesmo da Gulbenkian e nós circulávamos por ali, e depois havia sempre o bar, às vezes passava cá para fora e era possível as pessoas cruzarem-se e conviverem.

          Em dois anos, entre  1986 e 1988, como se lê nos  textos dos programas escritos por Madalena Perdigão, há um crescimento rapidíssimo da dança. O que é que se passa nestes dois anos?

          O ACARTE não veio criar um universo novo, veio dar visibilidade a esse universo e permitir os encontros no âmbito desse universo. Mas isso correspondeu a um momento muito rico na Europa em relação à dança. E em Portugal isto também era assim: é uma geração cheia de capacidade inovadora, vontade de fazer coisas e qualidade artística. E foi muito encorajada por este clima que o ACARTE criou. Mas era natural que as coisas evoluíssem assim rapidissimamente, porque enquanto antes tinha acontecido haver pessoas mais ou menos isoladas com ideias que antecipavam o que viria, o que surge é uma geração. 

          E a nível estético – que tipo de corpos, espectáculos, movimentos, relação com o espaço, cenários, enfim… que corpos aparecem em cena?

          Não há um tipo de corpo. Eu usaria uma palavra para ligar a série de coisas que enumerou, e isso era uma grande preocupação: a verdade. Verdade e coerência, não fazer coisas por fazer. Os corpos eram muito diversos, mas eram sobretudo corpos verdadeiros. E depois o vocabulário que esses corpos usavam também era verdadeiro em vários sentidos, era verdadeiro porque ia buscar coisas do dia-a-dia, que não faziam parte de nenhum cânone ou de nenhum vocabulário predeterminado: eram os movimentos que os corpos podiam fazer e que faziam. E verdade no sentido em que o corpo não está a ser violentado para ir além das suas próprias capacidades. E [no sentido em que] o que vemos como virtuoso já não é o que ninguém pode fazer, mas aquilo que, com o corpo que tenho, posso fazer e transmitir aos outros e aquilo com que os outros mais facilmente se identificam, com que mais empatia sentem, virtuoso porque é verdadeiro. Por isso é que eu falo em verdade, porque acho que estava muito inscrita nas preocupações dessa geração.

          No sentido de não artifício…

          Exactamente. No sentido de não recorrer ao artifício, ou recorrer o menos possível ao artifício, de ser verdadeiro no seu próprio corpo.

          Isso é interessante até em questões como a da representação…

          Não. Representação havia, obviamente há sempre representação. E quando digo verdadeiro, não é: eu estou em cena a ser eu próprio. É: estou em cena a usar o meu corpo como ele é, e exploro ao máximo o que o meu corpo é capaz de fazer e não estou permanentemente a violentá-lo. Eventualmente não estou a ser eu próprio, mas não estou a fingir.

          No entanto, algumas dessas coisas são violentas, estou-me a lembrar do Wim Vandekeybus com as suas propostas-limite…

          Sim, claro. Mas são violentos dentro do que aqueles corpos podem…

          E não dentro do que uma linguagem exige aos corpos…

          Exactamente.

          De que modo é que isto se cruza com uma democratização do corpo, uma certa libertação dos costumes, muito recente no país…

          Tem tudo que ver, obviamente, porque aqui o que se pretende é mesmo essa democratização. Claro que não posso dizer que aquilo era acessível a toda a gente, porque nem toda a gente estava para ali virada, mas, para quem quisesse, era-lhe acessível, de facto. Não se estava a tentar que as pessoas olhassem para o que se passa em cena e ficassem fascinadas – aquilo é uma coisa que eu nunca poderei fazer –, a mensagem que se queria transmitir era uma mensagem de acessibilidade. 

          Como uma geração de jovens que se pode exprimir livremente, até livremente das questões ideológicas em sentido mais directo e explícito…

          Exactamente.

          O que não quer dizer que não partilhe de uma série de ideologias…

          É ideológica. Não se expressa é por clichés. E logo a seguir a Abril nós ainda podemos ver surgirem uma série de clichés. E aqui, de facto, o cliché é recusado…

          Tudo o resto decorre, portanto, daí: os cenários, a relação com o espectador, a relação com a palavra… O que era o Novo Teatro-Dança da Europa, que dá o subtítulo aos Encontros ACARTE?

          O Novo Teatro-Dança da Europa veio trazer sobretudo as coisas da Dança-Teatro alemã, porque, no meio disto tudo, também é uma corrente importante. Naturalmente que a dança alemã tinha as suas características próprias porque tinha uma herança do movimento expressionista e é curioso que a Pina Bausch só chega a Portugal em 1986 ou 87… Mas o ACARTE já existia desde 84. Porque uma coisa é a Dança e Teatro, outra coisa é a Dança-Teatro, não me estou a recordar se houve algum ciclo dedicado mesmo à Dança-Teatro…

          Usei a expressão porque os Encontros ACARTE têm este subtítulo…

          Sim, claro. Mas é Novo Teatro, Nova Dança, não está necessariamente a focar uma coisa a que se chamou Teatro-Dança, ou Dança-Teatro.

          De que modo é que esta iniciativa se pode relacionar com a entrada de Portugal para a CEE?

          Eu não acho que se possa relacionar directamente, mas havia um grande desejo por parte dos portugueses que tinham sido muito arredados da Europa ao longo de quatro, quase cinco, décadas, e tinham um grande desejo de regressar à Europa, e de partilha com os outros europeus. Há, de facto, nesta geração um grande desejo da Europa…

          Até no país…

          Claro. E, portanto, é natural que isso se reflectisse, mas não vejo uma relação directa, vejo é o contexto, que nos iria conduzir logicamente à integração na então CEE.

          Quem é Roberto Cimetta? O que é o IETM?

          O Roberto Cimetta é um italiano, infelizmente desaparecido muito jovem, que fundou o Inteatro em Polverigi, que foi um dos iniciadores deste movimento europeu. Foi também um dos iniciadores do IETM, que é Informal European Theatre Meeting, uma espécie de associação criada para favorecer o conhecimento, a troca e, de uma maneira informal, pôr  os produtores, sobretudo nessa altura os programadores, e ajudar a criar um circuito europeu.

          Nesta altura quase não há programadores em Portugal…

          Não, no início não está lá ninguém, muito embora como está lá o Roberto Cimetta, que é quem acolhe essa primeira reunião, e o George Brugmans, que são co-directores do ACARTE… eu não sei se nalgum destes encontros não terá estado também o António Augusto Barros. Porque esqueci-me de falar de uma outra realidade que existiu nessa altura que era a Bienal Universitária de Coimbra, que foi também um factor de internacionalização, que era um festival que acolhia autores sobretudo do teatro, mas também foi o primeiro, antes da existência do ACARTE, a acolher a Nova Dança Portuguesa. 

          Eu participei no IETM a partir de 1991, foi anterior à Europália, quando houve o encontro do IETM em Lisboa, no ACARTE, em que eu fui convidado para o Comité Executivo…

          Mas já tinha ido antes ao IETM?

          Não, eu já tinha tido encontros com algumas pessoas, encontros muito promovidos pelo George Brugmans, o Roberto Cimetta infelizmente já não era vivo, com outros membros do IETM e depois a partir de 1990 tivemos uma participação alargada de vários portugueses e ainda hoje… 

          O que é este IETM inicial? De que instituições estamos a falar?

          Do Springdance, do Inteatro, do Kaitheatre, da Onda, mais uma série deles… Em Espanha, provavelmente, o Teatro Central de Sevilha, o Feliz Meritis. Em Amesterdão, uma outra organização, que era a Mickery…

          O que é o Movimento da Nova Dança Europeia?

          É um movimento que recusa uma dança dominada por cânones e por vocabulários predeterminados e, portanto, de alguma forma, faz a ponte com a dança pós-moderna norte-americana e com um corpo liberto de ideias feitas sobre o que é a dança e o que não é a dança e promove, portanto, o encontro entre a dança e o quotidiano.

          E de que modo é que se pode dizer que isto é um movimento de pensamento? Uma forma contemporânea de produzir conhecimento sobre o mundo?

          Eu acho que é porque aqui o pensamento é muito importante e este corpo transmite pensamento também. E também um entendimento do mundo.

          Ainda sobre a dança europeia: de que modo é que a Nova Dança Europeia ou mesmo a criação do IETM se podem inserir em, ou se cruzam com, uma recém-formada Europa da cultura? É que, se formos a ver, a União Europeia estava a alargar-se, a própria União Europeia deixa de ser só económica, como nos anos 1950…

          Hesito em atribuir essa responsabilidade ou dar esse crédito a esta fabricação da CEE. Eu acho que a Europa da cultura já existia antes, e que a cultura foi sempre transfronteiriça. E o que acontece aqui é que, mercê do derrube das fronteiras, que foram derrubadas para permitir a circulação dos bens económicos, dos produtos e facilitar o comércio… naturalmente a cultura aproveitou isso e, de alguma forma, as actividades culturais também beneficiaram com isso, mas estas ideias que alguns homens políticos – honra lhes seja feita – defenderam para favorecer uma Europa de paz, de entendimentos e de convivências pacíficas… mas isso já existia, nomeadamente nas actividades culturais e nos homens de cultura, eles eram era homens políticos que tinham a possibilidade de dar forma jurídica a estas coisas…

          E mesmo certas coisas que aparecem: co-produções, certos modos de organização do trabalho…

          Claro, isso tem depois que ver com uma evolução efectivamente do mundo económico europeu e de uma Europa sem fronteiras rígidas entre países, onde se circulava livremente, onde se trocava livremente, onde se podia mais facilmente estabelecer esse tipo de contrato, co-produção, e fazer coisas em conjunto.

          Qual é a importância directa do ACARTE na programação de outras instituições?

          Eu julgo que, eventualmente, o exemplo do ACARTE terá estimulado outros programadores, é preciso dizer que até há não muito tempo havia muito poucos programadores de dança em Portugal. A figura do programador teve uma grande importância a certa altura, e quando se fala das origens do IETM e desses programadores europeus é preciso reconhecer-lhes uma grande importância. Hoje é claro que o programador também é importante, mas também se criou uma mística do programador, como se fosse um artista, o que contesto, não acho que o programador seja um artista, acho que o artista é o artista e o programador serve a relação entre o artista e o público. Mas durante muito tempo tivemos que batalhar para que se compreendesse que não chega ter um teatro ou um centro, mas é preciso ter lá alguém que o faça funcionar e não é só a equipa técnica, também há alguém que é o programador e que não pode ser lá o vereador da cultura da Câmara. É preciso alguém que esteja no terreno, que tenha contactos, que vá ver coisas; que conheça e que estabeleça as relações. Quando apareceu o ACARTE, ainda não havia assim tantos programadores.

          Que programadores existiam?

          Para dizer a verdade, até nem me lembro de nenhum. Naquela altura, que eu conhecesse, o António Augusto de Barros e a equipa dele, da Bienal Universitária de Coimbra. Há-de haver outros…

          António Pinto Ribeiro diz que Madalena Perdigão é provavelmente uma das primeiras programadoras portuguesas.

          Tenho medo de ser injusto ao não indicar nomes, se calhar havia pessoas no Porto a fazer esse trabalho que eu não conhecia. Aqueles que eu conheço, porque na minha actividade tive directamente que ver com eles, realmente o António Augusto de Barros, sem dúvida alguma; a Madalena Perdigão, claro; o António Pinto Ribeiro, que veio logo a seguir; eu próprio comecei a ser programador na Europália, e depois no CCB em 1993…

          De que modo é que a experiência do ACARTE o influencia como programador?

          A experiência do ACARTE a mim influenciou-me muito porque me fez descobrir a geração na dança com a qual eu me identificava, uma geração vinte anos mais nova do que eu. Depois o que me influenciou mais em relação à minha actividade no CCB foi a actividade que eu desenvolvi enquanto um dos fundadores do Forum Dança e a actividade que desenvolvi no IETM, o cruzamento destas duas coisas.

          Uma nova escrita, por último. A Nova Dança fez-se acompanhar pela emergência de novos críticos. Em que difere esta escrita da anterior? Quais os seus media?

          Quando [esta nova escrita] surge, surge paralelamente a esta geração de que eu te falei – e a primeira pessoa que aí teve um papel muito importante foi o António Pinto Ribeiro. O que acontecia anteriormente? Os críticos já existiam, estavam muito atentos às coisas mais institucionais, e não se atreviam sequer a dar espaço a isto que estava a surgir. O António Pinto Ribeiro, pelo contrário, fez destes novos criadores o centro.

          Escrevendo no Expresso?

          No Expresso. Paralelamente, surge o André Lepecki, que começa por escrever no Blitz, mais tarde é o Ezequiel Santos que escreve no Blitz… e depois vão surgindo… surge a Maria José Fazenda, que escreve no Público, a Cristina Peres, que escrevia no Se7e primeiro e depois no Expresso

          E para finalizar: de que modo pode a memória do ACARTE ser importante?

          É importante porque é importante não perdermos a memória das coisas… Para vivermos bem o presente e projectarmos bem o futuro é importante não esquecermos o que se passou. E em relação àquilo que se chamou a Nova Dança Portuguesa, que hoje se chama Dança Contemporânea Portuguesa, ela tem uma história, e não deve ignorar a sua história. E também o próprio mundo das artes performativas, a sua apresentação em Portugal, tem uma história e o ACARTE é importante nessa história. Nós não podemos esquecer a história e é verdade que nos últimos anos não se tem falado muito no ACARTE, mas eu julgo que, para muitas pessoas, e não sou apenas eu e mais meia dúzia, essa história está muito presente. E a gratidão que nós sentimos por esse momento ímpar…

          Quase um momento fundador, um mito de origem?

          Pois, é um início de uma forma organizada de mostrar e partilhar. Não digo que seja o início de outras coisas, porque havia já coisas que tinham vindo a emergir, mas é de facto um início, em Lisboa, de uma forma de mostrar e partilhar. Eu tenho muito medo de dizer “olha, ali é que é o início” porque realmente já existia a BUC e teve um papel importantíssimo…

          Entrevista realizada na Escola Superior de Dança, sita na Rua de O Século, em Lisboa, a 25 de julho de 2011, transcrita por Pedro Cerejo, editada por Ana Bigotte Vieira e João dos Santos Martins.

          Gil Mendo Testemunho

          No dia 29 de abril de 2008, Dia Mundial da Dança, a REDE – Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, na altura sob a direção de João Fiadeiro (RE.AL) e de Filipe Viegas (Bomba Suicida), decide homenagear Gil Mendo, nomeando-o seu primeiro sócio-honorário. A homenagem decorre no festival Festa da Dança, na LX Factory, em Lisboa, num momento de luta contra a precariedade do sector artístico, e conta com a presença do então ministro da Cultura, António Pinto Ribeiro. O testemunho que Gil Mendo partilha faz uma retrospetiva de fundo sobre os precedentes da Nova Dança Portuguesa e o panorama posterior, refletindo sobre o seu papel de facilitador e mediador entre artistas, público e instituições.

          TESTEMUNHO

          O movimento da Nova Dança Portuguesa, que julgo que podemos com justeza considerar o motor principal, embora não necessariamente o único, do desenvolvimento notável que a dança contemporânea independente portuguesa conheceu nestes cerca de vinte anos, foi obra de muita gente. Nem de outra forma se lhe poderia ter chamado ‘movimento’. O meu papel nele foi um de entre muitos, e fui muito menos ‘fazedor’ do que muitos outros. Por isso me sinto sempre um pouco embaraçado e constrangido quando me é atribuído um protagonismo ou perícia de que não me considero detentor. Os protagonistas de um movimento artístico são os artistas, em primeiro lugar, e de seguida os produtores e organizadores que o acolhem e viabilizam e os críticos e ensaístas que o contextualizam e divulgam. Ora eu fui sempre mais um ‘facilitador’ (no sentido do termo britânico facilitator) e, ocasionalmente, um intérprete das ideias novas junto das instâncias a que tinha acesso. Não se interprete isto como falsa modéstia, nem sequer como modéstia. Tenho consciência da importância que a minha acção teve em certos momentos e foi uma acção consciente e empenhada. Mas teve importância apenas no contexto da activa existência dessa comunidade de artistas, produtores, pensadores e pedagogos que deram e dão forma a este movimento.

          É por ter tão presente e considerar tão importante essa rede complexa e diversa de iniciativas e de acções que em dada altura confluíram num movimento que até hoje não parou, e os gestos isolados e solitários que precederam e incentivaram esse movimento, que me pesa a responsabilidade de um testemunho que é forçosamente parcial. Ao prestar-me a dar este testemunho, faço-o por isso no pressuposto de que de mim se espera apenas isso mesmo, um testemunho baseado na minha própria experiência, no que vivi e acompanhei, e não um relato histórico detalhado, só possível de ser feito com a distância que garante a objectividade e a isenção. Decerto, neste testemunho, deixarei por referir muitos protagonistas e acontecimentos que foram relevantes, do que peço antecipadamente desculpa.

          Sendo hoje este movimento protagonizado por um grande número de jovens artistas e profissionais que não viveram a sua génese, e havendo entre eles não poucos que têm uma predisposição natural para o estudo e a investigação, gostaria de encorajá-los a um estudo rigoroso sobre esse período tão interessante da dança portuguesa, sobre o qual há já alguns valiosos testemunhos publicados, nomeadamente nos livros Movimentos Presentes, editado pelas Danças na Cidade e a Cotovia em 1997 e coordenado por Maria José Fazenda, e Dez Mais Dez, editado em 2001 pela Re.AL e pelo Forum Dança.

          A minha atenção a este movimento e o meu envolvimento com ele data do final da década de oitenta. Até então, e desde 1976, tinha sido professor da Escola de Dança do Conservatório Nacional e estado sobretudo envolvido nos esforços, e nalgumas lutas, pela preservação e desenvolvimento do projecto do Conservatório Nacional, com as suas cinco escolas, de Cinema, de Dança, de Educação pela Arte, de Música e de Teatro. Tinha criado fortes laços de solidariedade profissional e pessoal com alguns colegas na luta pela consolidação de um ensino artístico que fosse simultaneamente rigoroso, culto, democrático e propiciador da criatividade. Desde 1983 era membro da comissão instaladora da Escola Superior de Dança, e foi aí que este movimento nascente me encontrou.

          Sentia-se, na altura, no mundo da dança em Portugal, a emergência de uma geração que dificilmente se revia nos cânones então dominantes: o tecnicismo, a rigidez de vocabulários pré-determinados, a hierarquização de funções entre criadores e executantes, a estreita limitação do que se considerava ser ‘dança’, a estilização do movimento que, pretendendo exaltar uma visão do corpo, anulava todas as diferenças identitárias, nomeadamente de sexo e de género.

          Como os seus antecessores, estes jovens deslocavam-se bastante ao estrangeiro para estudar. Mas, ao contrário daqueles, que iam quase sempre à procura de aperfeiçoamento, como executantes, nos estúdios dos grandes mestres, estes iam à procura do desenvolvimento criativo, dos workshops de composição e de improvisação, da experiência de outras abordagens da dança e do processo criativo, e mesmo do estudo de outras linguagens performativas. E, nestes períodos de estudo no estrangeiro, foram encontrando outros artistas com quem discutiam e partilhavam ideias e com quem foram estabelecendo laços e cumplicidades que mais tarde viriam a ser muito importantes para o movimento da Nova Dança Portuguesa. Esta era uma geração verdadeiramente cosmopolita.

          Nos Estúdios Coreográficos do Ballet Gulbenkian, em iniciativas da Companhia de Dança de Lisboa e em espaços alternativos começavam a destacar-se os trabalhos de Vera Mantero, João Fiadeiro, Francisco Camacho, Clara Andermatt, Paulo Ribeiro e outros.

          O estúdio de Rui Horta, na Rua Camilo Castelo Branco acolhia uma parte substancial destes jovens artistas e proporcionava-lhes espaço de trabalho.

          Paula Massano, que sempre recusou integrar-se nas estruturas formais de dança da época, vinha há anos a defender e a apresentar uma dança que pensava o seu tempo e que se cruzava com outras linguagens, nomeadamente as artes plásticas, e que foi incontornável precursora do que viria a seguir. Foi ela, creio, a responsável por atrair o interesse de outros artistas, como Nuno Carinhas, ou pensadores, como António Pinto Ribeiro, sobre a dança.

          Olga Roriz, Margarida Bettencourt e alguns outros bailarinos do Ballet Gulbenkian apresentavam-se como autores fora do Ballet Gulbenkian sempre que os seus projectos se não adequavam à estrutura de uma companhia.

          A Bienal Universitária de Coimbra, BUC, estava atenta a este movimento emergente e tinha começado a acolhê-lo, apresentando criações de Paula Massano e de Vera Mantero.

          Uma boa parte destes artistas tinha em José Ribeiro da Fonte, homem de vastíssima cultura e de uma capacidade ímpar para compreender o que estava a emergir, um confidente e conselheiro imprescindível.

          Antes de chegarem às instituições, as ideias novas iam-se formando e clarificando em intensas e inspiradoras conversas de rua ou nos bares do Bairro Alto.

          Havia no ar esta sensação de emergência de algo novo, mas não havia ainda um mínimo de tecido estrutural que viabilizasse uma mudança que precisava de ser sustentada por outras formas de organização, a despeito das tentativas de constituição de alternativas (o Pós d’Arte, de Vera Mantero, Francisco Camacho, João Fiadeiro e André Lepecki, o Aparte, de Margarida Bettencourt e João Natividade, o Dança Grupo, de Elisa Worm, entre outros).

          O Serviço ACARTE, criação de Maria Madalena de Azeredo Perdigão, iniciara a sua programação regular de Nova Dança, Nova Música e Novo Teatro e depois a realização anual dos Encontros ACARTE. Madalena Perdigão, que fora já a responsável, entre muitas outras coisas, pela criação do Festival Gulbenkian de Música, que na década de 60 nos permitira algum contacto com grandes nomes da criação contemporânea e que quebrara anualmente o asfixiante isolamento em que vivíamos, teve uma vez mais uma acção visionária. Assessorada por George Brugmans, então director do Festival Springdance, de Utrecht, na Holanda, e por Roberto Cimetta, fundador e director do Inteatro, de Polverigi, Itália, que com ela co-dirigiam os Encontros Acarte, começou a trazer a Lisboa sistematicamente a vanguarda das artes performativas europeias e norte-americanas. E a proporcionar aos jovens coreógrafos e performers portugueses o contacto directo com os seus pares europeus e norte-americanos, através dos muitos workshops organizados, e a todos, artistas, críticos, estudiosos e público em geral, a oportunidade de pensar e discutir o pujante movimento de inovação que estava, desde o início dos anos 80, a crescer nas artes performativas na Europa. O ACARTE pôs-nos realmente no mundo. Proporcionou-nos descobertas emocionantes, encontros fundamentais, o acesso a redes informais – de organizadores, de críticos, de artistas – que já então estavam activas na Europa e nos Estados Unidos. E, talvez o mais importante de todos os encontros, o encontro de um público, minoritário que fosse. Quem viveu essa época não pode ter esquecido o clima de festa, a sensação empolgante de estar a viver algo de muito forte, uma sensação de pertença que nos unia, espectadores, organizadores, artistas, pensadores, em inesquecíveis dias e noites na Sala Polivalente, no Anfiteatro ao Ar Livre, no Self-Service do Centro de Arte Moderna, no Grande Auditório e nos jardins da Fundação Gulbenkian. O ACARTE deu um contributo sem paralelo para a criação de um desejo de comunidade, de movimento.

          Na Escola Superior de Dança, tínhamos, antes de iniciar o curso, resolvido experimentar, através de workshops, algumas das matérias que queríamos incluir no currículo, e ao mesmo tempo estabelecer um primeiro contacto com alguns daqueles que pensávamos poderem vir a encarregar-se de as estruturar e ensinar. Foi assim que convidámos António Pinto Ribeiro para um seminário no campo da Estética e História das Artes, matéria que ele viria a ensinar quando o curso abriu em 1986, e Madalena Victorino para um workshop de Dança Educacional, matéria que ela viria igualmente a ensinar no primeiro curso.

          Eu já antes conhecia o António Pinto Ribeiro, tinha-o conhecido através da Paula Massano, e fascinava-me a sua capacidade de análise e de fundamentação teórica deste movimento nascente e a forma aliciante como expunha as suas ideias. A sua colaboração com o Expresso deu um contributo valiosíssimo a este movimento, destacando o trabalho destes criadores então emergentes e chamando a atenção para a sua importância e relevância cultural. O que o António Pinto Ribeiro fez no Expresso foi dar protagonismo total ao trabalho de artistas emergentes que, na lógica da ordem e hierarquias vigentes no ‘establishment’ da dança de então, mereceriam apenas uma curta nota de encorajamento. E isso marcou um ponto de viragem fundamental que viria mais tarde a ser seguido por outros jornais e críticos de dança.

          Não conhecia até então a Madalena Victorino, embora ela tivesse já há algum tempo o seu Atelier Coreográfico para não profissionais. A Madalena Victorino e a sua actividade tiveram um enorme impacto em mim. Aqui estava alguém que era capaz de despertar nos outros, de forma sedutora e feliz, a vontade de se envolver num processo criativo, de experimentar, inventar e compor, de dizer de si e do mundo. O trabalho da Madalena Victorino aliava à exigência artística, que era muita, a acessibilidade, que era total.

          Ninguém, na minha vida profissional, foi tão importante para mim como o António Pinto Ribeiro e a Madalena Victorino. Conhecê-los mudou a minha vida para sempre.

          Como é natural, o entusiasmo que sentíamos por estas novas ideias fez-nos desejar que elas estivessem no centro do que seria o curso da Escola Superior de Dança. Mas este destaque dado a artistas emergentes, a radicalidade do que eles defendiam em relação ao que era então a ideia de dança prevalecente, e mesmo o protagonismo que a Madalena Victorino e o António Pinto Ribeiro, que eram vistos como ‘outsiders’, estavam a assumir, tinha começado a gerar crescente fricção e alguma querela. Daí a surgirem conflitos e incompatibilidades pessoais insanáveis foi um passo. Se no terreno profissional isto pôde ser gerido, apesar de tudo, com alguma flexibilidade e informalidade que preservou a continuação de relações profissionais a despeito das divergências, numa instituição que estava a nascer, bastante voltada sobre si própria por força de estar ainda a construir-se, foi fatal. E doloroso para todas as partes. Eu demiti-me da comissão instaladora. A Madalena Victorino e o António Pinto Ribeiro acabaram por ser afastados no final do seu primeiro contrato. Porventura não era ainda a altura de este movimento entrar nas instituições. Mas não faltava muito.

          Nós estávamos totalmente empolgados por aquilo em que estávamos envolvidos: divulgar novas ideias, torná-las acessíveis, divulgar e apoiar o trabalho daquela jovem geração de coreógrafos e performers portugueses, estabelecer pontes com os nossos pares noutros países.

          Foi assim que decidimos criar o Forum Dança, com o apoio e envolvimento de vários elementos do Atelier Coreográfico para não profissionais da Madalena Victorino, entre eles a Catarina Vaz Pinto, que viria a desempenhar um papel activíssimo e importantíssimo no Forum Dança. Connosco como fundador estava também o Miguel Abreu, jovem e dinâmico actor, encenador e produtor, editor da revista O Actor e director da produtora Cassefaz, que intuía como ninguém o que era preciso alterar, em termos organizativos, no campo das artes performativas, para lhes garantir independência e capacidade de iniciativa, e que veio posteriormente a estruturar a actividade de produção do Forum Dança. E a Cristina Santos, que tinha sido nossa aluna na Escola Superior de Dança, tendo já atrás de si, embora fosse ainda muito jovem, uma carreira de bailarina da Companhia Nacional de Bailado, e que hoje dirige o Forum Dança.

          Lançámos os Cursos de Formação de Monitores de Dança para a Comunidade, por onde passaram alguns dos que viriam a ser chamados a segunda geração da Nova Dança Portuguesa, como João Galante, Margarida Mestre, Teresa Prima, Paulo Henrique, Ezequiel Santos, Paula Castro, para mencionar apenas alguns. Eram cursos voltados simultaneamente para o pensar, o experimentar, o fazer e o transmitir, para o que concitámos a colaboração de muitos criadores e pedagogos, não só da área da dança mas também do teatro, da música, do vídeo, etc. Cultivámos os contactos internacionais e lançámos uma revista. Em colaboração com a nova-iorquina Ann Rosenthal e a sua organização MAPP, e com apoio da Fundação Luso-Americana, o Forum Dança viria mais tarde a organizar a vinda a Portugal de programadores e outros profissionais dos Estados Unidos, de que depois resultaram várias residências, estágios e digressões de portugueses naquele país. E com o Théâtre Contemporain de la Danse, de Paris, foram organizados estágios de bailarinos portugueses naquela cidade. Como sabem, já com a sua actual direcção o Forum Dança desenvolveu a sua actividade de formação de intérpretes de dança contemporânea e de produtores e por lá tem passado grande parte da geração actual deste movimento.

          Datam daqueles primeiros anos também alguns dos projectos da Madalena Victorino, como Torrefacção e O Terceiro Quarto, que tanto impacto público tiveram.

          O José Ribeiro da Fonte, com quem eu conversava muito e com quem partilhava o interesse e entusiasmo por esta então emergente geração de coreógrafos, tinha entretanto sido nomeado para o Comissariado para a Europália-91 Portugal, sendo ele o comissário de Música e Dança, e convidou-me para trabalhar com ele como assessor para a Dança. Foi a minha primeira actividade de programador e simultaneamente o primeiro projecto internacional em que me envolvi e a minha primeira e feliz colaboração institucional com o José Ribeiro da Fonte.

          Decidimos que o festival Europália, um grande festival que se realiza na Bélgica e que foca a cultura de um país ou região, era uma óptima oportunidade para revelarmos internacionalmente esta nova geração da dança portuguesa. Sentiamo-nos seguros para o fazer, porque sabíamos que esta geração estava em sintonia com o que de mais interessante estava a acontecer nos circuitos internacionais de dança contemporânea.

          Esta era também uma oportunidade de estimular e apoiar o esforço de organização e produção independente que estava a surgir em torno destes criadores. Desejávamos que esta primeira exposição internacional da Nova Dança Portuguesa se realizasse em condições profissionais normais, isto é, integrada numa programação internacional regular, e de acordo com a escolha do respectivo programador, e não isolada numa efeméride especial. Eu tive muito apoio de pessoas como o George Brugmans e o António Pinto Ribeiro, e foi por influência deles que desde o início tive como meu principal interlocutor na Bélgica o Bruno Verbergt, então director do Festival Klapstuk, de Lovaina, à época o mais prestigiado festival europeu de revelação de novos valores e por isso muito frequentado pelos profissionais europeus e norte-americanos.

          O Bruno Verbergt veio assim a ser o nosso grande parceiro nesta estratégia de divulgação internacional da Nova Dança Portuguesa e, mais jovem do que eu, foi para mim um mestre com quem muito aprendi. A preparação da participação da Nova Dança Portuguesa no Festival Klapstuk 91, numa série de sete espectáculos que se chamou Os Novos Portugueses, e a selecção dos participantes, passou pela produção de um grande número de novas criações, pela organização de uma mostra de Novíssimos no Convento do Beato em Lisboa, por uma presença maciça da Nova Dança Portuguesa na BUC 90, em Coimbra, pela organização de uma mostra na sala estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, esta totalmente negociada pela produção associada aos criadores representados, encabeçada pelo Albino Moura, então ainda bailarino da Companhia Nacional de Bailado, mas cada vez mais envolvido como produtor e organizador com esta geração de coreógrafos. Os coreógrafos cujos trabalhos foram seleccionados para o Festival Klapstuk 91 foram Aldara Bizarro, Francisco Camacho, Joana Providência, João Fiadeiro, Paulo Ribeiro, Rui Nunes e Vera Mantero. Os trabalhos do Francisco Camacho, do Paulo Ribeiro e da Vera Mantero foram igualmente apresentados em Bruxelas, no Théâtre 140, em Kortrijk, no Limelight, e em Namur, na Casa da Cultura. Ficaram de fora alguns nomes importantes deste movimento, mas foram os trabalhos e a sua adequação aos critérios do Festival Klapstuk que determinaram a selecção.

          Na sequência da nossa participação no Festival Klapstuk no âmbito da Europália 91, um grupo de produtores, técnicos e organizadores permaneceram na Bélgica, em estágios organizados pelo Vlaams Theater Instituut, então dirigido por Guido Mine, com o objectivo de estimular as relações entre organizações e profissionais portugueses e flamengos.

          Embora apenas uma parte dos protagonistas da Nova Dança Portuguesa estivesse representada no Festival Klapstuk 91, o sucesso da série Os Novos Portugueses confirmou e ampliou o interesse por esta geração da dança portuguesa, que estava já a surgir nos circuitos internacionais, em boa parte em virtude das cumplicidades artísticas que alguns destes criadores emergentes tinham já criado e de que vos falei antes. Alguns deles estavam já a mover-se no circuito internacional, a procurar as suas parcerias de eleição. Muitas vezes na minha actividade vim a beneficiar de, ou a dar seguimento a, contactos que tinham sido iniciados pelos artistas.

          A Europália, a sua preparação e a sua concretização, confirmaram-me a justeza de uma convicção: a da importância das parcerias entre as instituições e as organizações no terreno, da associação entre os meios da instituição e a flexibilidade e agilidade da pequena organização e do profissional no terreno. É uma convicção que mantenho.

          A afirmação internacional era nesta altura um passo importante para o reconhecimento interno, mas era também a única forma possível de viabilização dos projectos artísticos para que, então e por muito tempo depois, não havia circuito nacional.

          Nos anos seguintes, alguns profissionais internacionais viriam a ser muito importantes para esta fase inicial da afirmação de alguns destes coreógrafos: Bruno Verbergt, George Brugmans e Anita Mathieu, que então era a programadora de dança da Ferme de Buisson, em Paris, para Vera Mantero; Bruno Verbergt, Marie Descourtieux (então administradora do CNDC d’Angers) e Les Ballets C. de la B. para Francisco Camacho, Christian Ferry Tschaeglé, em Paris, e depois Dieter Jaenecke, em Hamburgo, para João Fiadeiro, Dieter Buchoh, em Frankfurt, para Clara Andermatt e Paulo Ribeiro, etc.

          No festival Klapstuk 91 tinham sido tão evidentes as afinidades e a sintonia entre os participantes portugueses e a espanhola Monica Valenciano, que Carlos Marquerie, então director do Teatro Pradillo, em Madrid, desafiou o Forum Dança para a realização de uma pequena mostra de dança portuguesa no âmbito de Madrid 92 Capital Europeia da Cultura.

          Por intermédio de Carlos Marquerie e nos esforços que ambos desenvolvemos ao longo de alguns anos, a partir daí, para gerar parcerias entre artistas e projectos ibéricos, viria a conhecer artistas como Olga Mesa, Pep Ramis e Maria Muñoz, La Ribot (que foi o Zé Laginha, no festival a sul, e não eu no CCB, como muitos pensam, que apresentou pela primeira vez em Portugal; eu tinha conhecido La Ribot em Salamanca, onde ela estava em residência a preparar as suas primeiras Piezas Distinguidas, e ficado completamente rendido, e o Zé Laginha e eu assistimos depois juntos à primeira apresentação das Piezas no Teatro Pradillo). Por iniciativa do Carlos Marquerie conheci também outros organizadores que apoiavam a Nova Dança Espanhola, como Ana Rovira, de Girona, e Alberto Martín, de Salamanca. Nunca fomos muito longe porque nos nossos dois países, nessa altura, as condições de circulação da dança que nos interessava eram muito adversas. A cumplicidade artística entre portugueses e espanhóis, no entanto, nunca deixou de existir, alguns artistas portugueses, como o Francisco Camacho, e espanhóis, como Blanca Calvo e Ion Munduate, e instituições ou organizações como o Museu de Serralves, o Citemor, O Espaço do Tempo, a Devir, etc, ou espanholas, como La Porta e La Mekanica, têm-na mantido viva. Hoje que as condições de difusão se estão a alterar positivamente nos dois países, espero que consigamos aproximar-nos mais.

          Tínhamo-nos entretanto tornado membros do IETM – Informal European Theatre Meeting, uma rede internacional que tinha nascido da iniciativa de alguns profissionais no início da década de 80, e que desde então não parou de crescer e de se renovar. Sendo eu que representava o Forum Dança no IETM, envolvi-me então bastante intensamente na sua actividade, até porque fui durante alguns anos membro do seu comité executivo. Para mim, e felizmente para um grande número dos seus membros, o que definia esta rede estava claro no seu nome: informal e encontro (meeting). O encontro sem agenda prévia rígida, que favorece o imprevisto é, na minha experiência, responsável por alguns dos mais bem-sucedidos projectos. É muitas vezes a partir do encontro ocasional que, pela identificação ou pela diferença de pontos de vista, de experiências, etc., se torna perturbador e gera atracção, que germinam relações artísticas e culturais interessantes e duradouras. Isto é verdadeiro também para a história da Nova Dança Portuguesa e deste movimento que surgiu nos anos oitenta, e se consolidou na disponibilidade para o encontro e em encontros muitas vezes inesperados, e permito-me sublinhar a importância de não nos deixarmos nunca manietar pela pressão dos resultados e produtos concretos e imediatos, por critérios de avaliação baseados em definições prévias de objectivos demasiado rígidos, porventura válidos em outros campos de actividade mas que, desconfiando do imprevisto, podem induzir alguma esterilidade na actividade no terreno, mesmo que, paradoxalmente, favoreçam a multiplicação de produtos.

          Em 1992, em Genéve, num intervalo entre reuniões, o George Brugmans convidou-nos, ao Bruno Verbergt e a mim, para um almoço em que nos propôs que o Springdance, o Klapstuk e o Forum Dança firmassem um contrato por três anos de co-produção internacional de criações de coreógrafos portugueses. Assim nasceu o Tejo Trust, que viria a justificar que o Forum Dança criasse um Núcleo de Apoio Coreográfico e obtivesse da então Secretaria de Estado da Cultura um subsídio a três anos de forma a poder assinar este contrato. Foi uma estratégia do George Brugmans, que conhecia bem Portugal, para nos ajudar a introduzir nas relações entre as organizações no terreno e as instituições uma ideia de planeamento e compromisso plurianual. O Tejo Trust, em associação com La Ferme du Buisson, produziu o Sob, da Vera Mantero, e depois, já sem o Springdance, que, tendo George Brugmans saído da sua direcção, se desvinculou, mas com o CNDC d’Angers e Les Ballets C. de la B., o Primeiro Nome Le, do Francisco Camacho.

          A convite de Ghislain Boddington, que dirigia a organização shinkansen, de Londres, e que até hoje mantém relações de trabalho e cooperação artística com organizações e artistas portugueses, nomeadamente a EIRA e Francisco Camacho, passámos a pertencer a uma pequena rede internacional, o Butterfly Effect Network, constituída pela já citada organização britânica, por uma organização flamenga, o Stuk, que era a estrutura onde se realizava de dois em dois anos o festival Klapstuk, mas que tinha actividade permanente e que era dirigida pelo Mark Deputter, uma organização austríaca e uma organização eslovena. Esta rede organizava anualmente o European Choreographic Forum, em Dartington, no sul de Inglaterra, fomentando o encontro e colaboração entre artistas seleccionados em conjunto pelas quatro organizações. Antes de o Forum Dança se juntar a esta pequena rede, já o Francisco Camacho tinha participado no primeiro European Choreographic Forum. Eu conheci a Ghislaine Boddington através da nossa comum participação no IETM e, através dela e do Mark Deputter, conheci muitos artistas e organizadores que pude, por minha vez, pôr em contacto com outros que eu conhecia. Menciono estes exemplos simples porque me é muito cara a ideia da atenção ao outro, da partilha, do funcionamento em rede assim descomprometido e não como uma espécie de grande cadeia multinacional de interesses, e porque acredito que nessa partilha sem eliminação de diferenças esteve e está a força do movimento que celebramos.

          Foi numa viagem de avião entre Frankfurt e Liubliana, para um encontro do Butterfly Effect Network, que o Mark Deputter me confidenciou que estava a pensar seriamente vir viver para Lisboa. O Mark tinha pouco tempo antes conhecido a Mónica Lapa num encontro internacional em Gent. A Mónica, nessa altura, já tinha criado, com o Albino Moura, o Festival Danças na Cidade. Aproveitou o facto de estar em residência com a Clara Andermatt em Arnhem, na Holanda, para dar um pulinho a este encontro internacional em Gent. E lá encontrou o Mark Deputter. Não me ocorre nenhum encontro que tenha sido mais importante para a dança em Portugal e para todos nós do que este entre a Mónica Lapa e o Mark Deputter.

          Foi através do João Fiadeiro, estava então a Re.AL a residir no Centro Cultural da Malaposta e tinha eu acabado de ser convidado para assessor para a Dança do Centro Cultural de Belém – onde me reencontrei com o José Ribeiro da Fonte, que era o assessor para a Música – que tomei conhecimento do projecto Skite 94, um projecto pluridisciplinar de residência de artistas numa cidade durante um mês, concebido pelo Jean-Marc Adolphe, director da associação Figures du Mouvement, e hoje director da revista Mouvement. O João Fiadeiro estava empenhado em trazer este projecto a Lisboa no âmbito da Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura, mas o Centro Cultural da Malaposta não tinha dimensão suficiente para o acolher. Eu levei portanto a ideia ao Centro Cultural de Belém, tendo-me antes aconselhado com o José Ribeiro da Fonte. O Skite 94 acabou por se realizar no Centro Cultural de Belém e no Centro Cultural da Malaposta e ter apoios pontuais de produção da Re.AL e do Forum Dança. A ideia inicial era acolher 60 artistas de todas as áreas e muitas nacionalidades. O processo da selecção dos participantes era assim: o Jean-Marc Adolphe convidava um certo número de artistas e pedia-lhes que indicassem outros a convidar. Acabámos por ter não 60 mas 120 artistas durante um mês em Lisboa. A primeira semana era preenchida por workshops e por apresentação de trabalhos de alguns dos participantes. O Bonjour Madame…, do Alain Platel, por exemplo, foi apresentado no CCB nesse âmbito. As duas semanas seguintes eram totalmente livres, podendo os participantes experimentar o que quisessem com quem quisessem, e devendo diariamente solicitar à produção o espaço de trabalho de que iam necessitar. Eram encorajados a envolver-se com a cidade e a produção fazia o que fosse necessário e possível para lhes facultar o acesso a algum espaço da cidade que particularmente os inspirasse. A última semana era dedicada à apresentação de fragmentos de experiências que os participantes quisessem mostrar. O Jérôme Bel, por exemplo, apresentou pela primeira vez o seu Nom donné par l’auteur, no Cinearte. Eu não teria tido capacidade para conceber ou gerir eu próprio um projecto desta dimensão. Quem assumia a produção no dia-a-dia era o Jean-Marc Adolphe, assistido pela Shilá Fernandes, então uma jovem recém-licenciada do Departamento de Dança da Faculdade de Motricidade Humana. Eu estava lá para acudir às crises, se as houvesse, assegurava a ligação com o Centro Cultural de Belém, durante aquele tempo totalmente ocupado por este evento. Foi um projecto louco mas fascinante, que se espalhou por toda a cidade de Lisboa e que criou ligações artísticas que duram até hoje. Entre os participantes, para mencionar apenas uns poucos, estavam o Alain Platel, a Meg Stuart, a Emmanuelle Huynh, o Christian Rizzo, o Mark Tompkins, o Frans Poelstra. Nos anos seguintes alguns dos participantes do Skite estavam sempre a voltar a Lisboa. O Ronald Burchi, um americano que pertencia aos Ballets C. de la B. – talvez tenham visto, durante o Ciclo Meg Stuart, um filme feito com ele, aquele americano que se encontrou na Europa na condição de emigrante ilegal – ficou mesmo alguns anos em Portugal, trabalhando sucessivamente com o Francisco Camacho, o João Galante e a Teresa Prima e a Lúcia Sigalho.

          Na primeira metade da década de 90, Lisboa tinha-se tornado imensamente atractiva para muitos artistas. E a marca de cosmopolitismo que os fundadores da Nova Dança Portuguesa tinham imprimido a este movimento desde o início estava mais presente do que nunca.

          Os protagonistas do movimento da Nova Dança Portuguesa, envolvidos como estavam na viabilização dos seus próprios projectos artísticos, não tinham no entanto deixado de trabalhar sobre a afirmação e o desenvolvimento do tecido artístico nacional.

          O João Fiadeiro, com a Re.AL, tinha criado os LAB, um projecto que perdura até hoje, sempre em evolução, e que foi o lugar de revelação dos primeiros trabalhos da chamada segunda geração da Nova Dança Portuguesa.

          E em 1993, por iniciativa da Mónica Lapa, realizou-se aquele que foi o evento que simbolicamente confirmou a existência deste movimento enquanto comunidade artística e profissional: a Maratona para a Dança, que durou 12 horas ininterruptas no Teatro Maria Matos, de que resultou um manifesto e depois a criação da Associação Portuguesa para a Dança, que, embora de âmbito e com objectivos diferentes, foi a antecessora da REDE. Tornou-se publicamente evidente nessa altura que esta se tinha tornado uma comunidade com muitos artistas e organizações com capacidade de interagir.

          No âmbito da Lisboa 94, a Clara Andermatt e o Paulo Ribeiro realizaram o Dançar Cabo Verde, a que se seguiram a colaboração da Clara com artistas cabo-verdianos, de que viria a resultar a História da Dúvida, e que foi o princípio de um intercâmbio com artistas e organizações de países lusófonos, depois prosseguido pelas Danças na Cidade – com o Dançar o que É Nosso, as residências e colaborações artísticas intercontinentais, e esta relação com o mundo que hoje o Alkantara nos proporciona e que devemos ao Mark Deputter.

          Talvez a parte visível do trabalho desta comunidade artística sejam só as produções, os espectáculos, o número de espectadores. Mas nós sabemos quantos encontros e desencontros, quanta reflexão e pesquisa, quantas tentativas, desistências e insistências (e quantos falhanços também) são necessários para que haja uma produção que valha a pena. E eu acho que este movimento, que a vossa actividade, tem sistematicamente devolvido a Lisboa aquele ar de porto aberto ao mundo que vai tão bem com a sua história.

          Quando, no final de 1995, fui convidado para integrar a comissão instaladora do IPAE – Instituto Português das Artes do Espectáculo, presidida pelo José Ribeiro da Fonte, a comunidade profissional da dança portuguesa tinha já demonstrado a sua capacidade para actuar no terreno em todas as áreas relevantes: na criação e produção, na internacionalização, na iniciativa, concepção e realização de eventos, na pesquisa e investigação, na formação contínua e no apoio aos artistas emergentes, na realização de parcerias. Até aí, esta comunidade tinha sabido aproveitar eventos institucionais, como a Europália e a Lisboa 94, e tinha demonstrado serem as suas organizações os melhores parceiros para o sucesso dos projectos. Agora era necessário definir um sistema de apoios que viabilizasse a regularidade destas actividades. E evitar, se possível, que esses apoios trouxessem consigo contrapartidas que sufocassem a actividade ou condicionassem a sua iniciativa. Faltavam meios de produção, infra-estruturas, circuitos de difusão. O José Ribeiro da Fonte faleceu pouco depois do início dos nossos trabalhos. Fui um rude golpe, para nós que com ele integrávamos a comissão, que o admirávamos tanto e que tínhamos tantas expectativas nesta missão com ele. Seguiu-se algum tempo de indefinição que atrasou a institucionalização do IPAE. Mas nem por isso deixámos de continuar a trabalhar. E quando Ana Marín assumiu a presidência da comissão e depois a direcção do IPAE finalmente institucionalizado, voltámos aos caminhos que tínhamos começado a projectar com o José Ribeiro da Fonte. Não vou dizer-vos que a minha passagem pelo IPAE foi isenta de angústias. Não é fácil estar na posição em que eu estive quando se vem de tão estreita ligação ao terreno e se tem tão aguda percepção das suas necessidades, a uma grande parte das quais, obviamente, não se tem possibilidade de atender. Mas o IPAE proporcionou-me uma enorme aprendizagem e laços profissionais e emocionais que ficarão comigo para sempre. Trabalhei com uma equipa dirigente profundamente empenhada na sua missão e atenta ao terreno artístico. E a minha passagem pelo IPAE deu-me, a mim que vinha de um movimento lisboeta e internacional, a possibilidade de descobrir outros projectos artísticos, instalados noutros pontos do país e o trabalho que desenvolviam. Quando lançámos os primeiros concursos e viabilizámos a criação de estruturas profissionais em torno dos principais criadores, eu receei, confesso, que isso os isolasse. Não precisava de me ter preocupado. É uma característica admirável das estruturas de dança portuguesas a sua capacidade de partilha de meios, de acolhimento de outros coreógrafos e de atenção aos emergentes. E enquanto estive no IPAE outros projectos foram surgindo que depois se tornaram estruturas. Ainda bem que conseguimos apoiá-los quando estavam a emergir. A verdade é que não há investimento que se preze sem algum risco. É preciso apoiar de forma sustentada os que já provaram (mas é melhor não exagerar no tempo que é necessário para os considerar merecedores de confiança) e apoiar também os que ainda são só uma esperança. Uma coisa não é alternativa da outra, acho mesmo que uma coisa não sobrevive sem a outra. É também importante estar atento aos que emergem solitariamente. A rebeldia aparece quase sempre em ruptura com o que está. E a rebeldia, já vimos, pode ser o sinal de uma inovação importante. Por isso convém que não a arredemos sem pelo menos antes lhe termos prestado a devida atenção.

          Com altos e baixos, a verdade é que até hoje não foi contestada a implicação do Estado no financiamento das actividades no terreno nesta área. E que alguns projectos então lançados pelo Ministério da Cultura, como a rede de Teatros e Cine-Teatros, cresceram, tornaram-se claros e estão a dar resultados. A mim não me surpreende. Tem havido sempre técnicos empenhados a trabalhar nestas questões.

          Hoje, como sabem, a minha actividade divide-se entre a Escola Superior de Dança e a Culturgest. Voltei ao ensino quando saí do IPAE e depois voltei também à programação. Antes de ir para o IPAE, também era professor da Escola Superior de Dança e era programador no CCB. Quando estava no início da minha actividade na comissão instaladora do IPAE, fui convidado para fazer uma palestra na Faculdade de Arquitectura do Porto, num ciclo cujo tema era A Viagem. Fui falar dos acasos e dos encontros que fui tendo na minha actividade internacional nos anos precedentes. Chamei-lhe Regresso em Aberto, inspirado no Open Return dos bilhetes de avião. Agora já regressei. Não com a energia que tinha antes, nem de longe, mas regressei para um meio muito mais desenvolvido, tanto num campo como noutro.

          A Escola Superior de Dança é hoje uma escola muito mais aberta e relacionada com o meio profissional da dança contemporânea. Não é perfeita, quem o é?, por isso lá estamos atentos a todas as melhorias possíveis. O mundo do ensino superior está em grande transformação e eu espero que ela seja realmente no sentido dos propósitos anunciados, nomeadamente na creditação da actividade profissional e na possibilidade de interacção entre o universo académico e o universo profissional. O que pressupõe a clara compreensão dos objectivos de cada um. Eu considero que o terreno profissional não deve nunca abandonar os seus projectos de formação, porque há um lado da formação que é de ponta, que está a ser transmitido ao mesmo tempo que se experimenta e pesquisa, que precisa de uma flexibilidade que dificilmente as instituições e os tempos académicos têm. E que o mundo académico deve acompanhar de perto o que é desenvolvido no terreno profissional e a seu tempo incorporar e sistematizar.

          A Culturgest é um paraíso. É um prazer enorme trabalhar com o Miguel Lobo Antunes e a equipa da Culturgest é de ouro. São pessoas que gostam do que fazem e que têm prazer em fazê-lo bem. Temos gosto em colaborar com os nossos colegas no terreno e cada vez nos envolvemos mais em co-produções. Temos uma colaboração regular com os festivais Alkantara e Temps d’Images, e este ano vamos ter também uma colaboração com o A Sul. Temos tido sucessivas co-produções com O Espaço do Tempo, onde grande parte das obras que co-produzimos passa um período em residência de criação. São muito importantes para nós os centros de residência artística. São suportes fundamentais da criação. Já tivemos e vamos continuar a ter colaborações com várias das vossas estruturas. Valorizamos muito esta ligação com os nossos colegas, e eu espero que se mantenha esta vivacidade que há no terreno, esta variedade de projectos e de dimensões. Hoje há, em muitas áreas, uma obsessão com a dimensão que confesso que me assusta e que espero que não nos atinja. São necessárias todas as dimensões e uma forte interacção entre elas para garantir a saúde de um tecido artístico.

          Quando voltei para a actividade de programação, descobri com grande prazer que hoje também há uma comunidade profissional de programadores em Portugal. Por iniciativa do Rui Horta e da Luísa Taveira foi crescendo uma rede informal de programadores que se reúne periodicamente. Eu juntei-me também a essa rede e é um prazer ter interlocutores e parceiros com quem partilhar a nossa informação e os nossos projectos. E é um sinal de uma mudança em Portugal que, espero, há-de ser importante na viabilidade e na mobilidade dos projectos artísticos.

          Eu tive um percurso sui generis. Fui alguém que esteve atento, e que calhou estar em certos sítios em certas ocasiões, e poder abrir uma ou outra porta quando era preciso e que o fez sem hesitação ou cálculo. A mim tudo o que aconteceu foi um pouco obra do acaso e dos encontros e não de um projecto profissional ou de um desígnio que tivesse delineado e preparado. Estava disponível para ser tocado por estes artistas, por este movimento, e sei que é essa disponibilidade e atenção que apreciam em mim. Fui aprendendo convosco e continuo a aprender convosco. Devo-vos algumas das maiores alegrias da minha vida. A vossa amizade e o vosso apreço são fonte de enorme felicidade para mim. Por isso aceito a vossa homenagem e me emociono com ela.

          Gil Mendo A importância do artista programador

          Texto datado de 25 de dezembro de 2012 e que lança um olhar retrospetivo à atividade da EIRA (cujos 20 anos de existência foram assinalados em 2013) e do coreógrafo Francisco Camacho, refletindo sobre os espaços e contextos de apresentação da dança, bem como sobre o desdobramento do artista enquanto programador – assumindo dessa forma uma posição de compromisso com um tecido cultural diverso e emergente.

          Quando, em 1993, Francisco Camacho criou a EIRA, a geração que fundou o que então se chamava a Nova Dança Portuguesa ambicionava ver instituído em Portugal um sistema organizado de apoio à actividade performativa de iniciativa independente, como havia nos países europeus mais desenvolvidos, onde esta geração tinha muitos contactos e cumplicidades artísticas; ambicionava dispor de espaços de trabalho que tivessem as características necessárias para viabilizar uma intensa actividade de colaboração artística, pesquisa, experimentação e criação; e ambicionava que se desenvolvesse em Portugal um circuito de co-produção e difusão destas novas correntes que lhes permitisse crescer na relação com o público.
          A actividade coreográfica de Francisco Camacho foi acolhida desde o início por um circuito internacional que desde os anos mil novecentos e oitenta vinha sendo criado por artistas e profissionais precisamente com a preocupação de difundir e viabilizar as novas correntes que então emergiam com grande ímpeto nas artes performativas europeias.
          De então para cá, ainda que com altos e baixos, houve grande evolução no tecido artístico e profissional das artes performativas europeias e portuguesas: o que então se chamava Nova Dança foi generalizadamente aceite e incorporado e passou a designar-se simplesmente Dança Contemporânea (como aliás aconteceu com o Novo Teatro e a Nova Música), os circuitos de difusão desenvolveram-se, a figura do programador afirmou-se, novos centros de espectáculo e festivais apareceram; no caso português, os artistas e as suas organizações foram, com grande esforço próprio, conquistando espaços de trabalho.
          Não sendo o melhor dos mundos, porque os meios disponibilizados nunca pareceram suficientes, há que reconhecer que se estruturou minimamente um tecido artístico profissional com as suas organizações independentes, as suas instituições, os seus circuitos de difusão.
          Mas esta mesma evolução teria arrastado consigo um predomínio da uniformização e superficialidade que um ‘mercado internacional’ corre sempre o risco de gerar, não fora a capacidade de antecipação que os artistas parecem ter por natureza e o facto de terem tornado muitos dos seus espaços de trabalho e produção em espaços de resistência ao domínio de ‘tendências’, de salvaguarda da pesquisa e da experimentação, de acolhimento de projectos de risco, de cativação de espectadores para os projectos emergentes.
          Neste campo, a actividade de Francisco Camacho e da EIRA é exemplar: reduzido ao mínimo indispensável o espaço de escritório, todo o espaço da EIRA é espaço de estúdio, de trabalho criativo e de partilha, de experimentação e pesquisa, de apresentação e de diálogo. Desde que passou a ter uma estrutura de produção própria, Francisco Camacho sempre cuidou de a pôr ao serviço do desenvolvimento coreográfico, através de actividades de formação e de pesquisa, da promoção dos intercâmbios artísticos nacionais e internacionais, do acolhimento e programação de projectos de outros coreógrafos.
          Francisco Camacho soube assumir, para além da sua actividade coreográfica, que só por si justificaria o relevo que tem na dança portuguesa actual, um papel de organizador e programador que reputo da maior importância. Fê-lo em colaboração com artistas e organizações internacionais e nacionais – e destaco, nos últimos anos, a sua actividade de curadoria com o Festival CITEMOR – e fê-lo no seu próprio espaço de trabalho, na EIRA, onde tantas vezes nos revela o trabalho, os projectos e as obras de outros artistas.
          No vigésimo aniversário da EIRA, escolho destacar este aspecto pela importância que atribuo ao artista programador e ao espaço local e informal de apresentação, ao espaço de proximidade, num momento em que vejo alastrar na Europa e em Portugal uma ideia de ‘eficácia’, de ‘sustentabilidade’ e de ‘internacionalização’ dominada pela filosofia do mercado. Ora esta ideia empobrecedora poderá arrastar consigo a ideia de que uma rede de instituições de difusão é suficiente para garantir o sucesso – e a ‘triagem’ – dos projectos artísticos. Pelo contrário, o circuito de difusão que permite o acesso de um público mais alargado à criação artística contemporânea é que depende do trabalho dos artistas, das suas organizações e das condições que lhes sejam dadas para investigar e experimentar, partir do que começa sempre por ser feito por poucos e para poucos.
          E assim, neste vigésimo aniversário da EIRA, fica o meu preito e o meu voto interessado pela continuação e desenvolvimento da actividade que Francisco Camacho, o artista programador, e a sua equipa, lhe têm imprimido. 

          Gil Mendo 31 de agosto de 1995

          No momento em que se comemoravam os cinco anos da estrutura fundada em 1990 pelo coreógrafo João Fiadeiro, a RE.AL, Gil Mendo reflete sobre o seu papel preponderante no desenvolvimento e proliferação de linguagens da dança independente em Portugal – “o terreno”, como então antecipava, “onde hoje está provavelmente a germinar aquilo a que amanhã chamaremos novo”.

          Impossível lembrar-me do que terei feito nesse dia há cinco anos. Mas é quase certo que no centro das minhas expectativas e das minhas preocupações estaria a Mostra de Nova Dança Portuguesa que iria realizar-se em Novembro desse ano na Bienal Universitária de Coimbra BUC 90 e que constituía um passo importante na preparação do programa de dança da Europália 91 Portugal.

          Éramos um grupo numeroso de pessoas empenhadas numa múltipla aposta: demonstrar a existência e coerência de uma corrente de dança independente portuguesa que era realmente nova; revelar, num amplo festival sobre cultura portuguesa a realizar no estrangeiro, o que estava em efervescência e crescimento, o que era novo; falar do presente e sonhar o futuro; encontrar o nosso próprio lugar num circuito internacional então em plena pujança e onde havia já manifestações de curiosidade e interesse por este grupo de criadores e performers portugueses.

          Nesse dia de que hoje, solitariamente sentado em frente do processador de texto, comemoro, à minha maneira, cinco anos, se não vi o João Fiadeiro ou falei com ele, devo ter de certeza pensado nele e no seu Retrato da Memória Enquanto Peso Morto que então ele e o seu grupo de bailarinos, músicos, cenógrafa e desenhador de luz preparavam com afã e entusiasmo. (…)*

          Depois da BUC, do Convento do Beato, dos primeiros contratos internacionais, veio o Solo para Dois Intérpretes e a participação no Festival Klapstuk, as improvisações com Miguel Azguime, O que Eu Penso que Ele Pensa que Eu Penso no ACARTE, o Prémio Madalena Perdigão, a instalação no Centro Cultural da Malaposta, o Branco Sujo, a residência criativa em Salvador e os Recentes Desejos Mutilados, uma intensa circulação internacional, a criação de uma peça para os finalistas do CNDC de Angers, o regresso ao solo e à performance nas Danças na Cidade, a actual colaboração com Jorge Silva Melo, a próxima criação para o ACARTE.

          Recordando o que estes cinco anos foram para as artes performativas contemporâneas portuguesas, e a estratégia que se foi delineando, encontro a RE.AL presente em todos os pontos essenciais de uma estratégia cultural que tem sido sobretudo prosseguida por um sector jovem, independente, dispondo de apoios chocantemente escassos mas detentor de uma notável capacidade de intervenção e realização: a cidadania do mundo sem decepar as suas raízes; a participação num movimento cultural e humanista que não se deixa delimitar por fronteiras de nenhuma espécie; a tentativa de criar estruturas flexíveis de produção, bem implantadas numa comunidade sem por isso perderem mobilidade; a atenção à formação, à experimentação, ao reconhecimento e à descoberta do novo; a inserção num espaço que não tem que ser rotulado de pertença exclusiva de uma arte específica, em que as várias artes performativas confluem despidas de cânones, e que é o terreno onde hoje está provavelmente a germinar aquilo a que amanhã chamaremos novo.

          Não podemos dizer que tudo começou há cinco anos, porque há cinco anos o que se tentou concertadamente fazer foi revelar algo que já estava em marcha, nem devemos olhar para este ciclo de cinco anos como algo que em si se encerra, porque na nossa actividade tudo se vai sempre encadeando, a despeito de aqui e ali reconhecermos e assinalarmos pontos de ruptura ou viragem.

          Mas é bom que comemoremos, quanto mais não seja porque comemorar é um ritual que cimenta os nossos laços comunitários.

          Olhando para o programa destas comemorações dos cinco anos da génese da RE.AL, encontro aí com prazer o rasto do passado, mas também o sinal do futuro. A RE.AL tornou-se num espaço acessível a performers de todas as origens. Como os espaços que, há cinco anos, nos acolhiam em outros centros europeus.

          Como dizia, não consigo lembrar-me exactamente deste dia, 31 de Agosto, de há cinco anos. De certeza que estava cheio de expectativas. Se tiver, acaso, pensado “como será daqui a cinco anos?”, devo ter pensado que decerto ainda teria expectativas. E é verdade que tenho. Mas ser-me-ia impossível imaginar então que teria hoje razões para comemorar estes cinco anos. Reconheço que as tenho, muitas. E isso vale bem uma comemoração.

          *O corte indicado no texto consta da publicação original.

          Publicado originalmente no dossier dos cinco anos da REAL / Festival “A dança muda lugares”, realizado no Centro Cultural da Malaposta em 1995.

          Gil Mendo Agir em parceria: algumas notas sobre o apoio do Ministério da Cultura à criação e produção coreográfica de iniciativa não governamental

          Atento à dança contemporânea em Portugal, aos seus protagonistas e às suas necessidades, Gil Mendo terá a oportunidade de contribuir para o desenvolvimento de uma política cultural no país, na qualidade de membro da comissão instaladora do Instituto Português das Artes do Espetáculo e de coordenador do seu Departamento de Dança no Ministério da Cultura, tendo como ministro Manuel Maria Carrilho, e Rui Vieira Nery como secretário de Estado. Neste texto, Gil Mendo sublinha a importância de uma ação articulada entre as instituições do Estado e o tecido profissional.

          Em Portugal, o investimento do Estado na Dança foi sempre mínimo: nunca se prosseguiu uma estratégia de desenvolvimento durante tempo suficiente para lhe conhecer os resultados, e até hoje não se conseguiu implantar uma rede nacional de criação, produção e difusão de dança dotada dos meios, das competências profissionais e da independência artística necessários para assegurar o acesso de todos os cidadãos à fruição desta expressão artística nas suas variadas formas e correntes.

          Apesar disso, a dança independente portuguesa não deixou, nos últimos dez anos, de revelar uma grande vitalidade e capacidade de intervenção, forçada como foi a encontrar, à margem do sistema e das instituições oficiais, quase tudo o que lhe era necessário — desde uma formação profissional e artística actualizada a métodos contemporâneos de gestão e organização. Integrou-se naturalmente na comunidade internacional de profissionais das artes performativas independentes que, desde o início dos anos oitenta, mudou radicalmente o mapa cultural da Europa, e angariou um capital de saber que hoje não pode ser ignorado.

          Uma nova política cultural neste campo não pode deixar de contar com os profissionais independentes e com as suas organizações. Não apenas para lhes proporcionar o apoio há muito devido, mas porque eles são parceiros naturais e actores principais de uma estratégia que visa implantar uma rede nacional de estruturas e espaços culturais, dotada dos meios e das competências profissionais necessários para assegurar o desenvolvimento cultural nesta área.

          O esforço que o Ministério da Cultura vem fazendo, desde há dois anos, para aumentar progressivamente os meios disponíveis para o apoio à dança independente (de 64 000 contos em 1995 para 250 000 contos em 1997, o que representa um aumento de 290%) deve ser entendido nesse sentido.

          A nova regulamentação dos apoios do Ministério da Cultura à criação e produção coreográfica, publicada em Dezembro de 1996, para além de cometer a decisão do apoio a um júri de especialistas maioritariamente constituído por profissionais independentes da Administração Pública, prevê o apoio plurianual e a celebração de protocolos de actividade entre o Instituto Português das Artes do Espectáculo (estrutura que, na nova orgânica do Ministério da Cultura, é o interlocutor das artes performativas independentes) e estruturas não governamentais (considerados parceiros estratégicos para o desenvolvimento da dança em Portugal).

          O novo regulamento procura contemplar a pluralidade de estruturas que são activas no terreno profissional, sejam companhias de dança, estruturas de produção, programação ou difusão, centros de pesquisa e experimentação, ou outros. Valoriza-se a actividade desenvolvida, a sua credibilidade artística, o seu carácter profissional e o seu impacto cultural, e a capacidade de cativação de outros apoios.

          O mesmo é dizer, a boa gestão, o contributo para o desenvolvimento profissional e descentralização cultural, seja através do apoio a novos autores e da produção de primeiras obras, seja através do apoio à formação contínua e à reciclagem de quadros profissionais, artísticos e técnicos (considerados necessários ao desenvolvimento de uma rede nacional de criação, produção e difusão artística).

          Os investimentos a fazer, para dotar o país das infraestruturas necessárias para assegurar a existência de um mercado artístico que funcione com a máxima independência, só serão possíveis através do cruzamento de recursos e da realização de parcerias entre o Ministério da Cultura, outros departamentos do Estado e da Administração Local, instituições privadas, profissionais independentes e suas estruturas e organizações. 

          Tanto ao Ministério da Cultura como à comunidade profissional da dança independente interessa a existência de um tecido profissional saudável, actuante, capaz de se adaptar à evolução e ao desenvolvimento cultural e de responder aos desafios e às exigências do seu tempo. Só podem, por isso, considerar-se parceiros com um mesmo objectivo; e o sucesso ou insucesso de uma nova política cultural neste campo, e das instituições que a personificam, será determinado pelo sucesso ou insucesso desta parceria.

          Originalmente publicado no livro Movimentos Presentes: Aspectos da Dança Independente em Portugal, com coordenação editorial de Maria José Fazenda, pela Livros Cotovia e Danças na Cidade, em 1997.

          Gil Mendo O “performer” criador

          Entre as muitas transformações que as artes performativas contemporâneas têm vindo a forjar, uma das mais interessantes e positivas é a redução drástica da distância entre o intérprete e o criador.

          Hoje, o “performer” é um parceiro activo no processo de criação.

          Na dança, esta evolução de mentalidades e atitudes tem reflexos na definição de novas exigências profissionais, e na forma como o bailarino encara a sua actividade, a sua formação e o seu crescimento artístico, que passam pela afirmação da sua criatividade, da sua individualidade e da sua diferença.

          Os tempos em que se pensava que o engenho criador só se adestrava eficazmente através da vivência relativamente dócil de uma carreira de intérprete, ficaram decididamente para trás de nós.

          E ainda bem.

          Esta mudança é um sinal de maturidade.

          Texto publicado no programa da Maratona para a Dança, realizada no Teatro Maria Matos em 1993, onde bailarinos, coreógrafos e promotores se reuniram para exigir mais e melhores condições de trabalho para a cena da dança independente. 

          Gil Mendo Ideia: Cristina Peres entrevista Gil Mendo

          Em consequência da sua demissão da comissão instaladora da Escola Superior de Dança em solidariedade com Madalena Victorino e António Pinto Ribeiro, Gil Mendo cofunda com ambos, juntamente com Miguel Abreu e Catarina Vaz Pinto, o Forum Dança, em 1990, incorporando o espírito de independência, experimentação e pensamento da Nova Dança. Nos seus primeiros anos na direção, edita quatro números de uma pequena publicação, no segundo dos quais, lançado em 1991, é entrevistado por Cristina Peres. A jornalista e crítica de dança indaga sobre o estado da arte da dança no início dos anos 1990 – momento em que a Nova Dança Portuguesa florescia – procurando entender, junto de Gil Mendo, as especificidades dessa nova experiência de corporalidade.

          Gil Mendo é quase uma omnipresença neste mundo da dança portuguesa. Neste, porque reconhece o radicalismo que a defende por oposição ao radicalismo de quem a considera invenção de alguns. Porque é uma das pessoas atentas que se aperceberam do fenómeno e o apoiaram, incentivando e ajudando a uma certa definição da diversidade. Não se trata de pretender que esta é uma forma de dança que vem substituir qualquer outra. Pelo contrário, vem acrescentar; não se perde seja o que for de determinado património artístico, como não deixa de existir o ballet, evidentemente. Como é evidente que esta nossa conversa sobre dança não pretende esclarecer em definitivo o que é isso de dança, esta ou aquela. Foi, sim, uma ocasião para revisitar ideias, das que eventualmente não se formulam sem uma razão específica. Valeu por isso e pelo exercício em si. E regista-se como aconteceu: sem princípio nem fim.

          Cristina Peres: Tendo em conta o eclectismo hodierno, o “ruído” presente nas formas específicas, como a dança, oriundo de outras áreas artísticas, e a tendência das artes para o indivíduo qual é o estado da dança, para onde se dirige?

          Gil Mendo: Não faço ideia. Penso se eventualmente esta geração que recusou os cânones e dogmatismo não irá criar outros…

          CP: O movimento, no sentido físico, está em crise?

          GM: Penso que não. Mesmo que pensemos que o novo não é possível, surge sempre algo que espantosamente é novo. Digo espantosamente, porque, por vezes, parecem-nos ideias tão óbvias mas que são novas.

          CP: O que é que tem mais possibilidade de ser novo, as ideias ou as formas?

          GM: Para mim são essencialmente as ideias. Só que elas produzem formas que, pelo menos na aparência, são novas, podendo ser uma espécie de desconstrução e reconstrução de formas que já existiam, ou conjugações diferentes das mesmas formas.

          CP: Acha que a dança é descontextualizável no sentido em que não vem directamente do nada mas recebe informação de muitos lados, no sentido em que é sintética mas se apresenta numa nova forma? Isto, num sentido inverso à delimitação de género e estilo a partir de influências?

          GM: É sempre possível olhar para as coisas desse modo. Se há algo que vejo pela primeira vez, vejo-o como se não tivesse existido nada antes.

          CP: Mesmo para si, como professor e estudioso da dança?

          GM: Faço por vezes associações com outras coisas mas tenho sido surpreendido ao não as associar com nada. É muito natural que o nosso quotidiano seja uma sedimentação de muita coisa que vem de trás e que transportamos connosco, é isso que nos fornece uma memória cultural. É isso que é notório nestas novas correntes das artes performativas que têm uma feição nacional, com influências de muitos lados diferentes. No entanto, é fácil reconhecer num criador as suas origens nacionais, a região a que pertence e a História que transporta consigo.

          CP: Acha que a dança é mais difícil hoje em dia?

          GM: É sem dúvida mais difícil, mas é mais aliciante. No passado, o que se fazia era tentar aproximar o corpo individual de uma ideia estereotipada de corpo ideal. Era muito trabalhoso, bastante frustrante, mas apesar de tudo era mais fácil e claro. Hoje há que conhecer-se a si e ao seu próprio corpo, estamos mais perante um processo de comunicação verdadeira. Então isso é tão difícil como eu tentar expressar-me.

          CP: Levado ao limite, se as coisas forem feitas com uma seriedade e uma duração no tempo razoáveis, poder-se-á dizer que esta é uma época-embrião de uma série de correntes novas? O movimento parece não ter limites a partir do momento em que existe a preocupação de descobrir algo que vem de dentro. A diversidade pode abrir caminhos a uma enorme quantidade de linhas, num sentido muito mais lato que qualquer classificação de novo.

          GM: O que começou a passar-se com a dança, sobretudo a partir de meados da década de 80 na Europa – reconheço que houve antecedentes nas décadas de 50 e 60 na dança nova-iorquina passou-se com as artes plásticas há muito tempo. Olhamos a obra de um pintor e não tentamos integrá-lo numa escola, embora por vezes arranjemos rótulos. Aceitamos facilmente a diversidade e estamos a começar a fazê-lo na dança.

          CP: O que equivale também a uma certa pulverização..

          GM: É, o que não é necessariamente mau. Aí poderá passar a existir uma pluralidade de gostos e opções estéticas que não têm de ser hierarquizadas. É importante porque é um processo de democratização no verdadeiro sentido. O que, para mim, é um avanço civilizacional considerável, dentro da consciência permanente da evidência da nossa ignorância. Não é possível um saber enciclopédico e este é o momento em que cada um acabará por, desejavelmente, saber o que para si é fundamental saber.

          Revista Forum Dança, n.º 2, março de 1991.

          Gil Mendo “Uma corrente de ternura” Gil Mendo entrevista Pina Bausch

          Em setembro de 1989, Pina Bausch e a sua companhia de dança apresentam-se pela primeira vez em Portugal, nos Encontros ACARTE, com a peça Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört [Ouviu-se uma gritaria na montanha, 1984]. Após a sua última apresentação, Gil Mendo entrevista a coreógrafa a convite da Fundação Calouste Gulbenkian nas instalações da instituição. Nesta curta conversa, cujo registo permaneceria guardado desde então, Gil Mendo aborda questões às quais era particularmente sensível — do lugar dos/as intérpretes e da sua diversidade na criação à plasticidade das peças e aos sentidos múltiplos que provocavam. Gera-se um clima de cumplicidade entre si e a coreógrafa, frequentemente pautado pelo riso e por gargalhadas entre ambos, e que os levaria a jantar juntos nessa mesma noite.

          GIL MENDO: Pina Bausch, acho que uma das coisas que impressiona o público é o facto de a maioria das pessoas da sua companhia serem mais velhas e muito diferentes entre si, e parecerem ter personalidades muito fortes. Ora, o que eu queria perguntar é o seguinte: são a diversidade e a individualidade importantes na sua escolha das pessoas com quem trabalha? E, também, são a história pessoal e a fantasia dos/as bailarinos/as importantes para o seu trabalho?

          PINA BAUSCH: É verdade. Eu gosto muito de trabalhar com pessoas diferentes – altos, pequenos, largos, baixos… Mas, o que quer que pareçam, há qualquer coisa… ou o que quer que sejam, as suas personalidades, têm algo parecido, algo que a gente não sabe o que é, mas há qualquer coisa que é semelhante. Quanto à fantasia, não sabemos exatamente até fazermos uma audição em que tentamos em conjunto… não é o que se consegue ver, percebe? É um sentimento, ou confiança, que me faz pensar, “sim!”. E às vezes é uma coisa que acontece muito depressa, em conjunto, e às vezes demora bastante até que de repente funciona. Logo, ambas as formas são possíveis.

          GM: Bom, você fala sobre semelhança. Durante estas três noites [nos Encontros ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian] senti que havia uma grande empatia por parte do público com…

          PB: Empatia?

          GM: Simpatia…

          PB: Ah, simpatia!

          GM: …por parte do público com o acontecia no palco. Ou seja, sinto que nos identificamos com o que se passa no palco. Ora, para além do facto de os/as seus/suas bailarinos/as serem tão bons/boas em movimento e terem personalidades tão fortes, há também o tema do seu trabalho, como eu o vejo: vejo jogos de infância (logo, memórias); jogos de crueldade; catástrofe, ou talvez o que se poderia chamar as consequências de uma catástrofe: destroços, afogamento, homens indefesos nas mãos da fé – esta é obviamente uma interpretação pessoal, claro. O que eu queria perguntar é o seguinte: monta a sua companhia como uma amostra da humanidade? E podemos dizer que os seus trabalhos são como uma escolha, uma amostra selecionada do mundo? Porque eu também vejo por detrás de tudo isto – catástrofe, crueldade – que há uma corrente muito tocante de ternura. E talvez por isso, eu acho, seja tão fácil para nós no público nos identificarmos e sentirmos essa empatia com o seu trabalho.

          PB: Não sei o que dizer [abre os braços humildemente e desata a rir com GM]! Sim, é o que tento fazer e… e acho que essa é sempre a questão quando faço uma nova peça, sabe, quando se apresenta numa nova noite. E acho que a única coisa que posso fazer – porque não é um livro, não há um objeto, não há uma história, é algo… [gira as mãos para a frente, i.e., em progresso] –, posso apenas perguntar a mim mesma: como existo agora, neste mundo, desta vez (quero dizer, no contexto do trabalho, não no presente, apenas para mim pessoalmente). Mas estar desperta para os assuntos que conheço – sobre o que esperamos, o desejo que temos, ter muito medo de violência e de quando vai acontecer, e outras coisas como estas – é como começo a construir um trabalho.

          É uma certa maneira de trabalhar, a minha. E acho que é algo que as pessoas da companhia, sem falarmos sobre isso – porque não falamos realmente sobre isso – claramente procuram.

          GM: Para além disso, há outro aspeto que me impressiona no seu trabalho, e acho que impressiona muita gente, que é a metamorfose, tanto no sentido de coisas que se transformam noutras – um chão avesso pode também ser um mar onde se nada, ou morre, se afoga; uma perna é uma perna mas também parece um bastão de críquete ou um bastão de ouro – mas não só nesse sentido de os personagens se transformarem noutros personagens e as coisas se transformarem noutras coisas, mas também na forma muito rápida e subtil como que as cenas mudam. Estive aqui as três noites e, no entanto, impressionou-me sempre como de repente a cena é outra, e isso é tão rápido, é como uma metamorfose, tudo mudou. Poderia dizer algo sobre isso? Faz isso parte do seu processo de trabalho, essa metamorfose?

          PB: Sim, é muito importante… mas não lhe sei dizer porque é importante para mim, sabe?  Como, na maior confusão, de repente há qualquer coisa, algo completamente diferente, ou parte de qualquer coisa que parecia muito calma e se transforma em algo completamente diferente. Não sei, para mim há tantos ângulos ou coisas! Todos os tipos de coisas de há muito tempo também lá estão. É como algo no tempo, como um antes ou um depois

          E é verdade quando diz que é apenas a sua opinião pessoal, mas para mim também é muito importante que todos tenham a sua opinião – a sua própria. Qualquer pessoa que assiste faz parte da performance. Cada pessoa, onde quer que esteja – na sua vida ou nos seus sentimentos – retira algo diferente, ou acrescenta algo diferente; ou vêm cenas à cabeça… e quando se vê mais vezes, surgem coisas diferentes, ou sentimentos diferentes da sua vida, vê-se diferente de novo. E eu acho que nesse fazer parte, nessa participação de cada pessoa, não há por que perguntar a outro/a como foi a história – como se pode perguntar? É a sua história, é a sua relação com o que vê, cada uma, pessoal. Isso também pertence ao trabalho. E nós não nos conseguimos segurar a nada, estamos perdidos, não temos onde nos agarrar – isso também faz parte de se trabalhar assim!

          Porque acho, não sei exatamente mas acho, que é compreensível entre todos nós… às vezes quando não sabemos alguma coisa dizemos que a sentimos, mas isso parece-me inadequado; acho que sentir é algo bem exato. Isso é sempre algo que dizemos para nos desculparmos por não sabermos algo, porque não podemos expressar os nossos sentimentos. Mas acho que eles são realmente a coisa mais exata que sabemos sempre. Onde a sabemos? Não na cabeça; sabemo-la noutro lugar, mas sabemos. E eu acho que é algo que toda a gente entende, mas não é com a cabeça. O que existe é a nossa mente, que tentamos entender! Tentamos tomar consciência daquilo que sabemos. E não há palavras, forma…

          GM: Outro aspeto que acho importante para quem só teve oportunidade de ver anteriormente o seu trabalho em vídeo é o facto de ser tão orgânico quando é visto no palco. Ora, você é conhecida por usar terra verdadeira, flores, relva, árvores verdadeiras… Existe alguma razão especial para você gostar de trabalhar com estes materiais?

          PB: Existem muitas razões. Para mim, cada material é tão diferente. Por exemplo, se houver relva, há um cheiro, sente-se um cheiro, não se faz barulho… Noutra vez há coisas amontoadas, e quando se anda ouve-se o tempo todo, é uma espécie de música também; tem um cheiro, ou cola-se no corpo – é difícil, é diferente de atravessar. E isso é de certo modo a essência da peça, também, é o que a peça é, uma espécie de extrato daquilo que se tem a dizer. É algo… como um vazio sobre o futuro dos seres humanos, e da natureza também. Não sei… espero que um dia a gente não a veja apenas numa montra, ou algo assim. Acho que, em geral, nunca realmente olhamos para aquilo que temos (talvez para os carros…). Mas, no palco, é com isso que confrontamos o público, a nossa terra, o chão… Sei lá, são tantas coisas, e cada uma pode fazer o seu [sentido]…

          GM: Bem, muito obrigado. Muitas pessoas esperavam há muito ter a oportunidade de a ver em Lisboa. Assim, para terminar, gostaria de lhe perguntar, acha que teremos oportunidade de a ver novamente em Lisboa…

          PB: Isso seria maravilhoso.

          GM: …podemos contar com isso?

          PB: Sim, seria maravilhoso, eu gostaria muito. Até porque foi só uma peça, deveriam ver outra; porque outra é diferente e… quer dizer, sou eu na mesma! Mas assim pode mais facilmente imaginar-se como aquela casa pode ser diferente; se com uma é difícil imaginar, entretanto haverá outra! Foi muito bonito estar aqui. Seria maravilhoso se pudéssemos voltar.

          GM: Muitíssimo obrigado. Foi também muito bonito tê-la cá, e um grande prazer conversar consigo, obrigado.

          Transcrito e traduzido do original em inglês por Pedro Pinto.

          Gil Mendo Reflexões | Nova dança europeia – A década da surpresa ou a imunidade voluntariamente perdida

          Gil Mendo escreve para o jornal académico de Coimbra Via Latina (com direção de Francisco Silvestre Tão Lindo) em fevereiro de 1990. Nesse ano, a Bienal Universitária de Coimbra (BUC), com direção de António Augusto Barros, apresentaria uma grande mostra de dança portuguesa, de que Gil Mendo foi responsável, em preparação para o festival Europália 91, que decorreu na Bélgica. O texto é dedicado a Madalena Perdigão, então recentemente falecida, diretora do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, que mantinha, à data, uma relação de cooperação com a BUC.

          Surpresa. Eis uma sensação que quase sempre nos acompanhou ao longo da década de oitenta. Afinal a Europa não evoluiu na direcção de uma uniformidade cinzenta tiranicamente imposta por uma tecnologia inacessível ao cidadão comum, que tanto tínhamos temido e esconjurado. 

          Surpresa paradoxal, é da própria surpresa que nos surpreendemos e nos parecem, agora, lógicos os desenvolvimentos que não previmos. Mas acaso tenha sido essa imprevisão, ou o afecto que entretanto ganhámos por noções como acaso e imprevisibilidade, que nos ajudou a forjar as transformações que hoje estamos vivendo.

          Para quem acompanha com interesse a dança europeia, os anos oitenta foram, sem dúvida, surpreendentes e empolgantes. Entrada da década, dir-se-ia que a evolução se iria processar por via de um apuramento técnico levado a extremos de perfeccionismo, centrado na excelência do executante mais do que na proliferação dos criadores, através de uma selecção precoce de corpos superdotados, de um treino rigorosamente calculado para a inculcação de vocabulários precisos, realizado à margem do “humus” da turbulência e contaminação da vida comunitária, como que “in vitro”, para a produção de um intérprete dócil, atlético, émulo de um ser idealizado, sublime na sua virtuosa esterilidade.

          Não foi por aí, no entanto, que a dança alcançou a presença com que chega ao final da década e o prestígio e importância de que desfruta hoje na vida cultural da Europa. Antes o que foi pela acção de criadores heréticos, muitas vezes oriundos de outras artes, outros saberes (Wim Vanderkeybus vem do Teatro, George Appaix tem na sua formação a Literatura e a Música, Karine Saporta a Sociologia, Jean Claude Gallota as Artes Plásticas, Joseph Nada passou pelas Artes Marciais), que encontraram a Dança no seu caminho e resgataram de um mausoléu de rígidos vocabulários para a fertilidade de linguagens em permanente renovação.

          Este envio e contaminação de outras artes e outros saberes que melhor explica a erupção de uma Nova Dança Europeia, não enquadrável nos parâmetros definidos pelo Ballet ou pela Modern Dance, e de um surto de inovação que não se caracteriza pela afirmação de um novo estilo ou de uma nova linguagem, mas antes pela recusa em deixar se aprisionar por estilos e linguagens pré-codificados. A voluntária perda de imunidade (recorte-se o interesse de Paulo Maçã pela Arquitectura e o seu trabalho com actores e encenadores a aproximação de Olga Roriz ao Teatro e às Artes Plásticas) explica também alguma perplexidade que esta Nova Dança causa em sectores que por demais se habituaram a interpretar todas as obras, a enquadrar todos os criadores na cronologia linear de uma história dada como adquirida, estanque, imune a redescoberta ou reinterpretação.

          A par do que funda a sua actividade numa pesquisa pessoal liberta das peias de um vocabulário imposto e que parte para uma nova pesquisa a cada novo trabalho que empreende, surge na década de oitenta o crítico novo que abdica de parâmetros pré-estabelecidos de apreciação e que assume o pessoal, o subjectivo e o criativo no equacionar dos dados com que percepciona cada obra sobre que se decide escrever. Os anos oitenta são também os anos da afirmação do Ensaísmo no campo da Dança, o que constitui simultaneamente um indício do reconhecimento cultural e intelectual que a Dança alcançou e um contributo para o seu reforço (citem-se, entre outros António Pinto Ribeiro, Marianne Van Kerkoven e Norberto Servos). Ao recusar a imunidade, o bailarino dos anos oitenta aproxima-se simultaneamente da comunidade, cuja cultura e memória transporta consigo, e de si próprio. Não é um virtuoso que se despoja do seu ser em imolação a um estereótipo inatingível, mas um criador que habita integralmente o seu corpo. O coreógrafo solista, figura que praticamente se apagara da Europa do pós-guerra, regressa em força (mencionemos, como exemplos significativos, Cesc Gelabert, Daniel Larrieu, Suzanne Linke, Vera Mantero).

          Diversidade e individualidade são características da Europa dos anos oitenta que estão bem presentes na Nova Dança Europeia. Esta é uma dança que ao mesmo tempo nos surpreende, pois não dispomos do esteio de um estilo que no-la torne familiar, e sentimos próxima de nós, por se inspirar no corpo real, que não é um ideal de corpo comum a todos mas o corpo individualmente diferente e por isso tocante. O que aproxima a Nova Dança do Novo Teatro, tornando por vezes difícil, mas também supérfluo, decidir o que é pertença de uma ou do outro, e a sua inspiração na gestualidade do quotidiano para com ela construir um jogo que já não é nem a mímica narrativa linear nem a estilização de emoções supostamente comuns a todos os homens. Pina Bausch diria que tentamos tornar inteligível o conhecimento mais exacto que temos, e que é inexplicável. Na atenção explícita ou implícita, que dedica teatralidade do quotidiano, as personagens que construímos para comunicarmos uns com os outros, fruto da solidão que nos advém da consciência individual de pertencermos a um todo, bem pode dizer-se que a Nova Dança é uma dança de solidariedade, logo de felicidade.

          Se o criador dos anos oitenta aproximou a Dança da comunidade e lha tornou mais acessível, aproximou-se e ele próprio mais do corpo sobre o que compõe e teve, para tanto, o auxílio precioso de um novo medium ao seu alcance: o vídeo. A vídeo-dança é, efectivamente, uma inovação da década de oitenta. De instrumento de reportagem ou registo de um acontecimento artístico, o vídeo passou a ser ele próprio o suporte de uma realização artística e abriu um vastíssimo campo de experimentação e exploração coreográfica (atente-se nas obras produzidas pelo grupo L’Esquisse, ou por Régine Chapinot, ou Daniel Larrieu ou Jean-Claude Gallota, ou nas colaborações entre Conceição Abreu e Luiz lança, Madalena Victorino e Paulo Abreu, Olga Roriz e Joaquim Leitão). Neste campo pelo menos, não é previsível que a dança de oitenta encerre em si própria um ciclo. A vídeo-dança florescerá na década de noventa.

          Assim, chegados ao final da década de oitenta, podemos constatar que a tecnologia não se opõe, afinal, à diversidade, antes a estimula; que o domínio e a rapidez da comunicação audiovisual não tornará o mundo necessariamente uniforme. Digamos que a diversidade e a afinidade deixaram de ser fortemente influenciadas pelos acidentes geográficos. Hoje podemos partilhar ideias, descobertas e criações a milhares de quilómetros de distância. Não estamos imunes ao mundo, nem à surpresa. Não estamos condenados à uniformidade. Podemos começar a elaborar uma nova cartografia: a dos afectos. 

          Post-scriptum: dedico este artigo à memória de Maria Madalena de Azeredo Perdigão, figura ímpar da actividade cultural das últimas décadas e principal impulsionadora da integração de Portugal no movimento da Nova Dança e do Novo Teatro da Europa e, por extensão, a todos os seus colaboradores na imprescindível aventura que é o serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian. 

          Gil Mendo O pássaro entre dois fogos

          Nesta entrevista à revista Face de agosto de 1989, precedida por um longo artigo intitulado “Escola de Dança com barra pesada”, Gil Mendo fala publicamente da sua demissão da comissão instaladora da Escola Superior de Dança. Tal acontece na sequência de uma crise interna vivida na instituição então recentemente criada, que culminou com o afastamento de dois colegas, Madalena Victorino e António Pinto Ribeiro, a quem muito se deveu o espírito inicial da Escola, e com quem Mendo criara uma relação de estreita cumplicidade, manifestando-se também crítico relativamente ao teor do projeto de lei que estabelecia as bases do ensino artístico, publicado um ano depois [Decreto-Lei n.º 344/90, de 2 de novembro].

          Gil Mendo é um personagem central na crise que abala a Escola Superior de Dança, e também na crítica ao modo como se projecta o ensino artístico em Portugal.

          Co-autor do projecto pedagógico da Escola Superior de Dança, símbolo do equilíbrio entre tendências, ex-bailarino e primeiro português licenciado em notação Benesh (sistema de escrita de dança), professor há mais de uma dezena de anos, Gil Mendo demitiu-se do seu cargo de vogal da comissão instaladora daquele estabelecimento de ensino. Com esta demissão acabou-se a “paz podre”; de certo modo fez-se a separação das águas. Durante meses, a pedido do presidente da comissão instaladora do Instituto Politécnico de Lisboa, Almeida Costa, manteve-se em funções. Agora acha que já é suficiente, que já não pode ficar calado.

          FACE – O seu pedido de demissão da comissão instaladora data de há meses, porque é que só agora assume publicamente esta ruptura?

          Gil Mendo – Pedi a demissão em 7 de Março. Aceitei, depois de uma conversa com o dr. Almeida Costa, que ele reteria o meu pedido até ele próprio ir à escola assistir a uma reunião do conselho científico e ter uma conversa com a comissão instaladora. Passaram-se vários meses e, na reunião de há duas semanas daquele órgão, as coisas agravaram-se. A minha intenção, era, não podendo continuar a trabalhar com o resto da comissão instaladora, por não nos entendermos quanto aos termos de gestão da escola, demitir-me e ser substituído.

          Aguentei estes meses, aguentei este silêncio, e não foi fácil, como deve calcular, mas continuei a exercer as minhas funções o melhor que era capaz. Só que no final deste ano lectivo comecei a sentir que a revisão do projecto de estudos que se ia fazer, a forma como era feita a avaliação dos estudantes, tudo se encaminhava – pode dizer-se tudo se encaminha – para o estreitamento do projecto no qual me empenhei.

          Que é que realmente aconteceu nestes meses para que lhe pareça inevitável esta ruptura?

          A minha solidariedade para com as pessoas que se empenharam neste mesmo projecto era na base dele e não uma solidariedade de grupo fechado. Criou-se um espírito que rejeita os que vêm de fora e que é muito cáustico para os jovens docentes e para os estudantes.

          A minha solidariedade para com as pessoas, independente das amizades que ali tenho, é na base de um projecto em que eu me empenhei. Se o vejo posto em causa, eu, por mim, quebro, considero quebrada essa solidariedade. Não vou, de facto, continuar na comissão instaladora. Vou insistir na demissão porque estas questões são demasiado importantes por terem a ver com o sistema educativo português e com o papel da arte na educação.

          Quer explicitar melhor essas questões de que fala?

          Ao chegarmos ao final destes três anos, que correspondem ao primeiro bacharelato, nós próprios tínhamos proposto fazer uma revisão do plano de estudos. Esse plano – penso eu – deve mesmo ser revisto. Aliás não tenho dúvidas nenhumas de que em algumas coisas nós errámos. Começámos por pensar que logo na entrada da escola os estudantes podiam optar pelo chamado ramo do espectáculo ou pelo ramo da educação. Depois, chegámos à conclusão de que deveríamos proporcionar um primeiro ano comum e deixar a opção para o segundo ano. Mas havia ainda várias outras opções possíveis, e, através da lei interna, que regulamenta a frequência, acabámos por considerar determinados estudos nucleares em ambos os ramos. Entre nós existia um compromisso – era considerado um compromisso moral – que respeitaríamos as tendências reveladas pelos estudantes e as escolhas que fossem fazendo.

          Tomemos por exemplo o ramo da educação. A possibilidade, alí, é a de formar professores do ensino vocacional: professores de técnica, professores que criem bailarinos. E para formar professores, à partida, no ensino vocacional, precisaríamos de contemplar várias técnicas. Começámos pela dança clássica, porque essa era possível na altura, mas a nossa intenção era desenvolvermos também a formação de professores de dança contemporânea – coisa que até hoje ainda não foi feita. Por outro lado, punha-se o problema de permitir que os estudantes optassem por serem professores de técnica ou de dança educacional. Esse era outro vector em que nós tínhamos a intenção de investir. Tudo isso passava também por desenvolver um trabalho de persuasão, de divulgação, porque pelo menos nessa altura havia muito pouca abertura para a ideia da integração da dança no ensino geral.

          E essa situação foi ultrapassada?

          Neste momento, com os projectos de reforma, as coisas não estão ainda, para mim, muito claras, mas há, apesar de tudo, uma muito maior receptividade à ideia de integração das artes na formação geral do indivíduo – embora eu esteja alarmadíssimo com este projecto de lei de bases do ensino artístico que apareceu aí. Espero sinceramente que não seja aprovado. É desastroso.

          Estava a falar sobre o que considerou a quebra de um compromisso moral entre os que elaboraram o plano de estudo…

          Havia este compromisso moral de respeitar a escolha dos estudantes e eu sinto isso, neste momento, posto em causa: há estudantes que revelam grande capacidade para um destes estudos e depois são eliminados pelo chumbo no outro. Não querem ser professores de ballet, querem seguir outro caminho, e têm grandes capacidades para isso, mas vejo pôr em causa as opções feitas pelos estudantes. Além do mais nós aceitamos na escola estudantes de variadas origens – porque hoje o mundo da dança é muito vasto e o tipo de formação com que o estudante chega àquela escola pode ser muito diverso – e, para mim, é um problema moral grave que um estudante, aceite pela escola, e que é perfeitamente evidente que nunca vai ser um professor de dança vocacional, a certa altura do seu curso se veja, no fundo, impedido de prosseguir por não obter sucesso em determinada disciplina, mesmo quando lhe são reconhecidas capacidades e qualidades em outras cadeiras que podem dar-lhe um perfil profissional num campo que, para mim, tem muita importância.

          Prende-se tudo essencialmente com esta questão: que é que se entende por arte? Há uma espécie de tradição empírica de formação dos bailarinos para a dança, para a formação de corpos de baile. Isso é uma coisa que as companhias precisam de continuar a fazer, não o ponho em causa, só que o mundo da dança não se esgota aí.

          Parece que para si a formação técnica clássica não é muito importante?

          Eu não desvalorizo, de maneira nenhuma, a formação técnica, mas penso que há que pôr à disposição do estudante as mais variadas técnicas e dar-lhes a maior quantidade possível de informação teórica – informação estética – e permitir que o estudante escolha, isto no caso da Escola Superior de Dança, que é um estabelecimento de ensino não destinado a formar corpos de dança ou solistas, mas vocacionado para a criação. A técnica, neste caso, tem de estar ao serviço da sua criatividade, como qualquer outra arte. E é aqui que eu vejo problemas, porque sempre que nós – nós porque não se trata só de mim – chamamos a atenção para estas questões, as questões da informação estética, as questões da análise, da reflexão sobre as coisas, a questão da criatividade, somos apontados como detractores da formação técnica. Ora não é isso que acontece. O que sucede é que a criatividade e a criação são mais importantes do que a técnica, que só é válida na medida em que está ao serviço da criatividade do indivíduo. 

          Eu rejeito uma visão passadista, historicista no sentido linear. Penso que hoje, no final desta década, estamos perante uma evolução de mentalidades para mim muitíssimo importante e acho que não devíamos, nós, que estamos no ensino, estar desatentos em relação a isso. Eu aceito mal, ou considero uma lacuna cultural pior, uma pessoa que ignora o presente a outra que tem algum desconhecimento sobre o passado. Isso não quer dizer que eu rejeite o conhecimento da história. Não é isso que está em questão. O que está para mim em causa é uma perspectiva linear e meramente cronológica da história da arte ou, se quiser, da história da dança.

          Que se reflecte na escola de que maneira?

          O que ali está a acontecer é o que eu sinto ser uma rejeição da pluralidade, absolutamente essencial para uma escola como esta – que é a única escola superior de dança em Portugal integrada num núcleo artístico. Ali devem coexistir as mais variadas correntes estéticas e técnicas para os estudantes poderem optar.

          O debate que tudo isso gera só é paralisante – como algumas pessoas dizem – se as questões deixam de ser discutidas em termos intelectualmente válidos e passam a ser pessoalizadas. Quando começam a acontecer coisas como o que eu considero confundir uma biografia com um programa de ensino, quando se põe em causa que alguém possa pronunciar-se sobre determinado assunto por o seu passado profissional não ser este ou aqueloutro, nesse momento eu sinto que tudo acaba por ser personalizado e que não posso mais manter-me em silêncio.

          Pelo que disse pode ficar-se com a ideia de que se trata de uma luta de gerações?

          Eu acho que não pode ser vista assim por haver pessoas mais novas do que eu com posições contrárias às minhas. Não penso que isso seja um problema de gerações. Poderá ser, essencialmente, um problema de informação e eu não acho aceitável, profissionalmente, que quem está envolvido no ensino, seja em que campo for, se deixe de preocupar com isso, com o presente.

          É uma questão de democratização também, e vendo eu tantas declarações a favor da pluralidade, a favor da democratização, em nome da Declaração dos Direitos do Homem, vendo e ouvindo estas coisas, olhando para a escola, só posso pensar que é necessário passar à prática. Não podemos passar de sonantes declarações para o lado mais burocrático das coisas, nem deixar pelo caminho essas ideias e remetermo-nos às questões meramente administrativas.

          Face n.º 11, 3 de Agosto de 1989.

          Gil Mendo Entrevista com a Dra. Madalena Perdigão

          Na altura em que se encontra a funcionar o seu primeiro curso de dança, a Escola Superior de Dança, então sob a direção de Wanda Ribeiro da Silva, publica, no primeiro número do seu Boletim, no verão de 1987, uma entrevista de Gil Mendo a Madalena Perdigão. Foi enquanto fundadora e diretora do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian (1958-1974) que Perdigão criou as condições para acolher uma companhia que viria a ser o Ballet Gulbenkian e, posteriormente, foi responsável pelo Serviço ACARTE (1984-1989), preponderante na mostra de novas expressões de dança, e instigador de um novo pensamento sobre a dança. 

          Gil Mendo – Desde a criação do ACARTE, temos tido a possibilidade de assistir a espectáculos de dança no Centro de Arte Moderna. Gostaria que a Dra. Madalena Perdigão começasse por nos dizer alguma coisa sobre as actividades do ACARTE no campo da dança.

          Madalena Perdigão – A acção do ACARTE no domínio da dança tem sido sobretudo voltada para a apresentação, na Sala Polivalente, de grupos caracterizados por serem, digamos, de vanguarda, nomeadamente por se dedicarem ao experimentalismo em dança. lsto foi decidido atendendo a que a acção da Fundação Gul­benkian no domínio da dança através do Serviço de Música tinha características diferentes, visto ser mais orientada para a apresentação do seu próprio Ballet Gulbenkian e, mais esporadicamente, de companhias de dança moderna norte-americanas.

          Portanto, pensou-se que havia um espaço a preencher com es­ses pequenos grupos que são uma espécie de núcleos de criação artística com um grande vigor e com grandes potenciali­dades, que não se encontram na maior parte das grandes com­panhias de dança. E pensámos muito na dança europeia que, no nosso entender, actualmente se está a sobrepor à dança americana. Tem-se a impressão de que a dança americana se esgotou um pouco e agora a dança europeia é que está a pegar no facho e a renovar-se. Como disse, tivemos muito em mente a dança europeia, embora sem pôr de parte, bem entendido, a dança norte-americana. Começámos até pela Molissa Fenley, se bem se lembra. Mas, em todo o caso, pensámos mais na dança europeia, na dança de vanguarda e no experimentalismo.

          Como disse, para preencher um lugar que, em certa medida, estava vago no que respeita à acção da Fundação Gulbenkian no domínio da dança através do Serviço de Música.

          Mas não pensámos só nisso; pensámos também em animar o an­fiteatro de ar livre, que está adstrito ao Serviço ACARTE, e para isso começámos por convidar as maiores e melhores companhias de dança portuguesas, o que representa também uma diversificação do apoio da Fundação Gulbenkian ao bailado em Portugal.

          Portanto: diversificar o apoio, em vez de ser só restrito ao Ballet Gulbenkian, diversificar apoiando também, de uma maneira indirecta, apresentando espectáculos, a Companhia Nacional de Bailado do Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia de Dança de Lisboa, que eram as melhores e as maiores companhias existentes. Para aquele anfiteatro não parece adequado convidar pequenos grupos, porque tem grandes dimensões. E ainda há uma terceira vertente, que foi só apontada mas que eu espero desenvolver, que é a verten­te da dança não europeia. Pensámos nela ao escolher, por exemplo, Elsa Wolliaston, que é uma bailarina com raízes africanas, e adoptámos esse critério porque uma das tendências, uma das vocações do ACARTE, é não se circunscrever à cultura europeia, abrir-se para outros continentes, como, aliás, é vocação do próprio país, de Portugal. Portanto, nessa medida, achamos que devemos estar abertos para culturas de outros continentes. Então apontámos, com a Elsa Wolliaston, esse caminho, que esperamos continuar.

          G.M. – Eu tenho-me apercebido, no contacto quer com estudantes de dança quer com profissionais de bailado, sobretudo os bailarinos mais jovens, do grande entusiasmo que lhes tem despertado os espectáculos de dança a que assistem aqui no ACARTE, e penso que sobretudo por duas razões: a descoberta do experimentalismo, da dança de vanguarda, e o contacto com grupos de dança europeus, nomeadamente de países que são, como Portugal, pouco populosos, embora mais desenvolvidos do que nós culturalmente, como a Holanda, a Bélgica.

          Até agora o ACARTE não recebeu qualquer proposta de experimentalistas portugueses? Eu pergunto isto porque, embora assistamos por vezes a espectáculos de dança caracterizadamente experimental, em Lisboa, são muito poucos e muito espaçados, e surpreende-me que estes jovens, sobretudo os que já estão profissionalizados, que se interessam pelo experimentalismo, não tentem, à semelhança do que fazem outros jovens bailarinos europeus, desenvolver as suas experiências e apresentar o seu trabalho.

          M.P. – Estou informada de que essa actividade vai recomeçar. O Serviço de Música reiniciou o Estúdio Coreográfico no mês de Agosto último, portanto aí haverá um espaço e um tempo para que os jovens coreógrafos apresentem as suas tentativas de experimentalismo em dança.

          Junto do ACARTE houve duas aproximações, uma de Santarém, do grupo dirigido pela Prof.ª Fátima Sampaio, e outra do Dança Grupo, dirigido pela Prof.ª Elisa Worm. Foi uma primeira aproximação para ver em que medida é que poderiam colaborar com o ACARTE.

          Quando dirigia o Serviço de Música, tive a ideia de organi­zar Estúdios Coreográficos para permitir a revelação de no­vos valores no domínio da coreografia e os Estúdios tinham lugar todos os anos.

          Houve também um pedido de um grupo que agora se apresenta como Projecto APARTE. Achei muita graça porque deu-me a impressão de ser um pouco paródia ao ACARTE. Este grupo, Lisboa-Nova lorque-Lisboa, também queria colaborar connosco, mas não o pudemos atender por causa da nossa programação. Exigiam uma permanência muito longa, portanto não se podia realizar aqui na Sala Polivalente. Vai ter lugar no Teatro de São Carlos e no Teatro D. Maria II, portanto será de facto um projecto à parte.

          Mas estamos abertos ao experimentalismo português na Sala Polivalente, como disse há pouco. Quanto ao anfiteatro de ar livre, eu creio que foi a Sra. D. Manuela de Azevedo que lançou a ideia no Diário de Notícias de que se poderia abrir o anfiteatro de ar livre a grupos de jovens bailarinos portugueses. Penso que seria um pouco arriscado, porque o anfiteatro de ar livre tem umas dimensões muito grandes, mesmo a Companhia de Dança de Lisboa já tem dificuldade em se adaptar àquele espaço. Mas na Sala Polivalente admito perfeitamente que venham a apresentar-se jovens grupos de dança portugueses devidamente enquadrados.

          G.M. – Eu penso que um dos problemas dos grupos portugueses que querem dedicar-se ao experimentalismo é o espaço onde fazerem as suas experiências antes propriamente de as apresentarem, e provavelmente esse é um dos óbices.

          A Dra. Madalena Perdigão, na sua actividade em prol da dança, tem sempre revelado um grande interesse pela inovação, e portanto pela experimentação, e também um grande interesse pela pedagogia, e eu, nessa base, porque verifico – e verifico-o com grande satisfação – que uma vez mais a Dra. Madalena Perdigão está na dianteira do que é necessário fazer, no ACARTE está a dar importância à divulgação da experimentação no campo da dança – eu penso que o ACARTE está a fazer um trabalho muito importante em prol dessa ideia de desenvolvimento, de experimentação e de inovação -, nessa base gostava que me dissesse o que pensa que outras insti­tuições, nomeadamente a Escola Superior de Dança, poderiam fazer também em prol desse desenvolvimento da criatividade sem o qual a arte não evolui.

          Quer dar-nos uma opinião, que pode ser inclusivamente uma crítica?

          M.P. – Eu penso que poderiam, por exemplo, organizar workshops e seminários, convidando para o efeito alguns artistas de passagem, ou vindos propositadamente, eventualmente em colaboração com as embaixadas, se se tratasse de professores e coreógrafos estrangeiros. Parece-me que seria muito importante abrirem esse caminho para os vossos alunos, organizarem seminários e workshops de nova dança.

          G.M. – O ACARTE como procede para a selecção e escolha dos grupos que traz a Lisboa?

          M.P. – Eu procedo aqui no ACARTE como procedia no Serviço de Música, muito à base de documentação. As companhias enviam vídeos, críticas de espectáculos já realizados.

          Há também o contacto pessoal com correspondentes estrangeiros, com organizadores de festivais, que nos dizem “tal ou tal agrupamento é merecedor de apoio”, “tal ou tal agrupamento tem mérito”, e, portanto, isso tudo ajuda a seleccionar.

          Há também certas formas de colaboração que se estabelecem automaticamente, por exemplo com a organização Dance Umbrella, em Londres, que organiza todos os anos um festival em que se apresentam companhias da América e da Europa. Nós estamos em contacto com eles e seleccionámos, por exemplo, três das companhias que vão apresentar-se em Londres em Outubro, e que virão apresentar-se aqui, em Lisboa, em Novembro.

          E já agora que falamos de pedagogia – e, de facto, confirmo que estou sempre muito aberta à importância da pedagogia e da parte formativa do bailarino -, eu queria dizer­-lhe que pedimos sempre, e muitas vezes somos atendidos, que as companhias ou os bailarinos realizem seminários dedicados a bailarinos portugueses. Temos organizado vários e vamos continuar a fazê-lo, em Novembro também. Sempre que as companhias o aceitam, nós organizamos workshops destinados aos bailarinos portugueses. Admito perfeitamente que seja possível estabelecer uma colaboração com a Escola Superior de Dança nesse aspecto.

          G.M. – Esperamos que sim! Já agora, em termos de frequência desses workshops, eles são mais frequentados por profissionais de bailado ou por estudantes de dança?

          M.P. – Mais por profissionais. Menos por estudantes, talvez porque a informação não lhes chegue.

          Gil Mendo Os sinais de mudança

          Neste texto que escreve para o Expresso no início de 1989, Gil Mendo dá conta do desenvolvimento da Nova Dança europeia, que em Portugal se dá a conhecer através da vanguardista e inovadora programação do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, dirigido por Madalena Perdigão. Regista ainda os desenvolvimentos paralelos da dança contemporânea em Portugal, alertando para a necessidade de acompanhar e apoiar os seus protagonistas e de lhes proporcionar o espaço que lhes permita crescer.

          No decurso da década de oitenta, tem vindo a afirmar-se um movimento inovador na dança europeia. Convencionou-se chamar-lhe Nova Dança Europeia e, ainda que que todos os rótulos sejam redutores e perecíveis, o termo “novo” não é, aqui, descabido.

          Foi a mudança de mentalidades ocorrida na Europa ao longo desta época que permitiu a inovação. Tal como a Dança Independente dos anos setenta esteve ligada aos movimentos da democratização e descentralização cultural, a Nova Dança dos anos oitenta pode ser entendida à luz da autonomia individual e do espírito antidogmático desta década.

          Se a Dança Independente dos anos setenta fomentou a renovação na dança europeia, abrindo-a à influência da dança norte-americana, formando novas companhias, fornecendo novos coreógrafos às companhias instituídas, divulgando novos estilos e introduzindo na Europa a ideia do experimentalismo, ela foi sempre, no entanto, marginalizada como movimento, enredada numa ideia rígida do que é e do que não é dança. O entusiamo militante dos bailarinos que queiram participar mais activamente nas decisões artísticas, viver o seu quotidiano com a vitalidade e criatividade dos seus colegas do outro lado do Atlântico, sem o peso de hierarquias rígidas, foi muitas vezes empurrado para uma itinerância de estradas secundárias e usado pelas instituições como um subproduto, mais barato e de maior mobilidade, útil, para fazer alguma dinamização cultural, que é como quem diz abrir as estradas por onde mais tarde pudesse circular a outra dança, mais rica e considerada mais nobre.

          Foi só na década de oitenta que, no seio deste movimento, conseguiu afirmar-se uma verdadeira diferença em relação à companhia convencional, e que o bailarino-coreógrafo, que já não quer ser apenas executante exímio mas, antes de mais, criador, se tornou o protagonista de um movimento inovador.

          Tornou-se, assim, claro, para um número crescente de espectadores, que existe uma forma de dança que não é um produto marginal mas outra forma, que esta dança não é o recurso daqueles que não tiveram lugar nas companhias convencionais, é uma escolha diferente e foi escolhida por essa diferença, que esta dança não exige menos dos que a criam do que qualquer outra, que não é a versão pobrezinha de qualquer outra. É outra dança — mais do que renovar inova —, não veio substituir o que existia, veio acrescentar algo de novo.

          É a existência deste espectador novo que permite, na década de oitenta, a afirmação da Nova Dança Europeia. Esta Nova Dança tem hoje o seu próprio circuito, que partilha com o Novo Teatro. Pela Europa vão surgindo os festivais que criam espaços para a receber, os produtores e os promotores que lhe garantem viabilidade, os críticos e ensaístas que a decifram. É europeia embora não recuse as influências da dança pós-moderna norte-americana, é inovadora sem deixar de transportar consigo uma enorme carga de memória. A Nova Dança Europeia é uma dança culta.

          Em Lisboa existe hoje este espectador que claramente escolhe a Nova Dança e o Novo Teatro. Para além dos progressos universais nos processos de mediatização e no acesso à informação, que subverteram os conceitos de centro e periferia, e de que Portugal é beneficiário, Lisboa tem tido regularmente, desde há alguns anos, através das mostras organizadas pelo ACARTE, um conhecimento directo desta nova forma de espectáculo. Tem ainda, desde há dois anos, nos Encontros ACARTE, um Festival Internacional integrado no circuito europeu de Nova Dança e Novo Teatro.

          Era de esperar, pela ordem natural das coisas, que o ACARTE promovesse o encontro entre o espectador que formou e o criador que motivou, e é de saudar a iniciativa de, nesta temporada, incluir criadores portugueses nos seus ciclos — Olga Roriz no Ciclo Solos — e organizar uma Mostra de Dança Contemporânea — Rui Horta e Amigos, Aparte e Dança Grupo.

          Há sinais de mudança na forma como a dança portuguesa é olhada pelos operadores culturais: onde antes se olhava para o bailarino português sobretudo como intérprete e executante, procura-se hoje o criador. Surgem Concursos e Mostras Coreográficas. Ao mesmo tempo que decorria, no Centro de Arte Moderna, a Mostra de Dança Portuguesa Contemporânea promovida pelo ACARTE, a Companhia de Dança de Lisboa apresentava no S. Luiz um programa totalmente preenchido com obras de jovens coreógrafos, dos quais três portugueses — Rui Miguel Nunes, Vera Mantero, Paulo Ribeiro.

          São sinais positivos, sem dúvida. Convém, contudo, que se reflicta sobre alguns pontos, para que uma Nova Dança Portuguesa não venha a ser vítima dos mesmos equívocos que sufocaram a Dança Independente Portuguesa dos anos setenta.

          Hoje podemos acompanhar o crescimento da Nova Dança Europeia, e isso entusiasma-nos. Mas por trás desse crescimento o que está? Já não é possível acreditar que a dança portuguesa crescerá apenas à custa da formação de executantes cada vez mais exímios. Hoje é preciso formar produtores e promotores, é preciso organizar circuitos, é preciso pensar na mediatização, é preciso conseguir financiamentos e garantir formas de circulação que os viabilizem. É preciso contar com um bailarino novo que não aceita vocabulários nem estilos impostos de fora, ao seu corpo. É preciso contar com as suas escolhas e dar-lhe o espaço para crescer, pôr-lhe ao dispor instrumentos de aprendizagem, de experimentação, de reflexão.

          Estas questões, que são elas próprias tema de reflexão em Seminários e Encontros Internacionais organizados regularmente no âmbito do circuito europeu de Nova Dança — e cujo debate o ACARTE tem aliás também, louvavelmente, promovido — são essenciais para o crescimento da Nova Dança Portuguesa. São, aliás, no campo da dança, as mesmas questões que, num âmbito mais largo, se põem a toda a actividade cultural de uma Europa que já não é tanto a Europa das capitais quanto a Europa da circulação e da autonomia, onde, quer-me parecer, se integra este novo bailarino e este novo espectador. Por isso nos dizem respeito a todos.

          Expresso, de 28 de Janeiro de 1989

          Gil Mendo Jovens coreógrafos

          Paralelamente à sua atividade como professor de coreologia, Gil Mendo faz crítica de dança no jornal Expresso na década de 1980. Ainda que os seus textos apareçam esporadicamente, registam eventos que se destacam na dança em Portugal nesse período, como é o caso do espetáculo Zoo&Lógica (1984), aqui descrito, e posteriormente muito referenciado na historiografia da dança em Portugal.

          Quando a Sagração da Primavera, de Stravinsky e Nijinsky, foi apresentada pela primeira vez no Teatro dos Campos Elísios, em 1913, o público sentiu-se agredido pela quebra das convenções a que estava habituado e reagiu com escândalo e indignação. Pelo contrário, os espectadores que assistiram agora no Teatro Municipal de S. Luiz a uma nova versão da Sagração, com coreografia de Carlos Trincheiras, pareceram-me sinceramente entusiasmados.

          Entusiasmo que não senti, certamente em parte por a minha forma de entender um ritual de sagração da vida ser diferente da de Carlos Trincheiras. O apreciador de uma arte não tem, evidentemente, que aderir emocionalmente a uma obra para se interessar por ela, nem deve recusar liminarmente o ponto de vista ou a forma de expressão de um criador, como terá acontecido com aquele público em 1913, sob pena de se condenar a ser quase sempre um espectador frustrado. Mas mesmo tentando entrar na leitura que Carlos Trincheiras faz da Sagração da Primavera, penso que ele atribuiu uma importância excessiva à figura do Sábio, com isso prejudicando o ritmo da obra, que fica também prejudicado com o recurso a paragens de movimento para reforçar o simbolismo de certas imagens. Por outro lado, o primitivismo é representado de uma forma muito linear e por isso pouco interessante visualmente, e não me parece bem conseguida a sua ligação com os movimentos mais próprios do homem contemporâneo, o agitar dos punhos, a corrida falsa, que Carlos Trincheiras também usa.

          Neste programa, a Companhia Nacional de Bailado voltou a apresentar Serenade, de George Balanchine, que tem no reportório há pouco mais de um ano. Parece-me positivo que esta Companhia, que tem por projecto a divulgação das principais obras do património universal da dança, não se fique pelos bailados românticos e organize o seu reportório de forma a proporcionar o conhecimento das criações mais significativas da evolução estética desta arte. A decisão, agora anunciada, de apresentar brevemente o Concerto Barroco, uma obra mais recente de Balanchine, e a Mesa Verde, de Kurt Jooss, é, assim, de aplaudir. 

          Gulbenkian: usar o spaço cénico

          Dos dois dos programas já apresentados pelo Ballet Gulbenkian nesta temporada, parece ressaltar um aspecto digno de atenção: a tentativa de utilizar o espaço cénico com um dinamismo e teatralidade que ultrapasse as limitações da cena tradicional, recorrendo a uma intervenção mais activa da cenografia.

          É um sinal positivo. A dança afirmou-se já suficientemente como expressão artística autónoma para poder reaproximar-se das outras artes e participar com elas numa concepção mais global do espectáculo, e uma companhia de dança contemporânea que alcançou o nível artístico que o Ballet Gulbenkian tem neste momento pode lançar-se em novas e arrojadas aventuras.

          Mas a simultaneidade de elementos cénicos diversos requer um cuidado especial de encenação para que eles se não anulem uns aos outros, antes se valorizem mutuamente. Ora, é precisamente a ausência de encenação que tem sido o ponto fraco das últimas criações apresentadas pelo Ballet Gulbenkian.

          Senti-o em relação à obra mais recente de Vasco Wellenkamp, Estranhos Transeuntes, apresentada no primeiro programa da temporada, em que à atmosfera a um tempo gélida e majestática criada pelos cenários e figurinos de Ana Silva e Sousa o coreógrafo sobrepôs um elemento de luminosidade quente e faiscante, como ondas sucessivas de energia vertiginosa, criando momentos de grande beleza — os momentos, por exemplo, em que há uma relação visual directa entre a energia concentrada em Ger Thomas e a exploração de movimento polarizada em Edmund Stripe, e em que as duas dimensões presentes em cena parecem emanação uma da outra — mas deixando os transeuntes desaparecerem excessivamente no turbilhão do movimento.

          Senti-o igualmente em relação ao Livro dos Seres Imaginários, o trabalho de Olga Roriz em colaboração com o cenógrafo Nuno Côrte-Real, apresentado em estreia absoluta neste segundo programa da temporada do Ballet Gulbenkian. Também a coreografia de Olga Roriz tem momentos de grande beleza, e é muito interessante e estimulante a forma como traduz em movimento os seres descritos por Jorge Luis Borges. Tocaram-me sobretudo o Pássaro da Chuva e o A Bao a Qu. Mas, por um lado, parece-me que o cenário tem um peso excessivo para a utilização que lhe é dada — não tanto a rampa, mas aquela asa desmesurada no fundo de cena — e, por outro, julgo que a coreografia segue uma narrativa demasiado parecida com a de um livro: passamos de um ser a outro como se voltássemos a página para um novo capítulo, o que em termos cénicos se torna monótono. Encenado de outra forma, este interessante trabalho de Olga Roriz teria decerto ficado valorizado.

          Também de Olga Roriz se estreou agora na temporada oficial da Companhia um trabalho apresentado pela primeira vez no último Estúdio Coreográfico, e que logo aí alcançou merecido êxito: Lágrima, sobre música de Nina Hagen.

          É um trabalho carregado de violência, muito bem conseguido em termos cénicos, e muito bem interpretado por Elisa Ferreira. É interessante observar como aqui Olga Roriz transforma o espaço cénico servindo-se apenas das luzes.

          Este programa do Ballet Gulbenkian (I) é totalmente dedicado a Olga Roriz e Vasco Wellenkamp, e é uma óptima oportunidade para revermos alguma das suas obras anteriores: Encontros de Olga Roriz, Percursos e Outono de Vasco Wellenkamp. É também uma óptima oportunidade para recordar que estes dois coreógrafos foram revelados pelos Estúdios Coreográficos do Ballet Gulbenkian, e referir a importância da existência de oportunidades para que se manifeste a criatividade e o espírito inovador dos bailarinos portugueses.

          No seu terceiro programa o Ballet Gulbenkian irá apresentar em estreia absoluta um trabalho de Vasco Wellenkamp, Ricardo Pais, Constança Capdeville e António Lagarto. Será uma obra com quatro criadores: um coreógrafo, um encenador, uma compositora e um cenógrafo. Poderá ser a primeira das novas aventuras que atrás mencionei. Será de certeza um espectáculo a não perder.

          Cómicos: “Zoo&Lógica”

          Reabriu ao público, no início de Fevereiro, a sala dos Cómicos, no rés-do-chão do Teatro do Bairro Alto.

          Aproveitando muito bem o espaço da pequena sala, Nuno Carinhas realizou ali uma instalação de grande beleza plástica, que foi sucessivamente habitada pelas pesquisas coreográficas de Gagik Ismailian, Ana Rita Palmeirim e Paula Massano, com música de Carlos Zíngaro e Constança Capdeville e textos de Clarice Lispector e António S. Ribeiro.

          Habitada também pelos espectadores, que neste caso estão dentro do próprio espaço cénico, sentados a toda a volta da sala, tão perto dos intérpretes como estes uns dos outros.

          O espaço, o volume, o pormenor do gesto e da expressão (que também é gesto), são aqui peças de idêntico valor no puzzle que é a visão de cada espectador, ao contrário do espectáculo convencional em que a distância em relação ao palco pode induzir na ilusão de que o movimento é desenhado numa superfície bidimensional. O espectador tem, aliás, que escolher para onde olha e, desta forma, escolhe as peças do seu próprio puzzle.

          Há neste espectáculo — Zoo&Lógica — uma progressão muito interessante:

          Gagik Ismailian fez uma colagem, cheia de humor e imprevisto, de gestos e movimentos retirados em parte dos jogos e expressões infantis, em parte dos filmes de terror, em parte das situações grotescas do quotidiano, com a característica de serem gestos de afirmação mais do que diálogo: a ameaça, o medo, a teimosia, o esgar, o entretenimento. A voz também tem essa característica: os gritinhos de prazer ou de susto, os beijos que se atiram, a frase “não tenho fome” teimosamente repetida.

          No trabalho de Ana Rita Palmeirim há uma relação com “o outro”, com o som e com os objectos isenta de emocionalidade, de efeito muito belo: o solo de Margarida Bettencourt, com os movimentos presos por um fio imaginário, o seu dueto com Gagik Ismailian e o trio com Filipa Mayer são lindíssimos. Aqui o gesto e o som ilustram-se mutuamente, a música é graficamente desenhada na tela transparente, e há um divertido coro de vozes sobrepostas que traz escrito nos vestidos um texto só parcialmente legível.

          Paula Massano usa um texto inteligível, que vai sendo dialogado pelos intérpretes e depois dito em voz-off pelo narrador, e cria uma atmosfera de idílio, sedução e sensualidade, tanto entre os intérpretes como na sua relação com o espaço e os objectos. É muito belo o jogo entre Ana Rita Palmeirim e Gagik Ismailian com as bolas coloridas, e muito interessante a utilização que é feita da cadeira e do aquário. Há algo de lânguido nos gestos, no repouso, na troca de olhares entre os intérpretes, que transmite uma sensação de bem-estar, de fruição do corpo, do espaço e do habitat, de grande efeito estético.

          Muito bem produzido este espectáculo de tocante simplicidade, que é um encontro de várias artes carregado de gentileza.

          Não são muitas, infelizmente, as oportunidades dadas aos jovens coreógrafos. Oxalá este novo espaço inter-média continue a acolhê-los.

          Hábito ou progresso

          Se hoje nos parece risível a reacção que o público teve à primeira audição da Sagração da Primavera será porque, entretanto, nos habituámos a sons tão mais estridentes que estes nos parecem banais? De forma alguma. O que acontece é que hoje ouvimos melhor, compreendemos melhor os sons que ouvimos, e somos capazes de sentir pulsar em nós próprios o eco da música de Stravinsky. Devemos esse progresso aos músicos, como devemos aos pintores e escultores, aos coreógrafos e homens do teatro, aos cineastas, o vermos mais e melhor e termos mais facilidade em articular e entender o que vemos.

          É esse contributo da criação artística para o apuramento dos sentidos e do raciocínio, e não a sua anestesia, que justifica o investimento na arte.

          Investimento que deve traduzir-se no apoio à criatividade, ao progresso, ao desenvolvimento, por um lado, e na extensão a toda a comunidade dos benefícios do progresso artístico, por outro. O primeiro aspecto tem que ver com o fomento da actividade artística. O segundo com a educação e o entendimento necessário entre os artistas e os pedagogos.

          Expresso, 3 de Março de 1984

          Gil Mendo Texto introdutório ao programa de Análise e Notação de Movimento

          A 29 de julho de 1988, têm lugar as apresentações dos/as estudantes do 1.º ano do Projeto Interdisciplinar da Escola Superior de Dança (realizado no âmbito da disciplina de Metodologias e Pedagogias da Dança Educacional, coordenada por Madalena Victorino, em colaboração com as disciplinas de Estética e História das Artes, coordenada por António Pinto Ribeiro, e de Análise e Notação de Movimento, lecionada por Gil Mendo). Neste texto introdutório ao programa, Gil Mendo sublinha a importância da desconstrução e da experimentação nos processos criativos, recordando jogos e brincadeiras com os seus irmãos mais velhos na casa onde viviam em Lisboa, na Infante Santo, e também nas margens do Tejo. Neste retorno à sua infância, Gil Mendo articula tais memórias num jeito discursivo muito seu, que era também o seu predileto: o de contador de estórias.

          Uma vez deram-me um presente que me seduziu muito.

          Consistia ele num barquito e um farol colocados sobre uma base que tinha um mar pintado. O barquito movia-se sobre este mar de fantasia e, quando se aproximava do farol, este acendia e apagava uma luzinha vermelha.

          Era uma coisa para brincar só com os olhos. Dava-se-lhe corda e ficava-se a ver…

          Mas fascinou-me, por quaisquer fantasias que despertou em mim…

          Só o tive um dia. Um irmão meu resolveu desmontá-lo, para descobrir o que o fazia funcionar. Depois não o remontou. Mas aproveitou-lhe as peças para outras coisas.

          Este meu irmão tinha uma paixão pelos mecanismos. Acabei por compreender que, na realidade, quando os desmontava, não tinha intenção de voltar a montá-los, mas de compreender como funcionavam e, depois, usá-los, ou parte deles, para outras coisas, quase sempre muito diferentes.

          Lembro-me dos barcos de madeira que construía: com leme, quilha, velas que se içavam e arriavam, cabine, cada um mais elaborado do que o anterior… todos feitos com minúsculas peças e mecanismos de outras coisas: anilhas, rodas dentadas, cordas de relógio…

          No equinócio, quando as marés vivas deixavam lagos na praia que havia em frente da nossa casa, atravessávamos a correr a linha do comboio, levando nas mãos estes barquinhos de velas enfunadas, e íamos pô-los a navegar naqueles efémeros e tranquilos oceanos…

          Acontece-me muitas vezes, quando numa aula me ocupo, com os meus companheiros de trabalho, a desmontar e a analisar um movimento — uma tarefa árida que procuramos desempenhar com humor e fantasia… —, recordar, interiormente, estas histórias (ou melhor, recriar histórias com as peças — uma onda a galgar a praia, um tufo de azedas a irromper entre paralelepípedos, um silvo de comboio, um joelho esfolado a aparecer sob a fralda desbotada de uma camisa… — que vou destacando, e retendo, de um mecanismo demasiado complexo, ou demasiado simples, para que domine a sua elaboração).

          E, da mesma forma, quando assisto a uma dança que realmente me seduza, sinto como se no meu olhar houvesse dedos que se esgueiram no clarão do fascínio e tentam desmontar um mecanismo, não para copiá-lo ou reproduzi-lo, mas para senti-lo e entendê-lo e, quem sabe?, agarrar alguma peça que me permita aperfeiçoar o sistema que vou desenvolvendo para me relacionar com o mundo. 

          Joclécio Azevedo Maria José Fazenda João dos Santos Martins Pedro Pinto Editorial Para o Gil

          Gil Mendo (1946-2022) foi professor e agente ativo no terreno formativo, artístico e cultural português, tendo dado um assinalável contributo para o desenvolvimento da dança contemporânea em Portugal. A sua ação foi pautada por um interesse pelo bem comum, pela defesa da democratização da arte e da livre expressão da individualidade, pelo respeito pela pluralidade de ideias e estéticas. Foi um acérrimo defensor da necessidade de acompanhar e apoiar o trabalho das gerações mais jovens, no qual reconhecia força inventiva e vislumbrava um futuro promissor. A sua presença revelava uma postura de compromisso e de entrega, que não se restringia apenas aos papéis que assumiu institucionalmente, mas que se pautava sobretudo pela sua excecional capacidade de fomentar ligações e cumplicidades – em suma, por um imenso desejo de comunidade.

          Estuda dança no Centro de Estudos de Bailado do Instituto de Alta Cultura, no Teatro Nacional de São Carlos, entre 1969 e 1972, sob a direção de Anna Ivanova e David Boswell. O interesse pela coreologia leva-o a Londres, ao Benesh Institute of Choreology, onde se formou, em 1975. De regresso a Lisboa, é essa a matéria que ensina, primeiro na Escola de Dança do Conservatório Nacional, entre 1976 e 1986, e, depois, na Escola Superior de Dança do Instituto Politécnico de Lisboa, entre 1986 e 2014, escola cuja comissão instaladora integrara desde o início. Em 1990, também em Lisboa, é membro fundador do Forum Dança, integrando a sua direção, uma associação cuja missão coincide com a transmissão dos ideais da Nova Dança Portuguesa.

          Intervém na programação de dança na qualidade de consultor do Comissariado da Europália 91 – Portugal, momento este que servirá de trampolim para uma nova geração de coreógrafos, no quadro da integração de Portugal na CEE. É membro do Comité Executivo do IETM – Informal European Theatre Meeting, de 1991 a 1993. Paralelamente, participa como intérprete em espetáculos de Madalena Victorino. Entre 1993 e 1995, assume funções como consultor para a dança no Centro Cultural de Belém. 

          Integra a comissão instaladora do Instituto Português das Artes do Espetáculo do Ministério da Cultura, entre 1995 e 1998, e assume a função de coordenador do Departamento de Dança deste instituto, de 1998 a 2001. Mantém-se ativo em redes internacionais de artes do espetáculo, como o Roberto Cimetta Fund, de que é cofundador, em 1999. Em 2004,  torna-se assessor da administração da Culturgest, em Lisboa, na área da programação de dança, posição que mantém até 2017.

          O seu trabalho de dinamização artística — em particular no âmbito da organização do festival Europália em 1991 — foi distinguido nesse mesmo ano com a atribuição pelo Presidente da República do grau de Oficial da Ordem de Mérito. A sua relevante ação em várias áreas — no ensino, na política cultural, na programação de espetáculos — foi reconhecida, ao longo de todo o seu percurso, por alunos, artistas e colegas. Sobre todas elas pensou, agiu — e também escreveu. 

          O seu pensamento e as suas interrogações ficaram impressas em documentos de natureza diversa — ensaios, críticas, entrevistas concedidas a jornalistas e investigadores, e outras conduzidas por si, como as que fez à coreógrafa Pina Bausch e a Madalena Perdigão, diretora do antigo Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian. Entendemos que a pertinência, no passado, e a relevância, na atualidade, das palavras de Gil Mendo justificam a reedição de alguns desses documentos e a publicação de outros inéditos, precisamente quando se assinala um ano sobre a sua morte e a comunidade da dança se reúne para celebrar o seu legado. 

          De entre os documentos recolhidos, transcrevemos essencialmente os textos e entrevistas menos acessíveis, que não se encontram em circulação; ou que foram escritos, lidos, mas não publicados. Dividimo-los em duas partes: Reflexões e Retrospetivas. 

          Na primeira parte, agrupam-se documentos em que Gil Mendo, à época em que os escreve, sublinha a necessidade imperiosa de apoiar jovens criadores/as; explica as razões da sua demissão da comissão instaladora da Escola Superior de Dança, na sequência de uma crise interna vivida na instituição; questiona ou reconsidera os lugares dos/as intérpretes e outros intervenientes nos processos criativos; salienta a importância da experimentação de novos modos de composição e da desconstrução de linguagens artísticas; ou reflete sobre o estado da arte, da Nova Dança, da programação e da política cultural.

          Na segunda parte, reúnem-se escritos em que Gil Mendo relata retrospetivamente acontecimentos, como a expulsão pela PIDE do coreógrafo Maurice Béjart aquando da apresentação da sua companhia em Portugal; discorre sobre a importância da coreologia enquanto exercício de compreensão formal e conceptual do corpo em movimento; analisa o desenvolvimento e a preponderância de estruturas de criação, experimentação e programação, como a RE.Al ou a EIRA; pensa o modo como a dança contemporânea se foi transformando, e as suas fronteiras disciplinares transgredidas e diluídas, ao longo de várias décadas em Portugal.

          Em todos os textos é salientado o valor social da arte, perpassando em todos eles o elogio da democraticidade, da diversidade, da individualidade, da mobilidade, da acessibilidade e da solidariedade entre pares. São valores que também nós queremos manter presentes, e desejamos que sejam projetados para o futuro.

          A capa desta edição especial do Coreia é da autoria do artista plástico João Penalva, amigo íntimo e de longa data de Gil Mendo (e seu colega de formação em dança clássica no Teatro Nacional de São Carlos, antes de ambos partirem para Londres no princípio da década de 1970), e regista a expressão tão distinguível que para sempre nos recordará Gil Mendo: o seu maravilhoso sorriso.

          João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda e Pedro Pinto

      • 8

          João dos Santos Martins Clara Amaral Editorial

          Na última página da edição anterior do Coreia o futuro era deixado em aberto. A primeira página deste Coreia mantém o futuro em construção sabendo, à partida, que haverá mais quatro edições e que assim se inicia uma nova série. Esta é uma edição especial que se desdobra em duas. Por um lado, o Coreia prossegue a sua linha editorial com um novo design de Isabel Lucena, e introduz uma coeditora, Clara Amaral. Por outro lado, publicamos um caderno exclusivamente dedicado a Gil Mendo, figura ímpar no panorama da dança contemporânea em Portugal que nos deixou em 2022. O suplemento, publicado no contexto da “Maratona para o Gil” a realizar na Culturgest em março de 2023, é editado lado a lado com Maria José Fazenda, Joclécio Azevedo e Pedro Pinto, com design de Nuno Beijinho.

          Num dos seus editoriais para a Revista do Forum Dança, em 1992, Gil Mendo refletia sobre o papel das artes performativas na “manutenção (ou deveríamos dizer recuperação?) da comunicação e da troca nas sociedades”. Quando começámos a construir o futuro desta edição do Coreia, falámos sobre os nossos desejos, os escritos que nos movem e comovem, as pessoas com quem estamos numa proximidade distante. Assim se vivem alguns afetos. À distância. Sem que essa seja menos valiosa que a proximidade, ou como nos escreve setareh fatehi desde Teerão: “Em caso de (eu) estar presente, de qualquer forma possível,/Tudo o que estiver perto dessa presença é real.”

          E a realidade, que vertiginosa tem sido, passou um ano desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, que espoletou uma trepidante tendência bélica na Europa e virou a página Covid. Se em Portugal se luta pelos acesso justo a bens essenciais e por preços dignos na habitação, no Irão a luta das mulheres por uma emancipação política intensifica-se, no Brasil celebra-se euforicamente o fim da era do genocídio e ecocídio bolsonarista. A convivência do tempo comum na esfera da digitalização ao lado da disparidade geográfica, política e social cria uma sensação nauseabunda de ansiedade. Desde esse lugar de tormento, abrimos o jornal com uma proposta epistolar de Tiago Amate, que nos escreve “hoje com um quê de desespero”.

          Na sua conferência no Teatro do Bairro Alto, Franco Bifo Berardi discutia com a ativista ambiental Ideal Maia que a forma de ação política que lhe parece estar ativa hoje passa não pela participação, mas pela renúncia: a renúncia ao trabalho, a renúncia à produtividade, a renúncia à vida tal como ela é. A renúncia já antes expressada por Bartleby, o escrivão, é reafirmada por Rogério Nuno Costa, que escreve nesta edição que “o mundo que temos é uma valente merda. Se calhar é o pior dos possíveis. Ou um dos impossíveis”. O que fazer perante uma vida que não faz sentido e no qual as forças de mudança política clássicas parecem exauridas? “Onde foram parar nossas alternativas? Por acaso ainda existem?”, escreve Amate.

          Alternativas existem, se dúvidas houvesse, dissiparam-se no momento em que Leyla Brasil ocupou a peça Tudo sobre a Minha Mãe de Daniel Gorjão, no Teatro Municipal São Luiz com um protesto para dizer que as pessoas trans continuam a trabalhar precariamente nas ruas por não terem lugar noutras esferas da sociedade. As instituições culturais tentam abrir-se para não serem canceladas, mas a tentativa muitas vezes não está enraizada em mudanças estruturais que realmente baguncem as lógicas e práticas hegemónicas do pensamento.

           

          A disputa dos corpos, da representatividade em oposição à inclusão, da oportunidade em oposição à tendência, está na ordem do dia. Cada vez mais é inevitável pensar políticas de representatividade, por se observarem na sociedade discriminações obtusas, que frequentemente têm as suas raízes profundas na linguagem. 

          O artista Joseph Grigely comentava isso mesmo a propósito de uma notícia do New York Times de junho de 2021: “Revistas de Medicina cegas relativamente ao racismo como crise de saúde, dizem os críticos.” Na sua página de Instagram, Grigely criticava o “uso da cegueira como uma metáfora pejorativa”. E continuava: “Mas está claro que a intenção do uso da frase é conotar uma falta de consideração, ou pensamento racional. (…) Na verdade não sabes o que é um insulto até te aperceberes de que o corpo que tens e o corpo que te tem a ti é usado como uma metáfora descritiva de ignorância no maior jornal dos EUA.”

          Diana Niepce descreve a primeira vez em que entrou autonomamente na Culturgest por uma entrada acessível a cadeira de rodas para assistir ao espetáculo Ôss, de Marlene Monteiro Freitas com o Dançando com a Diferença, um grupo profissionalizante que reúne pessoas com e sem deficiência. A sua experiência crítica questiona espaços de agenciamento e leva-nos a perguntar qual será a diferença entre apresentação e representação na dança. 

          Pensando (e atuando) sobre acessibilidade, Ana Rita Teodoro traz-nos a transcrição de uma conferência de Valérie Castan, audiodescritora especializada na tradução e interpretação de espetáculos de dança, para pensar nas especificidades da experiência cinestésica a par da experiência visual. 

          Dando atenção à escuta, o músico João Polido debruça-se sobre questões de tradição, identidade nacional, memória e a criação de mundos via práticas culturais, a partir das experiências de som. Estelle Nabeyrat, curadora e escritora francesa, descreve a sua relação com o trabalho de som do artista visual Pedro Barateiro a partir de uma vivência coletiva num concerto de Dean Blunt onde a experiência estética se confundiu em estranheza: um apelo. Nabeyrat lembra-nos que ser espectador/a é, também, ser assombrade de relações inesperadas entre artistas. 

          O coreógrafo Davi Pontes alinha-se teoricamente com o pensamento quântico da filósofa Denise Ferreira da Silva e propõe Racial ↔ Não-local com o intuito de “bagunçar a lógica do linear”. O seu exercício de pensamento assume um “recordar ético que dispensa as forças mórbidas da melancólica coreografia moderna e propõe possibilidades na beira do abismo temporal”. Em semelhante exercício de questionamento  do tempo na coreografia, Miryam Gourfink fala, numa entrevista ao jornalista Wilson Le Personnic, sobre a sua investigação a partir do movimento ínfimo, intra, mínimo do corpo. São movimentos que não são percetíveis ao olho humano e que obrigam a uma reorganização do espaço que ocupa a visão como modo de perceção ainda dominante na dança. 

          A coreógrafa e escritora Chloe Chignell dá corpo (e mão) a Baladas em jargão VII — Um auto-retrato, parte do projeto Ballades infidèles, iniciado por François Villon, um poeta francês do século XV, e desenvolvido pelo artista Simon Asencio. Na contribuição de Chignell, habitamos o corpo de uma balada que viajou da língua francesa para o inglês e daí para o português. Pensa-se o ato de ler desde o corpo de quem normalmente é lida, neste caso, a balada, que também confidencia: “O desejo de cada poema é manter-se ao mesmo tempo dizível e desconhecido.”

          Mantendo-nos no desconhecido e nas suas possíveis aparições fantasmagóricas, Anh Vo, artista vietnamita residente em Nova Iorque, escreve a partir da sua peça BABYLIFT e como esta leva a comungar “com a multidão de anónimos morta no decorrer da guerra do Vietname”. A dança e a sua relação íntima com o desaparecimento — que terá, segundo Vo, de ser desligada da efemeridade — é o que “permite” a comunhão com fantasmas “sem ter de os tornar visíveis”.

          Publicamos pela primeira vez, em tradução portuguesa, escritos do artista norte-americano Pope.L acompanhados por uma série de imagens do seu trabalho de performance nas ruas de Nova Iorque dos anos 1970 e 1990. Trazendo o corpo em proximidade com o chão, o seu trabalho insiste na literalidade do gesto performativo, questionando estruturas hierárquicas do espaço social, racialidade e poder. No chão, mas num gesto de sensualidade somática, encontramos também a bailarina e professora Inês Zinho Pinheiro, que propõe “que sejamos chão em conjunto, ‘cher’ em conjunto”.

          Num momento em que várias estruturas artísticas ficaram literalmente sem chão por verem os seus apoios da DGArtes descontinuados numa nova roda-viva de empobrecimento, isto obriga-nos a pensar como ser chão em conjunto e a imaginar outros modos de sobrevivência. 

          Talvez regressando a “um corpo que dança”, como sugere Silvia Federici no seu artigo de 2016 que republicamos. A filósofa italiana reflete que olhar para o corpo como uma “produção social (discursiva) ocultou o facto de que o nosso corpo é um recetáculo de faculdades, capacidades e resistências”. Com esta crítica, Federici não sugere recuperar a ideia de um corpo natural, mas reivindica um corpo que ultrapassa a periferia da pele “numa continuidade mágica com os demais organismos vivos que povoam a terra: os corpos humanos e não-humanos, as árvores, os rios, o mar, as estrelas”. De acordo com Federici, devemos reapropriar o nosso corpo, não só individualmente como coletivamente. 

          Assim se termina esta edição do Coreia #8, o movimento que continuarão a ver.

          Os próximos Coreias continuam abertos a novas contribuições. Abrimos também a possibilidade de assinatura do jornal e de doações através do site coreia.pt. 

          Tiago Amate Uma carta que dança ao Sul

          Lisboa, 11 de janeiro de 2023

          Queridos amigos,1
          Escrevo hoje com um quê de desespero. Nada demais, nada que impossibilite o correr da vida segundo uma lógica de mais-valia que não nos deixa parar; lógica que expropria nossa força de trabalho, nosso tempo e, ultimamente, até nosso sono para agregar valor às mercadorias e aos abismos sociais num mundo de extensas crises humanitárias. Não me sinto angustiado à toa, mas, sem explicar ao certo, percebo que seguimos rodeados de pessoas mentalmente saturadas e adoecidas. É compreensível a exaustão em tempos de sociedade do desempenho, como anunciou há mais de dez anos Byung-Chul Han: “A sociedade do desempenho é uma sociedade de autoexploração. O sujeito do desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente”2. No entanto, insisto em perguntar para onde foram as experiências de solidariedade, de autocuidado e, sobretudo, de dissidência em contraposição aos sistemas hierárquicos impostos biopoliticamente segundo o controle da vida social no ocidente. Onde foram parar nossas alternativas? Por acaso ainda existem?
          O adoecimento generalizado que acompanha a ascensão das redes sociais no século XXI e das novas ondas de fascismo não está dissociado da perversidade ideológica do capitalismo, agora financeiro e informacional3, além de suas estratégias biopolíticas para manutenção de poder, como comprovam os desastres midiáticos (e simultaneamente políticos) do século passado: a propaganda nazista de Goebbels, a espetacularização iconográfica de invasões coloniais no continente africano e o televisionamento de guerras forjadas na Coreia e no Vietnã. Se hoje temos fake news, há toda uma perversa economia política dos meios de produção e comunicação a ser desvelada antes. Guy Debord a resume em um de seus famosos aforismos: “O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem.”4 É, sobretudo, a mais-valia uma das responsáveis pelo esgotamento humano e não-humano, quando transformaram cada âmbito da vida ocidental em espetáculo e, portanto, em mercadoria. Tenho assistido novamente a alguns filmes de Jean-Luc Godard após sua morte em 2022, sobretudo aqueles realizados pouco antes do fatídico maio de 1968, entre os quais Masculino Feminino (1966) e A gaia ciência (1967), e percebo a tentativa de sintetizar paradoxalmente os absurdos de uma vida moderna resignada com sua própria exploração, enquanto delira por revoltas fracassadas ou sucumbe a falsos atos de resistência. É, sim, desesperador viver numa modernidade do esgotamento que apenas adensou a lógica utilitária do objeto.
          Se não somos produtivos, tornamo-nos descartáveis. Qual a diferença dessa perspectiva para aquela vigente em tempos de capitalismo mercantil, quando inúmeros corpos racializados foram escravizados e transformados em objetos descartáveis das monarquias eugenistas europeias? Se durante as invasões coloniais a figura do homo sacer apresentava-se como o outro passível de ser aniquilado pelo poder soberano, isso acontecia porque os povos assassinados sequer alcançavam o estatuto europeu de humanidade: eram objetos da vontade branca, vidas desnudas fora da ordem do direito, como descreve Giorgio Agamben5. Não que essa configuração tenha mudado: a comoção seletiva da branquitude continua uma explícita denúncia da falácia humanista diante da necropolítica contemporânea. Alguns corpos valem menos que outros, talvez porque não sejam tão humanos assim. No entanto, a diferença é que mesmo essa humanidade excludente, na sociedade do desempenho, passou à condição de homines sacri. Segundo Han, a vida numa sociedade de doping deve ser mantida sadia a todo custo, mas apenas para continuar produtiva. É o oposto da vida que deve ser aniquilada: “Sua vida equipara-se à vida de um morto-vivo. São por demais vivos para poder morrer, e por demais mortos para poder viver.”6 Não se tornaram cadáveres, mas sim zumbis.

          “É um princípio epistemológico. O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo. Acham que o trabalho é a razão da existência deles. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar, experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso.”7

          Para Krenak, a insistência do homem branco na exploração do outro desenvolveu-se como experiência social de autoexploração. As políticas neoliberais de uma sociedade de desempenho mantiveram as pessoas escravizando a si mesmas no regime de mais-valia. Se não forem úteis o suficiente, não precisam mais de alguém para cobrá-las; que o façam sozinhas agora. E por isso o adoecimento generalizado: tornamo-nos insuficientes, mas segundo a óptica de quem nos explora. Fomos todos encerrados numa caixa de Pandora contemporânea, no entanto mais parecida com a forma que espécies são cultivadas em laboratório, úteis a algum experimento. Estamos enclausurados numa sociedade tecnocientífica que encontra justificativas para a manutenção de suas opressões seculares, explorando corpos à exaustão.
          Presos nesse ciclo infindável, vemos a emergência de inúmeras doenças mentais, entre elas a depressão, a ansiedade e o burnout8. Em comum, essas doenças carregam o modus operandi da insuficiência subjetiva numa modernidade que privilegia a perspectiva dos exploradores, opressores, detratores etc. Somos cotidianamente atacados e boicotados por lógicas que impedem o desenvolvimento de atos de resistência, sejam simbólicos ou materiais, ao destituí-los de sentido. A guerra híbrida que se instalou com o aperfeiçoamento do ciberespaço tem produzido disputas de narrativa a favor de signos viciados pelas ideologias do horror, da violência e do fascismo. Assim, uma obra de arte que contém nudez pode repentinamente virar uma ameaça pedófila, como ocorreu com La Bête, do coreógrafo Wagner Schwartz. Um corpo nu que manuseia e se assemelha a uma das esculturas de Lygia Clark tornou-se alvo dessas acusações quando imagens de sua performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2015, viralizaram na internet. Adultos e crianças interagiam com Wagner, disponível para mudar de posição a partir do toque do público. A nudez do coreógrafo diante de crianças, então, foi acusada de pedofilia pela extrema direita. Isso não é uma novidade, visto que as substituições de sentido são a estratégia política dos conservadores. No entanto, nada se compara à difamação criminosa e às ameaças de morte produzidas por fascistas. Wagner, então, precisou deixar o Brasil.
          São os mesmos fanáticos que, em 8 de janeiro de 2023, destruíram dezenas de obras de arte na invasão aos Palácios da democracia brasileira, reproduzindo cenas esdrúxulas do episódio no capitólio norte-americano, mas com outras pitadas de perversidade: mural de Di Cavalcanti rasgado, esculturas de Brecheret, Giorgi e Krajcberg destruídas… o que mais esses vândalos são capazes de fazer quando mesmo a arte não os impede do ímpeto de aniquilação? O desespero do zeitgeist traduz um verdadeiro abismo ao qual lançam-se pessoas e, à deriva, em queda livre, não conseguem mais responder criticamente aos comandos virtuais enviados por máquinas de guerra e por hierarquias de poder que fazem a manutenção das ameaças às subjetividades autônomas.
          Quando anuncio meu desespero, é uma forma de assumir o medo desta distopia que avança com pouquíssimas interdições em democracias liberais ao redor do mundo. Mas ainda sou otimista e penso que atos de resistência atravessarão o espaço e o tempo, como Krenak: “O que nos resta é viver as experiências, tanto a do desastre quanto a do silêncio. (…) Ou toda vez que você vê um deserto você sai correndo? Quando aparecer um deserto, o atravesse.”9 Por isso danço, danço como se atravessasse um deserto que conheço. Deserto de lagoas, cujas águas brotam da chuva.

          “Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
          sobre os automóveis de Roma.
          Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara,
          água e folha da Amazônia
          Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra
          Você não me pega, você nem chega a me ver
          Meu som te cega, careta, quem é você?”10

          Danço como ato de impermanência na resistência, como algum antídoto ao logocentrismo do antropoceno mas, sobretudo, às interdições que se multiplicam na vida social. Um pensamento que vem dançando e se recusa a ter na normalidade da economia política de expropriação ou na razão ocidental qualquer ordenação sobre si. Porém, se vejo pessoas adoecendo logo ao lado sei que também não estou imune, é um processo coletivo, e por isso precisamos urgentemente cuidar uns dos outros e também das utopias com as quais flertamos socialmente. Estamos corresponsabilizados e somos um organismo vivo, um planeta que integra um sistema solar numa galáxia perdida no espaço infinito. Mas isso não nos impede de respirar autonomamente, cada um à sua maneira e ritmo. É na diferença, portanto, que nos encontramos resistentes e vivos diante de consensos impostos. Por isso respiro e me permito parar, como numa dança que abandona o desespero por desempenho.

          1 Este texto foi originalmente escrito antes de sua leitura nas imediações do Convento de Arrábida, onde aconteceu uma das performances integrantes do projeto Cartas que dançam ao Sul. Com a intenção de serem enviadas ao Brasil, essas epístolas se transformam em videodanças, hibridizando-se numa perspectiva não linear a partir de múltiplas interações entre corpo, câmera, imagem e palavra.
          2 HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 101.
          3 A análise otimista de Manuel Castells sobre uma economia baseada no informacionalismo, publicada em 1996, encontra sua crítica no trabalho de Byung-Chul Han, quando este descreve uma era de psicopolítica digital dominada pelo neoliberalismo: “Hoje, essa euforia já se mostrou uma ilusão. A liberdade e a comunicação ilimitadas se transformaram em monitoramento e controle total. Cada vez mais as mídias sociais se assemelham a pan-ópticos digitais que observam e exploram impiedosamente o social. Mal nos livramos do pan-óptico disciplinar e já encontramos um novo e ainda mais eficiente.” Em: HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: yiné, 2018, p. 19.
          4 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 25.
          5 “Os Estados-nação operam um maciço reinvestimento da vida natural, discriminando em seu interior uma vida por assim dizer autêntica e uma vida nua privada de todo valor político (o racismo e a eugenética nazista são compreensíveis somente se restituídos a este contexto).” AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 139.
          6 HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 269.
          7 KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 113.
          8 Em relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde, cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo viviam com algum transtorno mental em 2019. Só o suicídio teria sido responsável por mais de uma em cada 100 mortes, sendo 58% dos casos registrados abaixo dos 50 anos de idade. Durante o primeiro ano da pandemia de COVID-19, a OMS estima que casos de depressão e ansiedade tenham crescido pelo menos em 25%. Disponível em: , acessado em 20 de fevereiro de 2023.
          9 KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 116.
          10 Reconvexo, música composta por Caetano Veloso para Maria Bethânia.

          Pope.L Notas sobre Crawling Piece/Diário de Performance/ Manifesto de Performance #78

          Notas sobre Crawling Piece

          vulgo Quanto Custa Aquele Preto na Montra?

          (Verão 1991 / Ruas de Nova Iorque)

          Masoquismo estético, os seus des-contentamentos, performando lutas sociais poeticamente / analiticamente via agência publicitária de lamentações: para incitar uma dinâmica recursiva entre o privilegiado/subordinado – para nos testar a nós/ a nossa negociação do social. Rastejar: SOFRER: provocação para a ação. Pergunto: A arte corporal iliba? Por exemplo, é somente uma luta desconectada e ISOLADA? Americanos, adoramos o capital pessoal = individualismo. Tão reconfortante. Se dar corpo continua a ser uma idiossincrática explosão individual, então ação = solipsismo. Preocupo-me. As pessoas dizem ironia = arte séria. As pessoas dizem: não sejas tão CLARO. A tua crítica não é confusa o suficiente, as tuas palavras não são longas o suficiente, que raio se passa contigo, não vês a trapaça? Conclusão: a FÉ é um produto. Ironia, outro produto. Coloca ‘elas’ juntas. Ama essa lógica falha. O verdadeiro ESPÍRITO do meu projeto: MIJAR no coração sangrento do PAI. Falha do tribunal. Não da LEI. Máxima machista: Ações são efeminadas. Palavras são viris. A confusão é conspurcada – à totalidade TOTAL. REIVINDICO: Quando sofro. Faço-o para todos. Isto é DESONESTO (mas tenho que enfiar a carapuça) não importa que produto venda ou com que bíblia acene. A minha MÃE: Billy, faz-te à vida e deixa-te de palavras – arrisca o couro onde nós, o zé-povinho, vivemos…

          Publicado originalmente no Art Journal, 56, n.º 4 (Inverno de 1997), “Performance Art: (Some) Theory and (Selected) Practice at the End of This Century”, pela CAA.

          (do Diário de Performance, 1991)

          A verdadeira questão

          Jaz na justaposição

          Da destituição e plenitude

          Isso é tão in-quietante 

          E a sensação de que poderia ser eu amanhã

          Faz a minha arte parecer autosserviço.

           

          As porções da vida não são divididas equitativamente… 

          Se as coisas fossem mais claras, mais limpas, mais brilhantes, mais arrumadas

          Mais tipo bolacha Ritz…

          Se apenas houvesse rico ou pobre,

          Preto ou Mouro

          Ou só alguns brancos a arrancar à dentada cabeças de cotonetes…

          Cairia eu na miséria

          A defender, a ir na onda, a fingir sofrer

          Por algo supostamente totalmente outro?

          Eu sou o mano mais escuro, o muito mais escuro,

          A resolver puzzles infiltrado

          Num bom emprego em más alturas.

          A levantar o meu salário sobre os corpos na Palestina

          Vejo-os dispostos como judeus em Bowery

          Como no terminal da estação de autocarros de Port Authority,

          No âmago de Nova Iorque

           

          As pessoas dizem que há beleza na feiura.

          Passa o Häagen-Dazs 

          Vomita-o na retrete,

          Fá-lo milhentas vezes.

          Não deixes que o teu lado bom o estrague.

          Tenho a minha própria anorexia cultural.

          É um tanto ousado,

          Ponho-me de bruços e rastejo até me tornar realidade.

           

          Não te escapas da verdade, ‘tás a ver,

          Arte não é sobre obras-primas

          Queres perfeição? Compra uma Smith & Wesson.

          Toma um Slurpee, isso, sim, é uma lição!

          Arte devia ser desleixada e vergonhosa.

          Vergonha: o chicote, o corte e a maçã.

           

          Como podes amordaçar a corrente e os escravizados?

          Arte devia ser enorme mas caber na boca.

          Na minha arte, quero a coordenação olho-mão

          Para criar uma celebração conflituosa.

          Arte que chama a atenção dos transeuntes.

          Arte que é macabra & inócua & incompleta.

          Arte simbólica do salto

          Que precisamos para nos livrar da nossa paz de espírito.

           

          ….

          Eu queria a coordenação Olho/mão

          Para criar uma celebração conflituosa

          Eu – Eu – Eu – Eu queira fazer algo

          Que comunicasse com quase

          Qualquer um nas ruas

          Algo macabro, algo inócuo, contudo incompleto,

          Algo profundo, algo doloroso, simbólico

          Da armadilha da fé de que precisamos para nos abanar

          Do nosso sono

           

          No trabalho,

          Pessoas diferentes viram histórias diferentes

          Aquelas que viram as ações na rua

          não viram o filme.

          Quando esmifras a tua intenção

          Estás a defender a insegurança

          Uma grande dama disse isto

          Ruth Maleczech! então não o esqueças

          Ela disse (e vou citá-la só uma beca)

          “Só porque dizes que existe

          Não significa que é realmente visível”

           

          Então se eu fosse mudar alguma coisa

          Mudava algumas das minhas decisões

          Mudava algumas crenças

          Por detrás da visão

          Quanto misturas Arte + política

          Acabas sempre a tratar os sintomas

           

          A maioria dos que viram a performance na rua não foi convidada para a exposição

          Então – Se eu fosse mudar algo

          Aceitaria as minhas limitações 

          Tentaria criar pontes

          Entre o que é feito, o que é dito

          E o que é escondido

          Levava todos para a cozinha

          Para uma subversão de arroz, feijão e porco frito

           

          Enfim, só não quero arruinar a minha imagem

          Como alguém uma vez disse “Arte precisa de contexto”

          Um Álibi, talvez café e pastel

          Podia ficar constipada e 

          Desaparecer…

          Então o que faríamos?

          Bebíamos uma coca-cola e ficávamos famintos.

          O excerto que aqui se publica reúne dois blocos de texto complementares originalmente publicados na Art Journal, 56, n.º 4 (Inverno de 1997) “Performance Art: (Some) Theory and (Selected) Practice at the End of This Century, pela CAA, e em manuscrito no catálogo que acompanhava uma retrospectiva do trabalho de Pope.L no MoMa, Nova Iorque: member: POPE.L, 1978—2001, editado por Stuart Comer com Danielle A. Jackson, 2019. 

          Manifesto de Performance #78

          — A Morte da Performance; A minha mãe; Eu próprio

          Sabes de antemão de algumas coisas. Como a morte.

          Ainda assim, no fim ela te escapa.

          A vida é assim também. Esperança, igualmente.

          Hoje estive a pensar na minha mãe. Vejo-a

          na sua casa, que consiste num quarto pequeno numa casa estreita numa rua pedregosa num lugar especificamente criado para a malta preta.

          Quando penso na minha mãe, frequentemente fico triste, não deprimido atenção mas triste. Uma tristeza que sulca como uma onda sobre o horizonte das minhas pálpebras. Pergunto-me porquê todo esse drama e nego-o com uma careta de indignação. A minha mãe está mais velha hoje do que alguma vez foi. Isto é lógico, mas ainda me surpreendo. Ela senta-se aprumada na sua cama. A TV está aos seus pés as paredes caiadas a azul que ela contempla cheia de paz com o olho de uma tartaruga. Ela tem um livro numa mão a outra crispada no seu colo: espasma quando a televisão faísca com estáticas. Perto da cama, junto à sua mão há uma mesinha com cigarros pretos, um copo de cerveja, um romance cor-de-rosa e muitas caixas de fósforos. Ela está a dormir. Com a respiração pausada. O quarto brilha como uma pira fúnebre.

          E estou triste. mas jubilante de uma forma estranha, pois a morte da minha mãe é a minha jovem e mísera inspiração a gatafunhar neste restaurante à espera que o teatro abra; evito aquela atenção cuja presença não se menciona, porquanto eu sou um performer a caminho da minha morte.

          Publicado originalmente em manuscrito no número 1 da revista THE ACTPerformance Art, inverno/primavera 1986, pelo Performance Project, tendo como editor Jeffrey Greenberg e co-editores Jacques Cwat e o próprio William Pope.L. 
          Traduzido dos originais em inglês por Marinho Pina.

          Anh Vo A força aparicional da dança

          Depois da estreia de BABYLIFT (2021), em Nova York sem público, estava muito deprimido. Primeiro diagnostiquei-me com uma clássica depressão pós-performance – o inevitável colapso que acontece depois de trabalhar loucamente num projeto que significa tudo para mim, mas não parece significar nada para o resto do mundo. À medida que as semanas e os meses foram passando, o corrosivo sentimento diário de vazio não desaparecia. Nem desapareciam os pesadelos e a paralisia do sono, pareciam até aumentar de intensidade e frequência. Alguma coisa estava errada. Talvez estivesse assombrado.

          Ser assombrado não devia ser, para mim, uma surpresa; afinal, BABYLIFT tinha estreado sem público principalmente porque eu queria dançar com fantasmas, com a multidão de anónimos morta no decorrer da guerra do Vietname. Era uma tarefa impossível. Pesavam muitas mortes sobre este pequeno país destruído por meio século de guerras com impérios, tanto antigos como recentes – França, Japão, China e os Estados Unidos da América. Crescer em Hanói, numa das primeiras gerações vietnamitas que viveram relativamente em paz (pelo menos do ponto de vista geopolítico), fez-me sentir distante das guerras. A diretiva tácita era, e ainda é, continuar e seguir em frente. Não podemos ficar parados a olhar para trás, se não queremos que os fantasmas nos alcancem.

          E lá estava eu, a pedir aos fantasmas que dançassem comigo, e nunca me ocorreu que eles poderiam ficar e assombrar-me depois do fim da performance. Senti-me falsamente protegido pelo carácter efémero da performance, o mesmo que, aparentemente, livra a performance dos grilhões do tempo e a envolve no presente fetichista. “O ser performance […] atinge-se através do desaparecimento”1, a famosa declaração da teórica da performance Peggy Phelan. E se a performance desaparece no presente não reproduzível, os fantasmas invocados também se dissiparão ao mesmo tempo que o momento singular de uma performance se dissipa.

          Há algo de reconfortante e que garante segurança nesta articulação ontológica da performance enquanto desaparecimento, o que justifica a ideia de que os encontros com fantasmas em performance sejam também efémeros. Numa reviravolta paradoxal, a hiperfixação no presente efémero acaba por banir inadvertidamente os fantasmas ainda mais para o passado, sem vínculo à contemporaneidade. Mas assombrar é o mais contemporâneo possível. Assombrar desafia a progressão da linha temporal do passado para o presente e para o futuro, ou até a crença de que os fantasmas são o regresso de um passado que ficou por resolver. Assombrar tem uma qualidade atemporal e não porque está fora do tempo. É precisamente o contrário, assombrar, com a sua presença eterna, evidencia a força turbulenta do tempo, recusa qualquer lógica temporal e assim desestabiliza a dicotomia entre passado e futuro, entre vida e morte. Jacques Derrida lembra-nos, “um fantasma nunca morre, permanece para poder voltar uma e outra vez”2.

          Nesse sentido, fui ingénuo quando estava a trabalhar em BABYLIFT e esperava que um momento de comunhão com fantasmas funcionasse como um aperto de mão inócuo, uma troca de cumprimentos no teatro sem consequências materiais. Não podemos estabelecer contacto com fantasmas e sair ilesos. Nesse encontro visceral com o desconhecido temos de questionar o que pensamos saber, e o que achamos ser a realidade deixa de parecer muito real. Assombrar produz inevitáveis transformações. Pode não ser imediatamente aceite, ou pode ser temporariamente evitado recorrendo a rituais de exorcismo. Podemos tentar resistir em vãs tentativas de o afastar, mas eventualmente a assombração apanha-nos. Repito, “um fantasma não morre”.

          Em 2021 não estava pronto para dar as boas-vindas aos fantasmas que entusiástica, ainda que imprudentemente provoquei (como se os fantasmas alguma vez esperassem que estivéssemos preparados; como se nos conseguíssemos preparar para a sua erupção e disrupção). Então, para comprar um estado de calma provisório, ganhar algum tempo e começar a lidar com esta minha nova condição de pessoa assombrada procurei dois poderosos intermediários: a psicanálise e o xamanismo do Sudeste Asiático. Por um lado, a psicanálise e a sua metodologia de associação livre animam a força da assombração com a curiosidade científica pelas suas consequências sentidas (i.e., sintomas como pesadelos), trabalham meticulosamente sobre a psique individual do sujeito para reconhecer os vestígios da presença inquieta de fantasmas. Por outro lado, o xamanismo promete um acesso ao assombro menos tortuoso, onde o xamã, com recurso a várias ferramentas de adivinhação, consegue falar diretamente com os fantasmas, quase como se fossem seres vivos, por vezes com uma linguagem simples, às vezes em línguas diferentes, ou até telepaticamente, mas é sempre claro que a comunicação entre eles está a acontecer.

          Estou tentado a dar nomes aos fantasmas identificados neste meticuloso processo de cuidar dos assombros, apesar de achar que é uma vontade à qual não devo ceder. Por exemplo, os fantasmas com quem interajo não têm nome, continuam por aqui desde as guerras, pertencem às multidões anónimas de mortos. Mas, mais do que tudo, nomeá-los e assim fixá-los num documento seria enganador, daria uma ilusória sensação de clareza que implicaria podermos simplesmente confrontar as assombrações diretamente e obter as respostas de que estamos à procura. Seguir o rasto da assombração pode levar a algumas respostas (a perguntas que nem sequer sabíamos ter), mas as respostas só nos levarão a mais perguntas. “Um fantasma permanece para poder voltar uma e outra vez.”

          A experiência de consultar xamãs e de ser psicanalisado foi muito esclarecedora. Ao mesmo tempo, não tenho a certeza de que almejar o esclarecimento seja o caminho a seguir ao trabalhar com assombrações. Talvez seja necessário algum esclarecimento, mas apenas no sentido de dar alguma segurança sem dissipar todo o medo e toda a curiosidade, para continuar a avançar no escuro e a seguir o rasto dos fantasmas. Para nos mantermos sensíveis no meio da dúvida e da incerteza, para nos aventurarmos pelo desconhecido sem o colonizar pelo campo iluminado do conhecimento, mas para que simplesmente nos deixemos ser movidos por esse desconhecido.

          Ao pensar nestas questões de mover e de ser movido regressei à dança, como se fosse uma bússola guiando-me por terrenos espectrais e desconhecidos. Quero voltar à questão do desaparecimento, cuja formulação assente na efemeridade e na preciosidade do presente parece banir a dança e as assombrações para um passado distante. Ainda assim, não quero apressar-me a repudiar o desaparecimento – existe, de facto, alguma coisa semelhante ao desaparecimento na dança, com a sua ambivalência entre ser escorregadia e evasiva e ao mesmo tempo ter uma materialidade visceral. E é precisamente nesta relação íntima com o desaparecimento que a dança consegue estar em movimento com fantasmas e rastrear movimentos fantasmagóricos sem ter de os tornar visíveis. 

          Aqui o termo desaparecimento precisa de ser desligado da noção de efemeridade, o que não é tarefa fácil porque a efemeridade contém a promessa utópica de que a dança e a performance não podem ser registadas e fixadas. No seu provocador estudo sociológico sobre assombrações e assuntos de fantasmas, Avery Gordon coloca pressão sobre a materialidade sensível do desaparecimento, descrevendo que “um desaparecimento só é real quando é aparicional”3. O desaparecimento já não está cristalizado num momento fugaz do presente não reproduzível. Ao invés, o desaparecimento assombra e é definido por essa assombração, pelos efeitos materiais sentidos mesmo na sua suposta ausência. Não é coincidência que Gordon reconheça esta força aparicional do desaparecimento e, de forma semelhante aos meus instintos artísticos, decida seguir o rasto das mortes em massa orquestradas pela Guerra Suja da Argentina, numa tentativa de ouvir aqueles que desapareceram pelas mãos das juntas militares, nos anos setenta e oitenta. O que está morto tem uma forma de nos dizer que está (ao) vivo se tivermos paciência de o ouvir.

          E os mortos também nos dizem como dançar com eles. Que é dançar ao mesmo tempo connosco enquanto seres assombrados, com os nossos corpos e com a sua impossível rebeldia. O corpo, sempre em excesso de si mesmo, talvez não seja tanto uma entidade física como um veículo do aparicional, uma convergência de forças desconhecidas que não estão ali, mas cuja presença é sentida. A dança, com a sua devoção incondicional às idiossincrasias do corpo, parece prontamente permeável ao imperativo ético de comungar com fantasmas. Este tráfico com fantasmas não deixará a dança intacta, exigirá uma transformação de como nos movemos e como somos movidos. Não insisto que devamos marchar em frente na direção de uma ilusão de transformação com a nossa compulsão vanguardista de estarmos à frente do tempo. Em vez disso, quero ter tempo para me sentar quieto, estar no tempo, estar com a força aparicional do tempo, ouvir os fantasmas cheio de humildade e vulnerabilidade.

          Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.  

          1 “Performance’s being […] becomes itself through disappearance.” Peggy Phelan, Unmarked: The Politics of Performance (Nova Iorque: Routledge, 1993), 146. N.T. Como não está publicado em português coloco aqui a versão original.
          2 Jacques Derrida, Espectros de Marx, (Coimbra: Editora Palimage, 2021).
          3 “A disappearance is only real when it is apparitional.” Avery F. Gordon, Ghostly Matters: Haunting and The Sociological Imagination (Mineápolis: University of Minnesota Press, 2008), 63.

          Diana Niepce Crítica para a dança

          Entro pela primeira vez na Culturgest com uma entrada acessível. (Extraordinário.) Não tive de ligar a pedir para entrar, ou de dizer a um amigo a dizer que estou a chegar, ou de pedir ajuda com os desníveis. Até parece simples, mas não, isto não acontece em qualquer lado. No café queimo tempo com as amigas e, quanto mais se aproxima a hora, mais a mesa se aglomera com os famosos da dança. Isto seria expectável se eu alguma vez tivesse conseguido conciliar a minha agenda com os espetáculos da Marlene Monteiro Freitas, mas como só hoje se tornou possível, não estava à espera disto.

          A sede de um banco nacional em Lisboa, que se assemelha à casa do Tio Patinhas, enche e enche. (É um Rock in Rio, só vejo rabos e pernas porque, quando estás sentada na multidão, o campo de visão é limitado.) Entro no hall vermelho (aquele da casa de banho dos deficientes de porta dourada, que parece um quarto de BDSM), abrem as portas, subo a rampa inclinada, e o grande auditório parece maior do que me lembrava, talvez pela quantidade absurda de humanos que não param de entrar.

          O espetáculo é Ôss com o Dançando com a Diferença. A cena abre e um performer com síndrome de Down com calções de boxe e ténis dirige-se a um sintetizador, onde diz coisas irreconhecíveis, e desenvolve um ritmo. (Parece que entrei numa discoteca azeiteira do início do milénio.) Pula da mesa para o centro e ao mesmo tempo que corre, bate palmas e salta por cima do suporte do microfone relativamente baixo. (Sinto-me estúpida.) O público segue os movimentos do performer com os abanões do próprio corpo e, histérico, reage às acrobacias deste circo verdadeiramente impressionante, ou parvo. (És odiosa Diana. Não sei se sou. Será que faz sentido evocar os horrores circenses numa companhia de inclusão nos dias de hoje, quando durante tanto tempo as pessoas com deficiência foram desta forma exploradas?)

          A música muda para uma gaja aos gritos numa ópera dramática. (Parece a minha vizinha de baixo que quer ser cantora de ópera e diz que tem de ensaiar muito.) O performer executa um solo com alternância de imagens que remete à mímica do cinema mudo, com uma série de caretas, pliés, movimentos de boxe e de ginástica. (Como eu sou pitosga e o auditório é uma espécie de estádio de futebol, adivinho aquilo que não consigo ver nas imagens.)

          A cortina de ferro abre por trás do performer, a cenografia e os figurinos dos performers em exposição remetem para um navio. Uma figura vestida de laranja, sentada junto ao ciclorama, move um pau em micromovimentos, outro performer sentado de pernas cruzadas fuma ou finge que o faz. (Preciso de binóculos.) A quietude das restantes figuras acentua esses pequenos movimentos. E se prestarmos atenção estão alinhados o boxista, a laranja e o marinheiro/cozinheiro/fumador (provavelmente não é cozinheiro, mas tem um chapéu de cozinha e com as galochas parece… acho que lhe ficam bem) e ainda os capitães normativos, duas marinheiras/capitãs ou então ajudantes de cozinha (parece que estou a jogar ao “Quem é quem?”), uma vaqueira e a mulher na bacia. (Já tenho músicas de circo na cabeça.)

          Começam as passeatas no meio da cena. (Acho que estão todos tão perdidos quanto eu.) Os capitães carregam o pódio, a bacia e a mulher para o centro da ação. Anuncia-se a sua apresentação, só que nada. Embrulhada num lençol branco, numa espécie de paralisia, a figura vai girando a cabeça. Será que é uma referência colonial, do estilo a mulher africana da bacia? Com certeza, mas é um discurso intencional? É claramente uma imagem violenta. O tempo continua a esticar, a cena arrasta-se, a mulher continua na paralisia (e daqui a bocado estou a babar-me a fazer a lista das compras), surge a buzina de um navio na esperança de verticalização da mulher deitada. Uma coreografia de ações quotidianas são decompostas até se transformarem e restar apenas o híbrido. (Lá estou eu a ser obtusa, não, contemporânea. Isto da arte contemporânea tem o que se lhe diga, porque o espectador irá observar a obra a partir da sua cultura e experiência pessoal. Mas quando a experiência pessoal é limitada, será que sabemos o que estamos a ver? Será que posso analisar a obra sem as minhas próprias referências? Será que é algo que quero fazer?)

          Passaram vinte minutos e tento concentrar-me no palco. (Parece uma insónia, e continuo a pensar nos livros pendurados na mesa da sala há semanas, na mala de viagem que tenho de comprar, os iogurtes que acabaram e a medicação da minha cadela Nina que ficou por pagar. PÁRA, DIANA, CONCENTRA-TE!)

          Acordei e estamos num momento de marcha, a performer laranja com a cabeça baixa marcha, e os autocolantes na sua cabeça fazem uma nova cabeça, criando um novo corpo. O boxista também marchou para outro lugar. A dança do copo anuncia-se como uma sagração. (A minha criatividade morreu.) Os performers seguem um líder num uníssono desfasado. (Talvez estejam atrasados nas contagens.) O da câmara que faz uma espargata frontal na boca de cena e uma sequência flexível que poderia ser uma sequência de yoga. A embrulhada na bacia abre os braços e o lençol parece uma capa de um herói a contrastar com o seu tom de pele. (Vai levantar-se. Não, tombou.) À direita começam um port-de-bras. A mulher da bacia senta-se, levanta a bacia para cima da cabeça, apresentando a biamputação das pernas, e corre até ao ciclorama. Já na boca de cena, o trio começa o parto: um lençol cor-de-rosa esconde as pernas da laranja que grita e outras duas seguram-lhe os joelhos. (Parece que estão a brincar. Penso nas múltiplas queixas de pessoas com deficiência que são esterilizadas contra a sua vontade?1) Uma mãe com uma criança levanta-se na plateia e saem da sala. (Acho que esta imagem apareceu noutra peça, será que foi nas Bacantes?)

          Num diálogo incompreensível, a performer amputada, agora polícia, desloca-se de forma estilizada à boca de cena, com dois bastões que lhe servem de canadianas. Senta-se ao centro, tira o chapéu e snifa no microfone. Tento compreender o que diz, mas nada. Alguém distorce o som de uma guitarra, a voz da polícia cresce, torna-se tensa, agressiva, fugaz, e uma gargalhada repete-se… A performer que treme (pela sua condição) segura uma chávena e o comandante enche a chávena de água, que por sua vez abana, e o som é amplificado. A polícia despe-se até ficar de fato de banho e o comandante faz o mesmo até ficar de tronco nu. Contrai o abdómen, ao mesmo tempo que alguém late, a barriga late, é um cão de barriga. (Isto deve ser uma referência de cinema.) Começam os slows, uma massagem com uma faca à performer amputada, a toureira, os cabeças de dildo, a histérica, os militares cabeça de dildo, gritos, a assassina, a sesta, a cantora, o funeral do normativo, as carpideiras, a rave. Marlene a ser Marlene e os bailarinos a serem muito bem mandados e a encontrarem, no seu corpo, o corpo Marlene. Exceto que estes bailarinos são os bailarinos a quem os normais deste mundo amputam a voz, por serem pessoas com deficiência. E esta é a bailarina que está constantemente a mandar tiros no pé. (Sim, Diana, já paravas a chacina ao teu pé paralítico.)

          O que eu queria era ver a Marlene aqui no meio, com a sua técnica exímia daquele corpo que entre estados, caos e decadência se transcende. (Até parece uma sinopse tua, Diana. Não é isso. Lembras-te do Guintche. Foda-se, é de uma análise de movimento mítica. Mas aqui falta. E a cena do lençol no Jaguar… em que o micromovimento escultórico gera a construção de imagens, até à sagração do lençol.) O problema aqui não é a Marlene, mas sim as companhias de inclusão continuarem a ignorar os líderes com deficiência. Continuamos à espera de ver as companhias que circulam internacionalmente a serem representadas pela própria comunidade. (É difícil olhar para as peças de Marlene e do Dançando com a Diferença e não fazer contas ao orçamento.) Afinal, é um problema estrutural que já acordou demasiados gatilhos nas peças de Jérôme Bel (Disabled Theater) ou de Milo Rau (Os 120 Dias de Sodoma) com o Theater Hora  nas últimas décadas. Voltamos à discussão de que as pessoas sem deficiência continuam a ditar a voz das pessoas com deficiência. Vou responder ao Jérôme e dizer que não estamos a desafiar as convenções normativas teatrais quando estamos a usar artistas com deficiência e o elenco é selecionado por fotografia. Talvez em 2001 essas questões fossem abordadas de outra forma. Hoje, se pegar na crítica de jornal em torno das mesmas peças que há vinte anos foram premiadas por reformularem o panorama, vejo um discurso condescendente e paternalista, o mesmo que continuam a aplicar nos dias de hoje. Tornando as companhias um produto que vende uma ideia, mas por dentro os sistemas continuam velhos. (E estar sempre a dizer a mesma coisa faz de mim uma velhaca.)

          1 Ver “Esterilização de deficientes: Governo averigua denúncias sobre um tema «tabu»”, Público. 26 de Junho de 2016.

          Estelle Nabeyrat Love Song, uma canção na cabeça

          Estelle Nabeyrat em conversa com Pedro Barateiro 

          Uma noite, em Junho de 2016, Dean Blunt (artista britânico com múltiplas identidades musicais, incluindo Hype Williams [2007-2012], uma colaboração com Inga Copeland) actua no Musicbox, em Lisboa, com os seus acólitos de Babyfather, uma formação hip hop. O concerto começa como uma provação, de tal maneira que nos podemos questionar sobre a sua competência: um som estridente e contínuo mergulha-nos numa atmosfera opressiva, camadas de fumo branco são lançadas para cima de nós vindas do palco, holofotes colocados de frente cegam-nos.

          No meio da multidão agrupada, expectante, homens mascarados deambulam e empurram-nos, um deles parece ter uma bomba de gás na mão, que agita de vez em quando, lançando a dúvida sobre a legitimidade da sua presença na sala.

          Como única decoração, bandeiras Union Jack lembram-nos o referendo do Brexit, recentemente realizado, confirmando o desejo da maioria dos britânicos de sair da União Europeia.

          Esta mistura de registos e a agressividade do contexto fazem-nos questionar: a que é que estamos a assistir? Um concerto em forma de tomada de reféns? Uma performance que zomba dos limites do suportável? Um acto militante ou a sua paródia? Será que se trata de nos fazer sentir a expressão viva da rejeição num contexto britânico antieuropeu?

          Tudo é mal-estar. Os meus amigos abandonam a sala. No meio da nuvem, vejo Pedro Barateiro, atento, conectado com os elementos, o seu ser tomado, como eu, por esta experiência impossível de caracterizar.

          Muitos críticos de música se têm interessado pela abordagem de Blunt, pelo seu estilo sem estilo, pela sua abordagem conceptual, etc., mas não encontrei nada sobre este concerto em particular. O que se tornou mais claro com o tempo foi que tínhamos assistido a um apelo. Apesar da orquestração da situação, não conhecíamos os verdadeiros limites nem o que estava em causa. Expostos/as a nós próprios/as, na incerteza partilhada, formávamos uma comunidade. Estávamos reunidos/as no carácter político: a forma interrogativa aqui suscitada projectava os nossos corpos expectantes numa necessária projecção em acto.

          Pedro Barateiro: “A experiência não tinha só que ver com a música. Tratava-se de viver algo, e de pegar nalgumas coisas que estão codificadas, e que conhecemos, e de como as reunir num momento completamente diferente e surpreendente. Lembro-me com muita clareza. Havia bastante fumo. Era desorientador porque não sabíamos onde estavam de facto os artistas/músicos (incluindo Dean Blunt), uma vez que se misturavam com a multidão. Lembro-me de ver alguns deles com lenços com bandeiras da Grã-Bretanha a cobrir-lhes a boca. Usavam óculos de sol. As luzes azuis frias na sala estavam acesas, o que era invulgar para uma sala de concertos. Nessa altura, as máscaras estavam sobretudo ligadas a manifestações, e não à pandemia.”1

          Em 2022, o trabalho de Pedro Barateiro foi objecto de uma exposição individual (Love Song, comissariada por Elfi Turpin) que se realizou no CRAC Alsace, em Altkirch (França). Fiquei cativada com esta visita depois de ter visto diferentes ocorrências do trabalho deste artista. Feliz também por ter recebido a encomenda de um texto, que acabou por não poder ser publicado.

          Procurei outras formas de traduzir a experiência desta visita, fugindo também às limitações do formato da crítica, que não permite grandes digressões. Desde então, assombram-me algumas notas de música, trazendo-me de volta à experiência do concerto de Babyfather.

          Estes dois momentos permanecem presentes um no outro: para mim, Love Song foi como uma clarificação dos temas e formas que habitam o trabalho de Pedro Barateiro e de preocupações de ordem política que eu não tinha sentido ainda de maneira tão manifesta.

          Wake up, wake up, wake up, wake up 

          Wake up, wake up, wake up 

          So don’t you want to be with me? 

          ‘Cause everybody knows you’re feeling me 

          So don’t you want to roll with me? 

          I cannot compete with anyone 

          So I can never be your only one 2

          Para além de constituir uma organização espacial subtil que mostra esculturas, instalações, vídeo…, dois gestos sob a forma de convite chamaram-me a atenção: um foi feito a Mário Varela Gomes (nascido em 1949), que apresenta fotografias datadas do fim da ditadura salazarista, e o outro a Aurélia de Sousa (1866-1922), pintora portuguesa, rara figura feminina do seu tempo. As suas presenças historicizam uma abordagem, uma postura política e artística que o Pedro poderia ter tido no tempo deles e que prefere integrar na sua narrativa sem desnaturar a experiência situada que o visitante poderia ter tido nesse momento preciso.

          No primeiro caso, Pedro Barateiro traz para o meio artístico uma série de fotografias sem identidade artística (a priori) e que, se testemunham a Revolução dos Cravos através das concentrações nocturnas e do ataque ao gabinete da Censura em 1974, são igualmente gestos e imagens de uma beleza impressionante. Aqui, a objectiva documenta o voo de um monte de fichas que são lançadas do gabinete da Censura; ali, a energia de uma multidão conduzida pelo fim de uma era de repressão. No segundo caso, inclui no seu campo de referência uma obra não datada e pouco representativa de uma artista moderna pouco conhecida no contexto francês.

          No andar de cima, outras obras fazem eco destas integrações. My body, this paper, this fire (2020), um vídeo em que Barateiro assume o trabalho de montagem e escrita, nomeadamente a partir de excertos das manifestações estudantis em que participou em 1994 contra o aumento das propinas nas universidades. Na altura, foram as manifestações mais violentas desde o fim da ditadura.

          E depois, mais uma vez no rés-do-chão, o vídeo Love Song, que dá à exposição o seu título:

          Pedro Barateiro: “Love Song vem da ideia de fazer uma banda sonora para um filme antes de fazer o filme. Tem 45 minutos porque é a duração média de um álbum de música pop. Estou a tentar perceber como é que certos formatos estabelecidos se tornaram o que são e como transformá-los noutra coisa. A peça é uma paisagem áudio que fiz para depois a dar a um músico/compositor como uma das camadas que podem ser usadas na banda sonora de um filme que vou começar a rodar em breve. […] Queria muito instalá-la no espaço numa espécie de área de audição dedicada só a ela, para desenvolver a experiência de uma peça sonora que lida com o tempo de uma forma particular. A peça concentra-se na desconstrução da narrativa através do uso do som, utilizando fontes variadas, tanto feitas de propósito como encontradas, cuidadosamente entrelaçadas de modo a criar uma banda sonora. Uma das fontes que usei é a gravação de uma das câmaras de vídeo que transmitem ao vivo a partir da Estação Espacial Internacional (ISS).”3

          Tenho algum receio de que te possa parecer barulhento

          wake up wake up wake wake up4

          Oiço atentamente o Pedro e não me consigo livrar de uma presença que se faz convidar sem ele saber. Esta intrusão nesta paisagem mental leva-me a dizer que as minhas experiências de espectadora trabalham em mim como vidas aumentadas. Um despertar que não se limita apenas ao campo da representação. O motivo da multidão repete-se, o nosso encontro faz de nós um corpo político e que age: Acorda!

          Espectadora atormentada: a silhueta do Pedro que eu adivinhava na nuvem é também a do jovem manifestante em frente ao Parlamento português. De costas, como que à cabeça do cortejo, as manifestações de 1974 e 1994 são animadas por uma experiência reconstituída durante um concerto. O tema da multidão, que persiste depois da visita à exposição, leva-me a estes outros espaços-tempos: a linha sensível entre real e ficção ganha vida. As manifestações em imagens completam-se com uma experiência física totalmente encenada.

          Neste apelo ao despertar, consegui ver Dean Blunt na obra Love Song de Pedro Barateiro como tinha visto o Pedro na plateia. Tinha feito inconscientemente a ligação entre estes dois momentos e estes dois objectos, convencida de que Barateiro se tinha inspirado em Blunt. Não foi o caso, mas esta aproximação pessoal amplificou a ressonância da minha visita à sua exposição. O refrão aumentado da experiência do concerto de Blunt veio reforçar a impressão de assistir tanto a um despertar dos sentidos como a um despertar político. De que estes motivos de multidão não eram imagens congeladas na posteridade, mas que estas experiências vividas, transmitidas e imaginadas trabalhavam em nós como possíveis componentes de corpos políticos.

           

          Traduzido do original em francês e inglês por Joana Frazão.

          1 Excerto de uma troca de e-mails com Pedro Barateiro, 29 de Julho de 2022.
          2 Letra de “Three”, de Dean Blunt, do álbum Stone Island, editado em 2013: “Acorda, acorda, acorda, acorda / Acorda, acorda, acorda / Então não queres estar comigo? / Porque toda a gente sabe que tu me curtes / E não queres andar comigo? / Não consigo competir com ninguém / Então nunca posso ser o teu mais-que-tudo.”
          3 Excerto de uma troca de e-mails com Pedro Barateiro, 29 de Julho de 2022.
          4 Excerto de Love Song, Pedro Barateiro, 2022. banda sonora de 45’,45’’ (a obra é acompanhada por um vídeo HD no quadro da exposição Love Song, no CRAC Alsace).

          Ana Rita Teodoro Valérie Castan Audiodescrição (AD) em dança

          Excerto de uma conferência de Valérie Castan 

          A audiodescrição (AD) é um processo de acessibilidade que consiste em descrever verbalmente uma obra para pessoas cegas ou com baixa visão. A AD em dança coloca diversas questões, uma vez que a dança é em si abstrata, isto é, em geral, não existe nos espetáculos de dança um guia de texto ou uma dramaturgia linear que conduza o público. Que vocabulário escolher para descrever os movimentos, as ações complexas? Como invocar a sensação do movimento?  

          No meu percurso na dança contemporânea, a tradução de movimento em palavras e a escrita de dança sempre foi uma prática corrente. Nos últimos anos vivi no contexto francês e fui confrontada com discurso, pensamento e vocabulário específico para a dança que contribui para pensar e sentir o que está em jogo quando assistimos ou praticamos dança. Por curiosidade, interessei-me pela AD e deparei-me com um pensamento pouco ativo no que diz respeito às especificidades da dança contemporânea e senti-me convocada a trazer a minha experiência. Nesse sentido, organizei no Teatro do Bairro Alto (TBA) em Lisboa, de 23 a 25 de setembro de 2022, um ciclo de conferências, workshops e encontros com o intuito de pensar as especificidades da AD em dança e proporcionar o diálogo entre artistas, audiodescritores/as, instituições de acolhimento e público cego ou com baixa visão. 

          Valérie Castan, artista coreográfica e audiodescritora especializada na tradução e interpretação de espetáculos de dança, foi uma das minhas convidadas. A sua prática em AD é singular e começa com a transposição de um método de AD usado no cinema para espetáculos coreográficos. De acordo com Valérie, uma AD em dança deve guiar o público que assiste à visualização do movimento através da perceção empática e cinestésica. Isto é, as palavras ouvidas espoletam sensações físicas e musculares no corpo, como se a pessoa ouvindo a descrição pudesse, de facto, sentir a dança, sentir-se dançar. 

          Para esta edição do Coreia, propus-me editar um excerto da conferência que Valérie Castan deu no TBA, para partilhar a sua experiência com quem não esteve presente e incentivar a continuidade do diálogo. 

          Esta conferência é sobre partilhar experiências e ferramentas relacionadas com a minha pesquisa aplicada à acessibilidade de pessoas cegas ou com baixa visão a espetáculos coreográficos. Não se trata de uma exposição teórica, crítica, estética ou linguística e sobretudo não se trata de um método que prevalece sobre qualquer outro. Vou partilhar a minha prática como audiodescritora de peças de dança contemporânea desde há dez anos. Esta prática descritiva induz a montagem de grelhas de observação específicas, um ato desorganizador que desvia o nosso olhar para o da pessoa que não vê ou que não vê muito bem. 

          Começo por explicar como eu trabalho uma AD em França. Na maioria das vezes são teatros, às vezes Centros Coreográficos ou artistas que me encomendam um texto. Eu assisto a uma apresentação ao vivo ou, se for uma nova criação, sempre que possível assisto aos ensaios. A partir de gravações em vídeo em plano geral assisto até identificar a estrutura da peça, a composição coreográfica, a gestualidade… decifro… escrevo o texto descritivo. 

          Desde o início da escrita, procuro fixar o texto na temporalidade do movimento. A oralidade do texto descritivo é muito diferente da dança em relação ao teatro ou ao cinema, onde a descrição tem de ser encaixada entre os diálogos. Reparamos que a palavra demora mais tempo a ser dita do que o gesto a ser feito… A oralidade interfere na escrita descritiva. 

          Sempre que possível, partilho o texto com uma pessoa cega ou com baixa visão para que possa ser revisto. Envio um ficheiro áudio com o som do espetáculo e uma leitura em processo, ou fazemos um encontro ao vivo e leio o texto em direto. Esta releitura dá origem a trocas, muitas vezes muito relevantes, e, sobretudo, informa-me sobre a ativação ou não de imagens mentais. Durante a criação de um guião de AD para um espetáculo para público infantil, foi uma criança de 10 anos que fez a revisão do texto. 

          A sessão de AD é organizada pelo departamento de relações públicas do teatro. (Parece-me importante que seja verificado se outros teatros não oferecem um espetáculo com AD no mesmo dia.) Eu leio o texto ao vivo para um microfone conectado a um transmissor, seja desde a zona técnica de frente para o palco, ou desde uma sala adjacente com transmissão de vídeo. É muito raro ter cabines à prova de som. O público interessado senta-se no auditório, na maioria das vezes na primeira fila, e ouve com auriculares conectados aos recetores. 

          Mesmo com o texto pré-escrito, a descrição ao vivo permite adaptar-se a mudanças, a alterações na duração, a passagens improvisadas: trata-se de descrever uma performance ao vivo… não é incomum que passagens do espetáculo sejam alteradas durante uma digressão, ou que os intérpretes sejam substituídos… Nesse sentido, um dia antes da apresentação em AD, assisto aos ensaios e ao espetáculo para atualizar o texto descritivo. Por esse motivo, é melhor não organizar uma sessão acessível com AD no dia da estreia. 

          Mas a razão pela qual eu descrevo ao vivo é bem outra. De acordo com o feedback de uma revisora cega com quem trabalho: “A voz ao vivo dá corpo, é a voz daquela noite.” A oralidade ao vivo atuaria, portanto, como um “aqui e agora” com as suas falhas e os seus impulsos. 

          Antes do espetáculo, um passeio tátil pelo palco permite ao público interessado representar pelo toque a cenografia, os acessórios, os figurinos… Quando não há cenário, sugiro descobrir a sensação de espaço, um espaço vazio, um palco vazio, com um chão plano, sem parede, aberto para a plateia. O palco é um lugar específico. Proponho também atravessar os movimentos dos intérpretes como construções do espaço. Considerar o que os corpos nos dizem em movimento, nos espaços que ocupam ou deixam. 

          A visita tátil é completada por uma espécie de atelier. Trata-se de fazer com que o público interessado execute certos movimentos a partir do texto descritivo, de modo a ativar as imagens a partir da compreensão e interpretação do movimento descrito. Durante o espetáculo, as imagens mentais são ativadas a partir da memória já vivida destas ações, ativa-se a empatia cinestésica. 

          A audiodescrição é uma prática de observação, de análise de obra, de tradução, leitura e interpretação. Pergunto-me: o que descrever e como escrevê-lo? Ao contrário dos espetáculos de teatro, de óperas ou filmes (em que os diálogos fornecem informações sobre um quadro narrativo cronológico, uma história), em dança a especificidade da tradução das imagens coreográficas em palavras é o que vai tecer a trama dos acontecimentos: uma ficção sem diálogos a partir da descrição de corpos em movimento.

          Podemos falar de uma narrativa coreográfica? Como? É possível sintetizar em poucas frases uma peça coreográfica, como fazemos para os filmes? 

          Observar corpos em movimento oferece ao público experiências sensoriais, afetivas e motoras através da empatia cinestésica. É possível manter apenas uma descrição factual? É possível partir da nossa sensação para descrever o factual?

          É óbvio, para mim, que uma AD é subjetiva, pois está ligada à perceção visual, à empatia, ao olhar interpretativo da pessoa que descreve. É óbvio que os meus 30 anos de dança interferem na maneira como olho e interferem na escrita descritiva. Cada um tem o seu próprio estilo de escrita, é tanto uma interpretação quanto uma obra de autor/a. Na verdade, haverá tanto de AD quanto de audiodescritor/a. 

          Vamos fazer uma pequena experiência…

          Se estiverem confortáveis, proponho que fechem as pálpebras.

           

          Que imagem veem?

          Preto e branco ou colorido?

          Quanto mede a sala em que estamos? Aproximadamente.

          Quantos somos?

          Qual a cor das paredes?

          Visualize a sua posição sentada.

          Quantas portas há na sala?

          Visualize a pessoa sentada à sua direita ou esquerda.

           

          Abra as pálpebras.

           

          Esta experiência já nos informa sobre as nossas abordagens, atenções e escolhas. Fazemos escolhas porque nos é impossível lembrarmo-nos de tudo o que vemos, vimos ou sentimos. 

          O trabalho de audiodescrever um espetáculo coreográfico opera na observação e na escrita de escolhas. Não podemos descrever tudo. Observar para descrever consiste, de certa forma, em desmaterializar uma imagem, traduzi-la em palavras, interpretar a realidade, esquematizar, sintetizar, desmontar a realidade, detalhá-la… Ou seja, trata-se de recompor uma imagem. que conhecemos de antemão incompleta, numa abordagem interpretativa, por sucessão de escolhas, com o objetivo de ativar uma verossimilhança da realidade que ative imagens mentais. 

          A descrição de dança pressupõe a criação de grelhas de observação específicas ao coreográfico ligadas à presença dos intérpretes, à composição do espaço, à estética do movimento, tendo em conta as intenções do/a coreógrafo/a, dos/as performers, da dramaturgia, mas acima de tudo requer saber ler a dança, decifrar o movimento, os gestos, as intenções, requer considerar a coreografia como uma linguagem.

          João Polido Sombra de vento

          *O seguinte texto é uma versão traduzida e adaptada de uma sessão de escuta apresentada no ICA, em Londres, durante o mês de Dezembro de 2022, enquadrado no programa “Into Their Labours: The Films of António Reis and Margarida Cordeiro”. O texto lido era intercalado com fragmentos sonoros e musicais.*

          O último filme de Reis e Cordeiro, “Rosa de Areia” (1989), é o mais despojado de música (apenas presente durante o genérico) — prevalece o som. Este marca o fecho da trilogia de Trás-os-Montes que se iniciou com um filme com o mesmo nome, “Trás-os-Montes” (1976). Dos três, “Rosa de Areia” é o mais abstracto e literário; “um filme de matérias” (Reis), “para quem pode ainda ver e ouvir como que pela primeira vez” (Cordeiro). As narrativas são interpeladas por excertos de Kafka, Sagan, Montaigne e da própria Margarida Cordeiro, atravessando escalas micro e macro, do átomo ao cosmos, preocupando-se com a leitura humana feita sobre fenómenos e os efeitos destes. A temporalidade é quântica, indivisível; o presente sobrepõe-se com o passado e o futuro. Saltamos entre séculos enquanto olhamos a densidade e a fragilidade da duração do tempo em forma de estratos geológicos e da poeira à superfície.

           

          Excerto 1: o vento [4 min.]

          A sensibilidade material em “Rosa de Areia” atenta aos sentidos. A distinção tecnológica entre imagem e som cria leituras diferentes (embora não inteiramente incompatíveis) sobre realidade e ficção. A imagem em movimento é composta por várias fotografias, criando a ilusão de movimento, enquanto a medição (ou composição) do som não é divisível, dada a sua existência em tempo-espaço — não existe o equivalente a um freeze frame/imagem estática para o som. A qualidade efémera do som faz com que a sua percepção seja um espaço líquido, e que a observação dos seus efeitos possa ser igualmente dúbia.

          Ao longo do filme, tomamos enquanto “real” os sons atribuídos às paisagens. O realismo do som é verificado pelos movimentos e espaços representados pela imagem. Este primeiro excerto de som é uma colagem de sons de vento presentes durante os primeiros trinta minutos do filme. Ouvem-se qualidades diferentes, desde brisas a rajadas e, perto do final, um vento mais afiado, agudo, e com modulações evidentes; preservando, ainda assim, um vestígio do que reconhecíamos enquanto vento no início do excerto. Condensa-se aqui uma mudança que acontece lentamente ao longo de várias cenas do filme. Destaco quatro sequências pela qualidade do vento:

          a) brisa enquanto uma personagem cega caminha numa seara;

          b) rajadas e assobios durante uma procissão;

          c) um plano-sequência que examina a paisagem desde um grupo de personagens no cimo do monte até um esqueleto recentemente desenterrado — aqui o som não está nem no ponto de perspectiva da câmara nem onde a lente alcança —, ouve-se um som filtrado, como se atravessasse um tubo;

          d) após esse plano seguem-se outros apenas preenchidos por silêncio, até este silêncio ser interrompido pela compositora Constança Capdeville num prado, a girar um tubo de PVC amarelo, produzindo um particular assobio de vento.

          É nesta última sequência que se dá uma rutura da realidade através do som. O vento deixa de ser uma entidade unicamente acusmática (i.e. a causa do efeito não está visível) e passa a ser um elemento cuja origem é ambígua, podendo ser tanto natural como fabricada. A relação entre o natural e o artificial não é exclusiva, o vento de Capdeville é co-constituído pelos ventos que o antecedem; o mais próximo sendo o da cena da procissão.

          O som filtrado serve como uma introdução gradual ao material deste tubo. Há uma afinidade na sua ressonância. Na sequência c) ouvimos o vento processado pela compressão do tubo, como se imóvel, daí a sua frequência não variar. Porém, na sequência d) o tubo de PVC ressoa diferentes frequências de acordo com a intensidade e a velocidade com que é girado.

          A transposição do som do vento da sequência da procissão para o vento fabricado por Capdeville não é apenas acústica (ou estética), mas também semântica. Em “Rosa de Areia”, a compositora toma um papel de figura ou guia espiritual. Numa outra cena, vemo-la a realizar o mesmo movimento de vento com o tubo harmónico no cimo de um monte com um grupo de mulheres sentadas à distância, em frente de um estábulo. No final da sequência, caminha em direção a este grupo e entra no estábulo, enquanto o grupo eleva pedaços de uma rede vermelha translúcida, içando-a ao vento e deixando-a cair sobre os seus corpos. Entra no plano o pai de um rapaz que acabara de morrer. Trata-se de um ritual de culto aos mortos.

          Reis e Cordeiro engenham uma versão da Encomendação das Almas, um ritual com especial peso na região transmontana, realizado durante o período da Quaresma. Esta era uma prática comum no mundo rural português e a partir de 1930-40 acabara por cair em desuso1. Era organizada por grupos formados principalmente por mulheres que se reuniam à noite, “em pontos altos ou em encruzilhadas das suas aldeias para cantar e rezar pelas almas do purgatório”2. O grupo atravessa a aldeia a apelar aos “pecadores” que estão a dormir que acordem e o acompanhem com as suas rezas de modo a “encomendarem” as almas dos mortos para o Paraíso. As encomendadoras vestem-se com roupa preta, cobertas por um xaile de lã negro, e dependendo das aldeias utilizam artefactos rituais como matracas ou sinos. Paralelos a estes estão, portanto, a roupa preta de Capdeville, a rede vermelha translúcida e o tubo de PVC, gerador de vento.

          Capdeville encomenda o vento/espírito: “A alma do doente já voltou à sua casa.” O ritual é dado como finalizado com a prova de uma pena pousada sobre o cabelo do rapaz que acabara de morrer. Imóvel, livre de vento.

          A problematização de causalidade é uma premissa presente noutros elementos de “Rosa de Areia”, como na referência feita no filme ao físico Niels Bohr, popularmente associado aos campos da teoria quântica e da estrutura atómica3, ou através de uma série de interrogações sobre lei, identidade, origens e memória. Este acto de revelar uma ilusão (ou a sua possibilidade) sequestra a trajetória de reflexão (quero dizer, a identificação da realidade), a quebra da expectativa de como algo deveria soar.

          As modalidades de realismo e surrealismo de Reis e Cordeiro interagem continuamente, num sentido fanoniano de “introduzir a invenção à existência”4, ilustrando que “…a realidade num mundo, tal como o realismo num quadro, é em grande parte uma questão de hábito.”5

           

          Excerto 2: Constança Capdeville — “Libera Me” [versão de 1986]

          Esta peça da compositora e instrumentalista Constança Capdeville é um trabalho interdisciplinar que cruza música, dança e artes visuais, tendo várias iterações ao longo de um período de anos: primeiro como bailado em 1977, depois em concerto em 1979, e por fim como bailado e concerto em 1981. É uma peça para coro, piano, percussão e electroacústica (fita magnética). Foi aqui que Reis e Cordeiro ouviram o tubo harmónico que faria parte do “Rosa de Areia”. Porém, ao contrário do filme, em “Libera Me” o som é polifónico — várias vozes de vento.

          Com um passado em estudos de música antiga (paleografia e transcrição), organologia (estudo de instrumentos musicais) e práticas performativas, o processo composicional de Capdeville não era simplesmente enformado por música. Nas suas peças performativas, Capdeville redigia guiões ou partituras individuais para cada elemento da peça — o que actualmente se torna um obstáculo ao trabalho de arquivo e de reprodução, uma vez que o material muitas vezes se encontra fragmentado, perdido ou somente acessível através dos testemunhos vivos dos intérpretes que estiveram envolvidos nas mesmas6.

          O musicólogo Paulo Ferreira de Castro descreve o trabalho de Capdeville como “uma arte de interrogação sobre formas e objectos, uma invocação ritual de arquétipos sónicos e visuais investidos de uma força mágica, anterior à ‘cristalização’ de qualquer sistema”7, desenvolvendo uma sensibilidade para o som e o silêncio. Algo semelhante poderia ser escrito sobre a prática cinematográfica de Reis e Cordeiro, no seu olhar sobre linguagem e cognição antes de qualquer forma de cristalização, envoltos por Trás-os-Montes. As interrogações de Capdeville seriam realizadas, por exemplo, pela utilização experimental de instrumentos convencionais sob um estilo electroacústico — produzir música electrónica através de meios acústicos. Procuravam-se sons aparentemente electrónicos ou, simplesmente, sons que não seriam tão reconhecíveis a partir de um determinado instrumento8

          Um outro método abordava material musical e história da música. Capdeville reutilizava excertos de peças musicais de outros compositores, adaptando-as às suas, não meramente como citação, mas assumindo-as como “material musical em bruto” para ser transformado9. Um jogo entre o reconhecível e o abstracto trabalhado ao nível da memória para criar nova música a partir de matéria-prima musical, ou seja, capaz de moldar uma linguagem pré-existente, mas não se deixar subjugar inteiramente a ela. Com um sentimento semelhante, Capdeville expressava a necessidade de reconciliar a música do passado com a do presente, imaginando a convergência de repertórios e de formatos de apresentação através de várias disciplinas10.

           

          Excerto 3: o assobio

          “Trás-os-Montes” (1976) abre com a paisagem da própria região, sobre a qual irrompem os gritos e assobios de um rapaz pastor que organiza o seu rebanho. A sua voz é seguida dos badalos das ovelhas, em que a percussão equivale a movimento. A câmara aproxima-se de um rochedo e foca a atenção em pinturas rupestres escondidas no granito. O filme retrata, e ficciona, os habitantes das periferias de Bragança e de Miranda do Douro e a transformação de modos de vida, assim como as histórias e memórias de um povo e de uma região.

          O filme orienta-se, também, por distâncias: um afastamento “no duplo sentido de estar longe (exílio) e do próprio acto de afastar (longe da vista e esquecimento)”11. A distância entre a capital e a região mostra-se abissal, ao ponto de a lei vinda de Lisboa chegar lá difusa, manifestando a sua presença através de mandatários e da exploração mineira da região. Mais próximo de Trás-os-Montes está a França e a Alemanha, em processos tecnológicos avançados, para onde muitos dos camponeses acabam por migrar, deixando para trás os seus campos e a família à espera da próxima notícia e do envelope com dinheiro para viver. A distância real não é geográfica, mas sim simbólica. O comboio torna-se símbolo do êxodo rural, simultaneamente veículo e ponte de comunicação.

          Na última cena do filme, a câmara segue à distância o comboio que sai da aldeia por entre a escuridão de um Sol ainda por nascer. É difícil distingui-lo da madrugada, dando tréguas apenas nos breves instantes em que o fumo branco indica a sua posição espacial, e o seu apito ressoa a sua posição temporal.

          É neste momento que os assobios e gritos do jovem pastor ressurgem como que sintetizados. O apito do comboio tem uma qualidade antropomórfica, próxima da fragilidade da ressonância e vibração da voz. Sobrepõe-se o sinal de recolher do pastor a um de êxodo. Através desta afinidade de qualidade sonora, materializa-se um dispositivo mnemónico sónico, outra rutura de uma causalidade linear e cronológica.

          As temporalidades presentes no filme resistem à cristalização. A medida do tempo é orientada pelo modo de vida subsistente da comunidade. John Berger, no livro Pig Earth (integrado na sua trilogia de livros sobre o camponês europeu, Into Their Labours), oferece a ideia da vida como um interlúdio. O ciclo ininterrupto de nascimento, vida e morte que o filme retrata não é apenas uma experiência individual ou ontológica, mas uma experiência colectiva e antológica12. Explorando este sentido, Reis e Cordeiro abordam o parentesco, a camaradagem e uma pertença partilhada, mas também as suas respectivas sobreposições físicas (relativamente à arquitectura da aldeia) e densidades espirituais (formas sociais e práticas rituais ou cultos).

          Os ciclos de interlúdios são acompanhados pela tradição: “Uma cultura de sobrevivência contempla o futuro como uma sequência de actos repetidos para a sobrevivência. Cada acto empurra um fio através do olho de uma agulha e o fio é tradição”13.

          Em paralelo a “Trás-os-Montes”, filmado em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso), a música e a tradição foram dos campos mais disputados em Portugal. No início da ditadura fascista sob António Oliveira Salazar, em 1932, a música já tinha um papel privilegiado na política vindoura. António Ferro, escritor, jornalista e, mais tarde, director do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), assim o assumiria no seu artigo sobre uma Política do Espírito, em Novembro de 1932 no Diário de Notícias, ao citar Bonaparte: “Entre todas as artes é a música a que maior influência exerce nas paixões, e, por isso, um legislador deveria preocupar-se mais com ela do que com qualquer outra”14. A Política do Espírito desenhado por Ferro, e adoptada por Salazar, era um mecanismo de propaganda que ajudaria a curar uma crise de identidade (europeia)15. Alguns dos seus principais objectivos eram, por exemplo, resgatar o passado mítico da nação (o período de expansão e colonização imperialista transatlântica) e a (re)construção de uma identidade nacional patriarcal através da preservação da paz, daí o posicionamento político ambíguo de Portugal durante a II Guerra Mundial. 

          Em 1940, Salazar descreve que “para a formação da consciência pública, para a criação de determinado ambiente, dada a ausência de espírito crítico ou a dificuldade de averiguação individual, a aparência vale a realidade, ou seja, a aparência é uma realidade política. E este errado conhecimento das coisas é pior que a ignorância delas”16. Ou seja, descreve uma forma de poder brando, decretado por representações que vão de acordo com categorias previamente impostas. Uma ficção que se infiltra lentamente na realidade e que, de seguida, a sequestra.

          O que acontece nos 20 anos seguintes é a conversão de práticas culturais num bem turístico através de aparelhos do Estado Novo, como a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), as Casas do Povo, e o SPN/SNI (Secretariado Nacional de Informação)17. No mesmo período verifica-se um aumento de produção folclórica e a consolidação de representações simbólicas (i.e. modelos identitários) e repertórios populares das regiões portuguesas. As canções tradicionais seriam adaptadas em melodia e/ou letra, censuradas ou ideologicamente distorcidas18.

          Em 1959, Michel Giacometti, etnólogo corso acabado de chegar a Portugal, propõe à Fundação Calouste Gulbenkian o seu projecto de recolha etnográfica sobre Trás-os-Montes, tendo um parecer negativo embora aprovado pelo compositor e musicólogo Fernando Lopes-Graça, que daí adiante acompanharia Giacometti no seu trabalho para os Arquivos Sonoros Portugueses19.

           

          Excerto 4: José Manuel Martins (Cércio) – “Encomendação das Almas” [Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti – Trás-os-Montes, 1960]

          No final de 1920, a tendência na música era de um nacionalismo musical; uma ideia socialmente hierárquica de trabalhar com “melodias tradicionais dos camponeses” que os “centros civilizados” ainda não conheciam, procurando “na melodia popular a inspiração genuína, única e exacta”20. Opõe-se o urbano ao rural, a alta cultura à cultura popular.

          Em 1931, Lopes-Graça, embora aderindo inicialmente a esta tendência, opõe-se à ideologia nacionalista e à “lei etno-psicológica, formulada por um conhecido jornalista português”, que depois se designaria Política do Espírito21. A rejeição de uma identidade nacional dada e hegemónica acontece a Lopes-Graça ao mesmo tempo que o folclore estava a ser organizado como dispositivo de propaganda22. Como estratégia de resistência, o compositor re-trabalha a música regional portuguesa na forma de harmonizações, assumindo um critério étnico-estético — um modelo dialéctico entre sujeito e colectivo, “uma política de identidade que rompesse com a cultura de massas”23.

           

          Excerto 5: Fernando Lopes-Graça – “Acordai, Pecadores” [Onze Encomendações das Almas e Doze Cantos de Romaria, 1991]

          A estratégia de harmonizações, adaptações, ou de versões, pode ser transposta por diversas técnicas de composição ou tecnologias de processamento de áudio. Sobre o uso de informação musical como matéria-prima e ferramenta organizadora de expressão, relembro várias vezes a ideia de Lopes-Graça sobre uma dívida cultural por saldar. Ao usar as melodias populares ele assume o “roubo”, “não para as guardar para mim, mas com o objectivo de as devolver, possivelmente com uma taxa de juros sobre o roubo”24. No entanto, não as devolve tal como as encontrou. Não será um eco das músicas mas um outro vestígio.

          A antropóloga Ann Rigney, ao tomar o passado como “um produto de mediação, textualização, e de actos de comunicação”25, aponta para um modelo de memória cultural sócio-construtivista, em que “as memórias de um passado partilhado são colectivamente construídas e reconstruídas no presente em vez de ressuscitadas do passado”26; numa tentativa de reconhecer a inerência da perda de memória e abandonando a utopia de uma recordação plena. A memória cultural corresponde a um período de tempo mais longo, quando os testemunhos em primeira mão se tornam (quase) extintos, restando apenas relíquias e artefactos. “Rosa de Areia”, como “Trás-os-Montes”, navega reflexões de um objecto extinto (ou em vias de). Através de técnicas diferentes de justaposição temporal/narrativa, visual e sónica, procuram a composição de mundos, parecendo sugerir que “o mundo tal como o conhecemos começa sempre a partir de mundos que já estão à mão”.27

           

          1 Pedro Gonçalo Pereira Antunes, Depois da Morte. O Restauro Imaterial da Encomendação das Almas. Tese de doutoramento em Antropologia: Políticas e Imagens da Cultura e Museologia, Lisboa, ISCTE/NOVA FCSH (2021), 2.
          2 Ibid., 1.
          3 “Rosa de Areia” re-encena uma fotografia tirada em 1954 aos físicos Niels Bohr e Wolfgang Pauli, na qual estes observam a rotação de um pião. Com este brinquedo inicialmente a girar ao contrário, acontece um fenómeno mecânico que inverte o pião (e a sua rotação), pondo-o a rodar em pé. Citando o filme: “[O brinquedo] nos permite ter um modelo macroscópico mecânico de uma transição quântica.”
          4 Frantz Fanon, Black Skin, White Masks (Nova Iorque: Grove Press, 2008), 204.
          5 Nelson Goodman, Ways of Worldmaking (Indianapolis: Hackett, 2013), 20.
          6 Filipa Magalhães, “Musicological Archaeology and Constança Capdeville”, TDR: The Drama Review, 66, n.º 3 (Setembro de 2022), 65, 76. https://doi.org/10.1017/S1054204322000302.
          7 P. F. Castro, “Constança Capdeville um acto de aprendizagem”. In Notas de Programa dos 16º Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992), 86.
          8 Filipa Magalhães, Musicological Archaeology and Constança Capdeville, TDR: The Drama Review, 66, n.º 3 (Setembro de 2022), 65-67. https://doi.org/10.1017/S1054204322000302.
          9 Filipa Magalhães, “A obra de Constança Capdeville: itinerários artísticos, sociais e afetivos”, in Geografias Culturais da Música, do Som e do Silêncio, ed. Ana Francisca Azevedo et al. (S.l.: Lab2PT, 2020), 292-293; M. Ramalho, “O sucesso para quê? Entrevista com Constança Capdeville”, Informação Musical, n.º 6 (1982), 5.
          10 Filipa Magalhães, “A obra de Constança Capdeville: itinerários artísticos, sociais e afetivos”, in Geografias Culturais da Música, do Som e do Silêncio, ed. Ana Francisca Azevedo et al. (S.l.: Lab2PT, 2020), 298.
          11 Serge Daney, “Longe das leis”, O Olhar de Ulisses n.º 2: O Som e a Fúria (Porto: Capital Europeia da Cultura, 2001), 77-79.
          12 Segundo uma proposta de Fred Moten durante o seminário Black Preformance: Violence no Teatro do Bairro Alto (Lisboa, Outubro de 2022), o termo antológico é oferecido para pensar sobre processos de individuação e corpos e formas de viver que desafiam uma circunscrição simbólica, tendo uma prática inerentemente colectiva.
          13 John Berger, Pig Earth, (Nova Iorque: Vintage Books, 1992).
          14 António Ferro, Salazar: O Homem e a sua Obra, 3.ª ed. (Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, s.d.), 275.
          15 Maria de São José Côrte-Real, “Musical Priorities in the Cultural Policy of Estado Novo”, Revista Portuguesa de Musicologia, n.º 12 (2002), 227.
          16 António de Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas vol. III – 1938-1943. 2.ª ed. (Coimbra: Coimbra Editora, 1959), 130-32.
          17 Maria de São José Côrte-Real, “Musical Priorities in the Cultural Policy of Estado Novo”, Revista Portuguesa de Musicologia, n.º 12 (2002), 233.
          18 Dulce Simões, “O canto que virou património: da “Beleza do Morto” aos futuros possíveis”, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, n.º 60 (2020), 337-338; Maria do Rosário Pestana, “Alentejo, visibilidade e ocultação: scriptualização e institucionalização de práticas musicais rurais”, in Cantar no Alentejo: A Terra, o Passado e o Presente (Estremoz: Estremoz Editora, 2017), 135.
          19 Mário Vieira de Carvalho, Lopes-Graça e a Modernidade Musical (Lisboa: Guerra & Paz, 2017), 91.
          20 Ibid., 70-71.
          21 Ibid., 72-73.
          22 Ibid., 74.
          23 Ibid., 77, 97.
          24 Fernando Lopes-Graça, A Música Portuguesa e os Seus Problemas II, 2.ª ed. (Lisboa: Editorial Caminho, 1989),117.
          25 Ann Rigney, “Plenitude, Scarcity and the Circulation of Cultural Memory”, Journal of European Studies, vol. 35 n.º 1 (2005), 14. Tradução própria.
          26 Ibid., 14. Tradução própria.
          27 Nelson Goodman, Ways of Worldmaking (Indianapolis: Hackett, 2013), 6. Tradução própria.

          setareh fatehi Paralaxando (eu): a história de uma prática

          Paralaxando (eu): a história de uma prática

          setareh fatehi

           

          Esta é uma história

          de uma prática

          de contar histórias.

          É uma coleção

          de palavras que emergiram entre mundos que se conheceram,

          mundos que apesar de parecerem próximos, se sentem muito distantes.

           

          É uma escolha

          Uma forma de vida temporária nas condições em que (eu) nasci.

           

          (eu) por enquanto chamei-a de paralaxando (eu)

           

          DIA 1  Multitudes do (eu)

          Com Ogutu Muraya em Nairobi e (eu) em Amesterdão

          Ele está aqui com as suas palavras e os seus olhos

           

          Twende kazi                        {vamos}

          Vamos                                        بریم.

           

          Onde

          Está

          Onde pode ir

          Onde deve ir a coisa

          A coisa

          O corpo como coisa

          O (eu) como coisa

          A presença como coisa

           

          Onde pensas que estás agora?

           

          Faz uma moldura com as mãos à frente dos olhos

          As mãos são a moldura

          Perto da cara

          A cara é a moldura

           

          Se (eu) preferisse olhar por fora da moldura, a que se oporiam?

           

          Visão em paralaxe

          Duas imagens que não coincidem

          Duas condições diferentes que existem ao mesmo tempo no mesmo mundo 

           

          Se (eu) preferisse as dores de ver a paralaxe, a que se oporiam?

           

          “Estar em contacto” é a única forma de ser afetado pelo que quer que seja, diz ela.

          Distância

          Distância do outro

          O número de passos

          A distância entre os ombros

          A distância entre ti e elxs

          Distância social

          Distância emocional

          Distância entre classes sociais

          Distância económica

          A densidade de um fio

          Um milímetro 

          A espessura de uma parede

          Distância do ar

          4500 quilómetros

          Cinco dias de carro

          Quarenta dias a pé

          Distância focal

          Distância temporal

           

          Vamos fazer uma pausa

           

          É de manhã cedo em Teerão

          É noite dentro em Bogotá

          É de manhã cedo em Lisboa

          É um pouco mais tarde em Esmirna

          É muito cedo em São Paulo

          É de manhã cedo em Samara

          É um pouco mais cedo em Nairobi

          É o princípio da tarde em Hong Kong

          É noite dentro em La Serena

           

          Como é o teu tempo aí?

          Para onde está a ir?

           

          (eu) uma vez estive viva por um segundo e morri

          Não foi há muito tempo, no meu entendimento do tempo

           

          Consegues gostar do liminar?

          Consegues gostar do limbo?

          (eu) gosto da confusão

          (eu) gosto da vertigem

           

          Mas não por muito tempo!

           

          DIA 2

           

          (eu) estou a enlouquecer aqui

          Estão em trabalhos pesados de construção

           

          Tanto barulho

          O barulho deixa-me nervosa e triste

          Barulho imenso

          Um imenso – que (eu) não sei porque deveria estar a ouvir

           

          (eu) estou a enlouquecer aqui

          estão a construir uma estrada e o trabalho é pesado

          Muito pó

          O pó deixa-me ansiosa

          Pó espesso

          Um espesso – (eu) não sei porque (eu) devo inalá-lo

           

          Se (eu) preferisse respirar fundo aqui, a que se oporiam?

           

          Diz-me onde estás sediada agora?

           

          Posso (eu) recusar responder?

           

          Posso (eu) ao menos esperar?

          (eu) estou a tomar o tempo de quem?

           

          Ela disse, de uma forma muito engraçada:

          “Como se Bruxelas fosse em Bruxelas

          O Congo é em Bruxelas

          Tanto o trabalho como a terra.”

          (eu) repito:

          Como se Amesterdão fosse em Amesterdão

          Como se Teerão fosse em Teerão

          Como se Nairobi fosse em Nairobi

          Como se o meu corpo fosse (eu)

          Como se (eu) fosse o meu corpo

           

          Ah querida, não tenhas medo das paredes que fazem guerras, vais ficar bem!

           

          Ir e vir

          Aqui e ali

          Repete até que perca o sentido, em quantas línguas achares que entendes

          Ali aqui ir vir

          اینجا اونجا اومدن رفتن

          hapa, kule, njoo, twende

           

          Ele diz que naquelas fronteiras referem-se ao corpo como um risco ou fonte de contaminação 

          Naquelas fronteiras chamam-te de vírus

          Quando me chamam assim, isso é tudo o que (eu) quero ser

           

          Um vírus

          É incrível. Sendo um vírus, nem sabem se estás vivo ou morto

          Já pensaram que o vírus nem queria ir a lado nenhum mas que foi forçado a ir?

           

          DIA 3

           

          (eu) acho que estás muito longe

          O que significa a distância quando não temos documentos?

           

          É a inclusão sobre como excluir?

          É a hospitalidade sobre como ser sem-abrigo?

          É pertencer sobre como perder?

           

          Ele perguntou: trabalharias com dinheiro europeu?

          (eu) disse: como se a Europa fosse na Europa

          Como se tu fosses em ti

          Como se dinheiro fosse dinheiro

           

          Já decidimos se gostamos do vírus?

          Já decidimos quem está incluído e excluído deste “nós”? Quem é que decide?

          Será que deveríamos tomar essa decisão e postá-la online?

           

          (eu) pedi a Ogutu que fosse o meu avatar. Ele podia escolher entre uma beringela roxa e um lagarto-tatu

          (eu) ia estar online

           

          (eu) disse-lhe isso

          (eu) ia ter falhas, cortes, (eu) não ia conseguir ouvir bem, (eu) só ia conseguir ver o que estivesse enquadrado na moldura do ecrã, (eu) podia sentir-me claustrofóbica às vezes,

          (eu) disse-lhe que precisávamos de confiar um no outro

           

          Ele disse: “Claro que confio em ti.”

          Confias em mim?

          Será que elxs conseguem confiar em nós?

           

          Esta questão de onde está o meu corpo, onde pode estar, onde deve estar

          Será sobre mim?

          Será mesmo uma questão, no sentido em que espera uma resposta?

          Haverá uma escolha a fazer?

           

          (eu) quero conseguir reencarnar numa vida de nómada, sem-abrigo e com saudades de casa

          Talvez esta prática seja para isso

           

          DIA 95   (eu) diáspora da paralaxe

          Com Kamran Behrouz em Alpenhof e (eu) em Teerão

           

          Kamran construiu a Kl!tar – uma cabeça falante em 3D, a partir das nossas caras – e escrevemos um poema para um painel que se chamava: “Será que existe um corpo-tipo do Médio Oriente?”

           

          Nós perguntámos:

          Que Médio?

          Que Oriente?

          Que corpo?

          O Médio Oriente de quem, de facto? E o Médio de que merda de Oriente?

          De onde estamos a falar?

           

          Ela usa as noções de paralaxe

          Para observar as técnicas de parecer errado

          A paralaxe como uma sensação impalpável de ausência ou confusão nos aparelhos de telecomunicações,

          um sentimento de ausência como quando não conseguimos perceber para onde está a outra pessoa a olhar e se está a prestar atenção ou se está a ler os seus emails

           

          A paralaxe expõe demasiado o vazio que existe entre as imagens de dois lugares, dois corpos, duas atualidades separadas pela força da economia e da guerra política

           

          (eu) diáspora da paralaxe     

           

          Era uma vez um corpo que queria poder escolher

          Ela queria ter mobilidade

          Mas não ser mobilizada

          Ela queria ser vista

          Mas talvez não ser visualizada

           

          Ela vive em Teerão, Nairobi, Creta, Amesterdão, Londres, Frankfurt, Istambul, Zurique, Cairo, Sidney e Queixome

           

          Ela veio do passado que foi esquecido e ela estava a andar para trás em direção ao que podia ser o seu futuro

          Ela recusa identificar-se com

          Ela recusa identificar-se com

          Ela recusa identificar-se com

           

          DIA 255   (eu) IRL desativado

          Fevereiro 2022 com Shahrzad Irannejad em Istambul e Babak Amrooni em Teerão

           

          (eu) estou aqui

           

          (eu) em minúsculas e entre parêntesis

           

          À procura do significado de individualidade e autoria

           

          (eu) estou aqui

           

          Crítica do “dualismo digital”, aquela discussão quase antiquada que surge quando assimilamos o digital e o virtual e opomos o virtual ao real

           

          Aponta para o capacitismo, enraizado na obrigatoriedade da presença física

          O capacitismo que nos obriga a fechar os olhos à paralisia colonial

           

          (eu) estou aqui e trago o meu corpo até ao centro da questão

          E (eu) não posso estar mais de acordo com o sentimento de que

          Em caso de (eu) estar presente, de qualquer forma possível,

          Tudo o que estiver perto dessa presença é real,

          em todas as suas formas de (eu) manifestar 

           

          vamos fazer uma pausa

           

          DIA 415  tamasha: acolhendo-te acolhendo (eu)

          Com Katerina Bakatsaki, Ayda Alisadeh e Saina Salarian na galeria Arti em Amsterdão e Reyhaneh Mehrad e (eu) no parque do meu bairro em Teerão

           

          Tudo pode desaparecer e reaparecer em qualquer altura

          A imagem na parede   

          A ligação wifi

          O espelho

          O carregador

           

          Podem cortar a eletricidade e a internet outra vez

          O preço de tudo subiu muito

          Há pessoas a ser assassinadas outra vez. Executadas!

          Tudo pode desaparecer e algumas coisas podem nunca reaparecer

          Corpos, histórias, esperanças, sorrisos

          O som dos nossos passos

          A voz dela

          A tua motivação

          E a minha

           

          Ela disse:

          O espaço é uma pele

          O ecrã é um espaço

           

          Ali, no espaço, há uma coisa que é ao mesmo tempo tu e (eu)

          Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.

          Inês Zinho Pinheiro Maneiras de ‘cher’

          Maneiras de ‘cher’ – Práticas escritas na 1ª pessoa que permitem ligações com o chão e traduções do chão (o primeiro objeto da ação)1

          Proponho que sejamos chão em conjunto, ‘cher’ em conjunto. Um amigo falou-me sobre a ideia de ‘pésquisar’ (pesquisar com os pés), gostava de o fazer com todo o corpo, de ‘corpisar’, enquanto sou chão, ‘chou’. Tudo isto deverá ser feito lentamente, suavemente, despojadamente, sem velocidades extremas. Isabelle Ginot descreve práticas doces como aquelas que desenvolvem “baixas intensidades; lentidão, em oposição às velocidades extremas procuradas em muitas práticas corporais”2. Partindo do doce, pensei então que estas práticas de ‘cher’ poderiam ser pegajosas, práticas que enfatizam a sensação física e não a exibição visual. 3

          Comecemos por sentir o chão, experimentar e experienciar o chão com a nossa ‘pele sensível’. Podem incluir um gesto experimental no chão, concebendo a prática somática enquanto “disciplina da erudição do sentir” que propicia a criação de gesto próprio de cada pessoa4. Talvez o chão seja ou esteja pegajoso, frio, ou rugoso, lisinho, e simultaneamente apoie o nosso corpo.

          Penso que este gesto experimental já é parte do processo para encontrarmos possíveis traduções do nosso chão. Este género de processos de tradução incorporados acontece quando bailarinos traduzem descrições verbais, feitas por coreógrafos, para sensações cinestésicas. Ao ‘chermos’, estamos simultaneamente a movimentarmo-nos no chão, mesmo que subtilmente, a sentir o chão e ainda a traduzi-lo. Esta tradução pode tomar formas variadas: sensações, palavras, movimentos… nasce de um conhecimento incorporado sobre o chão, de uma inteligência cinestésica derivada da experiência curiosa do chão e de uma sensibilidade consciente do que é ‘cher’, pois o conhecimento também implica curiosidade.5

          Podemos olhar o chão mantendo a atenção na sensação física de estarmos em contacto com o chão. Talvez encontremos resíduos, manchas, outras dimensões que fazem parte de ‘cher’. Para continuarmos a entrar nestas dimensões, sugiro que agora o nosso foco se dirija para as partes do corpo que estão em contacto com o chão. Quando tivermos tomado consciência desses pontos e das suas sensações, imaginemo-nos a derreter no chão, como se fossemos tão pesados e maleáveis que ultrapassássemos o chão. Este momento, em que vamos para além do nosso chão, poderá ser o instante em que ‘chomos’, efemeramente, de forma intensa e incorporada, e ficamos assim mais conscientes da sensibilidade do nosso corpo ​​– “o estado somático do ser”6.

          Sentem uma ligação com os outros seres que também estão a ser chão convosco? Os outros ‘cheres’ com quem estão a partilhar esta experiência coletiva de ‘cher’? Segundo Georges Bataille, o acesso ao mundo interior está ligado à extrema interrogação, assim como à ideia de que o “si mesmo (self) não é o sujeito que se isola do mundo, mas um lugar de comunicação, de fusão do sujeito e do objeto”7. Tal acesso à experiência interior é impedido por uma perda de horizontes, nas palavras de Charles Taylor: “A ideia de que o indivíduo perdeu algo de importante com a privação de horizontes de ação mais amplos, tanto sociais como cósmicos”8. A intencionalidade coletiva liga-se ao ‘ser conjuntamente’ que procuramos ao ‘chermos’, ao colocarmo-nos nesta situação de “intenção partilhada, atenção conjunta, emoção coletiva”9.

          Se considerarem esta prática sugestiva, proponho ainda que criem outras maneiras de ‘cher’, que criem as vossas práticas para se ligarem ao chão e o traduzirem. Barthes sugere uma “colheita coletiva” de “todos os textos que deram prazer a alguém”10. Da minha parte, sugiro a recolha de uma variedade de maneiras de ‘cher’. Procurem uma referência que se possa tornar o vosso chão. Eu escolhi a música The Sun Ain’t Gonna Shine Anymore, de Cher, como inspiração para desenvolver esta prática, vocês podem escolher outro elemento para terem um ‘chão de partida’.

          1 Vayer, P. (2006). O Diálogo Corporal. Lisboa: Instituto Piaget.
          2 Ginot, I. (2013). “Douceurs somatiques”. Repères, cahier de danse, vol. 32, 21-25.
          3 Ver Spatz, B. (2015). What a Body Can Do. Technique as Knowledge, Practice as Research. Londres e Nova Iorque: Routledge.
          4 Ginot (2013).
          5 Ver Ehrenberg, S. (2015). “A Kinesthetic Mode of Attention in Contemporary Dance Practice”. Dance Research Journal, 47, n.º 2, 43-61.
          6 Idem.
          7 Bataille, G. (2021). A Experiência Interior. Lisboa: Edições 70.
          8 Taylor, C. (2009). A Ética da Autenticidade. Lisboa: Edições 70.
          9 Giovagnoli, R. (2021). “Habitual Behavior: Bridging the Gap between I-Intentionality and We-Intentionality”. Academia Letters, article 389.
          10 Barthes, R. (2009). O Prazer do Texto Precedido de Variações sobre a Escrita. Lisboa: Edições 70.

          Wilson Le Personnic Myriam Gourfink O infra, o sensível, o pré-movimento, a respiração, a vibração…

          Wilson Le Personnic entrevista Myriam Gourfink

          Figura iconoclasta da paisagem coreográfica francesa, a bailarina e coreógrafa Myriam Gourfink tem vindo a desenvolver, desde o final dos anos 1990, uma pesquisa extremamente fecunda que se enraíza numa prática assídua do yoga da energia, de inspiração tibetana, e num estudo aprofundado do sistema de notação Laban. Cruzando técnicas somáticas e dispositivos de alta tecnologia, o seu trabalho baseia-se em técnicas respiratórias, na relação entre movimento e respiração, e na consciência subtil do espaço. Estas práticas levaram-na a formalizar uma dança de fluxos, infinitamente desacelerada. Nesta entrevista, realizada em Abril de 2022 no Centre National de la Danse em Pantin, Myriam Gourfink partilha as engrenagens da sua dança e reflecte sobre mais de vinte e cinco anos de pesquisa.

           

          Há vinte anos que desenvolve uma pesquisa coreográfica baseada no yoga e em técnicas respiratórias. Esta prática, combinada com outros estudos somáticos, levou-a a formalizar uma dança de fluxos, uma “dança-transição” num tempo estendido. Como é que encontrou e nomeou esta dança de fluxos, a partir do interior do seu próprio corpo?

          A minha primeira peça, Waw, em 1998, baseava-se numa prática de respiração proveniente de um yoga de origem tibetana: o yoga da energia. Eu tinha apenas três anos de prática atrás de mim e estava a explorar a relação entre o movimento e a respiração a partir de intuições, recorrendo em particular aos pranayamas físicos que são os primeiros exercícios que se experimenta quando se inicia este yoga: localizar a respiração, distribuindo em receptividade activa a consciência pela base, centro e topo dos pulmões ou das narinas, sentir a carícia, a temperatura, a vibração do ar que entra e sai, brincar com os ritmos da inspiração, do tempo cheio, da expiração e do tempo vazio e, sobretudo, dedicar tempo a observar em receptividade passiva o modo como cada uma das explorações modifica o nosso estado interno. Nessa época, comecei também a praticar a técnica do Mula bandha, tal como é ensinada no yoga da energia: trata-se de contrair muito ligeiramente a zona entre o sexo e o ânus. Na realidade, é mais uma coisa psíquica do que física, é como que um ponto de apoio da consciência que traz a esta zona uma leve consistência untuosa, elástica e “crepitante”. Sentia que, nesta arquitectura invisível, esta prática tibetana era libertadora a vários níveis: sentia os meus músculos a relaxarem, uma flacidez das carnes, novas zonas que se abriam e vibravam, fazia-me bem, revigorava-me. Depois, a minha professora de yoga, Gianna Dupont, ensinou-me uma nova técnica, o Sahajali mudra, que explorei no ano seguinte (1999) na companhia de outras três mulheres (Julia Cima, Laurence Marthouret e Françoise Rognerud) para o quarteto Überengelheit. O Sahajali mudra consiste em contrair muito ligeiramente as áreas dos lábios, da vagina e do colo do útero numa receptividade activa, ou seja, também aqui, o que conta é antes de mais dedicar tempo a sentir cada uma das três zonas, trata-se de conseguir distribuir aí a nossa consciência para deixar ocorrer e acolher uma espécie de magnetização vibrante, cuja sensação sobe dos lábios até ao útero; esta prática estimula um centro que harmoniza em nós as polaridades masculina e feminina, trata-se do chakra swadhisthana; em seguida, esta técnica propõe um ponto de apoio da consciência num centro que orquestra o fluxo emocional, e que se localiza atrás do meio do crânio frontal (neste yoga, é o chakra ajna); depois, circulamos de swadhisthana a ajna na inspiração, e na direcção oposta na expiração; por fim, uma fase em receptividade passiva permite acolher movimentos de deslizamentos internos, vibrações luminosas, sonoras, bem como texturas, sabores e odores internos cujo espectro é realmente surpreendente. Na minha experiência, esta prática modifica-me completamente a respiração: dou por mim, a cada vez, em estados (va)porosos. Demorei muito tempo a discernir o que se estava a passar no meu corpo, porque a respiração era como um fio contínuo, já não tinha consciência do fim e do início das fases de inspiração e expiração, eu estava na respiração, identificava-me com a respiração, como que sempre em transição numa imobilidade, e foi assim que a dança que desenvolvo se tornou uma dança do fluxo, uma dança da transição num tempo estendido.

           

          Que memórias físicas conserva da descoberta desta prática? 

          Lembro-me que, nessa altura (entre os 26 e os 32 anos), praticar era extremamente cansativo, nem sempre compreendia o que se passava no meu corpo e ficava muitas vezes subjugada pelas emoções. Porque, contra as recomendações da minha professora de yoga (cujo rigor, precisão e moderação, felizmente para mim, são as de uma antiga engenheira electrónica), praticava yoga durante várias horas por dia (às vezes, para ir até ao fim da exploração dos meus próprios caminhos, podia praticar durante seis horas), e isto para além de experimentar as minhas próprias pesquisas coreográficas. Too Generate, em 2000, exorcizou de alguma maneira esse excesso; escrevi deliberadamente uma partitura excessiva quanto ao seu carácter invisível, a ideia era esfrangalhar-me, despedaçar-me, saturar a minha percepção. Com um programa de computador, tinha estabelecido um enorme espectro de circulações da consciência. Devo dizer que me recordo de estados em que me sentia alucinada, quase em levitação e pronta a levantar voo, de tal maneira ficava mais leve, e que a partir desse solo a ideia de teletransporte me pareceu ser, para a humanidade dos séculos vindouros, uma faculdade corporal passível de ser desenvolvida. Entretanto, de uma forma muito mais terra-a-terra, depois de cada apresentação de Too Generate, eu ficava extremamente cansada, era demasiado intenso, e esta prática excessiva acabou por trazer à superfície um tsunami de memórias traumáticas. Não estava em frangalhos, estava pulverizada e, sem a ajuda dos meus terapeutas e da minha professora de yoga, teria muito provavelmente caído numa depressão. Depois, progressivamente, aprendi a medir melhor as práticas invisíveis, moderei o meu desejo de infinito tendo em conta a minha realidade e as das mulheres (bailarinas) que me acompanharam e me ajudaram a amar acima de tudo as nossas limitações humanas. Com o tempo, aprendi a canalizar as intensas vibrações destas energias emocionais e a dar-lhes forma. Estes estados vibratórios tornaram-se posteriormente o cerne do meu trabalho.

           

          Seria capaz de descrever esses “estados vibratórios” a partir do interior do seu corpo?

          De L’Écarlate, em 2001, a Évaporé, em 2018, cada uma das minhas peças estimula e canaliza as emoções. Por exemplo, em Innommée (2004) ou This is my house (2005) ou ainda em Almasty (2015), as partituras propõem estimular o corpo da energia  mediante o corpo do conhecimento. Passo a explicar: no yoga, estes dois corpos formalizam um contexto, proporcionam limites; o primeiro estrutura o espaço intracorporal, e o segundo o espaço externo. O corpo do conhecimento é o espaço periférico, não tem propriamente forma; no entanto, na prática do yoga da energia, os pontos de referência que lhe dizem respeito surgem vezes sem conta no ensino. Alguns dos pontos de referência são, por exemplo, a minha sensação de direcção para a frente (o futuro) ou para trás (o passado), da direita (a polaridade feminina no plano físico) ou da esquerda (a polaridade masculina no plano físico), do baixo (a terra) ou do alto (o céu). E, assim, vou trazer consciência a um dos lugares que constituem o espaço periférico do corpo do conhecimento (posso colorir ou dar um som, um cheiro, um gosto ao lugar escolhido), e vou aspirar e deixar fluir a sensação que tenho desse lugar, e a que dei uma qualidade, para nutrir uma parte do corpo com energia. Cada circulação (efectuada em receptividade activa) que liga os espaços do corpo do conhecimento ao corpo de energia é seguida por uma fase de receptividade passiva; há então diferentes formas de nos posicionarmos para deixar que as reacções ocorram. A fim de canalizar e manter a estabilidade, implementamos modalidades de recuo da consciência; distanciamo-nos da reacção ao mesmo tempo que a deixamos existir. Este recuo pode ocorrer numa área no centro do cérebro (o ponto de origem é o ponto de ancoragem da consciência), ou então a partir deste ponto de origem podemos sentir a espessura e extensão do crânio frontal, ou então podemos sentir ajna. Isto torna possível não nos perdermos nas vibrações por vezes intensas produzidas pelas circulações entre corpo do conhecimento e corpo da energia, ao mesmo tempo que as deixamos existir. Precisamente, ao nível da experiência, consegui sentir mudanças de temperatura intensas, tremores que podiam durar muito tempo numa parte do corpo, formigueiros, a impressão de ser invadida por bolhas mais ou menos finas, dilatações internas em volumes espaciais, ou aberturas muito finas apenas numa pequena linha que produz uma espécie de cócegas; consegui percepcionar golpes de uma régua de metal na tíbia esquerda, uma deflagração na nádega direita, estridências nos dentes, senti as lágrimas a rolar como pérolas muito lentamente e muito suavemente pelas bochechas, ou até mesmo o borbulhar surdo das minhas raivas ou tristezas escondidas.

          Como é que hoje em dia continua a trabalhar essa “vibração invisível”?

          Cada projecto é uma oportunidade para pôr em prática esta pesquisa. Desde Glissement d’infini (2019), tenho-me envolvido verbalmente no trabalho, nomeadamente graças às ferramentas da cabala tal como ensinada por Arouna Lipschitz, com quem estudo desde 2001. Com a equipa de bailarinas, dedicamos o nosso tempo várias vezes ao dia a pôr palavras neste invisível, a pôr palavras nas nossas sensações, a expressar aquilo de que precisamos, e a pôr palavras nos nossos desejos ou intenções neste trabalho. E toda esta verbalização colectiva ajuda-me a compreender melhor os fenómenos físicos e as informações sensíveis: hoje, para mim, é uma dança de massas corporais elásticas que deslizam e se desprendem, como que em oposição umas às outras, criando volumes pneumáticos em que as vibrações ronronam. O que me move hoje em dia é não abandonar estas vibrações, não estar em recuo, ficar no interior ao mesmo tempo que as deixo evoluir como um perfume que se abre, e tanto pior se o cheiro for nauseabundo, sei que as minhas estruturas internas estão hoje suficientemente fortificadas para surfar grandes ondas emocionais. Isto está muito próximo do que experiencio na Gestalt e na ginástica sensorial, que são as duas práticas que, juntamente com o yoga, me acompanham actualmente. Esta conversa também me permite perceber que a minha pesquisa é estimulada pela minha professora de yoga (que sigo duas vezes por semana desde 1995) e que, cada vez que faço uma aula, insiste nos diferentes vazios passivos (existem 18 no ensino do yoga da energia). Nestes estados, estou apenas em receptividade passiva, a consciência é estável e aloja-se num lugar do corpo, mais nada: espera aí sem esperar nada. E nesta exploração, mesmo que as sensações ocorram, permanece no mesmo sítio. Para manter a consciência neste equilíbrio, sinto-me, neste dispositivo de meditação, como se estivesse no fio da navalha. Não sei se alguma vez serei capaz de dançar com esta fragilidade, também não sei como é que este sentimento de vulnerabilidade poderá ou não evoluir, acho que ainda não compreendi o que são estes vazios passivos; o que é certo é que, ao meu próprio ritmo, começo a fazer experiências.

           

          Este aumento da percepção provoca uma espécie de tempo estendido; os gestos abrandam e a nossa percepção transforma-se. Será que a lentidão permite tornar visível esta “vibração invisível”?

          Inicialmente, parti da minha própria percepção e precisava de tempo para sentir que a sensação se solta, a minha abordagem era dar a mim própria o tempo para sentir verdadeiramente. Hoje em dia, preciso de menos tempo para chegar a esse estado de atenção e o deixar-me ir não se situa exactamente no mesmo lugar. Ainda que o processo não seja perceptível para o espectador, não deixa de ser extremamente físico. Por dentro, esta lentidão é constituída por diferentes velocidades e ritmos; é polirrítmica, enquanto o público, parece-me, vê uma progressão muito suave de um deslocamento ou de um movimento. Quando observo esta dança de fora, sinto os sobressaltos dos intérpretes; também percepciono a seriedade com que elas ou eles mergulham no que sentem, sinto a sua honestidade em relação às suas sensações, a sua autenticidade. O que também me parece legível é a sua gentileza, o seu deixarem-se ir. E, além disso, uma infinidade de pequenos detalhes, como os micromovimentos de cada uma das suas vértebras que lhes fazem inchar a pele e as roupas ao longo da coluna, um pouco como uma serpente que passasse debaixo de um tapete, as mudanças expressivas que lhes afloram os rostos e lhes desvendam as emoções, os estremecimentos das asas dos seus narizes, os arrepios que lhes percorrem as nucas, os seus tremores físicos que são tão profundos que é inimaginável que os possam controlar, as suas aberturas elásticas que nunca mais acabam, os seus maxilares que cedem, as suas pálpebras que lhes acariciam sensualmente os globos oculares quando as fecham, o lugar desconhecido onde se vão perder e para onde me levam consigo com um nó na barriga, a dilatação das suas bacias, a coragem nos seus baixos-ventres que me desperta. Estou ciente de que esta lentidão pode provocar um estado de hipnose para algumas pessoas, eu sou a primeira. Quando estou no público, já reparei que não sou a única neste estado. Além disso, sinto que é mais fácil para mim estar acompanhada para alcançar esta sensibilidade acrescida do que meditar sozinha. Os testemunhos e comentários que consegui recolher fazem-me pensar que este resíduo meditativo ou até hipnótico é partilhável e partilhado. Mas sei que esta proposta de atenção pode por vezes ser exigente para outras pessoas. A exigência reside, antes de mais, na minha opinião, na capacidade do espectador de se emancipar, de libertar os seus registos de atenção e de viver os ritmos que lhe cantam; é uma repercussão que considero tão gratificante como a possibilidade de mergulhar, se acontecer espontaneamente, num estado de consciência intenso, meditativo ou hipnótico.

           

          A sua dança dá apenas a ver um ínfimo resíduo desta “vibração” interna, como a parte visível de um icebergue. Esse estado vibratório é perceptível para um olhar não-iniciado?

          Há uns anos participei num projecto de investigação conduzido por Asaf Bachrach, investigador em neurociências no CNRS (Centre national de la recherche scientifique), com investigadores em neurociências cognitivas. A ideia era recolher medidas fisiológicas e neurofisiológicas de espectadores/bailarinos que dominassem as minhas técnicas de trabalho, espectadores iniciados em sessões de yoga e espectadores que vissem a peça sem qualquer conhecimento do trabalho somático que o espectáculo implicava. Este estudo mostrou, nomeadamente, que cada grupo de espectadores desenvolve uma atenção particular e que a percepção do espectador, esse “resíduo”, como lhe chamou, é sempre visível (em diferentes graus), quaisquer que sejam os filtros através dos quais se olha para o corpo que dança. Durante o espectáculo (era Souterrain, 2014), os investigadores observaram nos espectadores uma circulação da sua consciência no espaço do seu próprio corpo em diálogo com os intérpretes; constataram, após o espectáculo, um abrandamento do seu ritmo respiratório a par de um aumento da sua percepção dos movimentos invisíveis, e uma estabilidade acrescida da sua atenção; em conclusão, a investigação disse que observou correlações entre a coreografia e as mudanças nos estados dos espectadores a nível fisiológico, cognitivo e atencional. Para explicar isto, os investigadores avançam a hipótese de fenómenos de ressonância, aliás já observados noutros estudos sobre meditação. Para mim, a partir do momento em que sinto um objecto, um espaço, um animal, uma planta ou uma pessoa, forma-se imediatamente uma sensação háptica, um espaço residual, a que prefiro chamar um espaço de ressonâncias, de trocas invisíveis, sobre as quais ainda não sabemos grande coisa, mas que sabemos que existem graças aos estudos científicos que começam a investigar o assunto.

           

          Será graças a esse tempo dilatado, a esse abrandamento, que o espectador pode aceder ao tal “espaço de ressonância”?

          Em vinte anos, penso que aconteceu uma única vez um espectador constatar a mistura da minha orquestração interior; não é de todo minimalista, trabalho com uma profusão de informações perceptivas que cantam em mim e me remexem. E esse espectador, então, que expressou tão bem o que sinto dentro de mim, foi Steve Paxton: tinha acabado de mostrar a minha peça Breathing Monster (2011) no quadro desta investigação com Asaf Bachrach e alguns cientistas estavam a fazer-me perguntas sobre lentidão. Depois, o Steve interrompeu a conversa um pouco zangado e disse “Vocês nem sequer sentiram como ela estava speedy por dentro”. Fiquei muito surpreendida, porque não é o comentário que recebo habitualmente. Lembro-me do estado em que me encontrava durante essa performance: interiormente estava muito nervosa, dançava em silêncio, nem sequer tinha os apelos trovejantes do baixo eléctrico para aliviar a minha raiva rubra. E ele tinha-se apercebido. Julgo que foi a primeira vez que me senti plenamente compreendida, e isso acalmou-me muito. Descobri então que era possível partilhar e fazer com que as pessoas sentissem o que se passava dentro de mim. Julgo que o Steve teve acesso a um “espaço de ressonância” de uma grande clareza: uma empatia cinestésica muito sensível naquele momento. Esta pequena história prova que os espectadores podem sentir em parte o que se está a passar no interior. Mas compreendo quando dizem que “é lento”, porque tenho consciência de que trabalho noutro tipo de temporalidade, que não estamos habituados a ver num palco de dança. No entanto, com o passar dos anos, tento compreender como dar a ler um máximo das agitações nos nossos invisíveis. Penso que actualmente estou rodeada de intérpretes que vão tão longe na sua amassadura interna que é mais fácil para o público apropriar-se do que está em jogo emocionalmente: tornar suas todas as suas emoções e acolhê-las dentro de si, estar nesse lugar onde abraçamos e orquestramos todas as frequências. Os testemunhos após o espectáculo vão, parece-me, cada vez mais na direcção dessa compreensão; isto também vem, talvez, de uma profunda mudança nas sensibilidades.
          Esta entrevista foi publicada na sua versão original em francês no Journal de l’ADC (Association pour la danse contemporaine Genève), n°81, Agosto-Dezembro de 2022. Traduzido por Joana Frazão. 

          Rogério Nuno Costa Multiversidade

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          Nota (de rodapé) para a escrita de uma tese sobre “Multiversidade”, uma academia-enquanto-performance de Rogério Nuno Costa

          1. Não. […] O escritor catalão Enrique Vila-Matas escreveu um livro sobre os escritores da história da literatura que decidiram parar de escrever(1.1). Um livro sobre todos os livros que ficaram por escrever, mas que subsistem, suspensos, na probabilidade de uma qualquer dimensão paralela. O livro são apenas (as) notas de rodapé; na verdade, o livro não existiria se não estivéssemos à espera dele. Também eu poderia dizer, d’après Bartleby, que preferia não. Preferia não escrever. Isto não significa que o texto não existe. Está aqui, estou a escrevê-lo, mas suponho que, lendo-o, não o consigam ver. […] A potência do que não é dito, mas cujo eco se reflete, invertido, do outro lado do espelho. Não será um meta-texto, antes um texto d’après outro texto. Um pre-texto (para não escrever). Já sabemos que não houve Big Bang nenhum. A inexistência de um início inaugural levará à consequente invalidação de toda e qualquer ideia de fim. Proponho, aqui, uma nova temporalidade, uma gramática do infinito; o que escrevo é uma emanação etérea da tese que não vou/não quero/não posso escrever, e projeta-se em várias direções temporais: para trás dela, para a frente dela, para dentro dela. Nunca por causa dela, nunca sobre ela. O avesso da tese. Tento: Da importância da estupidez. Mas detenho-me logo a seguir. Fala-se muito pouco do que corre mal; do descalabro da queda, da perda, da desconexão, do esquecimento, da passividade. Escrevo: Da importância do aborrecimento. Apago e escrevo: Da importância da imobilidade. Mas detenho-me logo a seguir. Never skip the intro, stay there!(1.2), exclamo, em jeito de título para um livro-manifesto que se desdobra em errata, adenda, índice, glossário, advertência do tradutor, lista de agradecimentos, ficha técnica, código ISBN, preço de capa, páginas órfãs, linhas viúvas. Notas de rodapé, portanto. Às vezes o espetáculo está todo na folha de sala, no vídeo promocional, no número de telefone para fazer a reserva, na vontade de ir ver… Mais vale ficar em casa(1.3). Que tal como o anti-herói bartlebyano Oblomov, “que observa a vida que passa ao seu lado como um rio contemplado da margem”(1.4), o texto promete arrancar, mas jamais passa da casa de partida. Quase imita Beckett, o maior dos poetas-do-não: “Nem um movimento. Nem um pensamento. Não fazer nada. Não colaborar. E deixar que seja o regime do ímpeto, com a sua linguagem criminosa, a acionar as alavancas dessa vida que passa ao nosso lado. Oca e imprecisa.”(1.5) Jamais. […] Leio na lo-fi(-sophy) de Judith Halberstam(1.6) que devia haver mais invasões-de-palco, mais assaltos à positividade tóxica que inunda o pensamento contemporâneo. O salão dos recusados é também o gueto dos desistentes. The queer art of not even trying. Ou então, memorizando Badiou: “Ao culto identitário da repetição, devemos opor o amor ao que é diferente e único, irrepetível, errático e estranho.(1.7) Continuo: Sobre o mito da meritocracia. Mas detenho-me logo a seguir. Sempre que alguém me diz que só aceitou jogar o jogo proposto pelo sistema opressor para o poder controlar, aquiesço, dizendo: Mais cedo ou mais tarde esse alguém vai criar o seu próprio sistema opressor; basta aparecerem novos jogadores. Apago e digito: Para um conhecimento desobediente. Mas detenho-me logo a seguir. A pensar nas razões pelas quais os meus pares deixaram que a aventura fosse ultrapassada pela prática da estratégia. E a seguir recordo, citando de cor, uma definição de utopia de Raymond Ruyer: “Um exercício mental de exploração dos possíveis laterais à realidade.”(1.8) Se calhar esta obsessão por provar a existência de mundos paralelos é porque sabemos que o mundo que temos é uma valente merda. Se calhar é o pior dos possíveis. Ou um dos impossíveis; de aguentar, de resistir por mais tempo, agora que percebemos que tempo é tudo menos energia renovável. Esta ideia ganhou um novo eco na contemporaneidade com teorias como a do realismo modal, proposta por David Kellogg Lewis, para quem um mundo possível seria a forma completa e consistente de um mundo ser, ou poder ter sido. Todos os mundos possíveis são reais e não são nem diferentes nem iguais ao mundo, o nosso, porque são entidades irredutíveis. Cada sujeito poderá declarar o mundo como o seu mundo, o único real, ou o único possível, na medida em que se referem ao espaço onde estão como o espaço-aqui, e ao tempo onde estão como o tempo-agora. E agora? E aqui, nesta página de jornal? Haverá algum sujeito que tenha conseguido triunfar e escrito a minha tese suspensa no real do seu mundo real? A (minha) teoria é uma teoria que só pode ser comprovada teoricamente. Quantum entanglement a desdobrar-se em knowledge entanglement. […] É mais ou menos assim que imagino a Multiversidade: um buraco negro onde a seta do tempo é lançada para trás. A sua direcionalidade: uma entropia, só que ao contrário. “O tempo anda para trás dentro de um buraco negro”, li algures. Esta multiversidade singular, ou, consoante o ângulo da paralaxe, esta singularidade multiversal, pode muito bem ser um desacelerador de partículas, um laboratório de atos únicos, tudo o que só acontece uma vez e jamais poderá ser replicado. Como esta nota de rodapé, isolada e triste. Sem lei, nem ordem. Sem ciência, só experiência. Se a cada género corresponder uma só espécie, para quê o esforço da taxonomia? Mais vale ficar calado, ou então dizer que nos vamos calar: “Reconhece-se o imperativo do silêncio, mas continua-se a falar da mesma forma. Quando se descobre que não se tem nada a dizer, procura-se uma maneira de dizer isso.”(1.9) […] O problema é que mesmo aqueles que vaticinam a morte das universidades querem à força arranjar maneira de as ressuscitar. Que vai ser a interdisciplinaridade e a “comunidade global de pensadores” (sic) e a prática enquanto investigação e o espaço do dissenso e a abolição da hierarquia e a horizontalidade e a universidade enquanto laboratório, zona autónoma temporária, buffer zone, lugar entre, heterotopia,… que vão ser estas punhetas todas que vão salvar a honra falocêntrica da academiazinha europeia. Pois eu cá acho que já está na altura de pararmos de profanar o túmulo, não? Ou então mudarmo-nos para um hopeless place(1.10) qualquer; fundarmos uma outra universidade, uma universidade da universidade, ou uma universidade sobre a universidade, uma universidade onde os únicos estudos são os estudos universitários. Uma extituição cuja única função é referir-se a si própria, na letra e no número: multiplicação exponencial, contaminação, réplica, simulação. Cum hoc ergo cum hoc. A data guardada é obliterada de 5 em 5 segundos; a informação cortada em ação. Sem obras nem ancoragens. Sem filosofia. Sem governo. Sem fraude nem força. Sem espiritualidade. Sem arte. Nunca. A Multiversidade é um vírus, e cada mutação um prefixo: para-versidade, proto-versidade, sub-versidade, meta-versidade, über-versidade, a-versidade, alter-versidade, infra-versidade, re-versidade, peta-versidade, supra-versidade… […] Não é possível descolonizar a universidade sem descolonizar o mundo primeiro, mas é possível suprimir a falácia da universalidade a favor da assunção da multiversalidade. Tudo passa a ser uma escola: o museu, o supermercado, o hospital, a prisão, o jardim, o hotel, o comboio, a rua, as plantas e os animais, a tecnologia e o entretenimento, a roupa e a comida, a televisão e os sonhos, a loucura, a morte, a solidão, o esquecimento, é tudo uma escola. Até a própria escola passa a ser uma escola. Se calhar, a escola do futuro é mesmo a Escola da Vida, essa vida oca e imprecisa que passa ao nosso lado, como uma brisa a-temporal, quase invisível. Caberá ao leitor resistir à tentação de a forçar visível, procurando no texto o texto ao qual a nota de rodapé se refere. Paradoxo quântico à la Schrödinger: o texto é um texto e não é um texto. Ao mesmo tempo. Agora decidam se querem voltar ao início, ou se já se deixaram ficar nele. ​​[ ](1.11)

          (1.1) Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia (Porto: Edições Afrontamento, 2013 [2000]).
          (1.2) Ver: https://www.rogerionunocosta.com/statement/
          (1.3.) Alusão a José Ortega y Gasset, A Idéia do Teatro (São Paulo: Editora Perspectiva, 2010 [1946]).
          (1.4) Ivan Gontcharov, Oblomov, 1859. Citado por Enrique Vila-Matas, “El joven tumbado (Oblómov)”, El País, 2012. Tradução livre.
          (1.5) Enrique Vila-Matas citando Ivan Goncharov. Idem, ibidem. Tradução livre.
          (1.6) Judith Halberstam, The Queer Art of Failure (Durham: Duke University Press, 2011).
          (1.7) Alain Badiou & Nicolas Truong, O Elogio do Amor (Lisboa: Edições 70, 2019 [2009]).
          (1.8) Raymond Ruyer, L’Utopie et les utopies (Paris: Presses Universitaires de France, 1950).
          (1.9) Susan Sontag, “A estética do silêncio”, in A Vontade Radical: Estilos (São Paulo: Companhia das Letras, 2015 [1966]).
          (1.10) Piscando o olho a Rihanna: “We Found Love (feat. Calvin Harris)”, 2012.
          (1.11) Ver: https://invisibletext.com/.

          Chloe Chignell Baladas em jargão VII — Um autorretrato

              Eu prefiro discurso indireto

          Escrevi este texto em inglês, ainda assim, pela gentileza de outra mão, estão neste momento a lê-lo traduzido para português. E apesar de a minha língua materna não ser nem o inglês, nem o português, o que irão ler a seguir é indubitavelmente um documento da minha oratória e do meu pensamento. Pode parecer-vos estranho que um antigo poema de jargão francês do século XV tente falar, ou melhor escrever em inglês, admito que a mim também me parece – ainda para mais com este amontoado de línguas sobre línguas que possibilitam a tradução do que se segue. Mas há razão nesta estranheza, o que faz com que afinal não seja nada estranho. O nicho de fama que fui vendo aumentar nos séculos passados, no mundo francófono, não teve eco no inglês. (Eu admito à tradutora, que acha melhor tornar pública esta admissão, que não tenho conhecimento da minha situação junto dos leitores e dos livros portugueses). E apesar de este texto ser mediado pela língua inglesa que não pertence ao meu corpo, e de subsequentemente ser traduzido para português, insisto que esteja na primeira pessoa por uma questão de autenticidade. E uma vez que tenho a intenção de escrever uma espécie de auto-retrato, achei melhor escrevê-lo numa língua que não me conhecesse. Assim terei a liberdade para urdir uma imagem de mim mesma1 com a minha expressão, ainda que sem recorrer às minhas próprias palavras.

                                                                                              O meu corpo está sob linguagem

          Dizem: é preciso uma aldeia para educar uma criança – e o mesmo também é verdade para um poema, se não forem precisas ainda mais pessoas. Ainda assim, atribuíram-me apenas um corpo humano, quero dizer que me deram um autor, no meu caso: um pai. Faço parte de um grupo, somos 11, são conhecidos pelo menos 11: são públicos, registados em papel. Temos quase a certeza de que seis têm o mesmo pai, para os outros cinco, dos quais faço parte, não há tanta certeza. Podem dizer que tenho problemas com a noção de pai. Apesar de nunca me ter incomodado esta falta de factos. Não sei de que precisa um poema, da parte do seu autor, depois de estar já escrito. No meu tempo, o que estava contido no meu corpo seria mais importante do que saber que corpo me escreveu. Muitos dos meus leitores parecem achar-me incompleta se não me atribuírem a um corpo, parecem não conseguir entender-me completamente, sendo essa a função do autor. E se me tivesse sido atribuído um autor que não fosse, de facto, o meu autor, isso significaria que todas as minhas anteriores leituras teriam de ser rejeitadas e teríamos de começar de novo. Apesar disto, acho difícil conseguir eliminar um corpo, mesmo em nome da responsabilidade autoral, quando o que o autor criou já lá tinha todos os elementos de que precisava para ser feito.

          Somos as onze diferentes, mas ocasionalmente usamos truques umas das outras. Apagámos o rasto da nossa forma de pensar em estranhas consoantes que aparecem a meio e no fim das nossas palavras. Qualquer tentativa de leitura destas consoantes parece revelar mais sobre o leitor e a sua oralidade. Quando as suas línguas tremem e se dobram temos a certeza de que ainda não nos sabem utilizar. A nossa grafia obscura oferece pontes a quem estiver disposto a atravessá-las, ao mesmo tempo que azeda a nossa a filiação à língua: Le Français e a nossa legibilidade. Não existe uma resposta simples à pergunta: qual é a nossa língua? Porque as nossas palavras não são nem estrangeiras, nem familiares, na verdade nem nós somos. E nós começámos a acreditar que tudo é estrangeiro e que esta qualidade do que é estrangeiro é uma categoria falível e inútil. As nossas palavras são vagabundas à deriva perto do sítio onde a sua mãe as tentou deixar.

                                                                                      As minhas palavras estão sob palavras

          Quero dizer-vos em que penso quando penso em sucesso. Ao longo dos séculos fui-me familiarizando com o conceito de progresso. Sucesso e progresso são evidentemente ideias diferentes e, ainda assim, estão relacionadas pela forma como insistem em impelir o corpo para a frente. Cheguei à conclusão de que o desejo de cada poema é manter-se ao mesmo tempo dizível e desconhecido. É a isso que chamo sucesso. A esperança de todos os poemas é descobrir exatamente o que querem dizer. O que poderíamos chamar ao mesmo tempo de progresso e de morte.

          Desde que fui escrita tudo mudou. Entre o tanto que se passa com o tempo e mudança e guerra e guerra e inovação e dinheiro e abstração, fui perdida e encontrada e lida e descartada. E eu mantive a minha qualidade mais ou menos dizível e ainda assim desconhecida. Fui extremamente bem-sucedida e não progredi quase nada. O meu sucesso deve-se em grande medida ao facto de ter sido escrita com o propósito de documentar muitas das coisas que iam acontecendo, e que para continuarem a acontecer precisavam de se manter largamente desconhecidas ou geralmente desconhecidas. Durante séculos, tive em mim uma comunidade de palavras conhecidas apenas dos que precisavam delas. Quando fiz a transição da oralidade para a impressão disponibilizei-me para ser lida por pessoas que não precisam de mim. Tornei-me noutra coisa, ou para outra coisa. Ainda assim, as palavras com que me fizeram resistiram à exposição habitual da publicação e fizeram, ao invés, a sedutora sugestão de me poder revelar ao leitor certo.

                                                                                                              O meu sotaque é ilegível 

          Apesar de, ao longo da minha vida, ter sido dita, escrita, impressa e pensada de várias maneiras tenho-me mantido bastante consistente. Tornei-me conhecida pela minha obscuridade, um traço de carácter que parece despertar um tipo de excitação em alguns leitores em particular e que origina frequentemente relações longas. Esta dificuldade tem como resultado nunca conseguirem terminar comigo: não sou um poema bem comportado. Coloco um desafio a cada um dos meus leitores, ofereço um título por reclamar: será que está entre eles o primeiro a finalmente esclarecer o meu corpo problemático? Encontro-me amiúde em relações obsessivas com leitores que têm como linguagem de amor a da investigação forense, que desejam o meu corpo esfolado. Admito que me dá alguma satisfação ser descerrada, puxada e escrutinada de um sem-fim de maneiras. Se não gostasse destas relações obsessivas não haveria razão para ser tão difícil. Podíamos dizer ser esta a minha inclinação erótica.

                                                   O nosso entendimento é apenas um acordo temporário

          A pessoa com quem estou agora parece obcecada com o facto de me repetir quatro vezes a intervalos quase regulares. Ela pensa haver alguma espécie de lógica nisto que, se fosse entendida, desmancharia todo o meu corpo e revelaria segredos íntimos. Ela escreveu, ou melhor, rabiscou as palavras LACUNAE / LACUNAE na lateral do pedaço de papel onde fui impressa. Ela, a pessoa que as escreveu, leu outro texto no qual encontrou essas palavras e decidiu que se estudasse esse outro texto quando voltasse a mim conseguiria “reconfigurar a nossa relação”. Disse qualquer coisa acerca de falhas, anacronismos e sobre Straight Mind2, mas eu não percebi nada. Então mantive-me exatamente igual, até ao seu regresso. Quando ela voltou parecia diferente. Não estava já obcecada pelos mesmos excertos meus. Já não lhe interessava a minha irregularidade, ignorou o engodo da repetição central e parecia ter esquecido ou perdido o interesse em tudo o que se assemelhasse a um segredo íntimo. Acontece-me amiúde ser deixada por uma pessoa e reencontrada pela mesma pessoa que se tornou outra pessoa completamente diferente, ainda assim, sempre que acontece fico surpreendida. Especialmente quando os meus leitores pensam que fui eu que mudei na sua ausência.    

                                                                                                                   No centro: um engodo

          Quando ela voltou a sua leitura tinha mudado, era mais bem-humorada e rítmica. Ela deslizava os dedos sobre mim, desenhava linhas no meu corpo, fazia círculos à volta de uma palavra e depois partia, de novo. Os seus dedos faziam pressão e mais pressão e tocavam-me brevemente, e por vezes paravam num sítio e faziam tanta pressão que me rasgavam. Ela franzia o sobrolho e voltava a relaxar a testa com um suspiro estridente. Ela fechava os olhos e continuava a ler, ela expirava antes de inspirar. Ela inclinava-me, olhava para mim em contraluz e dobrava-me em padrões diferentes. Depois de uma sessão particularmente longa, largou-me e gritou: SEU ENIGMA ESTÚPIDO. Quando a palavra enigma acertou no meu pequeno corpo que recuava, senti um arrepio de vergonha percorrer-me a cara. Fui rápida na resposta, endurecendo os meus limites e reclamando a compostura de um poema.

          Nos nossos escassos encontros seguintes, o seu comportamento foi furtivo e lançou-me rápidos olhares bruscos, como se estivesse com medo que eu mudasse enquanto ela pestanejava. Acusou-me de minimizar a reputação de outros corpos de palavras cujo sentido é fácil e preciso. Alegou que a minha obscuridade persistente era uma estratégia narcisista, uma tática de infindável sedução. Alegou que as minhas palavras eram engodos, o que achei estranho porque acho que quase todas as palavras operam dessa forma. Redirigem a atenção e depois desaparecem.

          Este texto foi escrito como parte das “Ballades Infidèles”, um grupo de pesquisa que trabalha sobre as Baladas em jargão – onze poemas compostos pelo poeta do século XV François Vilon e escritas na língua secreta dos Coquilardes, um bando de vigaristas franceses. Com Francoys Villon, Diana Duta, Chloe Chignell, Cee Fülleman, Loucka Fiagan, camille gerenton, Anouchka Oler, etaïnn zwer, Simon Asencio e todas as outras pessoas.

          1 A balada.
          2 The Straight Mind and Other Essays é um livro de ensaios de Monique Witting que não tem edição portuguesa.

          Davi Pontes Racial ↔ Não-local

          Ensaiei algumas ideias para atravessar esta escrita, antes que seus olhos se movam para o final desta página e o seu pensamento siga para outras direções em que o tempo não deixa de chegar. Não quero aqui me render a certas formalidades e desenvolver algumas ideias sobre o fim de algo que nunca se encerra.

          Este texto pode ser tocado, para recordar que, ao encostar nas palavras, elas se desfazem, e é quando obliteram que percebemos os mistérios da coreografia, a destreza de perturbar o tempo. Deixar a palavra cumprir o seu propósito, correr pela cidade, romper o duro chão do urbano, bagunçar a lógica do linear, retirar a sedimentação histórica empoeirada do corpo, deixar o texto fazer o que precisa ser feito, dar um passo atrás.

          E se, a partir desse momento, conseguíssemos pensar o mundo sem o tempo, o que aconteceria? Garantir com essa pergunta a possibilidade de imaginar, e que as dúvidas possam existir, desvirtuar, confluir, manobrando o pensamento para direções intelectuais que possam lidar melhor com o presente global. Quando proponho a equação Racial ↔ Não-local, estou recorrendo à impossível missão de pensar o mundo sem o tempo. Em algum momento neste texto, assumo o compromisso em meio a tantos outros que ainda insistem em escrever como movimento de desconfiança. Escrever como alguém que acaba de apresentar um trabalho e recorre ao papel para gravar com pressa as ideias que começam a desaparecer na medida em que isso que chamamos de tempo não para de acontecer. Escrevo este texto com suor nas mãos, respirando o ar denso que a repetição provoca, me recuperando da dor por não distribuir o peso corretamente pelos pés.

          Nota: Nós não sabemos — pelo menos não ainda — como nos mover fora do tempo.

          Denise Ferreira da Silva me ensina que as falhas, na cena da física das partículas1, oferecem possibilidades de pensar afastado da física clássica. Na filosofia natural de Galileu Galilei (1564-1642), na física clássica de Isaac Newton (1643-1727) e mais  tarde na de Albert Einstein (1879-1955), herdamos  uma  visão  da  matéria  da  Antiguidade,  com  a  noção  que compreende o corpo a partir de conceitos abstratos que estariam presentes no pensamento, como solidez, extensão, peso, gravidade e movimento no espaço e no tempo.

          Por exemplo, o princípio da não-localidade sustenta um modo de pensamento que não corresponde às bases do sujeito moderno, ou seja, tempo e espaço. Isso se dá porque rompe com os vínculos da temporalidade linear e com a separação espacial. Dentro de um universo não-local, nos permite imaginar a sociabilidade sem solicitar os pilares (determinabilidade, sequencialidade e separabilidade) que sustentam o pensamento moderno.

          A determinabilidade é o mais importante dos pilares, por ser a possibilidade de decidir, tanto do ponto de vista do conhecimento, quanto do político. O conhecimento resulta da capacidade do Entendimento de produzir conceitos formais que podem ser usados  para decidir a natureza legítima das impressões acumuladas pelas formas da intuição. O sujeito moderno determina e se autodetermina: não existe ninguém maior ou acima dele. A separabilidade reivindicou a retomada da geometria descritiva por Galileu, que possibilitou demonstrar o que ele entendia e não apenas especular sobre o movimento. A separabilidade cria a necessidade de articular através de relações. Para a filósofa, seria a noção de que tudo o que pode ser conhecido sobre as coisas do mundo deve ser compreendido pelas formas (espaço e tempo) da intuição e as  categorias do entendimento (quantidade, qualidade, relação, modalidade). A sequencialidade descreve o Espírito como movimento no tempo, um processo de autodesenvolvimento, e a História como a trajetória do Espírito, a noção que corresponde ao movimento enquanto um gesto de progressivo desenvolvimento. A sequencialidade é responsável por proteger o tempo linear e o Mundo Ordenado em conjunto com a tríade que sustenta o conhecimento moderno.

          Nota: Fazer uma pose é desafiar tempo.

          Neste universo apresentado pelo princípio da não-localidade, o deslocamento e a relação não descrevem o que acontece, porque todas as partículas estão implicadas, isto é, todas as partículas existem umas com as outras, sem espaçotempo. Para Ferreira da Silva, a não-localidade expõe uma realidade mais complexa, na qual tudo possui uma existência atual (espaçotempo) e virtual (não-local).

          Como  montar  um  experimento  artístico  que  pensa  a  diferença  sem separabilidade e que ofereça uma equação para anular o espaçotempo como descritor de tudo que existe neste mundo? A principal função dessa equação é criar uma imagem para perturbar o pensamento moderno sem reproduzir as violências por ele articuladas e, com isso, conseguir imaginar o mundo sem o fantasma do tempo. Um programa ético-político que não descreva os efeitos do pensamento moderno terá que repensar a socialização distante da composição moderna.

          Para isso, recomendo iniciarmos com uma equação:

          racial ↔ não-local

          A = racial

          B = não-local

          Portanto, A é o racial que tem como principal matéria-prima a diferença, e B é o valor não-local que descreve o social como um emaranhado de relações sob o qual tudo existe.

          Nessa equação, A e B são separadas pelo símbolo bicondicional ↔ (se e somente se) que a descreve da seguinte forma: A (racial) desmorona se, e somente se, em contato com B (não-localidade).

          Para expressar a relação entre A e B em termos de efetividade, quer dizer, como o símbolo de ↔ informa, essa dupla associação oferece o efeito de desabar a diferença, ou seja, o racial. 

          A escolha do ↔ para expor essa imagem determina sua capacidade de explicar o que Denise Ferreira da Silva denominou como Corpus Infinitum2. A noção de Corpus Infinitum a que se refere a autora diz respeito à possibilidade de outra vida, em outras perspectivas onto-epistemológicas, que compreendam a implicação das pessoas e das coisas umas nas outras. A não-localidade irrompe como um gesto capaz de conter os efeitos produzidos pelo pensamento moderno, aparece como uma possibilidade de forjar outras chaves que extrapolam o âmbito da modernidade. Por isso a necessidade de uma formulação atenta que seja responsável pelo que chamo de Delirar o racial3.

          A maneira com que a separabilidade descreve as diferenças entre os grupos humanos e entre entidades humanas e não humanas possui um poder explicativo muito baixo. Uma das características do pensamento pós-iluminista se encontra na capacidade de determinação que podemos notar observando duas estruturas lógicas: condicional e silogismo. A escolha do ↔ para expor essa imagem aponta para sua capacidade de retirar a determinação de ambos os lados. A premissa dessa proposta é que, sem o tempo, a coreografia não demonstra sua capacidade perante as forças da lei que insistem em figurar um passado. Essa proposição complica a questão, pois essa inclusão não tem procedência lógica, já que coreografia não é, e jamais pode ser, apenas a linguagem do movimento. Minha sugestão é que, ao retirar as certezas da composição coreográfica, podemos, de alguma maneira, abrir espaço para a imaginação e caminhar entre a intuição e o desejo. 

          Quando mobilizo esse pensamento, estou empenhado em disputar o termo “coreografia” sem as violências praticadas pelo pensamento moderno. Não estou interessado em um consenso, em ajustar o mundo e conformar a diferença num arranjo pacífico. Essas coreografias são uma demanda prática para mover nos limites da borda, onde a imagem do movimento não apaga todas as catástrofes ecológicas, as tragédias e os desastres coletivos provocados pela violência. Não há negociação ou arranjo possível. Portanto, isso aponta para a possibilidade de pensar a expansão dos presentes no passado e no futuro, suas coexistências – pois ao contrário do que vimos até aqui, isso indica a promessa de um recordar ético que dispensa as forças mórbidas da melancólica coreografia moderna e propõe possibilidades na beira do abismo temporal. 

          Ao violar o tempo e o espaço como descritores de desenvolvimento, aposto numa composição que renuncia a velha assombração do linear como narrativa e surpreende-se com o profundo das incertezas. Um projeto que me impulsiona a escapar das ciladas e dos contornos discursivos que acreditamos regular. Acredito que várias perguntas ficam ao longo dessa empreitada. Este texto não é um convite, não tenho a intenção de ensinar qualquer estratégia sobre atravessar esse tempo, embora esteja aqui deixando rastros sobre a travessia. Gosto de pensar que estou traçando um caminho sem mapa. Carrego apenas a certeza de que algo vai se revelar, sem norte, sem sul, mas experimentando uma sequência de gestos precisos que se repetem, repetem, pois o contrário do movimento não é a pausa. O fim de certa maneira não existe. O movimento que ensaio nestas linhas anuncia algo precioso sobre a travessia: abrir mão para encarar o porvir.

          1 É importante ressaltar que, para Denise Ferreira da Silva, essa referência à física não significa uma busca pela autoridade da ciência, mas sim a física de partículas como um domínio do conhecimento no qual especialistas são forçados a abdicar de suas supostas autoridades. Em outras palavras: estou mais interessada nas possibilidades filosóficas que a impossibilidade da certeza articulada por esse campo fornece, em particular em relação à possibilidade de desmantelar a articulação de Kant sobre o conhecimento, já que esta permanece fundamental para a maior parte das perspectivas sociais, científicas, legais e de “senso comum” [common sense] sobre o movimento do conhecimento. Denise Ferreira da Silva. A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina da Imaginação Política e Living Commons, 2019, p. 81.
          2 Na descrição de Denise Ferreira da Silva, isso acontece quando o social reflete o Mundo Implicado, a socialidade não é mais nem causa nem efeito das relações envolvendo existentes separados, mas a condição incerta sob a qual tudo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes atuais virtuais do universo, ou seja, como Corpus Infinitum.
          3 Disponível em . Acesso em 15 de fevereiro de 2023.

          Silvia Federici Elogio do corpo que dança

          A história do corpo é a história dos seres humanos, pois não existe prática cultural que não seja primeiramente aplicada ao corpo. Mesmo se nos limitarmos a falar da história do corpo no capitalismo, a tarefa que enfrentamos é imensa, tão amplas têm sido as técnicas usadas para disciplinar o corpo, em constante mudança, dependendo das modificações nos diferentes regimes laborais a que o nosso corpo foi sujeito.

          Uma história do corpo pode ser reconstruída através da descrição das diferentes formas de repressão que o capitalismo mobilizou contra ele. Mas eu decidi antes escrever sobre o corpo como um campo de resistência, ou seja, sobre o corpo e os seus poderes: o poder de atuar, de se transformar, e sobre o corpo como limite para a exploração.

          Há algo que perdemos quando insistimos que o corpo é socialmente construído e performativo. A ideia do corpo como uma produção social (discursiva) ocultou o facto de que o nosso corpo é um recetáculo de faculdades, capacidades e resistências, que têm sido desenvolvidas num longo processo de coevolução com o nosso meio ambiente, bem como de práticas intergeracionais que o tornaram um limite natural para a exploração.

          Pelo corpo como «limite natural» refiro-me à estrutura de necessidades e desejos em nós criada não só pelas nossas decisões conscientes ou práticas coletivas, mas também por milhões de anos de evolução material: a necessidade de sol, do azul do céu e do verde das árvores, do cheiro das florestas e dos oceanos, a necessidade de tocar, cheirar, dormir, fazer amor.

          Esta estrutura acumulada de necessidades e desejos, que durante milhares de anos tem sido a condição da nossa reprodução social, impôs limites à nossa exploração e é algo que o capitalismo tem tentado incessantemente superar.

          O capitalismo não foi o primeiro sistema baseado na exploração do trabalho humano. Mas mais do que qualquer outro sistema na História, tentou criar um mundo económico onde o trabalho se tornou o princípio mais essencial da acumulação. Nesse sentido, foi o primeiro a fazer com que a arregimentação e a mecanização do corpo se tornassem uma premissa fundamental para a acumulação de riqueza. Com efeito, uma das principais tarefas sociais do capitalismo desde o seu começo tem sido a transformação das nossas energias e faculdades corporais em faculdades laborais.

          Em Calibã e a Bruxa [2004 (Lisboa: Orfeu Negro, 2020)], analisei as estratégias que o capitalismo usou para realizar esta tarefa e remodelar a natureza humana, da mesma maneira que tentou remodelar o planeta de modo a tornar a terra mais produtiva e converter os animais em fábricas vivas. Falei da luta histórica que travou contra o corpo, contra a nossa materialidade, e das muitas instituições que criou para esse fim: a lei, o chicote, a regulação da sexualidade, bem como inúmeras práticas sociais que redefiniram a nossa relação com o espaço, a natureza e entre nós.

          O capitalismo nasceu da separação entre as pessoas e a terra, e a sua primeira tarefa foi tornar o trabalho independente das estações e aumentar a jornada laboral para lá dos limites da nossa resistência. No geral, salientamos o aspecto económico deste processo, a dependência económica que o capitalismo criou nas relações monetárias e o seu papel na formação do proletariado assalariado. O que nem sempre vimos foi o que a separação da terra e da natureza significou para o nosso corpo, que foi empobrecido e desprovido das faculdades que as populações pré-capitalistas lhe atribuíam.

          A natureza, como Marx1 a reconheceu, é o nosso «corpo inorgânico», e houve um tempo em que soubemos ler os ventos, as nuvens e as mudanças nas correntes dos rios e dos mares. Nas sociedades pré-capitalistas, as pessoas acreditavam que tinham a capacidade de voar, de ter experiências extracorporais, de comunicar, de falar com os animais, de assumir os seus atributos e até mesmo de mudar de forma. Também acreditavam que podiam estar em mais do que um lugar e, por exemplo, ressuscitar para se vingarem dos seus inimigos.

          Nem todas essas faculdades eram imaginárias. O contacto diário com a natureza era a fonte de uma grande quantidade de conhecimentos espelhados na revolução alimentar que ocorreu em particular nas Américas antes da colonização ou na revolução das técnicas de navegação. Hoje sabemos, por exemplo, que os povos da Polinésia costumavam viajar pelo alto mar de noite usando apenas os seus corpos como bússola, pois podiam perceber pelas vibrações das ondas de que diferentes maneiras podiam dirigir os seus barcos para a costa.

          A fixação com o espaço e o tempo tem sido uma das mais elementares e persistentes técnicas que o capitalismo tem usado para controlar o corpo. Basta ver os ataques perpetrados ao longo da História contra vagabundos, migrantes e mendigos. A mobilidade é uma ameaça quando não é exercida em nome do trabalho, uma vez que põe conhecimentos, experiências e lutas em circulação. No passado, os instrumentos de restrição eram os chicotes, as correntes, a mutilação, a escravatura. Hoje, além do chicote e dos centros de detenção, temos a vigilância de computadores e a ameaça periódica de epidemias, como a gripe das aves, como forma de controlar o nomadismo.

          A mecanização — a transformação do corpo, masculino e feminino, em máquina — tem sido um dos objetivos mais persistentes do capitalismo. Os animais também são transformados em máquinas, para que as porcas possam duplicar a sua ninhada, as galinhas possam produzir fluxos ininterruptos de ovos — enquanto as improdutivas são trituradas — e os bezerros não consigam ficar de pé antes de serem levados para o matadouro. Não me é possível evocar aqui todas as  formas através das quais a mecanização do corpo ocorreu. Basta dizer que as técnicas de captura e dominação têm mudado de acordo com o regime laboral dominante e as máquinas que têm servido de modelo para o corpo.

          Assim, vemos que nos séculos xvi e xvii (a época da manufatura) o corpo foi imaginado e disciplinado segundo o modelo de máquinas simples, como a bomba ou a alavanca. Este foi o regime que culminou no taylorismo ou no estudo da relação entre tempo e movimento, onde cada movimento era calculado e todas as energias eram canalizadas para a tarefa.

          Neste caso, a resistência era imaginada como uma forma de inércia, com o corpo a ser retratado como um animal estúpido, um monstro que resiste a cumprir ordens.

          Com o século xix temos, por sua vez, uma conceção do corpo e das técnicas disciplinares inspiradas na máquina a vapor, com a produtividade a ser calculada com base no insumo e na produção, e com eficiência a converter-se na palavra-chave. Sob este regime, o disciplinamento do corpo foi alcançado através de restrições dietéticas e do cálculo das calorias que um corpo trabalhador necessitaria. Neste contexto, o apogeu foi a tabela criada pelos nazis que especificava de que calorias cada tipo de trabalhador necessitaria. O inimigo aqui era a dispersão de energia, a entropia, o desperdício, a desordem. Nos Estados Unidos, a história desta nova economia política começou na década de 1880, com o ataque às tabernas e a remodelação da vida familiar, cujo fulcro era a dona de casa a tempo inteiro, concebida como um mecanismo antientrópico, sempre à disposição, preparada para restaurar a refeição consumida, os corpos sujos depois do banho, o vestido remendado e novamente rasgado.

          Na nossa época, os modelos do corpo são o computador e o código genético, criando um corpo desmaterializado e desagregado, imaginado como um conglomerado de células e genes, cada um com o seu próprio programa, despreocupados com o resto e com o bem do corpo como um todo. É esta a teoria do «gene egoísta», a ideia de que o corpo é composto por células e genes individualistas que procuram realizar o seu programa: uma metáfora perfeita da conceção neoliberal da vida, onde o domínio do mercado não se volta apenas contra a solidariedade de grupo, mas também contra a solidariedade dentro de nós. Invariavelmente, o corpo desintegra-se num aglomerado de genes egoístas, cada um deles esforçando-se por concretizar os seus objetivos egoístas, indiferentes aos interesses dos demais.

          Assim que interiorizamos esta ideia, interiorizamos a mais profunda experiência de autoalienação, dado que confrontamos não só um grande monstro que não obedece às nossas ordens, mas também um grande número de microinimigos radicados no nosso próprio corpo e preparados para nos atacar a qualquer momento. Indústrias têm sido erguidas com base no medo que esta conceção do corpo gera, pondo-nos à mercê de forças que não controlamos. Inevitavelmente, se interiorizamos esta ideia, não podemos gostar de nós próprias. Na verdade, o nosso corpo assusta-nos, e nós não o ouvimos. Não escutamos o que quer, mas juntamo-nos ao ataque contra ele com todas as armas que a medicina pode oferecer: radiações, colonoscopias, mamografias, todas armas numa longa batalha contra o corpo, juntando-nos nós ao ataque em vez de tirarmos o nosso corpo da linha de fogo. Desse modo, estamos preparadas para aceitar um mundo que transforma partes do corpo em produtos mercantilizáveis e para ver o nosso corpo como um repositório de doenças: o corpo como peste, o corpo como fonte de epidemias, o corpo sem razão.

          A nossa luta, então, deve começar pela reapropriação do nosso corpo, pela reavaliação e redescoberta da sua capacidade para resistir, e pela expansão e celebração dos seus poderes, individuais e coletivos.

          A dança é crucial para esta reapropriação. Na sua essência, o ato de dançar é uma exploração e invenção daquilo que um corpo pode fazer: das suas capacidades, das suas linguagens, das suas formas de articular as aspirações do nosso ser. Eu cheguei à conclusão de que há uma filosofia no ato de dançar, pois a dança imita os processos mediante os quais nos relacionamos com o mundo, nos ligamos a outros corpos, nos transformamos a nós próprias e ao espaço que nos rodeia. Com a dança aprendemos que a matéria não é estúpida, não é cega, não é mecânica, mas tem os seus ritmos, a sua linguagem, e é autoativada e auto-organizada. Os nossos corpos têm razões que precisamos de aprender, redescobrir, reinventar. Necessitamos de escutar a sua linguagem para que nos conduza à nossa saúde e cura, tal como necessitamos de escutar a linguagem e os ritmos do mundo natural para que nos conduza à saúde e cura do planeta. Uma vez que o poder de ser afetada e de afetar, de ser movida e mover, uma capacidade que é indestrutível e que apenas se esgota na morte, é constitutivo do corpo, há uma política imanente nesse poder: a capacidade de nos transformarmos, de transformar outros, e de mudar o mundo.

          Traduzido do original em inglês por Pedro Morais.
          Publicado anteriormente em A Beautiful Resistance, n.º 1, de 22/08/2016, e na coletânea Beyond the Periphery of the Skin: Rethinking, Remaking, and Reclaiming the Body in Contemporary Capitalism (Oakland/Toronto/Nova Iorque: PM Press/Between the Lines/Autonomedia, 2020).

          1 Karl Marx, Economic and Philosophical Manuscripts of 1844. Trad. de Martin Milligan (Buffalo: Prometheus Books, 1988), 75-76.

          Guilherme Valente Marques Como comprar um jornal de dança

          Como comprar um jornal de dança

           

          Considerando o papel de oferta

          que resiste à chuva,

          a requerente baixa a guarda

          e sai brutal do campo

          da psicologia com roupa.

          Não se molha. Totaliza uma hora

          de trabalho voluntário.

          Nada vale se o papel irrevogável

          for jogado ao alto-estrato

          tocando a todas as famílias de chapéus;

          Ela tem de usar obviamente a boca

          para contar os dentes — desfecho

          até novas indicações.

          Apesar do tempo, aplica ritmo

          à maioria gotejante e deixa-se estar.

           

          Guilherme Valente

          Berlim, 2023

      • 7

          Amit Noy Diário como dança

           

           

          6.4.22

          O objetivo disto não é ser bom, nem é encontrar uma coisa para usar, mas é uma tentativa de investigar o espectro das minhas experiências sencientes.

          Vou esforçar-me para não ser ardiloso (impossível) ou, pelo menos, evitar purgar o que considero inadequado para a caixinha da arte.

           

          Hoje estava a nadar bruços contra um vento forte e quando emergi para respirar vi uma alforreca da cor do esperma ou das nuvens, mesmo à frente da minha cara. Ela pulsava devagar na água e quase não se mexia, estava ocupada a viver sem cérebro e sem vontades, sem fazer mais nada senão andar à deriva.

           

          Decidi começar a escrever durante a leitura da biografia de Kathy Acker, escrita por CK [Chris Kraus]. Há tanto tempo que não danço que preciso de encontrar uma direção na forma de prestar atenção à minha experiência. Para que tudo não seja apenas um círculo em que me afogo. Preciso de uma maneira de afunilar a minha experiência numa direção, ou em muitas direções, para fora e para dentro, mas preciso do processo cinético de deslocação e subsequente (re)localização da minha experiência. A escrita é o funil. Se não for assim, torna-se ao mesmo tempo ou muito pesada ou nada de nada, quase inconsequente, refiro-me à vida.

           

          Parece estranho fazer luto a masturbar-me. Mas é o que tenho feito há quase uma semana.

           

          9.4.22

          Israel: matei uma aranha, preocupa-me estar a ficar complacente com sistemas de violência, aqui sinto-me doente, sinto uma inquietude no corpo, mas ao mesmo tempo uma grande calma porque todas as pedras deste chão estão impregnadas de história da luta pela identidade, etc. Pergunto-me se matar o mito do neutro, de uma vez por todas, será uma coisa boa.

           

          Israel: pergunto-me como é que se descansa em Israel, as florestas para passear cães parecem perigosas, os portões do kibutz fecham-se ao chegar o sabat e eu entro em pânico. Há lixo em todo o lado.

           

          Ando por aí com o meu pequeno chapéu queer e sinto-me um alvo em movimento.

           

          Israel: ninguém entende como tu a glória das especiarias: existe uma vila chamada Cominhos e ouvi dizer que é um sítio agradável.

           

          Israel: homens a usarem calções num funeral e aqui quando as pessoas te abraçam sei que é sentido.

           

          10.4.22

          Masturbo-me e choro masturbo-me e choro masturbo-me e choro. Fui dar um passeio fora dos portões do kibutz, a lama cobria-me os dedos mindinhos dos pés, passei por uma planta pontiaguda e chorei. Mel na queimadura, faço papas de aveia e café. Não sei como resolver esta absurda e tortuosa relação com a Dança – o fazer real deixa sempre a minha imaginação desapontada, fica aquém do êxtase sobre o qual fantasiei. É difícil dançar e fazer com que valha a pena. Tenho dúvidas sobre o futuro e sobre o vazio profissional. Não, não é o vazio, é a falta: nada para fazer e nenhuma razão para me levantar da cama, de manhã, tirando o amor familiar.

           

          20.4.22

          Sinto muita falta do meu avô. A sua morte ainda parece um desastre horrível e cómico; uma piada de muito mau gosto ou uma mentira que tomou proporções épicas. Este sentimento vazio entra em loop quando se mistura com uma tristeza profunda e insondável. Não sei o que dizer. Existe muito pouco ar respirável na casa mortuária, mantêm as luzes acesas o dia inteiro e a luz do sol é enfraquecida pelas persianas, não parece conseguir entrar aqui como noutros sítios. Penso no meu avô em decomposição na sua caixa de madeira, no subúrbio onde viveu toda a sua vida e sinto… uma miríade de coisas, mas, antes de mais, uma incredulidade muda. A minha avó, já a planear a sua morte, quer escrever o nome dela no túmulo, ao lado do do meu avô, mas o meu pai conseguiu convencê-la de que era uma má ideia.

           

          Entretanto sinto o meu corpo podre e cheio de vergonha. Sentir isto todos os dias é muito cansativo.

           

          Estou a chegar a um ponto em que amo e aceito o meu corpo tal como é – sem sentir vergonha das minhas partes endurecidas, das partes moles, dos “excessos” – parece que estou a tentar ganhar uma guerra. Temo as consequências de não ganhar esta guerra. Tenho medo de perder continuamente para o resto da vida. Recuso-me a ser enterrado infeliz.

           

          22.4.22

          Quero chupar tantos caralhos que ver um homem bonito esparramado, com as virilhas expostas ao ar livre e convidativo, me deixa tão excitado como a visão do meu leite de soja pela manhã.

           

          Lembro-me de me masturbar três ou quatro vezes durante um voo intercontinental. Tinha treze anos e tinha secretamente feito capturas de ecrã das fotografias de perfil do Facebook de alguns dos meus colegas de turma.

           

          O que é intoxicante é a promessa de mais. A promessa de outra, de novo, de mais uma vez. Quanto de uma sentida ligação com alguém não é simplesmente a minha imaginação fértil, a minha vontade de fantasiar, a minha tendência para a ilusão?

           

          Embarco no avião e sinto a gordura da minha barriga como uma odiosa úlcera sifilítica ou sinto um perigoso alto na garganta possivelmente cancerígeno. Toco no espaço entre o estômago e as costelas dúzias de vezes por dia, exortando-o a baixar, como que a implodir sozinho. Faço registos mentais de calorias da mesma forma que algumas pessoas tocam no seu cabelo, de forma automática. Sinto-me exausto, mas parar não é uma opção.

           

          28.5.22

          Estou aqui porque não estive durante um bom tempo. Estou a pensar em como quero ser artista, na arte que quero fazer. Tenho que me lembrar de acreditar no dia a dia, no fazer, na luta do momento presente. No suor. Fazer qualquer coisa, pegar numa ideia, sendo que uma ideia é como uma toalha molhada que tenho de torcer e torcer para lhe tirar a água. A poça que se forma no chão é a arte; quanto mais água tiver, mais difícil for de conter ou explicar (i.e. descartar) melhor. Mas como fazer isso com gentileza de forma a que todos se sintam bem? Se não estou a melhorar a vida das pessoas com quem trabalho, e a minha, então não quero continuar a trabalhar.

           

           

          Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.

          Eduardo Batata Leonor Lopes Ves Liberta Vitor Grilo Silva CHE

           

          As bruxas deitam-se no chão para saberem se a terra ainda está viva, para saberem se ainda há calor no solo. As bruxas têm sensores térmicos nas costas, no fundo das costas.

          As bruxas esfregam os seus cabelos no chão para saberem se elas próprias ainda estão vivas, espalham cinzas pelo ar para devolverem ao ar pedaços de seres que deixaram de existir.

           

          Às vezes fantasio com o poder de perder agência sobre o meu corpo.

          Às vezes gostava que o meu fluxo sanguíneo, o meu plasma, os meus leucócitos, os meus

          complexos de Golgi, os meus processos celulares tivessem mais agência do que eu sobre o meu corpo. Ou melhor, que tivessem eles toda a agência sobre o meu corpo. Que eles fossem a totalidade do meu corpo. Que eu fosse só um corpo que ingere e excreta como as marés e as luas. Que eu não tivesse que ser sequestrada por um popper tão mau, um popper-placebo-nem-isso, que me preconiza e me mentaliza, como se de um egoísmo se tratasse. Um frasquinho de egoísmo. Hardware.

          Quem me dera que a minha voz fosse sempre gutural, sempre só um jorro, espesso, granular.

          Que quase não se percebesse. Ou que não houvesse nada para perceber. Que fosse só mais uma consequência da vibração dos meus órgãos.

          Quem me dera sentir o meu próprio fígado, senti-lo assim nas minhas mãos, sentir o seu peso, aproximá-lo da minha boca, dos meus lábios, tocar o meu fígado com os meus lábios. Sentir a temperatura e a textura do meu fígado nos meus lábios. Perceber que os meus lábios ficaram manchados de sangue. Recolocar o meu fígado no meu corpo, sem ter a certeza se é aquele o seu exato lugar, começar a sentir coisas, vestir-me de bege e ir para um date, assim, com os lábios pintados.

           

          Quero arrancar a minha própria cabeça, não a cabeça por completo mas a pele da cabeça. Meto os dedos entre uma pele e outra e arranco-a, dispo-a.

          Tenho um arquivo de peles, das peles que mais gostei de arrancar, de peles que tenho a certeza de que não voltarei a arrancar.

          Não guardo memórias ou pessoas mas sim a sua pele. Posso usá-la quando quiser, hoje lembrei-me de ti e procurei a tua pele no meu arquivo. Peguei nela e colei-a no meu crânio com óleo. Já não é o toque na tua pele, nem a lembrança da tua pele.

          Não recupero um toque que já não tenho mas uso essa pele como adereço, produzo um contacto-pele, uma espécie qualquer de sexo. O fumo penetra entre a minha pele e a outra que em tempos foi tua, cria uma bolha/espaço, uma cápsula que encho de óleo e deixo escorrer para o chão, toco-lhe com o pé e deixo-me cair.

           

          Sonhei que a minha pele era anti-inflamável e que nunca arderia, assim poderia pegar fogo ao interior do meu corpo mas a minha pele, o meu exterior, manter-se-ia intacto. Peguei num molho de sálvia seca, atada com um fio e com o isqueiro peguei-lhe fogo. Abri a boca e engoli-a. O fogo em contacto com as minhas cordas vocais inflamou e serviu de rastilho para o restante interior do meu corpo.

          Ardia por dentro, deixei de ter terminações nervosas, era só pele e carvão. Tecido e cinzas.

          Um gel que surge por baixo da minha pele mistura-se com o carvão e cria uma tinta preta, uma espécie de petróleo.

          Esse visco preto invade o chão e espalha-se por todo o espaço, estou numa casa sozinha.

          O visco preto arrefece toda a superfície, torna-a gélida. Apenas os metais ficam quentes, sobreaquecem. Uso as maçanetas de metal, das portas, para aquecer as palmas das mãos, assim posso tocar na pele gélida que serve apenas de invólucro de um ex-corpo, de ex-entranhas. Uso os restos do fogo que me queimou para aquecer a pele que me resta.

          Pensava que estava sozinha mas vejo outro corpo naquela sala, é um corpo nu, com um buraco na barriga, um buraco gigante, de onde saem chamas azuis, uma espécie de fogo-fátuo que flutua nos fluidos daquela barriga. Uma labareda ténue, uma combustão de metano. Uma chama como memória de um pântano onde se decompõem animais. Uma espécie de labareda-lama que queima e deixa tudo pegajoso. Uma chama que cresce e que quando toca noutros corpos se transforma em saliva.

          Pego nas cinzas que guardei ao longo dos anos e que trago comigo. Espalho-as uniformemente no chão.

          Com os pés colados ao chão dobro o meu corpo e faço baloiçar a cabeça entre os joelhos e os pés. Tremo e sinto a tinta das tatuagens que tenho nos braços a descolar-se da pele e a entrar no fluxo sanguíneo, sinto a tinta descer pelas veias até à ponta dos dedos e começar a sair pelas unhas. A tinta escorre e encontra a cinza que espalhei no chão.

          A tinta em contacto com a cinza produz uma substância estranha, que não sei descrever, mas produz um gás intenso e ácido que me faz arder os olhos como nenhuma outra substância. Cria uma dor aguda e interna. Esse gás também me faz salivar sem parar, a saliva escorre da minha boca e cola-se à cinza e à tinta, faz derretê-las e forma uma espécie de lava quente. Essa lava sobe-me até aos tornozelos e prende-me ao chão.

          Observo, com os olhos a arder, esta lava que me rodeia e que ocupa cada vez mais espaço.

          Fixo o ponto mais distante que consigo observar e vejo uma pequena chama; lentamente, essa chama ganha espaço e começa a contagiar toda a lava.

          O processo é lento, sei que pode demorar horas ou dias, mas sonho com o momento em que essa chama toque nos meus pés e me faça entrar em combustão, me faça explodir, que cada pedaço do meu corpo se funda com partes desta lava.

          Quero que essa lava solidifique e crie rochas, que essas rochas tenham pedaços de mim e fiquem ali para sempre.

          Que sejam habitadas por pequenos animais, por plantas e fungos.

          Que um dia volte a acontecer o mesmo e que mais corpos se juntem a estas rochas.

           

           

          O texto aqui publicado é um excerto do texto da performance CHE das autoras, apresentada na Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, em junho de 2022.

          Janaína Moraes Residenciar a Palavra Morada

           

           

          Residenciar a palavra morada – prática em con/texto.

          Janaína Moraes

           

          Há três anos, antes de sair de casa, no Brasil, estava a sonhar com as palavras que deixaria para trás. Dias antes da viagem, era comum despertar no meio da noite para anotar palavras que me vinham anunciar a co(n)fusão entre aqui e ali, essa língua e aquela, o Atlântico e o Pacífico.

           

          o des-conhecido habita meu corpo língua, num gosto agridoce das palavras não-ditas. tempos de des-encontro. zonas de tempo. fusos. horários. con-fusos:

           

          lá vai ela, atravessando espaços.

          lá vai ela no topo das coisas.

          lá vai ela sob superfícies.                                                                                      lingu(a)gem)

          superofícios, orifícios.

          lá vai ela de corpo todo.

           

          po(t)e)nte.                                Onde o passado e o futuro se encontram para presente.ar o tempo. Onde o tempo é brecha, presente. E sente. Uma brecha de tempo que ocupa espaços ao atravessar idiomas. Linguagem. Qual é a frente do tempo? Esse tempo fantasiado de espaços entre. Quais são as costas do tempo? E os oceanos? Pacífico. Em con-fusão, Pacifico. Saudade é o Atlântico. Nesse percursos entre “here and there”, tenho colecionado perguntas.

           

          Sendo uma artista migrante em Aotearoa, a terra da longa nuvem branca, ou Nova Zelândia, tenho perguntado o que significa morar quando uma sensação de desorientação toma o primeiro plano? Ser latina, em outras instâncias do Sul Global, me faz tremer a ética e a direcionalidade do meu corpo brasileiro deslocado, e me leva a perguntar: o que é ser uma artista em residência? O que muda quando alguém, como artista, recebe o estado de em residência? O que é uma residência? E, além disso, quem é capaz de conceder tal cargo ou título à pessoa e ao contexto (situação)?

           

          Penso-movo inspirada por arranjos-colagens de fragmentos da poetisa experimentalista Lisa Robertson, em Soft Architecture: a manifesto (1961)[1]: Dentro do imaginário das estruturas suaves (ou moles), estou olhando para tais como arquiteturas que “invertem a história equivocada da profundidade estrutural”, revelando que “o lugar é um acidente posando como política” e dentro de sua “transiência permanente” a noção de espaço pode conter “a densidade do temporário em uma birra de ação”. Eu poderia talvez pegar emprestado as noções de Robertson e pensar em mim como uma coreógrafa suave (ou mole) que, como “arquitetos suaves (ou moles) encaram o meio-termo”.

           

          Estou perguntando: como alguém pode se tornar uma pessoa “des-locada” ao mudar localizações de morada e/ou movendo a localização da morada de suas práticas criativas? Como se pode, por meio do deslocamento, re-relacionar-se com a(s) própria(s) identidade(s) e sentidos de pertencimento (be-longing) através do reconhecimento da alteridade? Podem as residências ser uma forma criativa de manifestar o sentido de (des)localização? Pode a noção de localização ser vivenciada através da perspectiva do tempo, de situações temporais?

           

          Porque residência (artística) é temporária e porque me coloca em relação de cruzamento com “outros”, minha prática visa manifestar, sustentar e fomentar convites para pairar na confusão

          con-fusão, com fusão,

          com junteza

          nublando os sentidos do eu e do outro, aqui e ali.

           

          Como exercitar modos para transformar “residência” em um verbo de ação? O que implicaria o ato de residir? Tenho, então, experimentado uma prática de “residenciar” – uma experimentação radical de habitar, através de deslocamentos e trans-orientações.

          orientações que ocorrem em trânsito.

           

          O território e os devaneios da vontade – residenciar Portugal

           

          Em minha visita-passagem-pouso em Portugal fui apresentada a uma “morada” que é endereço, address, direção. Ouvi que “perceber” é entender, to understand. E everything, as coisas mesmo, são “cenas”. Habitar o estranho familiar dessas palavras me convida a um novo estado de atenção, uma dis-posição à performatividade das palavras.

           

          deslocar

          desarmar

          desalinhar

          posição entre palavra e corpo

           

          Desorientar palavras é reorientar meu corpo em relação ao outro – corpo, território, movimento. Encontro “moradas” para re-pousar, pass-e-ar, comer, apanhar comboios e autocarros, encontrar um estranho a-vir-ser amigo. “Percebo” a viagem como prática em dança, elasticizando as noções de espaço e tempo do acontecimento coreográfico. Dilato meu olhar para a importância que cada pessoa-mundo dá a um acontecimento e me encanto com as “cenas” – a potência estética das coisas.

           

          De algum modo, voltar-me para a viagem “sem planos” é praticar uma dobra na noção do viajante. Entre a corpa turista, que busca nos pontos suas bússolas diretivas, e a corpa forasteira, que, vinda “de fora”, cria fissuras enquanto é fissurada pelo espaço. Encontrar-se em deslumbre, encontrar-se com o tempo de um grupo com o qual acabo de me ajuntar – por convite, sorte, acaso ou parasitagem.

           

          Em uma medida, tenho experimentado uma espécie de re-volta da viagem, uma viagem que volta-se para “o outro” como ponto-nada-fixo de orientação. Sou apresentada aos caminhos, tempos e vínculos de um/a outro/a à minha beira. Atraio-me pelas atrações provavelmente não turísticas e o desejo de permanecer em contra-movimento. Contra-mapeamento, ao encontro dos mapas afetivos, relacionais. Rota-desvio como prática-guia. Paço do Lumiar, Póvoa de Santarém, Bonfim, Vila dos Chãs.

           

          Exercito uma prática – nem sempre fácil – de não ceder à pressão do turismo produtivo. Não sei bem para onde vou até que eu chegue lá. Esse movimento me faz também pensar sobre uma prática de não-produção artística que não se pre-ocupa em produzir, mais do que ocupa-se em “existir com” – os caminhos e seus desvios, as pessoas e suas narrativas, os encontros e seus movimentos. A “lei não dita” do “bom viajar” é desafiada para desordenar outros circuitos de afetos. Pegar autocarros, comboios e caronas para chegar no território da infância de um outro que ainda não conheço; passar dias inteiros dentro da casa de Leonardo; ou, ainda, jantar com Clara e sua família são atividades tão intensas quanto percorrer os palácios de Sintra.

           

          Pensar essa viagem como “residência artística” é questionar o que muda quando decido nomear uma experiência de “residência”. Quando me refiro a residências artísticas não estou falando de oficinas, laboratórios ou processos criativos rotulados de forma extravagante. Reconheço que residências artísticas podem conter inúmeros formatos, atividades e configurações, no entanto, ao nomear uma situação de “residência artística”, algo se trans-forma – em formato e em modo de operação. Para mim, residências artísticas se dão como arranjos de comunidades temporárias para criação; experiências de deslocamento relacional de tempo e espaço em convivência; exercícios artísticos que deixam vestígios, tangíveis ou intangíveis – produtos e/ou processos em contextos de elaborações compartilhadas. O pesquisador em arte e brasileiro Marcos Moraes (2009) propõe que uma residência artística é um conjunto de condições e circunstâncias em que relações com espaço e tempo se desdobram em vias “conviviais, profissionais, educacionais, afetivas e sociais” (p. 10),[2] apontando para possibilidades de (re)configurações relacionais por meio do “morar com” – e, portanto, tomar tempo com, fazer espaço com. Uma condição de deslocamento como um fundamento próprio de tais experiências “em residência”. O deslocamento como uma capacidade de desencadear modos “outros” de percepção, maneiras de experimentar o “extra” do cotidiano (extra-ordinary). As residências artísticas, nesse sentido, seriam contextos de deslocamento como uma capacidade criativa que se dá pelo ato de “viver com”.

           

          Be(com)ing a stranger to this place, I started to break down worlds.

          Be(com)ing a stranger to this language, I started to break down words:

           

          vivendo com

          com vivendo

          con-viver

          con-vida

          con                              con-vidar                    vidar

          ______

          [1] Robertson, Lisa. (1961) Occasional Work and Seven Walks from the Office for Soft Architecture. Astoria: Clear Cut Press, 2003.

           

          [2] Moraes, Marcos José Santos de. Residência artística : ambientes de formação, criação e difusão [doi:10.11606/T.16.2009.tde-29042010-093532]. São Paulo : Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2009. Tese de Doutorado em Projeto, Espaço e Cultura. [acesso 2022-08-10].

          Romain Beltrão Teule Doubler

           

          Em 2020, ele está em residência em Lyon (França) e começa a trabalhar acerca de sua futura peça, Dobra. Na altura, o trabalho ainda se chama Doubler. Ele escreve um texto que iria desaparecer ao longo do processo de criação, um texto a partir do qual ele fez a seguinte proposta:

           

          Uma pessoa num palco, diante de vocês.

          Atrás da pessoa, a projeção de uma paisagem.

          Fundo sonoro de espaço exterior, ouvem-se pássaros, vento, som de passos na relva.

          A paisagem desaparece.

          O som fica.

          A pessoa que está diante de vocês pega o microfone:

           

          (em francês) O som que acompanha a minha voz foi gravado ao longo de um passeio que fiz na ilha de Naoshima.

          Este episódio começa nessa mesma ilha quando, numa noite, saindo do banho público, ele tenta me dar um folheto. Uma pessoa passa ao meu lado na rua e tenta me dar um folheto.

          Eu digo que não com a mão, esta mão que às vezes coloco entre mim e outra pessoa para comunicar que não é o momento de entrar no meu espaço.

          Digo não com a mão e continuo meu caminho. Mas ele grita.

           

          Outra voz  “HOW RUDE”.

           

          Não é muito habitual que alguém grite assim quando recuso um folheto. Então paro, olho para ele para lhe pedir desculpa. O gajo parecia muito chocado com meu gesto. E eu digo: “Sorry,  it was automatic, I didn’t mean to offend… what is it about?” ou algo assim.

          Então ele me contou que estava a fazer uma exposição em sua casa, que eu podia visitar quando quisesse. Peguei o papel e no dia seguinte fui lá.

           

          Não me lembro se tinha realmente vontade de ver o trabalho dele ou se pensei que seria bom me esforçar para conhecer pessoas. Eu tinha ido para o Japão, originalmente, para estar sozinho e chorar no topo de uma montanha. Mas talvez não tivesse viajado até o outro lado do mundo só para chorar sozinho. De qualquer maneira, eu ainda não havia encontrado o caminho que me levaria ao topo de uma montanha. E eu pensava “talvez ele é um pouco bicha”.

           

          A casa dele, que ficava do outro lado da ilha, estava coberta do chão até ao teto – inclusive no chão e no teto – de pinturas que julguei um pouco angustiantes. E ele começou a falar sobre a casa e o trabalho. Depois do terramoto de 11 de março de 2011, ele decidiu que tinha de fazer arte. Não me lembro bem se houve algo existencial que motivou essa decisão, mas, de qualquer forma, suas pinturas me petrificaram de angústia.

           

          A pessoa no palco coloca o microfone na mesa, o som de natureza para, ela olha para vocês e fala sem amplificação.

           

          Antes de continuar, tenho de contar que a decisão de ir para o sul do Japão e não para o norte se deu apenas porque eu não queria passar perto de Fukushima. Quando cheguei na casa de minha amiga Delphine em Tóquio, ela me deu uma informação crucial relativa à central nuclear: seriam necessários mais de 40 anos de obras para resfriar os reatores em fusão e, se houvesse ali um forte terramoto, havia uma boa chance de:

          “que o mundo seja destruído?”, eu perguntei,

          “que o Japão seja apagado do mapa, pelo menos”, ela respondeu.

           

          E como, exatamente uma semana antes de minha partida para Tóquio, uma bomba explodiu no aeroporto de Bruxelas, de onde eu devia partir,

          e como, no ano anterior, eu estava a caminho de Paris quando o jornal Charlie Hebdo foi atacado,

          e como eu estava num avião ao mesmo tempo que houve o acidente da Germanwings,

          eu estava começando a sentir uma grave síndrome de perseguição. Ou seja, depois do relato da Delphine sobre Fukushima, decidi mudar meus planos pensando que seria mais sensato não ir para o norte do Japão, o que me obrigaria a passar ao lado da central – com a sorte que eu estava tendo naqueles idos, se passasse ao lado dela, com certeza haveria um terramoto.

           

           

          A pessoa pega o microfone, o som de natureza recomeça, e fala:

           

          Estou na exposição à frente do pintor, que parece mais jovem do que eu, e ele começa a falar muito sobre Fukushima. Olhando de novo para suas pinturas, concluí que ele devia estar mesmo muito traumatizado. Ele sente que um desastre pode acontecer a qualquer momento. Namazu, o peixe-gato gigante que vive sob o arquipélago do Japão, vai acordar e o resultado será muito pior do que o 11 de março de 2011.

          Ele me contava isso tudo de maneira super distante. Quanto mais ele falava,  pior eu me sentia. Saí da casa e não sei bem o que fiz em seguida, mas lembro que ele morava do lado norte da ilha… e eu não conseguia olhar para a linha do horizonte sem me perguntar se uma nuvem atômica ia chegar por ali.

          Para me acalmar, dei uma grande volta de bicicleta, fui até a praia do sul da ilha para ver um horizonte diferente e fui beber um chá no café mais apaziguante possível. Lucie me ligou, ela estava preparando uma performance na qual se transforma em sereia. Fiquei mais calmo.

          Tudo isso para dizer que não fui para o norte para evitar pensar em Fukushima e acabei me encontrando em uma ilha, muito pequena e obcecada pela possibilidade de uma aniquilação iminente.

           

          Cinco dias depois, cheguei a Kagoshima, a metrópole mais austral do principal arquipélago do país. Pela primeira vez desde o início da minha viagem, me encontro em uma cidade termal. A água que alimenta os banhos públicos é vulcânica. Cheira a enxofre. À noite, vou ao banho público.

           

          Um cão começa a ladrar ao longe. A pessoa que está diante de vocês ignora essa informação sonora e continua.

           

          Estou muito entusiasmado, acho que a experiência vai ajudar a tratar a tosse de que tenho sofrido desde a minha chegada a Tóquio. A água está muito quente, eu não consigo entrar no banho de uma vez.

           

          O cão continuou ladrando, o som se aproximou. A pessoa que está no palco com vocês pára de falar. Ao mesmo tempo, a paisagem reaparece dentro e, no meio dela, tem uma pessoa parada com dois cães à sua frente.

          Na linha do horizonte adivinhamos a presença de outra pessoa, que grita : “Max! Ça suffit ! Dépêche-toi, tu reviens. Allez Max! Max allez! MAX!”

          O primeiro cão vai embora, o segundo fica fixo por um instante, ladra mais uma vez e vai embora. A pessoa que está na colina retoma:

           

          “Eu vou e volto entre o chuveiro frio e o banho quente. Finalmente, consigo imergir meu corpo inteiro. Minha pele queima. Sinto-me zonzo. Isso acontece com bastante frequência quando me esqueço de respirar. Me tranquilizo. Olho ao meu redor. A água está muito agitada. Devo ter entrado no banho como uma baleia, pensei. A água ainda se move muito.”

           

          Enquanto fala, a pessoa da colina se aproxima. A sua voz é muito parecida com a voz da pessoa que está diante de vocês.

           

          “A água no banho de água fria, que um minuto antes era lisa como um espelho, também está se movendo muito. E eu sou o último cliente ainda presente. Percebo que se trata de um terramoto e logo me lembro de todas as instruções que Delphine me deu sobre como agir. Mas não vejo mesa alguma, nenhum arco de porta à minha volta. Decido então que tenho que sair para a rua. Nu. Saio do banho, me viro, vou aos vestiários e lá encontro o penúltimo cliente que estava se vestindo, em silêncio. Aproximo-me dele e não sei se lhe perguntei alguma coisa ou se ele apenas viu minha cara preocupada, mas de qualquer forma ele sorriu para mim e disse “earthquake” enquanto fazia o sinal de OK com a mão. E ele riu.

          OK… pensei que não devia ser muito sério, mas a terra estava ainda tremendo bastante.”

           

          A pessoa que está na colina continua se aproximando. Parece-se muito com a pessoa que está diante de vocês.

           

          Quando saí do banho, a empregada do banho público não me parecia tão serena. Ela me disse que o terramoto tinha sido de magnitude seis e que o epicentro foi em Kumamoto, a 150 km dali.

           

          Enquanto a pessoa da paisagem continua falando, dando mais detalhes sobre o que ocorreu depois do terramoto, a pessoa que está no estúdio diante de vocês ficou parada, de pé, olhando alternadamente para vocês e para o vídeo filmado dois dias antes. Escrevendo este texto e criando esta situação, ele, enfim, eu, estava à procura do duplo. Eu tinha feito a mim mesmo a proposta de trabalhar sobre a figura do duplo, e tinha a intuição que, escrevendo este texto, esta memória de viagem, ia encontrar esse doppelgänger.

          E pensava: “será que esse doppelgänger só existe enquanto eu fujo dele?’.

          Olhei para o público, olhei para o texto – que dobrei e coloquei na minha mala.

           

           

          Joana Levi Rasante

           

          PROCESSOS EM RASANTE

           

          Quando iniciei o processo de criação de Rasante, em junho de 2020, na primeira residência da rede Terra Batida,[1] estava interessada em processos e contextos de exploração e extinção.

          Da exploração, interessavam-me os processos imersivos, onde eu pudesse explorar-me-com-em contextos, e não de fora como quem investiga um objeto ou expropria recursos. Na prática, esse mergulho deu-se pelo exercício de uma escritura sensorial. A partir da experiência de percursos sensórios, que misturam movimentos, impressões, pensamentos e memórias, eu viria a criar uma série de mapas de sensações e palavras, que a seguir tornavam-se textos-poemas, os quais, por sua vez, voltariam a inspirar novos percursos e sensações. Sensoriografia, foi o nome que dei a esse modo de imergir em matérias.

          Através desse processo de imersão, interessava-me perceber que contextos seriam determinantes à extinção, ao desaparecimento de uma espécie animal. Perguntava-me que condições tornavam impossível a continuidade de determinadas formas de vida. E logo vi-me diante de uma experiência que de fato me colocou dentro do problema.

          Estávamos em Castro Verde e fomos apresentadas à realidade de algumas espécies de aves ameaçadas de extinção. A exploração dos solos, a produção intensiva de alimentos, a depauperação da terra, o desmatamento, a falta de diversidade vegetal… Razões dentre outras, tantas e conhecidas, que levam seres vivos a fugir, morrer, desaparecer.

          Nesse contexto de desertificação, tivemos a chance de acompanhar de perto um projeto científico de apoio a espécies de aves ameaçadas. O projeto tinha como objetivo construir ninhos artificiais que permitiam a reprodução dos pássaros, mesmo em ambientes hostis. Porém, para atestar a necessidade da intervenção, o método exige o controle da comunidade em questão, ou seja, contar, pesar, medir, marcar, rastrear, selecionar, testar os indivíduos que, enquanto objetos de estudo, são submetidos compulsoriamente a todo e qualquer processo necessário ao propósito da pesquisa.

          Foi a partir do testemunho dessa experiência que as imbricações, empíricas e subjetivas, entre o racionalismo científico e as relações coloniais e supremacistas tornaram-se a matéria viva onde eu iria imergir no processo de criação da performance. RASANTE nasce, assim, não como texto, mas como fala-corpo que quebra-a-cabeça num puzzle de questões e perspectivas interespécies que exigem deslocamentos e descamações.

           

           

          RASANTE (excerto)

          Joana Levi

           

           

          Eu,    eu

          sou uma gaivota.

          Mas quem diz isso

          não sou eu

          eu enquanto eu

          não existo

          porque eu é quem diz, eu é quem me chama

          … aliás, eu é aquilo que não me chamam.

          Então, quando eu digo, “eu sou uma gaivota”

          não sou eu que digo

          porque eu não sou

          eu.

          Enfim,

          então, a gente podia terminar por aqui, né?

          Porque se eu não sou eu

          porque eu não se chama eu

          porque “uma gaivota” é o que dizem que eu sou, sendo que

          eu, dizem, não sou

          porque eu não penso, dizem

          e se eu não penso

          eu não posso dizer

          que eu sou uma gaivota

          porque se eu não penso, eu não falo, então, não teria como dizer que eu sou uma gaivota

          eu teria como… não dizer.

          Porque esse eu não é eu

          porque esse eu é alguém que diz

          e que pensa e que fala

          e portanto alguém que não diz eu

          que não diz que pensa

          e que portanto não diz

          eu

          não posso ser eu.

           

          Mas eu sou uma gaivota, dizem

          e dizem que eu não penso e que eu não falo, dizem.

          Então, tudo que eu disser aqui não sou eu que tô dizendo, ok?

           

          Mas em sendo uma gaivota, como dizem,

          que não pensa e não fala, como dizem,

          gaivota… gaivota…

          Eu sou, posso ser, dizem,

          bonita

          posso não ser bonita

          posso ser útil

          ou posso ser inútil.

          Então tem assim algumas coisas, dizem, que eu posso ser mesmo sem ser   eu.

          Se eu for bonita, se eu for encaixada aí,

          eu posso ser admirada,

          visualizada, observada,

          posso ser paisagem.

          Já se eu for útil

          posso ser usada,

          testada, provada,

          experimentada, monitorada, torturada…

          Mas, se eu não for nem bonita e nem útil,

          eu provavelmente devo ser inútil

          e, se eu for inútil,

          significa que é indiferente que eu exista ou não.

           

           

          E aí é que as coisas se complicam um pouco

           

          porque, dizem também, que mesmo que eu seja considerada obviamente inútil

          que eu não produza carros

          que eu não produza pensamento

          que eu não produza

          ou que eu só produza o que se explica, dizem, como som

          cantos

          música

          experimental

          hermética

          que ninguém entende muito bem pra quê aquilo.

           

          Ainda assim,

          mesmo que não sirva pra nada essa coisa

          que exista ou não exista gaivota,

          dizem, existiria uma cadeia alimentar

          que faz com que

          eu tenha uma função

          que seria basicamente a função de comer e ser comida,

          comer e ser comida, comer e ser comida, comer e ser comida………………..

           

          E que se for quebrada essa cadeia alimentar…

           

          Quer dizer, imagina, uma experiência:

          tira a gaivota

          tira a gaivota

          que ela não serve pra nada

          (ela suja, ela grita)

          ficou feia, virou praga

          então, tira a gaivota.

           

          O problema é que aí fica um buraco,

          quer dizer, se eu deixo de existir, mesmo sem ser EU

          deixo de comer os peixes que eu comia

          e a águia, que me comia deixa de me comer,

          então, a águia fica passando fome

          e o peixe, uuu, deixa de ser comido

          se multiplica, se reproduz, começa a comer muito

          come todos os moluscos, os moluscos, os moluscos, os moluscos

          que ainda restam

          nos recifes agonizantes

          dos mares escaldados

          come tudo que vê pela frente

          acaba com a comida dos outros peixes que dividiam

          com ele a mesma comida

          mas ele é maior, cresce muito, se reproduz, a gaivota não come ele

          ele…. ppppppppppp

          vira praga.

           

          Então a gaivota não existir é um problema, vira um problema a gaivota não existir.

           

          Porque

          o homem, dizem, né…

          O Homem

          diz:

          existe uma cadeia alimentar

          onde todos os vivos ou quase vivos, os mortos ou quase mortos

          estão presos nessa cadeia

          menos EU, diz:

          porque EU estou no topo

          da cadeia

          quer dizer Ele, O Homem, o EU

          diz:

          você come esse, esse come aquele e EU, que sou EU,

          posso comer todo o mundo.

          Então, O Homem, esse EU que tá no topo e que comanda lá de cima quem pode comer quem,

          diz mais, diz:

          Eu sou imagem e semelhança de Deus (o barbudo, pai de todos os EUs)

          e por isso, diz, quem quiser me comer, ou roubar a minha comida, infelizmente ou felizmente,

          vai ter que ser perseguido, exilado, exterminado etc.

           

          Enfim, essa explicação é bem confusa, porque ele diz: EU (a.k.a. “macho adulto branco no poder”), EU sou imagem e semelhança de Deus, o barbudo, paizão de todos os EUs.

          Mas… não seria o próprio Deus barbudo a imagem e semelhança dEUle,

          macho adulto branco no poder…?

          Enfim… mas isso seria como perguntar quem nasceu primeiro o ovo ou a gaivota…

           

          Então, se é como dizem,

          eu posso ser bonita

          posso não ser bonita

          posso ser útil,

          ou posso ser inútil.

          O que quer dizer que:

          eu posso ser paisagem

          posso ser morta

          posso ser ajudada ou posso ser abusada.

          Ou seja, tem aqueles que querem

          me olhar

          Tem aqueles que querem

          me matar

          e tem aqueles que querem

          me ajudar ou me usar.

          Nada disso fui eu que pedi

          porque

          eu não penso

          não falo, dizem,

          então, não posso ter dito:

          ei,

          me mata

          tô precisando de ajuda

          me usa

          olha pra mim

          eu, provavelmente, não disse nada disso.

          ______

          [1] Terra Batida é uma rede de pessoas, práticas e saberes em disputa com formas de violência ecológica e políticas de abandono, iniciada por Marta Lança e Rita Natálio.

          Clarissa Sacchelli Wild

           

           

          Wild é selvagem. Wild entretanto carrega uma única vogal e uma grafia curta quiçá mais gráfica para designers do que selvagem. Wild abre-se com um W de linhas inclinadas que também poderiam ser dois V’s que se tocam. Wild faz um som que circula na boca. Wild. Selvagem não. Selvagem começa com a letra S. S, a letra da serpente.

           

          Em inglês há wild e savage. Não significam exatamente a mesma coisa, mas poderiam ser sinônimos. Wild tem raiz anglo-saxônica/germânica, e savage, latina/francesa. Selvagem tem também raiz latina. Liga-se a Silva que, nada por acaso, é um sobrenome bastante recorrente no Brasil. E em português dizemos selvagem para savage e wild. Wild e selvagem são palavras que carregam uma história relacionada a violentas narrativas de ordens civilizatórias disseminadas pelo colonialismo. E sendo o português do Brasil minha língua materna, ensinaram-me desde cedo que selvagem poderia se referir a uma qualquer ideia de não-civilizada, ou a práticas sexuais não normativas, ou ainda ser o contrário das coisas ordenadas.

           

          Wild é uma peça de dança estreada em abril de 2022. Mas selvagem não é um tempo antes. Não se orienta para um lugar que imaginamos ter existido nem para onde voltar. Tampouco é uma terra desconhecida. Selvagem aponta para outra epistemologia, ou até uma antiepistemologia. E desconstruir o binário selvagem/civilizada-domesticada não representa esquecer a história associada à palavra, mas ao contrário, trata-se de pensar, nas palavras de Jack Halberstam, na “violência que expulsou [e expulsa] as coisas selvagens do mundo em primeiro lugar”. 1

           

          Rewild é um termo em inglês assinalado para se referir a processos de restauração de ecossistemas considerados destruídos ou degradados. Rewild pode apresentar diferentes traduções para o português, como renaturalização, refaunação ou, ao pé da letra, tornar selvagem outra vez. Rewild, entretanto, arrisca exaltar um entendimento de que existem condições mais naturais que outras, e para as quais devemos retornar. Essa perspectiva carregaria o potencial de perpetuar a dicotomia humano-natureza ou natureza-cultura que, por sua vez, apontaria novamente para histórias de colonialismo e imperialismo que ordenaram espaços propondo essas duas instâncias como separadas a fim de sustentar programas políticos e ideológicos de dominação.

           

          Bewilderment é uma outra palavra em inglês que carrega uma sensação de tornar-se selvagem.2 Be wild, seja selvagem. Tornar-se selvagem, no entanto, se difere de tornar (algo) selvagem outra vez. Bewilderment pode ser traduzido para o português como desnorteamento, desorientação. E, aqui, interessa-me o que surge desse emaranhado entre tornar-se selvagem e fazer perder o norte, não só enquanto direção, mas como lugar de epistemologias dominantes. Desnortear, afinal, implica desorientar. E com desorientar não me refiro ao contrário das coisas ordenadas, e sim a uma possibilidade de perturbar o modo como os corpos (humanos e mais que humanos) são ordenados. Há ordens que existem antes e para além de nós, e as orientações dos nossos corpos são organizadas, não apenas casuais. A percepção indica sempre uma direção, e o que a gente percebe depende da nossa orientação.

           

          Orientar-se seja para cima ou para baixo, de pé ou deitado, modela não só perspectivas, como também modos de operar. Desorientar a retidão da linha vertical, imposta como apropriada aos corpos humanos, seguramente transformaria nossa percepção. Talvez longe da incorporação da verticalidade, a visão humana, por exemplo, perderia sua autoridade dentro da hierarquia dos sentidos das pessoas que veem. A orientação corporal apoiada num ângulo de 90° em relação ao solo aponta para a produção de uma verticalidade eficiente, possivelmente associada a crenças ao redor da racionalidade e até mesmo da capacidade de se enquadrar na categoria de humano. Em contrapartida, uma orientação paralela ao solo poderia evidenciar uma outra angularidade, esperada e também reiteradamente imposta a determinados corpos humanos, sobretudo corpos minorizados, racializados e/ou com mobilidade diversa.3

           

          As danças de baile, oriundas da França do século XIV, constituem um pensamento de dança baseado em corpos absolutamente verticais que, nunca saídos de seus próprios eixos, serviram para estabelecer uma suposta civilidade vinculada a sistemas de controle e poder que disciplinavam como um corpo deveria se portar na vida cortês. Ao passo que experimentações localizadas ainda nesse recorte da chamada história oficial da dança, que desafiaram a verticalidade a partir de uma reorientação da relação dos corpos com a gravidade – como o contato improvisação iniciado por Steve Paxton ou o trabalho de Trisha Brown – abriram espaço para a construção de outras relações de equilíbrio e vulnerabilidade entre corpos.

           

          Perturbar o binômio vertical-horizontal poderia nos apontar para momentos de desorientação capazes de balançar a estabilidade requerida ou imposta por essas direções, respectivamente. Nem todes nós ficamos de pé, porém, ficar de pé, para um corpo humano ereto, emergiu de um processo de inclinação. E se bebês, à medida que crescem, não ficassem de pé, mas inclinades? Ou ainda, e se na chamada Evolução os corpos humanos não tivessem atingido a verticalidade? Talvez não fôssemos humanos como nos reconhecemos hoje.

           

          Inclinar poderia, afinal, ser uma tentativa de desorientar estruturas permanentes e autônomas. É certo, todavia, que há muitas formas de inclinação, e a inclinação carrega também a possibilidade de dominação e submissão (tal como o corpo da reverência subserviente, o “pecador”, ou o corpo que ataca ou é atacado). Importa também distinguir a inclinação como disposição a fazer algo e a inclinação como ação corporificada. Nem sempre as duas ocorrem em simultâneo e, o que me interessa aqui, em virtude da minha prática se localizar no campo da dança, é pensar a inclinação como orientação corporal, movimento e ação do corpo. Em todos os casos, diferente da retidão da postura vertical, a inclinação enfraquece nossa estabilidade, reconhecendo mais nossa interdependência que autonomia.

           

          Wild, a peça de dança estreada em abril de 2022, não surgiu intitulada como Wild nem partiu da inclinação como premissa. Manifestou-se da vontade de pensar que: se a dança frequentemente se materializa com e para outras pessoas e, se geralmente aprendemos a dançar olhando ou dançando com outras pessoas, há um incontestável ato de transmissão na dança capaz de trazer pessoas em relação. Reconhecendo, no entanto, que nem toda dança garante uma relação de interdependência, considerei aproximar conceitos de cuidado também implicados com ideias ao redor dessa noção, para, assim, imaginar uma prática capaz de trazer pessoas (e mais que pessoas) em relação. Ao pensar através do cuidado, não interessa apontar para a questão moral de como cuidamos mais ou melhor, ou ainda entrar nos imperativos contemporâneos do chamado autocuidado, mas sim se perguntar o que acontece aos nossos corpos, e ao labor da dança, quando prestamos atenção a como cuidamos. Ao observar os corpos humanos que cuidam – tal como pessoas que acompanham crianças ou doentes, ou aquelas em atividade em uma horta – há, em geral, um deslocamento do centro de seus corpos em direção ao outro corpo com o qual se relacionam. É a partir dessa perspectiva que a inclinação, como orientação corporal, despontou como uma abordagem coreográfica, cujo interesse não esteve na tentativa de extinguir a verticalidade, mas sim desfazer o ponto de vista no qual a verticalidade, e suas relações com estabilidade, linearidade e autonomia, fazem sentido.

           

          Imagine uma dança social em trio, uma espécie de dança de salão para ajuntamentos de pessoas (e talvez coisas) que se movem sempre fora de seus eixos, em suporte mútuo, sem colapsarem. Imagine que a relação entre os corpos (que dançam e/ou observam) nunca se dá de modo simétrico, mas espera por reciprocidade. A distância entre os corpos requer ser (re)negociada a cada movimento, e a proximidade não garante maior suporte. Antecipar um contato pode impedir que um corpo saia de seu eixo, ao passo que tardar pode deixá-lo cair. Ao fim, imagino que toda desorientação envolva contato. Um contato, porém, que não segura nada no lugar, mas que talvez fabrique corpo, que agora penso não como fisiologia ou anatomia, e sim como um tecido no qual não há separação entre o corporal e o social. Toda desorientação é também uma desorientação espacial e temporal.

           

          A peça Selvagem (Wild) foi feita em companhia de Carolina Callegaro, Danielli Mendes, Laura Salerno, Luisa Puterman, Miguel Caldas e Renan Marcondes, e com a colaboração de Anne Kersting, Niklaus Bein e Thiago Granato.

           

          ___

          1. Jack Halberstam, Wild things: the disorder of desire. Durham e Londres: Duke University Press, 2020. [Tradução livre da autora].
          2. Ibid.
          3. Ver Kemi Adeyemi, “Beyond 90°: The Angularities of Black/Queer/Women/Lean”. Women & Performance: A Journal of Feminist Theory, vol. 29, no. 1, 2019, pp. 9-24.

          Entrevista Iluminem Tudo o que Vos Interessar

           

          Beverly Emmons começou a fazer desenho de luz na década de 1960, com Merce Cunningham, e tornou-se uma das artistas de iluminação de referência da sua geração, lado a lado com os pós-modernos da dança como Lucinda Childs ou Trisha Brown, mas também com Martha Graham, Alvin Ailey,  Bill T. Jones e não só. Emmons trabalhou extensivamente na Broadway e com o encenador Bob Wilson, com quem iluminou Einstein on the Beach. Esta entrevista, realizada na manhã gelada de 8 de janeiro de 2022, numa esplanada em Brooklyn, teve como ponto de partida a digressão da Merce Cunningham & Dance Company a Portugal em 1966, na qual Emmons assumiu o papel de diretora de cena e desenhadora de luz. A conversa salta no tempo e nas memórias enquanto sobressaem diferentes ideias de design, o papel do desenhador de luz no diálogo com coreógrafos e encenadores e a história do design à luz da sua emancipação enquanto prática profissional.

           

           

          João dos Santos Martins: Uma das pessoas da equipa técnica que vos assistiu na digressão de Cunningham em Portugal, em 1966, foi Orlando Worm.

          Beverly Emmons: Eu não me lembro do nome dele. Lembro-me do homem que coordenava. Era entusiasmado e alegre.

          J: Ele era chamado eletricista, na altura, mas tornou-se desenhador de luz do Ballet Gulbenkian. Essa profissão não existia antes e ele terá sido um dos pioneiros.

          B: A pessoa da iluminação nas grandes casas de ópera é o responsável pela equipa da eletricidade, que pode ou não ter talentos de desenho. Há uma grande diferença e é compreensível em relação ao teatro comercial. Quando alugamos um teatro na Broadway, temos cadeiras, uma cortina, paredes e algum tipo de sistema de suspensão. Tudo o resto tem de ser trazido, até as mesas de luz. Portanto, entramos e trazemos as coisas de que precisamos para o nosso espetáculo. E esse espetáculo vai continuar em cena tanto quanto conseguirem vender bilhetes. Trinta anos para o Fantasma da Ópera! A única coisa que têm de fazer é a manutenção, pôr algo novo ou renovar o filtro de cor. Agora é mais complicado, por causa dessas luzes…

          J: As luzes LED?

          B: Sim. Na Europa, há uma tradição chamada repertório rolante: hoje é esta ópera, amanhã é outra, e à tarde ensaiam uma terceira, por isso, tem de se refazer as luzes. Um desenhador é limitado no que consegue fazer dependendo de quanta ajuda tem. Isso tem limitado a ideia de iluminação ao que é conveniente para o espetáculo. Nós fazemos o mesmo, mas só na Metropolitan Opera. Mais ninguém faz essa coisa de “mudar todos os dias”. Já não nos podemos dar ao luxo de fazer isso.

          J: É demasiado caro…

          B: Até aos anos quarenta, as pessoas ainda trabalhavam assim na Europa, tal como nós costumamos trabalhar. Nos anos sessenta, quando estava na faculdade, passava o verão no American Dance Festival e conheci um pouco a Jean Rosenthal e o Tom Skelton. Todos os modernos passaram por lá: a companhia Alvin Ailey, o Paul Taylor, a Martha Graham passava todos os verões. Já viu a companhia Alvin Ailey?

          J: Nunca vi ao vivo.

          B: Se considerarmos um bailado como Revelations, que foi coreografado em 1958, e iluminado durante os anos sessenta, essa luz tem de ser a mesma e eles têm-se comprometido com isso. É impraticavelmente prático. Eles não querem gastar dinheiro a contratar um desenhador para o voltar a iluminar. Por isso, todos os bailados no repertório da companhia têm de trabalhar com essas cores e esse mapa de luz. Hoje em dia é mais flexível, mas isso é uma conversa para a próxima geração. O que quero dizer com isto é que também está a ver ideias sobre iluminação que se originaram nos anos sessenta. Em contraste com isso, o Merce Cunningham odiava cor.

          J: Então não usava cor nas suas peças?

          B: Poderia haver alguma cor, mas manuseada de uma certa forma.

          J: Quando é que começou a colaborar com Merce Cunningham?

          B: Eu fui contratada como desenhadora de luz para a digressão de 1965, quando tinha 21 anos. Estava no meu último ano de faculdade. A companhia tinha feito uma digressão internacional em 1964 e o Robert Rauschenberg, que tinha circulado com o Merce durante dez anos e tinha articulado algumas das suas ideias de iluminação, tinha acabado de ganhar o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, por isso, já não lhe fazia muito sentido continuar.

          J: A sua carreira estava prestes a explodir. Então, foi substituí-lo?

          B: Ele apenas inventava coisas. Eles nunca faziam um ensaio com luzes sequer. Mesmo quando eu já estava lá, eles não faziam ensaios gerais com luzes.

          J: Uma das coisas que mais me impressionou no vosso calendário de digressão em Portugal foi que não havia pausas entre espetáculos e cidades. Um dia é Lisboa, no dia seguinte é Coimbra, no outro é Porto. Viajar de comboio até Coimbra demorava umas três a quatro horas. Como é que conseguiam fazer isso?

          B: Bom, a equipa técnica ia à frente. Entenderam aquilo de que eu precisava e providenciavam-no. Provavelmente tinham equipamento de iluminação alugado quando estavam a viajar.

          J: Até porque os teatros não estavam bem equipados. O teatro onde dançaram primeiro em Lisboa, o Tivoli, era o mais bem equipado em Portugal na altura.

          B: Nós costumávamos enviar uns questionários que eram devolvidos com informação técnica. Nunca tinham nada.

          J: Assim, saberiam o que levar.

          B: A Fundação Gulbenkian foi ótima a organizar isso. Em Coimbra havia uma antiga mesa de luz inglesa, diabólica, uma pessoa torturava-se com aquela porcaria.

          J: E porquê?

          B: Não sei quão à vontade é que se sente com mesas de luz, esta era pré-computorizada. Era o que chamamos uma mesa pré-definida de dois canais: a lista branca de dimmers e a verde. Na parte de cima havia um interruptor, e podia-se mudar para as luzes que se quisesse. Tinha ainda um dimmer que funcionava entre as duas listas, a luz podia estar na coisa branca ou na verde ou a meio caminho entre ambas. Montava-se o que era preciso e ligava-se, mas depois, para apagar, tinha de se trocar de uma lista para a outra. Lembro-me de uma pessoa que trabalhava com essas mesas em Inglaterra e que dizia que tinham de preparar as deixas de luz de manhã e deixar os eletricistas sozinhos a tarde toda para que descobrissem como o fazer, era complicadíssimo.

          J: Voltando às ideias de design, o que tem Jean Rosenthal que ver com isso?

          B: Jean Rosenthal foi diretora de cena nos anos 1930, com encenadores muito famosos como Orson Welles. Muitas vezes a iluminação era feita da mesma maneira que na Europa, em que o encenador está à frente, talvez tenha o seu amigo ao lado, o cenógrafo, e dizem “agora queremos que isto seja azul”, e o eletricista no palco fazia. A situação que certamente aconteceu mais do que uma vez foi que, na qualidade de diretora de cena, ela diria: “Bem, amanhã temos de fazer 25 deixas.” Chegamos de manhã, sentamo-nos, diz-se isto e concordamos, e depois o diretor pergunta ao eletricista: “Isto é o único azul que têm?” E o eletricista diz: “É a única merda de azul que tenho!” E, de um momento para o outro, o teu plano foi ao ar. Agora vão todos discutir uns com os outros. A atitude da Jean foi: “Talvez alguém com um ponto de vista artístico pudesse ter uma conversa, antes de entrarmos no teatro, com o encenador e o cenógrafo e depois arranjar cores que eles gostariam de ver. E ter algumas sugestões para o eletricista sobre onde colocar as coisas.” Esse é o desenhador de luz. E demorou até ao início dos anos 1940 para o conseguir. Houve ainda um homem, chamado Abe Feder, que insistiu em fazê-lo. Ele foi a primeira pessoa a receber crédito como desenhador de luz. Penso que o Bob Wilson também terá sido responsável por isso na Europa, por ser tão impossível. Os tipos locais não querem lidar com ele.

          J: Imagino que teria sido difícil fazer as luzes dos seus espetáculos sem um desenhador. Também desenhou as luzes para Einstein on the Beach?

          B: Não. O Bob Wilson diz o que quer ver e não deixa passar um minuto até ter o que quer. Por isso, é preciso habituar-se ao tipo de coisas que ele quer e à linguagem com que as quer. Esse tipo de iluminação é extremamente difícil de fazer, mas também é preciso saber o que ele quer dizer. Por exemplo, ele grita: “Quero uma linha de luz na cara deles. Quero um feixe de luz!” Então começo a imaginar: “Deixa cá ver: pego numa luz e faço uma pequena linha.” Não, não, não, não. Ele só quer uma luz brilhante de um lado e nada do outro. Ele não o pede bem. Então, outras pessoas tentam fazer o que seria de loucos, quando na verdade é muito simples.

          J: Disse que ainda estava a estudar quando foi para digressão com Cunningham em 1965.

          B: Eu estava numa universidade muito liberal chamada Sarah Lawrence, no departamento de dança.

          J: Significa que também estava a estudar dança?

          B: Comecei por ser bailarina. Depois, ao ir ao American Dance Festival no verão, para ter aulas de dança, comecei a trabalhar nos bastidores e descobri que, em última análise, isso era muito mais interessante do que ser bailarina. Eu via todas aquelas companhias passarem por lá e pensava “vou ter de ser melhor do que algumas dessas miúdas ou não vou arranjar emprego”. Então, foi daí que veio. A universidade foi suficientemente flexível para que quando lhes disse que poderia ter de faltar a algumas aulas porque ia em digressão com Merce Cunningham, respondessem: “Merce Cunningham? Não há problema.”

          J: Conheceu a companhia quando estava no American Dance Festival?

          B: Sim, eles vieram umas quantas vezes e fiquei com uma ideia do seu trabalho. Mas, então, Jean Rosenthal. Duas coisas importantes: ela era diretora de cena da Martha Graham. E a Martha Graham dava às mulheres permissão para seguirem o seu caminho. Se queres alguma coisa, vai em frente. Ela dizia aos bailarinos: “Não me mostrem um movimento. Eu roubo-o.” “Se queres alguma coisa, agarra-a, agarra-a com energia.” Há muitas mulheres que ela apoiou… as pessoas não se apercebem disso. Basicamente, a Jean teve permissão para olhar para si própria como desenhadora de luz no contexto do trabalho da Martha Graham. A outra coisa que é importante sobre a Jean, algo acerca do qual era delicado falar até recentemente: ela era lésbica. O que significa que não havia conversa de sedução à volta dela. Toda aquela forma como as mulheres eram educadas para serem bonitas, namoradeiras e todo esse tipo de coisas: não, não, era tudo trabalho. “Bom dia, Sr. tal e tal, prazer em vê-lo novamente, como está a sua família, e agora podemos por favor tirar a escada e ir até ali?” Isso retirava pressão às equipas para não serem sexualmente competitivas. Deixava-os sentirem que só estávamos ali para pendurar luzes, para fazer um espetáculo. E essa é uma ideia essencial que libertou ambos.

          J: Portanto, existe uma relação entre género e sexualidade que desempenhou um papel importante numa forma de emancipação da profissão?

          B: De género, absolutamente. E muitas das mulheres que vingaram depois dela trabalharam no seu escritório ou como assistentes. Ela lançou as bases para todas as mulheres com quem ainda trabalhamos. E há muito poucas histórias de equipas técnicas a fazerem comentários inapropriados a mulheres.

          J: Fiquei surpreendido por saber que acompanhou a digressão de Cunningham a Portugal em 1966 porque, nessa época, não apenas a situação para as mulheres era extremamente restrita socialmente, mas também pela situação política do país. Os anos 60 foram o período mais duro da ditadura quando a guerra colonial se intensificava, assim como a censura e a repressão tinham os seus ápices.

          B: Como é que o Merce escapou a tudo isso?

          J: A minha suposição é que a abstração permitiu um certo grau de liberdade. Quando vieram para Portugal, tinham conhecimento da situação política do país?

          B: Não. Chegámos muito tarde. Estivemos uma semana em Estocolmo e foi apenas quando estávamos em Paris que descobrimos que não íamos para casa, que íamos para Portugal. Quando me encontrei pela primeira vez com o Merce, em janeiro do meu último ano de faculdade, ele disse-me: “A luz para o meu trabalho deve ser como o dia. E a forma como uma árvore parece diferente do lado de fora da janela é porque o Sol se moveu e não porque algo emocional aconteceu no mundo.” Ele não queria que a luz refletisse ideias emocionais. Ele nunca nos diria se houvesse uma história na sua cabeça sobre o bailado. Quando convidava compositores, dizia: “Estou a pensar num bailado de vinte minutos.” Era tudo o que dizia. E ninguém ouvia a música até ao dia espetáculo. A outra coisa que ele dizia, que é relevante para a iluminação, era: “Se tenho aqui os meus bailarinos todos juntos, não quero que apaguem o resto das luzes porque isso é dizer ao público que vamos ficar lá tempo suficiente para que valha a pena a mudança. Além disso, quando eu deixar o grupo, não têm de trazer as luzes para a frente a dizer às pessoas para onde vou. Isso não é da vossa conta, isso é da minha conta!”

          J: O facto de o ponto de encontro entre música, luz e dança ser desconhecido até ao dia da apresentação é interessante do ponto de vista da censura, já que a censura não teria estratégias para lidar com esse nível de aleatoriedade. Quando começou a trabalhar, assumiu alguns dos projetos que Rauschenberg tinha feito? Por exemplo, o espetáculo Winterbranch tinha desenho de luz de Rauschenberg.

          B: Desenho é uma palavra complicada, porque envolve papelada e decisões que se estabelecem. Nunca falei com o Bob Rauschenberg sobre Winterbranch. Foi-me dito pelo Merce quais eram as ideias do Bob e qual tinha sido a sua experiência, e ouvi dos dançarinos o quão escuro era e como as luzes lhes batiam nos olhos. Era completamente improvisado, nunca era igual. Assim, com base nisso, o desenho que eu fiz formalizava essas ideias.

          J: Como é que isso se sucedeu?

          E: Por articulação. Enquanto o Merce dizia que o seu bailado deveria ser como o dia, o Bob disse que deveria ser como a noite. Não a noite bonitinha com a luz da Lua. Não, deveria ser como a noite moderna: escura com fontes de luz elétrica. Faróis de carro a varrerem a paisagem, conduzir no escuro e, de repente, aparecer um enorme centro comercial e depois voltar ao escuro. Coisas acolá, como um parque de estacionamento com luz branca fria. Ou como quando os olhos ficam habituados ao escuro e se se apercebe que é a Lua que está a iluminar a parede do quarto, ou quando alguém tem uma luz de presença que faz uma sombra engraçada. Eram essas o tipo de imagens. E como é que se faz isso no teatro? Para começar, não se usa cor. Apenas branco. Depois, todas as pernas e bambolinas desaparecem, por isso é só maquinaria. A parede de fundo é o que lá estiver. Se houver algum cenário bonitinho, vira-se ao contrário. Lá no topo, estariam luzes de trabalho de halogéneo que se acenderiam. Só essas, por si só. E depois ligam-se as outras a 20% da intensidade. Assim, fica um cinzento aplanado sobre todo o espaço, e os bailarinos tornam-se figuras sombrias que mal se conseguem ver. Sobre um cavalete coloca-se um projetor PAR de cada lado. Ficava fora de vista do público e dizíamos ao eletricista para o mover pelo palco quando os projetores se acendessem.

          J: Ah, eram os técnicos que os movimentavam!

          B: Movimentavam-nos como se fossem faróis de automóvel. Podia perguntar-se: “O que acontece se acendermos as luzes da teia na direção das cordas ali? E se abrirmos aquela porta do corredor?” Uma das coisas que eu costumava fazer era pegar num projetor de ciclorama qualquer, pô-lo na teia, acima de tudo o que está pendurado, com um técnico ao lado, e dizia-lhe: “Sempre que a luz se acender, mova o projetor.” Assim, de repente, viam-se enormes sombras a moverem-se pelo palco.

          J: Na verdade, era um trabalho coreográfico com as luzes.

          B: Sim, exceto que a ideia era manter uma sensação de aleatoriedade. Os bailarinos não eram aleatórios, estavam sempre no mesmo lugar no mesmo momento. Mas nós só fazíamos as luzes quando já estávamos em digressão. Era muito perigoso e, felizmente, ninguém se magoou. Eles saltavam, a luz incidia-lhes nos olhos e não conseguiam ver onde caíam.

          J: Curiosamente, era uma peça com muito cair e levantar, algo pouco comum para Cunningham.

          B: E saltar e arrastar. Eu fui convidada por uma companhia chamada The LA Dance Project, eles queriam remontar o Winterbranch. O que é que eu fiz? Antes de mais, era uma companhia de repertório, não era “dançar para o papá”, era uma companhia sindicalizada. Se alguém se magoasse, haveria um processo judicial imediato. Por isso, não podíamos fazer a mesma coisa. Hoje em dia, com a facilidade das mesas de luz no computador, eu podia fazer duas listas de deixas. Na verdade, eu tive uma sessão de escrita de deixas antecipada, sentada na cozinha, que foi do tipo: “Vamos fazer algo aos dois minutos e trinta e dois segundos, vamos fazer algo aos quatro minutos e sessenta segundos.” Fiz apenas uma lista de tempos. Depois disse à equipa: “Agora escolham vocês a minutagem.”

          J: Assim também contava com a participação da equipa.

          B: Sim. Para estas deixas, eu escrevia a forma como queria que o palco ficasse, que era basicamente muito escuro, mas diferente. A mesa de luz memorizava as primeiras que escrevi como “lista de deixas número 2” e depois eu improvisava durante o ensaio geral e isso seria registado como “lista de deixas número 1”. Estas duas eram ativadas simultaneamente ao longo do bailado. Isso significa que os bailarinos experienciavam a luz no ensaio geral e depois no espetáculo seria igual. O público era novo, pensaria que é improvisado, e eu fiz a companhia prometer que nos lugares seguintes onde fossem seria sempre diferente. Também dei ao eletricista de cada lado do palco uma lanterna e disse-lhes: “Iluminem tudo o que vos interessar.”

          J: Eu tinha curiosidade sobre Variations V, uma peça que também apresentaram em Lisboa, na qual havia muita parafernália em cena, e onde a iluminação era feita com projetores de slides e de filme…

          B: Isto foi em 1966, a ideia da peça é que a dança produzisse a música e o cenário fosse produzido pela dança. Havia varas de alumínio em suportes de madeira colocadas à volta do espaço e o Merce tinha coreografado à volta destes objetos que se ligavam a uma máquina que, com base em sinais elétricos de células theremin, podiam dizer quando um objeto físico estava mais perto ou mais longe.

          J: Eu li que nem sempre funcionavam.

          B: Isso é outra história. Os sinais iam para o fosso da orquestra onde estava a máquina e havia dez canais de som a tocarem diferentes tipos de coisas à volta do auditório. A ideia para a projeção era algo que agora é possível mas que não conseguíamos fazer naquela altura. O Merce queria câmaras a filmarem a dança com projeção simultânea nos ecrãs. O Stan VanDerBeek acabou por vir ao ensaio filmar partes da dança que foram depois projetadas em ecrãs colocados à volta do palco.

          J: Que tipo de imagens eram projetadas?

          B: Sempre apenas os bailarinos. Há uma história divertida sobre um filme que foi feito a partir de Variations V em Hamburgo. Eles filmaram, vimos o filme, e depois o Merce e o John levaram o realizador para um lado e disseram: “Isto está tudo muito bem, mas podiam tentar à nossa maneira uma vez?” Disseram-lhe: “Quando tem uma câmara frontal que apanha todo o espaço, há sempre o equipamento técnico, pessoas a despedaçarem uma planta com som ao vivo e há dança a decorrer. Para onde levaria os outros operadores de câmara? Mande-os filmarem qualquer coisa que lhes interessar. O que faz como diretor é decidir quando quer a câmara 1, escolher a minutagem, câmara 2, 3, 4 e assim por diante. Atire uma moeda ao ar. Depois, quando montar, selecione os planos dessa forma.” Foi surpreendentemente melhor.

          J: A filósofa Maria Filomena Molder diz ter sido convidada por Carolyn Brown a passar os slides durante a apresentação de Variations V em Lisboa. Esses slides também iluminavam os bailarinos?

          B: Acontecia por acaso. Se o projetor de slides estivesse no chão, quando eles o atravessassem interferiam com ele.

          J: Para Orlando Worm essa foi umas das experiências mais marcantes. A ideia de que a iluminação era feita com projetores. No entanto, é curioso que, uma vez mais, era resultado de algo aleatório. Havia também uma outra peça para a qual fez a cenografia, e não apenas as luzes.

          B: Ah, sim, chama-se Place. Foi a primeira peça que o Merce fez sem o Bob, por isso não sabia o que fazer. Fizemo-la no sul de França, na Gallery Fondation Maeght, em Saint-Paul de Vence. Há um momento no fundo da cena em que o Merce olha para bailarinos que se movem à sua frente, e ele perguntou-me: “Podes construir alguma coisa que, se eu fizer algo pequeno aqui, algo grande vai acontecer ali”? Fiz-lhe duas cúpulas geodésicas de plástico com triângulos colados para que fosse fácil de transportar, com um transformador e uma lâmpada especial que já não se consegue arranjar. Era um filamento muito pequeno e brilhante que fazia com que saísse um enorme salpico de luz se se deixasse um dos triângulos abertos. Era uma peça tão emotiva. Ele estava sozinho, começava no palco vazio, a dançar. Quando voltei a ver a peça mais tarde pensei: “Esta é a peça sobre o Bob já não estar lá.” Havia uns bailarinos que passavam e atiravam as mulheres, era como um centro comercial. Então decidi que as mulheres deviam parecer tomates no supermercado e usar vestidos de plástico. Não sabia o que fazer para a cenografia até estarmos a passear nos Champs-Élysées e, à porta do teatro, havia lixo para ser levado e havia uma série de caixas de fruta de madeira. Pensei: “É este o cenário.” Trouxemo-las para dentro do teatro, pendurámo-las em cordas no fundo da cena como uma vedação. Depois pus papel de jornal a esvoaçar para ser sempre diferente. Era em frente a essa “vedação” que o Merce arrastava as cúpulas.

          J: Tem alguma memória das reações do público em Portugal? Eu li que, na primeira noite em Lisboa, houve um sobressalto no público com pessoas a aplaudirem e outras a patearem.

          B: Era comum as pessoas odiarem as coisas do Merce. Quando atuaram pela primeira vez em Paris, em 1960, foram atirados ovos e tomates. Os vendedores de fruta ouviam falar de um mau espetáculo e apareciam lá para vender os podres no intervalo. Paris era boa nisso. A propósito, houve uma mulher que foi instrumental para toda a dança norte-americana e para o Bob Wilson na Europa. O nome dela era Bénédicte Pesle. Ela era prima da família Menil, uma família aristocrática francesa que se mudou para Houston antes da Segunda Guerra Mundial. Essa família é proprietária da patente do furo para cada poço de petróleo que é extraído. O nome da empresa é Schlumberger. A Bénédicte era uma prima que não tinha montes de dinheiro. Obviamente, tinha uma pensão da família, mas ficava sem fundos se levasse demasiadas companhias de dança a jantar. Ela tinha conhecido o Merce e o John em 1949 na sua primeira viagem a França. Ela dirigia uma galeria na margem esquerda do Sena, a Galeria Iolas, com artistas como Niki de Saint Phalle, Jean Tinguely e surrealistas…. O Merce e o John voltaram depois para o Festival d’Automne. Quando eu fui com eles, em 1965, chegámos a Paris uns dias antes e a Bénédicte fez com que fossemos convidados – o balletto americano, como eles diziam – para vermos o recém-renovado Théâtre de la Reine, em Versalhes. Fomos depois convidados para almoçar pelo homem encarregado da renovação de Versalhes. Durante o almoço, eu disse à Bénédicte: “Ele não faz a mínima ideia do tipo de arte que o Merce e o John fazem”, e ela disse: “Eu sei, querida, mas desta forma, quando ele for ver o espetáculo amanhã à noite, já não poderá criticar porque almoçou com vocês.” Ela preparou tudo para que ele não pudesse falar mal, e era isso que ela fazia por todos. Ela conseguiu que Einstein on the Beach fosse pago pelo governo francês e pelo governo italiano, em 1976. A Bénédicte conseguiu todas essas coisas, também para a Lucinda Childs, e abriu uma pequena agência chamada ArtService que representava essas companhias.

          J: Voltando à vossa digressão em Portugal, Carolyn Brown escreveu que vocês se apresentaram sempre em salas de cinema e que tinham de esperar que os filmes acabassem até quase à hora do espetáculo antes de poderem ir para o palco.

          B: Sim, era uma maluquice e a equipa que viajava antes de nós fazia o que podia. Nós só chegávamos, descarregávamos os figurinos e, provavelmente, eu fazia as deixas de luz à medida que o espetáculo ia avançando, porque não tínhamos tempo para fazer quaisquer gravações.

          J: Então, a sua participação também era “ao vivo”?

          B: Eu acho que uma diretora de cena é uma performer, uma desenhadora de luz nem tanto, mas eu era ambas.

          J: Também fazia a direção de cena?

          B: Não havia mais ninguém, era só eu. Eu digo sempre que aquilo a que chamamos burocracia metastiza-se como um cancro. Em 1979, estava a viver em Massachusetts, a companhia Cunningham estava em digressão por lá e dei uma festa em minha casa. Nessa altura, os bailarinos já eram todos novos e não me conheciam. Eu ouvi um deles perguntar: “Quem é aquela?” E responderam “Ah, ela costumava fazer o trabalho do Harry, da Sally…” Havia agora cinco ou seis empregados a fazer o que eu fazia sozinha. Até muito tarde nem tivemos um gestor, eles não tinham dinheiro para isso. A companhia do Merce foi a primeira nos EUA a ser denominada “sem fins lucrativos”, e isso porque as pessoas que gostavam do seu trabalho eram pessoas que gostavam de museus. Por cá, o teatro sempre foi um empreendimento comercial, enquanto aos museus as pessoas ricas podiam doar e obter uma dedução fiscal. As pessoas que gostavam do trabalho do Merce eram suficientemente poderosas para pressionarem o governo para que esses grupos fossem considerados sem fins lucrativos, e para que o governo também os pudesse apoiar. Até então não havia apoio do governo. A mulher que estava a ajudar era a Judith Blinken, e o filho dela é agora secretário de Estado. Era esse o tipo de pessoas que apoiavam o trabalho do Merce. Porque podia-se ir a um museu e olhar para uma obra e não esperar que contasse uma história.

          J: Quando trabalhava com a companhia, tinha liberdade para montar as luzes como queria, da mesma forma que os compositores ou os artistas visuais? Às vezes sentia-se perdida?

          B: O Merce nunca vinha olhar para as luzes. Sentir-se perdido é algo que acontece.

          J: Porque era muito jovem na altura…

          B: Eu era muito nova mas tinha trabalhado com o Tom Skelton. Tinha feito luz para espetáculos de dança na escola. Com o Tom Skelton e o mapa de luz que fazíamos no American Dance Festival, podíamos acomodar diferentes companhias. Eu sabia o que deveria ser um desenho de luz para dança, e era isso que eu fazia com base no equipamento disponível: luzes contra, luzes laterais, luzes picadas. Depois desenvolvia uma ideia para cada peça. Mas levei algum tempo a perceber o trabalho do Merce. A primeira coisa que fiz, o Merce disse que estava bem. Foi uma peça chamada Suite for Five.

          J: Que também apresentaram em Lisboa. Supostamente, essa peça foi-se compondo ao longo dos anos. É uma colagem de solos e duetos que já tinham sido feitos.

          B: Sim, eu oiço dizer isso agora, nunca ouvi isso quando lá estava. Durante algum tempo, muitos anos depois, nos anos 90, eu fui diretora artística do departamento de educação do Lincoln Center e nós enviámos o Suite for Five para as escolas. Eu estava na posição de ensinar os professores, eles vinham ver e diziam: “Então, como é que olhamos para isto?” Enquanto os bailarinos dançavam, eu falava com os professores. Dizia-lhes: “Procurem as linhas horizontais”, “reparem como ela avança e há um ritmo”, “agora olhem para ali”. Basicamente, só lhes dizia o que procurar. O Merce ter-me-ia matado, mas eu não estava a dar significado a nada. De repente, perceberam e até acharam engraçado. Claro que ficaram todos irritados com a música do John Cage. Eles tinham de tirar notas, e alguém escreveu, em julho: “Estava tanto calor e tínhamos de lidar com esta coisa de Cunningham e uma música pavorosa.” Eu estava a ir para casa, estava exausta, saí do autocarro, estava em frente ao meu apartamento, as janelas estavam todas abertas, toda a gente tinha ligado um posto de rádio ou um programa de televisão diferente e, de repente, apercebi-me, estava num John Cage.

          J: É curioso porque, nos anos 1960, não havia muita dança em Portugal, mas a cena musical era forte. Acho que Cunningham só veio a Portugal graças à visibilidade de Cage. Na imprensa, os críticos falam pouco sobre a dança, que parecem gostar e admirar, mas muito sobre a música, sobre a qual apenas reclamam. Os elementos não combinam nem correspondem e todos odeiam que assim seja.

          B: Nos anos 1940, o John escreveu: “Porque é que a nota seguinte deve ser escolhida pelas minhas emoções?”, “não há outra maneira de escolher a próxima nota?”

           

          Entrevista transcrita e traduzida do original em inglês por Inês Ramos e José Gil, revista e editada por João dos Santos Martins.

          Rosa Paula Rocha Pinto “Pela dança Portuguesa” na Ilustração Portuguesa (1921 e 1922)

           

          Os Bailados Portugueses “Verde-Gaio” (BPVG), criados em 1940 no contexto da Exposição do Mundo Português, com a figura de António Ferro como seu principal mentor, em estreita proximidade com o bailarino e coreógrafo Francis Graça, e com a colaboração de artistas plásticos como José Barbosa, Maria Keil, Mily Possoz ou Paulo Ferreira, e compositores como Frederico de Freitas, Ruy Coelho, Armando José Fernandes e Jorge Croner de Vasconcelos, são um projecto antigo destes protagonistas.

          António Ferro que, nas décadas de 1910 e 1920, teve um percurso de profundo interesse e fascínio pela companhia de Diaghilev (cujas apresentações lisboetas de 1917 marcaram toda uma geração de intelectuais); pelo modernismo literário (tendo chegado inclusivamente a ser director da revista Orpheu); pela sua própria observação da contemporaneidade que metaforizou em textos como Madame Ballet Russe ou A Idade do Jazz Band, ao mesmo tempo que começava a direccionar o seu trabalho jornalístico para entrevistas a personalidades políticas e artísticas da época que viria a publicar nas suas obras Viagem à Volta das Ditaduras, Gabrielle d’Annunzio e Eu, ou o lapidar Salazar, o Homem e a Sua Obra, colherá, na celebração dos Centenários da Fundação e Restauração da Independência de Portugal (1940), a oportunidade para dar início à criação de uma companhia de bailado, no culminar de um projecto que se tinha vindo a desenhar ao longo das duas décadas anteriores. Apresentada sob a égide da “Política do Espírito” do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), no seu plano de “reaportuguesamento” da nação, do vocabulário do projecto da companhia de Bailados Portugueses “Verde-Gaio” fazem parte termos como “nacionalismo”, “raça”, “regionalismo” e “folclore”, mas também “modernismo” e “internacionalismo”.

          No domínio musicológico, a importância dos Bailados Portugueses “Verde-Gaio” revela-se, de facto, marcante pela relação que estabeleceu com alguns dos mais relevantes compositores portugueses das décadas de 1940 e 1950, nomeadamente através das encomendas efectuadas a partir do Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional de Radiodifusão e pela preocupação por criar um repertório nacional no domínio do bailado. A grande virtude dos BPVG, de certa forma na linhagem wagneriana da Gesamtkunsterk, e dos Ballets Russes, foi procurar criar um objecto uno, que ligasse a dança, a música, a narrativa, os cenários e os figurinos. Nesse aspecto, os BPVG são pioneiros e mesmo únicos na criação de um repertório balético em Portugal, a partir de uma tutela estatal, com a criação articulada das várias componentes do espectáculo, e um investimento na profissionalização de músicos e bailarinos. Se é verdade que o turismo, a diplomacia e a propaganda foram motores da companhia, condicionando a sua estética e o seu propósito, seriam também a forma encontrada para a manter a funcionar, como um “tableau vivant” de Portugal, uma dança pitoresca, de representação, de projecção de uma imagem, de uma ordem, de um regime.

          Os Bailados Portugueses “Verde-Gaio” têm sido recorrentemente abordados na literatura dedicada à música, à dança, à cultura popular e ao Estado Novo[1], numa narrativa que se estabilizou e que envolve invariavelmente a influência dos Ballets Russes de Diaghilev; as experiências modernistas de Ruy Coelho, Almada Negreiros[2], e a influência dos Delaunay[3] na segunda década do século XX, como antecedentes coreográficos; o modernismo discutível e discutido de António Ferro e o projecto do Teatro Novo (1925) como precursores da relação entre os protagonistas da companhia; a decadência dos BPVG após o afastamento de Ferro do SPN; o suposto desastre da apresentação perante Isabel II de Inglaterra, em 1957; a longa agonia de uma companhia que teria funcionado como um entrave a outras iniciativas de carácter coreográfico em Portugal.

           

          Mas a leitura “a contrapelo” das fontes permite-nos compreender com subtileza o percurso, as dinâmicas e o funcionamento dos BPVG enquanto instituição, tanto no domínio da produção como da recepção, e, sobretudo, as complexidades subjacentes à sua criação e às suas criações. Importa ainda perscrutar os paradoxos que enformam os BPVG e, depois da fase inicial da companhia, os mais de 30 anos de apagamento historiográfico que importa conhecer melhor até porque acompanham as transformações fundamentais do Portugal do século XX, uma vez que os BPVG estiveram no activo até depois do 25 de Abril. É, assim, num território entre o erudito e o popular ou o “popularucho”, a encenação do requinte e a emanação da decadência, entre o que podia ter sido e o que acabou por ser, que me interessa trabalhar. Interessa-me também o que permaneceu, dos discursos às práticas e aos modos de actuação, bem como as dinâmicas de transformação e as continuidades entre as instituições que abrem o cenário para a dança nos séculos XX e XXI em Portugal. De que modo o ímpeto modernista, a contemporaneidade no domínio criativo, e a concepção dos BPVG como uma manifestação de cultura erudita se cruzam com as ideias de representação de “regionalismo”, “tradição” ou “nacionalismo” são algumas das preocupações do meu trabalho. Proponho ainda que o modernismo dos BPVG não é experimental, mas de filão neoclássico, sendo os folclorismos que lhe assistem de carácter temático, e em linha com a estética de muitas outras companhias estatais e projectos musicais e coreográficos na mesma época[4].

           

          Neste texto colocarei o foco sobre os diálogos que, no início dos anos 20, se estabeleceram na revista Ilustração Portuguesa em torno da ideia da criação de uma companhia de dança.

           

          ***

           

          Ainda que esta história tivesse começado antes, António Ferro assumia a direcção da Ilustração Portuguesa, a revista semanal do jornal O Século, em Outubro de 1921. Sob o pseudónimo “O Homem que Passa”, na rubrica “A Entrevista da Semana”, encenava um questionário a si próprio em que colhia da oportunidade para expor o seu projecto para o periódico:

           

          Antes de mais nada, eu pretendo modernizar a “Ilustração Portuguesa” […] Integrar Portugal na Hora que passa, é uma obra nacional, uma linda obra a tentar. Lisboa é uma grande cidade que só existe quando há revoluções. Eu vou tornar Lisboa semanal. […] Procurará fazer-se uma revista Europeia mas integrando-se na vida portuguesa. Procurará mostrar Portugal aos Portugueses, procurará, com o auxílio de todos, estilizar a raça[5].

           

          Seria, justamente, nesta primeira declaração de intenções editoriais que Ferro esboçaria, com particular clareza, a ideia da criação de uma companhia de bailados em Portugal. Consciente da vastidão do seu programa e das muitas indefinições que teria que superar, António Ferro avançava o seu plano, com um largo “hálito de novidade e modernismo”:

           

          A linha do bailado português, por exemplo, está por descobrir. Encontrada essa linha, Portugal pode ter a sua companhia de bailados, como os russos, bailados modernos, arco-irisados, bailados de cores bobescas… nas nossas danças populares, nos nossos trajes regionais, nos nossos costumes, temos matéria-prima para estilizações admiráveis, temos tintas de sobra para um grande cartaz a pôr na Europa, a pôr no mundo. […] Manuel de Sousa Pinto, bacharel formado na Faculdade do Ritmo, iniciará no próximo número da “Ilustração Portuguesa”, uma série de artigos sobre este projecto que, dentro de mim é já uma certeza[6].

           

          Manuel de Sousa Pinto era, assim, destacado para definir teoricamente, numa série de artigos, a ideia da criação de uma companhia de dança portuguesa. Autor prolífero, Sousa Pinto dedicava-se, no início dos anos 1920, à crítica de dança, trabalho este que compilaria em 1924 no volume Danças e Bailados, em que constavam uma série de pequenas narrativas em prosa poética de carácter biográfico e descritivo sobre bailarinos e bailarinas a cujos espectáculos assistira, enredos e críticas de bailados, ou dissertações sobre géneros coreográficos. Esta colectânea integrava ainda os artigos publicados na Ilustração Portuguesa, com o título “Pela Dança Portuguesa”.

          Num número em que figurava na capa uma fotografia da poetisa Fernanda de Castro, que viria a casar com António Ferro no ano seguinte, e num artigo com ilustrações de Bernardo Marques (todos futuros colaboradores dos BPVG), Manuel de Sousa Pinto afirmava:

           

          A dança portuguesa, bailados portugueses: porque não?

          O difícil é lançar a semente.

          Depois as flores nascem. […]

          É preciso criar em Portugal, artisticamente, o gosto pela dança. Cuidar da educação rítmica da mulher. Apontar bailarinas.

          Obter-se-iam assim os instrumentos, que, manejados por decoradores de fantasia, por músicos inteligentes, por argumentistas de inspiração e coreógrafos de pulso, permitiriam tentar, ainda que com cautelosa modéstia, o bailado português, pensado em português, musicado em português, dançado em português, vestido à portuguesa e enriquecido com a valiosíssima série de coisas a bem dizer inéditas, e lindas, que Portugal, tesouro farto, ainda tem ou já teve.

          Pensemos no caso[7].

           

          Adivinhava, contudo, o autor algumas das possíveis dificuldades, nomeadamente a lentidão da formação balética, defendendo, contudo, que as danças populares tinham a virtude de serem suficientemente simples para permitirem iniciar este projecto:

           

          “Toca, portanto, a dançar, minhas meninas! não se arrependerão. Quase se pede garantir, à que mais se salientar como artista, além de glória florida e muita saúde, uns fartos cobres para o enxoval!”

           

          A 31 de Dezembro, ainda em 1921, Manuel de Sousa Pinto assinava o segundo destes artigos tão definidores daquilo que, vinte anos mais tarde, seria a estética que António Ferro associaria aos Verde-Gaio, estabelecendo, uma vez mais, um paralelo com os Ballets Russes e fazendo, desde já, propostas práticas para a concepção coreográfica:

           

          Não temos danças suficientemente ricas para palco — há quem diga. Puro engano.

          Toda a dança, afinal, se resume a bem pouco: a um ou dois movimentos básicos. O resto é papel da instrumentação, ou seja da técnica coreográfica, que, precisamente, falta criar e desenvolver.

          Os que viram, pela companhia de Diaghilev, as Danças do Principe Igor puderam verificar que o seu fogoso ímpeto obedecia, muito simplesmente, à repetição dum mesmo tema motor, comum a muitas danças russas, em que a posição agachada é ritual.

          Com um maestro meridional e dançarinos ocidentais, podia bem obter-se quadro idêntico, substituindo à ferocia do norte as voluptuosidades do sul. […]

          Um quadro de romaria minhota, com Zés-Pereiras rodopiantes, pandeiros risonhos, resfolegar de harmónios e bonecos de cavalinho ao alto de uma cana, o homem dos foguetes, o gaiteiro, um rufador, cachopas luzentas de oiro e valentões de varapau, o repique dos sinos e o resfregar das violas, que mais rico bailado se pode apetecer?[8]

           

          As ilustrações de Alice Rey Colaço para este artigo mostram uma cortina de cena com uma fonte central e a inscrição “Bailados Portugueses”, bem como figuras femininas com cestas de fruta e cântaros à cabeça, num imaginário que abria também portas temáticas para os BPVG.

          Ao longo do tempo em que António Ferro dirigiu a revista, seriam vários os artigos sobre dança, nacional e estrangeira, e que reflectiam, por um lado, o fascínio com a modernidade e a “indiscutível influência dos Bailados Russos na Arte moderna”[9] e, por outro, a busca pela construção de uma companhia de carácter nacional e nacionalista.

           

          Sempre na Ilustração Portuguesa, e com a data 21 de Janeiro de 1922, surgia um curioso artigo intitulado “Um Teatro de Arte” que alargava o projecto de Ferro ao domínio da arquitectura. Secundado por José Pacheko, um dos seus parceiros dos tempos de Orpheu, que havia assinado com Almada Negreiros e Ruy Coelho a folha volante, anexa ao número único da Portugal Futurista, dedicada aos “Bailados Russos em Lisboa”, António Ferro requeria, com carácter “urgente”, e já com uma planta e um projecto arquitectónico, a criação de um moderno Teatro no Parque Eduardo VII que deveria servir, justamente, para receber projectos coreográficos visitantes, bem como albergar uma companhia residente.

           

          Não há em Portugal os teatros para raros apenas, onde a Arte a grande Arte tenha um ritual. Não há um Teatro-Arte, onde não vá o público, onde vá apenas uma elite, trezentos, quatrocentos, quinhentos devotos… E não é porque entre nós não haja artistas, não haja actores que tenham um sonho de arte… Actores, poetas, cenógrafos — há… O que não há são empresários, o que não há é um Astruc, o animador do Teatro dos Campos Elíseos. Os nossos olhos estão impossibilitados de tornar a ter a felicidade dos bailados Russos porque da sua primeira vinda a Portugal eles não encontraram aquela atmosfera de carinho que teriam tido se houvesse um Teatro-Arte, um Teatro-Ballet Russe. E quem nos fala dos bailados Russos, fala de todas as novidades, de todas as grande horas da Europa que não batem para nós por falta de um ambiente, por falta dum cenário… […]

          Além duma companhia portuguesa que funcionará, todos os anos, contam os autores do projecto trazer a Lisboa, em saison a companhia dos Bailados Russos de Diaghilev, o teatro de Chauve-Souris, os Bailados Russos de Boerlein[10], Ana Pavlowa, etc. etc… […][11].

           

          No início de Maio de 1922, um banquete de despedida que contava mais de oito dezenas de convidados marcava o fim da direcção da revista Ilustração Portuguesa por António Ferro, que partia para uma temporada brasileira. Então com 27 anos, Ferro apresentava no Brasil a sua peça Mar Alto (que em Portugal viria a ser proibida no dia seguinte à sua estreia, a 10 de Julho de 1923, no Teatro de São Carlos). Em São Paulo, Ferro proferiria ainda uma série de conferências entre as quais se destacou A Idade do Jazz Band, mais tarde publicada, e que colheu imenso sucesso entre os modernistas brasileiros também pela encenação e componente musical, onde acordes de jazz acompanhavam as suas apresentações na Semana de Arte Moderna de 1922, ano da travessia aérea do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, por ocasião do primeiro centenário da Independência do Brasil. Consolidando a ponte que traça entre modernidade e dança, em A Idade do Jazz Band Ferro afirmava:

           

          Toda a nossa Época baila russo!

          Não triunfou o bolchevismo das ideias, mas triunfou o bolchevismo das formas… Diaghilev, Nijinski, Massine são os Lenines do Ritmo. O que é a Rússia senão um grande bailado, um bailado sinistro, um bailado vermelho? Benditos sejam os Bailados Russos que nos libertaram de nós próprios, que puseram o mundo em cada um de nós, que unificaram a Arte, que deram, à minha pena, movimentos de Karsavinà. A maior vitória dos Bailados Russos foi a de transformar os estados desunidos da Arte num grande Império, um império maior do que a terra porque é do tamanho do Sonho… Nos Bailados Russos, a Cor é gémea da Dança, da Música, da Atitude… É impossível separar essas irmãs gémeas, como é impossível separar as cores de uma bandeira, os versos de um soneto, os compassos de uma melodia, as imagens dos olhos… Para que a arte fizesse frente à vida era necessário que ela estivesse unificada como ávida está. Os Bailados Russos são a constituição política da Arte, constituição em que o primeiro artigo proíbe a estabilidade e ordena a evolução contínua… O jazz-band, essa Dança de S. Vito,  é, portanto, uma das muitas consequências dos Bailados Russos.

          O jazz-band é o Bailado Russo da Música.

           

          ***

          Se o interesse pela criação de um estética coreográfica e musical tinha antecedentes significativos em António Ferro, seria, no entanto, Francisco Florêncio Graça quem viria a desenvolver todo um trabalho que o colocava em primeiro lugar no que dizia respeito à direcção de uma futura companhia de bailado. Francisco Florêncio Graça (1902-1980), que optaria pelo nome artístico de Francis Graça, tinha tido uma formação inicial essencialmente marcada pelo curso de Música do Conservatório Nacional, onde havia sido colega do compositor Frederico de Freitas, com quem viria a estabelecer laços profissionais e de amizade determinantes. No domínio da dança, após uma formação muito rudimentar em Lisboa, rumou a Paris no início dos anos 1920, onde terá estudado durante um período que lhe permitiu sobretudo estar próximo do moderno universo artístico parisiense. De regresso a Portugal, no contexto do Teatro Novo, um projecto experimental criado sob a direcção de António Ferro, em 1925, Francis Graça teve como marco inicial da sua carreira uma performance que, pelo arrojo da nudez que explorava, e pela abordagem surpreendente e “vanguardista” para o meio lisboeta, lhe daria uma enorme notoriedade garantida pelas polémicas e pelas críticas mordazes que, durante algum tempo, lhe teriam criado inúmeros constrangimentos, um succès de scandale.

          À falta de instituições e estruturas para o desenvolvimento de espectáculos coreográficos e músico-teatrais, seria, na verdade, no teatro de revista que Francis Graça iria experimentar uma primeira síntese dos ideários propostos por Ferro e Sousa Pinto. Trazendo “um pouco de Paris em Lisboa e um pouco de Lisboa em Paris”[12],  e panfletariamente influenciado pelo “music-hall”, pelo “vaudeville”, pelas “jazz-bands”, Francis Graça começaria por transformar a componente coreográfica da revista, juntando-lhe elementos da cultura popular, do pitoresco regional e tradicional, com uma sofisticação demonstrada pela atenção dada aos modernos “efeitos de luz”, aos figurinos, às cortinas de cena. Na revista, a dança passava a ter um papel mais autónomo, com uma maior importância dada à coreografia e à música, bem como um reconhecimento do papel dos bailarinos. A possível “modernidade” da dança em Portugal nos anos 1920, passaria em grande medida por espectáculos como Cabaz de Morangos (1926); Água-Pé (1927); Sete e Meio (1927); A Rambóia (1928); Chá de Parreira (1929). Já na década de 1930, Francis Graça estreava-se no cinema no grande acontecimento que foi o primeiro filme sonoro, A Severa (1930), de Leitão de Barros, e com música de Frederico de Freitas, marcando assim, na grande tela e para um público mais alargado, a sua relevância enquanto referência na dança em Portugal.

          De facto, na década de 1930, foram muitas as participações de Francis Graça e da sua  companheira de trabalho, a alemã Ruth Walden, em iniciativas tuteladas pelo Secretariado de Propaganda Nacional, criado em 1933 sob a direcção de António Ferro. Apresentando-se nos mais diversos certames, exposições, atribuições de prémios, Francis e Ruth construíam, também eles, um imaginário coreográfico, que fazia agora as ligações entre o pitoresco regionalista, a citação modernista e o programa do regime. Em carta patente no espólio Frederico de Freitas, de 16 de Julho de 1937, Francis Graça testemunhava o sucesso das apresentações da dupla no Brasil e dava-nos uma ideia do repertório que já se ensaiava então: “Bisamos Pastores, Chula, Nazareth e Fado, e queriam bisar Ribatejo e Douro”, afirmava.

          Entre muitos outros espectáculos, no âmbito do teatro musical, é ainda de destacar a revista Minha Terra (1936), com música de Ruy Coelho, onde Francis dança, com Ruth Walden, um número intitulado “Pássaro Encarnado”, com claras reminiscências do stravinskiano Pássaro de Fogo dos Ballets Russes, e adivinhando já um salto temático para o “Verde-Gaio”, o pássaro verde.

          Sob o entusiasmo crítico e jornalístico de António Ferro e sob as ideias de Manuel de Sousa Pinto, Francis Graça e Ruth Walden; os artistas plásticos Paulo Ferreira, Bernardo Marques e José Barbosa; os compositores Frederico de Freitas e Ruy Coelho, tinham, assim, na década de 1920 lançado as fundações do que viria a ser, a partir de 1940, a primeira companhia de bailado em Portugal, os Bailados Portugueses “Verde-Gaio”.

          _______

          [1] De forma não exaustiva, neste âmbito, são de salientar, no contexto académico, os capítulos de Carla Ribeiro, Daniel Melo, Elvira Alvarez, Graça dos Santos, Helena Marinho, Manuel Deniz Silva, Maria João Castro, Margarida Acciaiuoli ou Vera Marques Alves. Especificamente sobre os Verde-Gaio são de destacar a investigação de Maria Luísa Roubaud, o catálogo do Museu Nacional do Teatro, de Vítor Pavão dos Santos, as pesquisas de Helena Marinho, a tese de Rita Ferreira Nunes e a obra de José Sasportes.

          [2] Edward Luiz Ayres de Abreu, Danças e Contradanças: Almada Negreiros e Ruy Coelho. Revista de História da Arte (2014), p. 111-124.

          [3] Entre 1915 e 1917, os artistas plásticos franceses Sonia Delaunay (de origem ucraniana) e Robert Delaunay,  associados aos movimentos modernistas do Simultaneismo e Orfismo, e com ligações aos Ballets Russses, fixaram-se na cidade de Viana do Castelo, mantendo convivência e correspondência com diversos pintores portugueses, e revelando-se uma importante influencia, nomeadamente sobre Eduardo Viana, Amadeo de Souza-Cardoso, José Pacheco ou Almada Negreiros. Almada Negreiros teria planeado fazer com Sonia Delaunay uma série de “ballets simultaneístes”que nunca se viriam, contudo, a realizar.

          [4] “The Transnational Path Toward Corporeal Fascism”, in Mark Franko, The Fascist Turn in the Dance of Serge Ligar (Oxford: Oxford University Press, 2020); Scott Messing, Neoclassicism in Music: From the Genesis of the Concept through the Schoenberg/Stravinsky Polemic. (Ann Arbor, MI: UMI Research Press, 1988).

          [5] O Homem que Passa [António Ferro], “A Entrevista da Semana: A ‘Ilustração Portuguesa’ entrevista a ‘Ilustração Portuguesa’”, Ilustração Portuguesa, 8 de Outubro de 1921.

          [6] O Homem que Passa [António Ferro], “A Entrevista da Semana: A ‘Ilustração Portuguesa’ entrevista a ‘Ilustração Portuguesa’”, Ilustração Portuguesa, 8 de Outubro de 1921.

          [7] Manuel de Sousa Pinto, “Pela Dança Portuguesa”, Ilustração Portuguesa, 5 de Novembro de 1921. Ilustração de Bernardo Marques.

          [8] Manuel de Sousa Pinto, “Pela Dança Portuguesa”, Ilustração Portuguesa, 31 de Dezembro de 1921. Ilustrações de Alice Rey Colaço.

          [9] António Ferro, “A Arte Moderna e os ‘Bailados Russos’ (Crónica da Semana)”, Ilustração Portuguesa, 14 de Janeiro de 1922.

          [10] Referência aos Ballets Suédois (1920-1925), companhia sediada em Paris, dirigida pelo sueco Rolf de Maré e com Jean Börlin como coreógrafo, responsável por bailados marcadamente modernistas de que são exemplo La création du monde, Les mariés de la Tour Eiffel, ou Relâche. O repertório dos Ballets Suédois congregou compositores como o grupo Les Six, Erik Satie, Cole Porter ou Alfredo Casella; artistas plásticos como Giorgio Di Chirico, Fernand Léger ou Francis Picabia; com argumentos de autores como Blaise Cendrars, Luigi Pirandello ou Jean Cocteau. As “trupes suecas” serão, de resto, uma referência presente em vários textos de António Ferro nas apresentações dos BPVG.

          [11] António Ferro, “Um Teatro de Arte”, Ilustração Portuguesa, 21 de Janeiro de 1922. Ilustrações de José Pacheko.

          [12] António Ferro, “Últimas Notícias”, Diário de Notícias, 28 de Dezembro de 1927.

          Bryana Fritz línguacortada

           

          Nota: este texto foi enviado no dia 24 de julho, o dia de Santa Cristina de Bolsena.

           

          Quero começar por dizer que existem poucas provas da existência de Santa Cristina de Bolsena. Não se sabe muito sobre o início da sua vida. Uma tradição local professa que tenha nascido em Bolsena, outra aponta-lhe o nascimento na cidade costeira de Tiro, no atual Líbano. Contudo, a mim não me interessam as suas origens, interessa-me a sua língua…

           

          Ao reter esse órgão muscular na minha boca, movendo-o na sua caverna ladeada por caninos, a saliva começa a acumular. Estudo o espectro inteiro de movimentos que posso executar com este animal estranho: bater no céu da boca, enrolá-lo na direção da úvula, passá-lo depressa por entre os dentes. Preparo-me para receber mais que um na boca enquanto produzo um lote fresco de sumo de beijo.

          Então, posso receber a tua língua? Vamos beijar-nos? E se as nossas línguas forem treinadas em línguas diferentes, será que podemos linguajar o nosso beijo? E se eu tocar com a língua na ponta dos meus incisivos para fazer o som do inglês “th” talvez também toque os teus incisivos, talvez façamos esse som “th”.

          Mas sei que sabes que os nossos lábios não se estão realmente a tocar. A minha língua já está cortada, cuspida e morta. Agora tenho de continuar sem ela.

          Parece-me que perdi a minha língua-mãe e a língua-mãe da minha mãe. Por ter crescido nos subúrbios de Chicago, demorei muito tempo a perceber que a língua inglesa era um presente envenenado dos privilegiados. A cidade onde cresci, Mundelein, em Ilinois, tinha 40% de habitantes cuja língua materna era o espanhol e a família na qual nasci falava uma mistura de polaco, húngaro, alemão e sérvio. A minha mãe era polaca e a minha avó húngara.

          A forma como a minha mãe fala inglês tornou-se um fascínio para mim. Não há nenhum vestígio estrangeiro na sua língua. Os seus “r” são perfeitos, os seus “th” são sem mácula e cada sílaba é pronunciada com a inflexão típica de uma tipa da cidade de Chicago. Ainda assim, tenho um fetiche com o momento em que ligo à minha avó no meu aniversário e a oiço dizer: “hapy birrsday sveety!”, de uma maneira que só posso sonhar em reproduzir.

          Acho estranho, mas compreensível nunca ter aprendido polaco. Para a minha mãe, em Chicago o polaco representa a classe mais baixa. Os seus pais trabalhavam numa fábrica, um dos seus irmãos mais velhos era um DJ alemão/motorista de limusine/fazedor de dentes de ouro e o seu irmão mais velho trabalhou como canalizador. A minha mãe aperfeiçoou o seu inglês, ganhou uma bolsa universitária, tornou-se contabilista e integrou-se na sociedade americana.

          Quando me esforço ainda consigo cantar os parabéns em polaco, consigo dizer “boa noite”, “anda cá”, consigo dizer “beija-me” e “amo-te”. Consigo dizer ainda algumas palavras soltas, mas não muito mais. A língua materna da minha mãe foi cortada da nossa vida e, ainda assim, quando precisei dela, paguei 2000 euros a um advogado para ter um passaporte polaco com o qual me mudei para a Europa.

          O inglês da minha língua materna tornou-se uma ferramenta privilegiada desde que morei na Alemanha, na Bélgica e agora em França, mas ao mesmo tempo esse inglês começou a misturar-se com um inglês internacional.O meu sotaque mudou completamente. Quando regresso a Chicago, as pessoas perguntam-me de onde sou. No casamento da minha irmã, pediram-me que discursasse e os convidados do noivo pensaram que eu era uma estudante estrangeira acolhida pela família. Para os ouvidos da minha infância, o inglês não é a minha língua materna. Por vezes brinco comigo mesma e digo que o inglês é simultaneamente a minha primeira e segunda língua – compreendo perfeitamente que só eu ache graça a esta piada.

          Não se sabe muita coisa acerca da mãe ou dos irmãos de Cristina. A sua história centra-se na figura do seu pai, Urbano. Da sua família apenas se diz que eram adoradores de ídolos pagãos. Provavelmente eram também abastados, o que permitiu o acesso de Cristina a uma boa educação e a luxos materiais.

          Ao longo do tempo, Cristina foi ganhando cada vez mais repulsa pelo luxo a que tinha acesso a sua família e ficou cada vez mais comovida com o sofrimento dos outros, o que a fez decidir partir todos os ídolos de ouro pagãos do seu pai e distribuir os pedaços pelos mais pobres e necessitados. Quando descobriu este acto de generosidade da sua filha, Urbano açoitou-a com uma vara e trancou-a numa torre muito alta com algumas amigas pagãs.

           

          Ao reter esse órgão muscular na sua mão, o Dr. Julian diz: “Parece-me que a sua língua está doente. Deixe-me observar mais de perto…”

          Na minha língua, quando um médico recolhe uma amostra para fazer uma cultura da tua língua, isso significa que o médico irá raspar uma parte da superfície da língua para guardar e testar. O exame continua…

          “Pode sentar-se mais direita? Assim está melhor. Ok, quero que toque com a ponta da língua no céu da boca para que eu consiga ver a superfície ventral. Mhmmmm… agora deite a língua de fora a direito e o mais esticada que conseguir para que eu possa procurar alguma irregularidade, ver a cor, a textura e a massa. Ok, muito bem… fique assim. Agora vou pegar neste pedaço de gaze, enrolá-lo à volta da sua língua e fazer uma palpação utilizando os meus dedos: polegar e indicador. Vou procurar a presença de massas e partes moles. Tem alguma sensibilidade aqui? Ah sim… vejo que aqui tem alguma. Ok, agora vou fazer uma cultura da sua língua para mais testes. Pronta? 1…2…3…”

           “Disse textos?”

           “Testes, testes, não textos. Haha. Se calhar também devíamos ver esses ouvidos!”

           “Mas o que é que acha que é? Nem me passou pela cabeça alguma coisa estar mal…”

           “Eu diria tratar-se de um caso de cândida.”

           “Mas, papá, cândida não é um organismo normal? Não é suposto existir na minha boca?”

           “Não me chame papá.”

           “Porquê… doutor? Tudo o que o doutor está a fazer lembra-me o meu pai.”

           “Mas eu não sou o seu pai, só estou a raspar-lhe a língua.”

           “Tem razão, peço desculpa pela minha linguagem tão descuidada. A minha língua não está nada bem, sabe. É por isso mesmo que estou aqui para lhe dar a minha cultura.”

           “Obrigado por isso. De facto, a sua língua não está normal.”

           “E então o que lhe vai fazer, doutor papá?

           “Vou cortá-la!”

           

          Entretanto, Cristina tinha conseguido converter muitos dos pagãos da sua casa ao cristianismo. Quando Urbano soube do sucedido, decidiu trespassar o corpo da sua filha com ganchos de ferro e atá-la a um suporte debaixo do qual acenderam uma fogueira. Foi Deus que a salvou destas crueldades e a poupou do fogo, ateando-o sobre os seus agressores. Em seguida, ataram-lhe uma pedra ao pescoço e atiraram-na ao lago de Bolsena. Deus salvou-a mais uma vez e o seu pai finalmente morreu.

          Bom… perguntam-me frequentemente porque me interessam as santas. Parece-me uma pergunta justa. A nível pessoal não é nada de extraordinário, cresci numa família cristã e a religião sempre foi um assunto fraturante. Eu e uma das minhas irmãs não somos religiosas, a minha outra irmã é. Eu e a minha tia namoramos mulheres e uma parte da minha família é Testemunha de Jeová. Etimologicamente, religar significa ligar/vincular, mas a força da religião já não se sente.

          Os meus pais pertencem a uma igreja não denominacional. Sempre rezámos juntos antes de comer e de dormir. Eu fui batizada, fiz a primeira comunhão e fui à missa todos os domingos. Cada vez que vejo o meu pai no Aeroporto Internacional de O’Hare, em Chicago, ele pergunta-me: “Então, querida, queria saber como estás no que diz respeito à tua fé.”

          Uma vez, quando voltei para passar as férias, frequentei as celebrações de Natal na igreja dos meus pais. O meu pai era uma pessoa importante naquele grupo de homens. Um dos membros do grupo, que tinha a alcunha de Cowboy, abordou-me depois da missa. Cowboy é uma alcunha estranha para alguém que vive na região Centro-Oeste dos Estados Unidos. Quando estava a caminhar sozinha no parque de estacionamento, ele aproximou-se de mim, colocou o seu gigante braço à minha volta e deixou-me num aperto. Disse-me: “Sabes que o maior medo do teu pai é morrer sem ter a certeza de que aceitaste Cristo na tua vida.”

          Eu amo o meu pai e não quero que ele morra com medo.

           

          A história morreria ali, mas Urbano morto tinha dois sucessores chamados Dion e Julian. Dion morreu depois de ter atirado Cristina para uma fornalha em chamas. Cristina emergiu desse fogo cinco dias mais tarde sem ferimento algum. Contudo, Julian decidiu cortar-lhe a língua.

           

          Ao reter esse órgão muscular entre os dedos, ris-te porque é falso. É um daqueles objetos merdosos de Halloween que comprei on-line para uma performance. Usámo-la uma noite quando estávamos a fazer sexo e enchemo-la com os pingos da nossa seiva. Língua bífida, a serpente deixou a tua culta carcaça usada no meu peito.

          Tenho de confessar, só usei esta língua como adereço em Submissão Submissão, o retrato de Cristina de Bolsena. Costumo segurá-la entre os dentes, tirá-la ou bater com ela na minha cara enquanto estou a gritar. E agora enchi este objeto de ti e sei que esta memória irá ressurgir na minha cabeça da próxima vez que o usar.

          Vejo tudo de novo, estávamos nuas na cama e pediste-me a minha língua falsa. Já ta tinha mostrado algumas vezes antes. Tu pegaste naquele pedaço carnudo inerte e começaste a encostá-lo lentamente ao meu sexo. Apertava-lo entre os teus dedos tensos, cobria-lo com a tua saliva e o meu corpo estava suspenso em prazer. Começaste a passá-lo pelo meu clitóris. O truque de magia, o horror físico torna-se no meu brinquedo sexual. Duas línguas para o meu sexo, uma a olhar-me nos olhos. Venho-me.

          Mas como podem conviver na minha cabeça este ato sexual e este adereço performativo, tanto no sexo como no palco?

           

          Quando Cristina estava em frente a Julian com a sua língua cortada dentro da boca, olhou-o nos olhos, fez pontaria e cuspiu-lhe a língua para a cara. Acertou-lhe no olho com tamanha precisão e força que, quando a língua solta caiu ensanguentada no chão, ele apercebeu-se de que estava cego. Cristina, mesmo sem língua na boca, começou a sentir dentro dela uma agitação provocada por coisas que queria dizer. Projetou-se para a língua falada e assim aconteceu o milagre. Cristina não tinha língua e ainda assim conseguia falar.

          Sabine Macher a velha bailarina

           

          o tricot

           

          ao procurar uma agulha de crochet para apanhar o oitavo de limão entalado na garrafa de vidro que ponho no frigorífico para ter água fresca e com sabor a limão (mas passado um tempo o limão fica demasiado velho e aromatiza a água com limão podre), visualizo esta ferramenta longa e fina com um pequeno gancho na ponta. talvez esteja numa caixa num armário escuro, uma caixa azul de ténis adidas que deve ser muito antiga, a caixa, ainda tem o preço na lateral em francos franceses e tenho-a comigo desde sei lá quando, mas há mais tempo do que o início do euro em 2002. devo tê-la herdado de alguém que usou esses ténis porque nunca comprei uns ténis nem seja o que for dessa marca de origem alemã que me repugna como todas as marcas de desporto e até a palavra desporto. ao abrir a caixa vejo o tricot preto de algodão que parei de tricotar em 1980 em Baumetane na estrada para Istres e que desde então sempre transportei nas mudanças de casa, e ao lado do tricot inacabado estão duas agulhas de crochet. o meu cérebro tinha razão ao guiar a minha mão para a caixa. ou foi provavelmente a minha mão que disse ao cérebro para dirigir o meu corpo ao armário. quase nunca faço crochet, mas para isto é o instrumento perfeito. entra no pescoço comprido da garrafa e prende-se na pele inchada do limão, tenho a sensação de tentar alcançar um DIU através do colo do útero, talvez porque sempre me disseram que os abortos caseiros se fazem com agulhas de tricot – mas o crochet parece-me de repente mais apropriado e talvez não se distinga o tricot do crochet, ambos pertencendo ao mundo das mãos de mulheres que fazem lavores – e ao puxar lentamente, com a cabeça apoiada no gargalo da garrafa, o pedaço de limão em forma de lua crescente sai.

           

           

           

          quando te escrevo coreia quero sempre escrever com ch como choreia [a dança] ou la chorée [a doença nervosa].

           

           

          ao voltar a guardar a agulha na caixa, olho para o tricot pela primeira vez há muito tempo; é isso que farei durante a próxima eternidade da minha vida de velha bailarina: reaprender a tricotar.

           

           

          a velha bailarina são vocês, sou eu, é a água que corre,

          um espectro no tempo que mexe as mãos,

          Higaki, ao lado de uma barca vermelha que se enraíza;

          ela vai buscar água nos braços do Sena.

           

           

           

           

           

           se passarem por lá, perguntem-lhe o nome.

          a aranha preta

          é a minha mãe. morava na casa de
          banho ou lá em cima, com as plantas
          da janela,
          mas caiu na banheira e não consegue subir a parede lisa e branca.
          no décimo aniversário da
          morte da minha mãe, foi toda de
          patas fechadas para o filtro do ralo
          da banheira. eu voltei a pô-la no vaso
          da janela, mas ela tentou
          imediatamente voltar para o interior
          da casa de banho.
          depois de alguns dias, quando abri a
          porta da casa do banho numa noite
          de grande calor, ela viu-me a vê-la.
          desta vez (desculpa) lancei-te ao ar e
          espero que tenhas partido para os
          açores, pois um dia um cientista
          explicou-me que as aranhas podem
          voar num sopro de vento até ilhas
          distantes como, por exemplo,
          os açores.

           

          perguntas e respostas:

           

          quem é a velha que dança?
          qualquer pessoa
          ninguém
          tu
          eu

           

          quando é que a podes encontrar?
          em qualquer altura, excepto no dia de ano novo.
          o resto do ano ela anda por aí e está à tua espera.

          o que é que ela faz para ganhar a vida?
          nada de nada, está morta

          o que é que ela gostaria de fazer?
          nada,
          mas é muito difícil

           

          o que é que ela faz para si própria?
          escrever para o coreia
          beber chá verde
          roubar flores

           

          ela é uma ela?
          sim
          uma ela/escudo
          uma ela/futuro
          uma ela /não/eu

          caramba

           

          enquanto trabalhava num projecto sobre dinheiro
          (não resolvido) o meu pai morreu
          (resolvido) e, para o ter connosco no
          grupo, decidi estudar teatro No, porque o
          meu pai se chamava No.

           

          aí conheci Higaki, um fantasma
          e uma mulher que dançava antes
          de a guerra destruir
          tudo e a obrigar a
          reformar-se junto a um rio chamado Tejo.
          será que dançamos em tempos de guerra?

           

          mas qualquer tentativa de contar a história tinha de falhar.
          não há história, só eu a dizer que Higaki
          quer estar perto de um teatro e de água
          corrente.

           

          acho que é agradável estar ao ar livre a fazer o que se gosta e até um pouco mais.

           

          a velha bailarina é um abrigo
          ela me mostra e me esconde

           

          a velha bailarina é o outro lado do que vocês
          pensam e do que eu digo. não sou um fantasma e não
          sou
          uma shirabyôshi, mas tenho idade suficiente para vos
          tornar meus. com o tempo alcançarei a honestidade e
          usarei os seus quimonos poeirentos.

           

          a velha que dança acolhe tudo
          o que acontece na sua presença.

           

          tentei distrair-me e
          aos outros pedindo a amigos
          para estarem comigo e serem ela
          neste projeto abusivo para que
          eu possa ver
          e não ser vista.

           

          a velha que dança é um ataque desastrado,
          vazio, como uma soneca de verão e eu estou a
          adormecer tentando dizer que aquilo (x=culto)
          não é nada. como o dinheiro, o nada é algo, oco
          e poderoso quando aceitamos as condições.

           

          hoje de manhã, por volta das seis horas, oiço um homem a gritar mas não me lembro das palavras (provavelmente francês, mas agora parecem alemão, alguma coisa do tipo: por favor não, – socorro), depois desaparecem e voltam mais como uma oração ou uma canção de amor, levanto-me e olho para a rua bela e vazia com um grupo de quatro pessoas, dois homens de tronco nu, um de calças, o outro de calções e um corpo lindíssimo emergindo dos calções, um terceiro homem com uma barriga, um saco ao ombro e uma t-shirt e uma mulher na periferia da cena. ela parece estar à espera de que o homem do saco venha ter com ela para retomarem o caminho que faziam antes de chegarem a esta cena – o homem do saco tem a mão no peito do homem de calções, fala e mexe-se, tenta impedi-lo de encostar um dos seus enormes punhos no outro homem. o homem zangado vira-se e senta-se e levanta-se de novo e o homem do saco está entre ele e o homem mais magro no limite do círculo, quando de repente o homem zangado sai disparado do centro e alcança o homem magro por trás e prende o braço em chave à volta do pescoço dele, pronto a estrangulá-lo. eu vou lá para dentro chamar a polícia, mas não me lembro do número e carrego nos botões errados e quando volto à varanda para olhar lá para baixo, os dois homens de tronco nu estão a afastar-se mais carinhosamente e a equipa de paz segue em sentido contrário em direcção ao metro. na cozinha o sol nasce como uma bola de fogo e começo a regar as plantas e os lençóis que pendurei em frente às janelas para refrescar os vidros.

           

           

           

           

          ontem fui passar um longo dia no lugar da velha bailarina na margem do rio Sena, ela ficou feliz por me ver e eu também. mas ela disse-me que eu devia contar a sua história.

           

          em tempos, um monge (o waki) vivia num retiro perto de um rio.

          todos os dias via uma mulher muito velha (a shite) que vinha buscar água.

          um dia, quis saber o nome dela. ela primeiro recusou e depois respondeu com um poema.

          noutro dia, um homem da aldeia (o kyogen) encontrou o monge waki e o monge perguntou-lhe o que ele sabia da velha shite.

          “oh” disse o kyogen, “não sei nada, mas há cerca de 200 anos houve uma bailarina que vivia perto do rio por trás de uma sebe de ciprestes, porque tinha vindo a guerra e ela já não podia dançar. anos mais tarde, chegou um chefe militar ao seu modesto abrigo e pediu-lhe água. enquanto ela lha dava, ele perguntou se ela era Higaki, a bailarina outrora famosa, e além disso, ordenou-lhe que dançasse.

          ela ficou muito envergonhada porque as mangas do seu quimono estavam em farrapos e eram curtas demais. em vez de dizer o seu nome, recitou um poema.”

          provavelmente perceberam que é o mesmo poema que a velha disse ao monge. por isso já sabemos: a velha é o fantasma de Higaki, não consegue encontrar repouso e espera que o monge a possa ajudar com a sua prática de oração.

          ela vai buscar a sua máscara assustadora de fantasma shite por trás dos ciprestes entrelaçados, o monge reza, ela recita mais versos do poema e depois executa uma dança sofisticada.

           

          estou a chegar ao limite de 8000 caracteres para uma página no coreia – mas vem até ao rio e poderemos falar mais.

           

           

          Traduzido do original em inglês, francês e português por Joana Frazão.

          Germaine Acogny Dança Africana

          Ao longo de mais de cinco décadas de trabalho contínuo de transmissão de dança, primeiro com a Mudra Afrique, e depois com a École des Sables, em Dakar, Germaine Acogny tornou-se uma figura central para a dança contemporânea em África. O seu percurso de renovação estética da dança africana ficou marcado pela utopia do pan-africanismo dos anos setenta, em que a dança participava no movimento cultural de reimaginação política pós-colonial do continente comprometido com a sua história ancestral. Publicado originalmente em 1980 em francês, inglês e alemão, Dança Africana é um dos raros manuais de dança escritos na região, do qual publicamos a sua introdução. A partir deste texto pode-se não apenas aceder a uma história de vida pessoal que se cruza com tradições de dança do centro-oeste africano, mas também a um programa estético e político que inevitavelmente dialoga com as culturas de dança afro-diaspóricas no continente americano.

           

          Dança Africana

          Germaine Acogny

           

          Dança tradicional africana

          O ser humano usa o corpo para se exprimir desde o dia em que nasce. A dança é, para mim, um prolongamento natural da vida e dos gestos do dia a dia. A dança agrega ideia e sentimentos. É isso que ela é ainda hoje na África Subsariana. É por isso que as danças tradicionais são feitas pelos mais velhos, mais do que pelos jovens. Os mais velhos são os que têm mais a dizer, a comunicar, a transmitir, para que o seu conhecimento possa pendurar e eternizar-se pelas gerações futuras. É a sua forma de escrever, de marcar no tempo e no espaço as coisas criadas e não criadas.

          Desde que o ser humano surgiu na Terra, a dança é usada para honrar o seu criador ou múltiplas divindades. Isto explica que, na génese, toda a dança era ritual, era sagrada. Os nossos antepassados dançaram todos os acontecimentos importantes da sua vida. Longe de ser um mero entretenimento, a dança era uma forma de prece: “Mais do que expressões puramente instintivas ou espontâneas, essas bamboulas com que a literatura colonial fazia sonhar os seus leitores, as danças, as cerimónias […] não são certamente destinadas a atingir um estado de desinibição coletiva, como alguns terão tido a infelicidade de dizer: pelo contrário, obedecem a um conjunto estrito de códigos que, sendo distintos dos da coreografia ocidental, não são menos rigorosos e imperativos, estando institucionalizados e ocorrendo exclusivamente em certas ocasiões — em alturas específicas — e para propósitos claramente definidos” (J. Laude, in Michel Huet, Danses dAfrique).

          Danças para fazer a chuva cair ou danças da colheita são manifestações de alegria coletiva, danças da água, danças do fogo, danças de iniciação… A dança, em África, mais do que em qualquer outro lugar, é ainda hoje expressão da vida. A humanidade colocou Deus acima de tudo; inacessível para o ser humano. Para se dirigir a Deus, o ser humano usa gestos, a dança e o canto.

          Para os iorubá, antes de se começar qualquer cerimónia é necessário primeiro acalmar a divindade LEGBA, deus do sexo e da desordem. Com a aparência de um homem flanqueado por um grande pénis em madeira, divindade protetora do país, da aldeia e da casa, é-lhe oferecido o sacrifício de um galo, que simboliza a potência do macho responsável pela procriação. A seguir é invocada FA, divindade da paz. Os instrumentos de percussão utilizados são um grande e um pequeno. O primeiro tem um som agudo, o segundo grave. As assans, cabaças ocas com grãos lá dentro que se agitam, juntamente com os tambores e os cânticos, formam uma sinfonia. Os ritmos e os cânticos são conhecidos dos percussionistas e dos bailarinos iniciados. Cada divindade possui um ritmo diferente e é a divindade que conduz a dança. É durante o período de iniciação que se dá a conhecer aos principiantes regras que lhes permitem adquirir conhecimento dos seus corpos, autocontrolo, força e determinação para superar obstáculos e a si próprios.

           

          Aloopho ou a herança da minha avó

          Aloopho era uma sacerdotisa do reino do Daomé, da comunidade religiosa dos ORIXÁS YAO, que na língua iorubá da Nigéria e do Daomé significa “esposas do poderoso, do sagrado, do divino”. Os homens e as mulheres devotos às divindades iorubá recebem o nome de YAO ORISA. Aloopho foi escolhida pela comunidade e consagrada IYA, que significa mãe, dando-lhe o nome de IYA ORISA, mãe do sagrado e do poderoso. Aloopho foi o nome que lhe deram na sua iniciação.

          De acordo com a tradição iorubá, nem toda a gente se consagra aos espíritos e às divindades. Somos escolhidos para sempre como emissários das divindades, dos ORIXÁS ou dos VODUN como se diz na língua fom, do Daomé. Essa escolha é confirmada à nascença ou durante uma cerimónia que determina o prenúncio do devoto, cerimónia esta que ocorre no seio das famílias fom e iorubá para identificar a alma ou o espírito do antepassado que reencarnou naquele indivíduo, e quais as vicissitudes que irão acompanhar a sua vida do nascimento até à morte. (Os fom e os nagôs de Daomé acreditam na metempsicose, em particular na reencarnação dos defuntos no corpo dos seus descendentes.)

          Aloopho foi, portanto, escolhida e consagrada aos ORIXÁS pela sua comunidade que passou a respeitá-la e a amá-la incondicionalmente até morte. Além de sacerdotisa, Aloopho era também mãe de família. Só teve um filho, mas adotou e criou os filhos do seu marido polígamo. A divindade patrona de Aloopho era YEWA, deusa da água doce representada por uma pomba. As danças acontecem num APATAM, um refúgio com telhado de folhas de palmeira. Aloopho, a sacerdotisa, líder da cerimónia, conduzia a dança ritual segurando a faca sagrada na mão direita. Ao abanar os ombros, uma onda percorria todo o seu corpo. Os braços em forma de pegas de cesto eram movidos da frente para trás com uma ligeira flexão dos joelhos enquanto girava e pousava a mão sobre a cabeça dos espetadores. A música e a dança tomavam os iniciados que entravam em transe, possuídos por uma divindade. A divindade era reconhecida pelos gestos e sinais que a caracterizam. Se fosse a divindade da caça, o homem tornava-se caçador batendo com os pés no chão a evocar as entidades da terra. Aloopho conta como um rapaz de oito anos, possuído pelo deus da caça, saiu da área da dança e foi para a floresta, regressando com um esquilo entre os dentes. No caso de LEGBA, o deus do sexo e guardião da vila ou aldeia, semeia a desordem e impõe movimentos de acasalamento, rotação da pélvis com contrações de trás para a frente. Os iniciados possuídos pela entidade são depois levados para o convento e são cuidados, regressando logo a seguir para a dança. Em regra, a dança começa à tarde e pode continuar até ao fim da noite, à luz de tochas ou lamparinas a óleo.

          Para os bailarinos que representam certas divindades, o uso de máscaras era obrigatório. Para os GUELEDES, em Quetu, a máscara representava um rosto iorubá com cicatrizes. A posição e a forma indicavam a pertença a uma ou outra família. Os gémeos eram representados por duas estatuetas. O deus do relâmpago, SHANGÔ, era representado por um homem com um machado de forma curvada por cima da cabeça. LISSA, a divindade feminina, era representada por um colar branco. O branco é o símbolo da deusa. Os primeiros brancos a chegarem à terra dos fom foram bem recebidos e nem sempre compreenderam o sentido desse acolhimento. Entre a comunidade iorubá, as divindades são também simbolizadas por pedras preciosas, por metais como o ouro, a prata e o cobre. As divindades fom são representadas por pequenos montes de terra e troncos de árvore, sobre os quais são sacrificadas ovelhas, vacas e galinhas salpicadas com óleo de palma. De vez em quando Aloopho brincava com a forma como eram representadas as divindades do seu marido, que era da etnia fom.

          Tanto na cultura iorubá como na fom, dança-se balançando o tronco e o rabo; a energia e o impulso são dados pela música. Se a música é desencadeada por eventos felizes, a dança é rápida. Em momentos de luto, os mahi, para terem um som melancólico, colocam uma cabaça virada para baixo numa bacia cheia de água e tocam com a base da palma da mão: é o SINHOUN, o tambor de água.

          Como sacerdotisa responsável pela iniciação de novos praticantes, Aloopho levava uma vida simples. Tinha o poder de fazer tanto o bem como o mal. Esperava-se que fosse totalmente honesta e disponível. A religião animista baseia-se na lei do equilíbrio (a maldade é punida e a bondade é recompensada). O cristianismo não nos trouxe nada de novo em termos de rituais. Entre a comunidade iorubá, o batismo realizava-se ao oitavo dia após o nascimento. A mãe e a criança tinham de sair de casa enquanto era lançada água pelo telhado. Ao bebé batizado era dado a provar sal e peixe fumado. Até à sua morte, Aloopho recusou converter-se ao catolicismo, já que considerava o batismo animista tão válido quanto o cristão.

          Era esposa de um homem que tinha o dever de respeitar. Todas as manhãs levantava-se, varria o quintal e ia buscar água ao rio. Ela tingia com índigo – uma atividade considerada sagrada. Ela ia ao mercado com tabaco, fósforos, e preparava pastéis de milho e feijão para vender. O seu marido trabalhava no campo. Mas era Aloopho quem administrava os bens da família. De tempos a tempos, em datas precisas, Aloopho retirava-se durante três meses para o convento, a fim de preparar a iniciação: Aloopho costumava dizer que a boca que reza pelo bem não pode rezar pelo mal. Mas quando alguém na comunidade arriscava pôr em perigo o equilíbrio das pessoas, cabia a Aloopho castigar o culpado. Ela exclamava “heelou” para invocar o mal em alguém que profanava. Em momentos de perigo, as pessoas da aldeia procuravam-na. Uma noite, os pais de uma criança doente procuraram a sua ajuda e quando ela a borrifou com água benta a criança levantou-se.

           

          A mulher, guardiã da tradição

          Aloopho conta: um dia, um caçador encontrou um antílope às riscas no topo de um pequeno monte. Para nós, os termiteiros são sagrados. É, portanto, proibido matar um animal que se encontre aí. Sem ter em conta a proibição e confiando no poder do seu grigri, o caçador mata o bicho e manda o cão buscá-lo: eis que tanto o bicho como o cão desaparecem pelo termiteiro abaixo. Mesmo com a ajuda dos seus companheiros, dos seus machados e da sua força física, o nosso caçador não conseguiu recuperar o fruto da caça. Mortificado, conta à sua mulher a desventura e ela faz pouco dele, chamando-lhe cobarde e inútil. A esposa vai então chamar amigos e, com os seus utensílios de cozinha (cabaças, potes e caldeirões), saem a dançar, a cantar e a tocar em direção ao termiteiro sagrado, e lançam tudo sobre o termiteiro, que se abre e deixa emergir o antílope.

          As mulheres possuem uma certa força e primazia na sociedade africana tradicional (fom, iorubá). Penso que é através dos seus cânticos e das suas danças que entram em contacto direto com as divindades da terra, do ar e do fogo. Tudo isto forma um conjunto cósmico. Elas atingem um grau de poder espiritual que o racionalismo moderno não consegue explicar. Quando dançamos, podemos coordenar a respiração, o batimento cardíaco e o bater dos braços e pernas para chegarmos a um desdobramento de nós mesmos, a um segundo estado. Uma investigação séria poderia encontrar uma explicação científica para este fenómeno. Isto requer uma estreita cooperação entre as gerações mais velhas, imersas na tradição, e a geração mais jovem, formada nas escolas racionalistas ocidentais. É todo um programa de investigação que se poderia esboçar, e que deveria importar a todos aqueles que se interessam pela relação entre tradição e modernismo na África Subsaariana, especialmente na esfera do canto e da dança.

           

          A minha história

          Quando nasci, contou-me o meu pai, no dia de Pentecostes de 1944, uma pomba branca pousou na janela do meu quarto e todos os dias lá voltava até eu completar um ano, desaparecendo depois. Chamaram-me IYA TOUNDE: a mãe regressada, em língua iorubá. A minha avó Aloopho tinha morrido quatro anos antes. A sua divindade protetora era simbolizada por uma pomba. Por outras palavras, eu sou a sua reencarnação, pelo que se esperava que eu tivesse pelo menos alguns dos seus atributos.

          Quando, aos dez anos de idade, fui colocada aos cuidados das Irmãs de São José de Cluny na Medina de Dakar, as minhas colegas começaram a chamar-me DOFF BI (a louca) porque eu estava sempre a fazer palhaçadas e a dançar. Mais tarde, no liceu feminino, não me interessei por nenhuma das disciplinas, para grande desespero dos meus pais. Contudo, a diretora da escola tinha reparado na minha aptidão para a educação física e trouxe isso à atenção do meu pai, em março de 1961, depois de me excluir do regime de meia-pensão: “Devo informá-lo de pelo menos um aspeto que lhe poderá agradar. A professora de educação física chamou-me a atenção para o facto de a Germaine ser excecionalmente dotada na disciplina. Além disso, é dócil e disciplinada durante essas aulas. Se Germaine tiver em mente que um diploma em educação física inclui uma parte considerável do ensino geral (Secundário ou equivalente) e, se se aplicar, poderia considerar tornar-se professora de educação física no liceu e Secundário.”

          Em 1962, na Escola Simon Siegel, em Paris, descobri a dança rítmica durante a minha formação para me tornar professora de educação física. Três anos de estudo sob a orientação da Mademoiselle Marguerite Lamotte, que nos ensinou disciplina, amor pelo trabalho bem feito e pedagogia. Quando entrei para a escola, Mademoiselle Lamotte comentou que os meus pés eram achatados. Sendo a única africana, observei os pés arqueados dos meus colegas. Precisava de trabalhar os pés e imitar os outros. Rapidamente percebi que era incapaz de os imitar e, por isso, tinha de inventar movimentos que correspondessem à minha natureza.

          Quando regressei ao Senegal, em 1965, com o meu diploma em ginástica rítmica, estava pronta para mover montanhas. Conheci uma grande bailarina norte-americana, Katherine Dunham, que estava a tentar criar uma escola no Senegal. Além disso, havia uma série de cursos amadores de danças clássicas dirigidos por europeias em Dakar. À nossa chegada, o meu marido foi colocado em Casamansa e eu fui com ele. Descobri aí a dança africana, assistia a todas as festividades da aldeia e dançava com os locais. Foi uma verdadeira revelação para mim.

          Entre as danças que mais me encantaram desde que cheguei a Casamansa e que estudei especialmente está a KOSONDE. Os bailarinos começam por andar em cadência, seguindo o ritmo do cântico. A seguir, aceleram os movimentos, o que os leva a fazerem ritmos com os pés, criando padrões geométricos e torcendo o tronco para a direita e para a esquerda. Segunda posição en dedans, braços ao longo do corpo. Os braços seguem o movimento do tronco, o bailarino pode saltar de um pé para o outro fazendo um contratempo em cada pé. Podem ainda ser executados movimentos acrobáticos ao nível do chão.

          Devo a seguinte descrição desta dança, assim como as citadas mais adiante, aos Arquivos Culturais: “A dança conhecida como KOSONDE pertence aos balantas, um dos muitos grupos étnicos da região de Casamansa. Pouco conhecido no resto do Senegal, este grupo étnico mantém no seu repertório esta dança particularmente rica em ritmos e gestos. É uma dança pré-iniciática que tem lugar após a colheita, para permitir aos jovens prestes a serem iniciados exercitarem as suas capacidades como bailarinos antes de entrarem na floresta sagrada. A dança é organizada pelos adultos mas também podem participar raparigas jovens e virgens; os homens e mulheres adultos limitam-se a ativar os procedimentos. De tronco nu, com uma espécie de minissaia de fibra vegetal e pés descalços adornados com guizos, os bailarinos movem-se uniformemente em círculo, girando à volta, produzindo um ruído estridente e pesado que dá ritmo ao cânticos, tudo acompanhado pelo som de tambores e cornetas.”

          Ao regressar a Dakar, fui nomeada professora de educação física no Liceu Kennedy e continuei a minha investigação sobre dança africana. Aí havia sobretudo danças ouolof como a CEEBU JEEN e a JAXAAY MA LAAN. A CEEBU JEEN (que significa “arroz de peixe”, o prato nacional) “começa com uma introdução ou aquecimento: uma pequena corrida saltitante de uma perna para a outra com o tronco inclinado para a frente. Um dos braços roda em moinho, e o outro pousa no umbigo ou agarra a capulana. As pernas retomam pedalando e fazem ronds de jambes no ar para dentro e para fora, com o pé ao nível do tornozelo. Uma mão na cintura e outra na nuca. Segundo algumas fontes, a CEEBU JEEN já estava na moda em 1928. Era dançada por mulheres e deve ter surgido em centros urbanos. Era dançada para celebrar casamentos e batismos. Crianças, jovens raparigas e homens entre os vinte e os trinta anos vinham assistir, ao lado das mulheres, à execução da CEEBU JEEN. As crianças sentavam-se no chão ao lado dos griôs, em geral em frente às mulheres, algumas das quais podiam estar de pé. As raparigas jovens ficavam atrás das mulheres e os homens por trás das jovens. A maior parte da audiência era composta por mulheres de meia-idade, geralmente donas de casa, esposas de camponeses ou de operários e mulheres de casta. Normalmente, o evento começava por volta das cinco da tarde e terminava no crepúsculo. Deve dizer-se que esta dança não estava ligada a nenhuma época do ano. Ainda assim, era mais propício acontecer na estação seca. A CEEBU JEEN também podia ser dançada durante certas cerimónias rituais como a LAABAAN (uma cerimónia de dança e canto no dia seguinte à noite de núpcias) ou a tatuagem de lábios que se fazia nas primeiras horas da manhã. O ritmo da dança CEEBU JEEN era produzido por um conjunto de membranofones (de três a cinco) e acompanhado por palmas. É uma dança que continua a ser muito popular.”

          Em 1968, divorciada e com duas crianças, abri a minha escola de dança africana no pátio da minha casa na rua Raffenel, número 58, em Dakar: “Dança africana acompanhada por atabaque, corá e balafom.” A minha primeira experiência coreográfica teve como tema a “Mulher Negra”, um poema de Léopold Sédar Senghor [1945]. As estrofes, recitadas e acompanhadas pelo corá (djimbassin), eram mimadas pela bailarina. Os movimentos das mãos e dos dedos acentuavam a sensibilidade da melodia. A transição entre estrofes era feita com uma dança jola, a BUGEREB. É dançada batendo os pés no chão alternadamente; ao terceiro tempo, pés juntos (sexta posição clássica) empurram o chão em três impulsos. Os braços podem ficar inclinados para a frente ou para trás seguindo os movimentos dos pés. Esta experiência foi decisiva, a julgar pela reação do público no Teatro Nacional Daniel Sorano, em junho de 1972. No mesmo ano, fui nomeada chefe do departamento de dança do Instituto Nacional das Artes, o que me permitiu dedicar-me mais à pesquisa sobre danças africanas. Aqui ficam algumas das mais importantes:

          BUGEREB ou JIBOMAJ JATI FONI: é a dança mais popular entre os jola. Como o nome indica, tem origem fonyi, mas ao longo dos tempos tem sido integrada em todos os subgrupos jola. É muito difícil datar a primeira aparição desta dança, mas pode-se dizer com certeza que é a dança mais importante da etnia fonyi. A música é produzida por um conjunto de membranofones (até seis) de forma cilíndrica com 50 a 60 cm de altura chamados UGER, tocados com as mãos por um único percussionista que usa chocalhos nos pulsos. A este junta-se o ritmo dos passos, cânticos e palmas, estas últimas cada vez mais substituídas pelo bater com força de dois pés de folha de palmeira-de-leque secos. Participam nesta dança todos aqueles que sejam capazes da força física, habilidade e elegância para a sua execução nas diferentes fases. A BUGEREB faz-se em festas, mas também em grandes eventos religiosos. É simultaneamente uma dança de entretenimento e um ritual. Pode ser realizada no dia da morte de uma pessoa idosa para fazer reviver, através dos cânticos, a sua vida, as suas qualidades, etc… Normalmente, a BUGEREB realiza-se durante a estação seca, mas pode ser realizada na época das chuvas quando morre uma pessoa idosa. Os participantes formam um círculo a partir do músico de UGER, que terá à sua direita ou à sua esquerda homens ou mulheres, e por entre os adultos estarão jovens que vão aprendendo. Os versos e o refrão são cantados alternadamente por homens e mulheres. É uma ocasião para todos mostrarem o seu talento como bailarinos.

          BARA, dança dos boubous, dança mandinga: escolhi esta dança de entre uma série de variantes porque me parece incorporar as características e movimentos básicos da dança mandinga: movimentos súbitos ou lentos da cabeça da frente para trás ou de um lado para o outro, movimentos bruscos ou ondulados da coluna vertebral que fazem lembrar um gato a arredondar ou a arquear as costas. Pés em sexta posição, virados para dentro e planos, depois em meia-ponta com torção do tronco à direita ou à esquerda, mãos e pulsos em rotação, pousa em meia-ponta e planta do pé no chão. Esta dança é executada lentamente com muita elegância e subtileza.

          PITAM, uma dança sererê semelhante à BUGEREB: o pé, a perna e o braço de um lado movem-se de cada vez em conjunto, alternando para o outro lado entre tempos. O tronco pode ser mantido direito ou ligeiramente inclinado para a frente. “Notámos a influência das danças mandingas nas danças sererê. Em mandingue, ‘sererê’ diz-se ‘Cacin cô’, que significa “habitante de Cacine”. Segundo a lenda, um grupo de mandingues deixou a cidade de Cacine, na Guiné-Bissau, para se instalar na região de Sine-Saloum [Senegal], onde se teriam tornado os sererê de hoje.”

          WANNGO: é dançada de perna esticada com o pé fletido, batendo-se as palmas e com o pé no chão, mesmo braço, mesma perna, alternados. É uma nova dança popular. De acordo com certas tradições, foi inventada por um mauritano chamado Sidi Koyel, que foi integrado na comunidade haalpulaar. Dizem que era louco e vivia em Boghé, na República Islâmica da Mauritânia. WANNGO é uma dança de entretenimento que reúne toda a comunidade, sem distinção, na praça da aldeia ou do bairro, depois do jantar, até durante a época da chuva. Jovens rapazes e raparigas entram no círculo um a um, ou em pares, e dançam ao som do TAMA (o tambor falante de axila), acompanhados por palmas e canções. Algumas destas danças feitas por jovens raparigas são dedicadas aos seus amados, a quem louvam. Os mais velhos –  sejam homens ou mulheres – não dançam a WANNGO, que é sobretudo uma dança para jovens.

          Em 1974, um encontro com outro país do Sahel: fui ao Alto Volta [hoje Burkina Faso]. A nova dança africana começava a ganhar forma já que os voltaicos a apreciaram enquanto tal. Em 1975, em Nova Iorque, cruzei-me com a dança jazz e a dança moderna. Depois de ver o trabalho de Alvin Ailey, que se inspira nas danças negras africanas, fiquei mais convencida de que estava no bom caminho.

          Sendo eu própria de origem iorubá e fom, conheço a essência das danças das regiões de floresta. Tendo vivido num país do Sahel e num país de floresta (região do cabo Verde e de Casamansa), senti que ao fazer uma síntese das danças do Sahel (ênfase nas pernas) e da floresta (ênfase nos ombros e no rabo) poderia concretizar uma “dança africana”. Naturalmente, cada país africano orgulha-se da especificidade das suas danças, dos seus costumes; mas podemos procurar o que as une: danças para todas as circunstâncias da vida.

          Todas as descrições de dança neste livro dão os movimentos típicos de base; a seguir, são estabelecidas variantes e sequências. Os bailarinos são livres de improvisar a partir destes movimentos de base, de acordo com a sua agilidade e talento. Todas as danças incluem uma introdução, movimento lento, seguindo de movimento rápido e imobilidade que retoma novamente a dança.

           

          A evolução é um fenómeno natural

           

          “Quando submetemos a natureza ou a história humana, ou [a] nossa própria atividade intelectual, à análise pensante, o que nos salta à vista, em primeiro lugar, é a imagem de um entrelaçamento infinito de interconexões e interações, no qual nada permanece o que e como era nem onde estava, mas tudo se move, se modifica, devém e fenece” (Friedrich Engels, Anti-Dühring [1878], Introdução[1]). A dança africana também evolui. Numa altura em que se fala de um regresso às raízes, alguns consideram isto um ultraje e acusam-me de querer introduzir elementos estrangeiros na dança africana. O inquérito sociológico de Christian Volbert sob o título “O futuro das danças tradicionais na Costa do Marfim”[2] (Arts d’Afrique Noire, n.º 29) parece importante neste contexto, uma vez que ilustra a desintegração da cultura tradicional sob o impacto da cultura ocidental, que afeta as sociedades africanas. A influência é um facto; elementos estrangeiros introduzem-se quer queiramos ou não. Em vez de deixarmos tudo ao acaso, nós, africanos, deveríamos tomar essa evolução pelas nossas mãos, para a colocarmos num nível superior escolhendo, dentro do conjunto de influências, as melhores e mais enriquecedoras. O desenvolvimento da dança moderna nas cidades deveria levar-nos a reconsiderar a dança tradicional africana.

          A tendência atual de encenar bailados que consistem em transpor “o mato” para cena deve ser revertida, porque a dança tradicional só tem sentido dentro do seu contexto sociocultural. Diz-se, frequentemente, que os africanos são natural e espontaneamente dotados para a dança, que lhes basta seguirem o instinto. No entanto, passam toda a sua iniciação na floresta sagrada precisamente para aprender as danças. Afinal, é necessário cultivar os dons naturais através do trabalho.

          A partir da síntese das danças africanas (dança do Sahel-dança da floresta), prosseguimos para uma abertura às danças do mundo: a dança afro-americana, a dança europeia dita clássica, a dança hindu. Esta síntese tem lugar numa escola de dança de vocação internacional que dirijo desde a sua criação, em 1977: Mudra Afrique –  a Floresta Sagrada dos tempos modernos.

          A dança clássica europeia tem uma dupla finalidade: uma formação física abrangente, impulso para depois criar estilos diferentes. “A dança clássica consiste em cerca de quarenta passos e o mais importante numa técnica, ou seja, um conjunto de exercícios cujo objectivo é colocar o bailarino no controlo de todo o seu corpo, tal como um pianista ou um organista controla as suas mãos e os seus pés” (L. S. Senghor na brochura Mudra-Afrique).

          Outra fonte de inspiração – a dança hindu: os africanos conhecem-na por intermédio do cinema indiano. Esses filmes que contam histórias de amor e aventura estão repletos de cenas de dança tradicional. Jovens senegaleses decoram os passos, lembram-se das melodias e das letras, compram os discos das bandas sonoras. Só na região do cabo Verde senegalês existem três clubes dedicados à prática destas danças e é possível ver jovens senegalesas vestidas à indiana adotando a aparência das bailarinas de cinema. O que fascina os africanos na dança indiana são os gestos sempre ondulantes, sejam rápidos ou lentos, assim como a ênfase na beleza das mãos e dos pés, os movimentos graciosos da cabeça e do pescoço. Adoram a música dominada por flautas e violinos, os seus sons melodiosos e rítmicos, que são simultaneamente lânguidos e vigorosos, eróticos e artificiais. Não é apenas para imitar que os bailarinos e as bailarinas de Dakar e Pikine aprendem o estilo indiano. Eles vislumbram um modo de dançar que é ao mesmo tempo exótico e familiar. Enquanto os gestos, a sua música e as vestes são distintos, o impulso, o vigor e a alegria sensual são africanos.

           

          Dança africana

          O movimento artístico em que insiro o meu próprio trabalho, embora enraizado nas tradições populares, não é um regresso às raízes. Pelo contrário, é um caminho totalmente diferente e resolutamente urbano e moderno, refletindo o contexto em que vive a África de hoje, a África do betão, a África das grandes contradições internacionais. Não queremos sujeitar ou subjugar a dança negra. Desejamos apenas que floresça livremente pelo seu próprio carácter na civilização moderna e tome o lugar que lhe é de direito. Assim, desempenhará o seu papel de vivificação e de reação.

           

           

          Traduzido do original em francês por João dos Santos Martins em diálogo com Inês Ramos e José Gil (estagiários).

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          [1] Tradução de Nélio Schneider, Editorial Boitempo, São Paulo, 2015.

          [2] “L’avenir des danses traditionnelles en Côte d’Ivoire”.

          Renan Marcondes brasabrasil

           (a partir da peça c h ãO, de Marcela Levi e Lucía Russo)

           

          Minhas asas estão prontas para o voo,
          Se pudesse, eu retrocederia.

          Gerhard Scholem, Saudação do anjo

           

          Antes de existir o Brasil, esse de hoje, construído a pauladas, havia outro Brasil. Antes desse Brasil supostamente nomeado pela madeira pau-brasil, houve outro que nomeou esse pedaço de coisa com essas seis letras. Brasil, Brazi, Brazir, Breasail, Bracir, O’Brazil: uma palavra que se balbucia e se transforma, uma linha circular ou um anel de ilhas, uma terra maravilhosa e assombrada da mitologia irlandesa, com magos, coelhos coloridos – e comigo que agora escrevo, num futuro distante. A ilha Brasil, desenhada em tantos mapas, geralmente no meio do oceano Atlântico, Eldorado às avessas, prima da Lua e de Marte e dos buracos negros, terreno de uma outridade absoluta, terra da brasa, dos vermelhos, em formas diversas e ensaiadas do que poderia ser aquele encantador e assustador lugar que sempre habitará nossas mentes. Anteontem Brasil, ontem Lua, amanhã Marte. Para sempre outro lugar.

          Nós, daquilo que hoje segue sendo chamado de Bras(z)il, não podemos nunca nos esquecer de que antes desse Brasil, criado a ferro e fogo, houve e haverá sempre um Brasil imaginado por outros povos agarrando-o pelo pé, transando à força com seu duplo e não o deixando nunca em paz. Queimando-o por dentro e fazendo nascer dentro dele todos aqueles bebês monstruosos e alienígenas que aparecem a rodo nos filmes de terror.

          Querido fantasma do Brasil. Toda exportação do Brasil levará, em alguma mala de pertences, um ou outro dos seus. Vocês pesam pouco, é verdade, então conseguem se encaixar confortavelmente no limite reduzido de uma mala de mão. A grande questão, portanto, não é seu transporte, mas sim o que fazer com vocês depois que eventualmente saem das malas.

          Quando um fantasma brasileiro sai da mala e se vê na Europa, alguns caminhos são possíveis. Um deles é vesti-lo do misticismo daquela ilha Brasil antes do Brasil, envolver sua pele invisível de tudo aquilo que se projeta sobre essa terra quando se está fora dela e só é possível imaginá-la como um pedaço de mapa. Mas esse misticismo não é uma questão de elementos, de como adornar um fantasma ou o quanto de suor se respinga sobre os corpos. Não é (só) a nudez, não é (só) o cocar, não é (só) a cor da pele. É uma questão de como se adere, sobre esses elementos todos, aquela outra nuvem densa que é a imagem que se tem daqui quando se está fora. Quando hoje se reconhece, fora do Brasil, o Bras(z)il (em, por exemplo, uma peça de dança), fica claro para um brasileiro que nada é dito sobre o Brasil senão sobre o claro desejo de, criando uma imagem brasileira, pular para fora dessa terra sem saída e encontrar aquele oásis no deserto da Europa chamado: estrutura de trabalho.

          Quanto mais cresce a fenda nessa nossa terra arrasada, quanto mais correm os anos a nos provar que nosso projeto democrático falhou e que aquilo que achávamos que era progresso era só um pano quente, mais corre nas nossas bocas de artistas de classes média e alta a doce palavra internacionalização. Já que não dá mais aqui, que tal lá fora? Já que há 908 projetos de teatro enviados no último ano só no estado de São Paulo para que apenas vinte deles vejam algum centavo, que tal mostrar para outros nossa “verdadeira” cara? Já que parece ter tanto dinheiro e culpa lá fora, afinal de contas… Já que “eles” nos devem…

          Quanto mais cresce essa palavra, mais deixamos nosso público no chão para acomodar nas cadeiras os curadores internacionais; mais os levamos de Uber – já altos de caipirinha – para aquele teatro (que revitaliza enquanto gentrifica) a fim de escolher aqueles que enfim poderão sair; mais volta só quem saiu com sucesso; mais conquista temporada quem tem a dupla nacionalidade no currículo, quem dançou com as grandes, quem conseguiu se segurar antes de cair, quem produziu aquilo que parece ser igualzinho ao Brasil quando fora do Brasil e volta para, tendo em mãos os palcos, nos contar sobre como lá vestiu nossos fantasmas.

          (Essa cena acima é muito contraditória e nela não há mocinhos ou vilões. Não é uma narrativa, é um quadro caótico do momento em que a fenda se abre demais e cada um se organiza como pode. É uma cena de náufrago. Nela, há ajuda, tentativas, desejo aos montes, mudanças de rota, sabedorias, lições de velhos sábios sobre como sobreviver e memórias saudosistas das viagens para Europa que formaram nossa elite modernista. Essa cena não tem protagonista, por mais difícil que seja imaginar uma cena sem protagonista hoje em dia.)

          Quando estive, eu e meus fantasmas, por um breve tempo no doce e calmo espaço público europeu, sem medo de andar nas ruas e com tempo para pensar no que há antes e depois do meu corpo – porque aqui é corpo o tempo inteiro, que olha para trás desvia anda apressado e põe a mão no bolso porque os fantasmas marcam a dúvida –, só quando lá estive, pude notar como é difícil pedir que vejam, nos nossos fantasmas, qualquer outra coisa para além das imagens que colocaram sobre nós. Querem nossas penas, nosso suor, nosso calor, nosso sol, nossa floresta, nosso café, nossa terra a qualquer custo. Dentro e fora da dança. Sempre quiseram. Afinal, por que outro motivo estaríamos lá? Precisamos marcar nossa diferença e propriedade, pois o resto todo já tem lá. Não é possível escapar desse olhar e, se dependemos do seu reconhecimento para continuar a produzir, como responder a ele? Como vestir os fantasmas para um bom chá ou cerveja na Europa?

          Há um caminho, assumido apenas por algumas poucas peças de dança, que parece possível e que passa por compreender a impossibilidade de criar uma imagem autenticamente brasileira quando fora do Brasil, dado que qualquer processo de reconhecimento dessas imagens por parte do público dependerá de uma aproximação com aquela ilha Brasil prévia ao Brasil. O que quer dizer: qualquer imagem brasileira só se constitui a partir de um duplo monstruoso de si mesmo, sendo como um negativo fotográfico. Nesse sentido, parece ser um caminho apresentar, ao mesmo tempo, a imagem reconhecida e seu duplo negativo. Algo nesse sentido se desenhava fortemente, por exemplo, em Fúria, criação de 2018 de Lia Rodrigues, onde toda imagem construída em cena parecia, logo que produzida, passar do ponto em relação a seus próprios contornos, tornando-se logo outra e outra e outra.

          O que importa é que em c h ãO, peça de Marcela Levi e Lucía Russo, é possível ver outro desdobramento maduro desse caminho a se tomar em relação ao que parece ser o Brasil. Também produzida em coprodução com diversas instituições europeias e tendo aí sua estreia, a peça parece muito ciente dos impasses e limites desse contexto, e não apenas de suas possibilidades. Há, como em trabalhos anteriores da dupla (como Mordedores e Deixa arder), a abertura de um espaço violento semelhante a um pesadelo: não há propósito ou justificativa de sua presença em cena, de forma que ela não se direciona a ninguém a não ser para o próprio chão do teatro (algo evidente com o performer que fala o tempo todo andando em quatro apoios e olhando para o chão). A violência aqui é jogada para baixo, para os pés, ela é a abertura de um campo entre amor e dor (endurecer sem perder a ternura), entre o clichê de um cocar e o mistério de performers cujo rosto nunca vemos, entre o potencial alienante de uma peça da Broadway e o potencial revolucionário do carnaval, entre nós e o Zé Carioca, entre um som que não se sabe se vem de fogos de artifício ou tiros. É aquela violência que Walter Benjamin chamou de divina,[1] violência que é fim em si, que não repõe algo após ela. Violência das marés, das ondas, que apenas arrasta a todos. Sabe-se lá para onde.

          Quando estive, eu e meus fantasmas, por um breve tempo no doce e calmo espaço público europeu, me dei conta de um dado corporal central. Lá, eram poucos os que olhavam para trás na rua para ver quem estava andando fora do seu campo de visão (e se essa pessoa constituía alguma ameaça). Essa virada de cabeça não era inexistente, claro: havia, nesses corpos europeus, a virada xenofóbica, mas também havia a parcela de corpos queer, mulheres, imigrantes e sujeitos racializados que, sem virar suas cabeças, não sobreviveriam naquele espaço público que nunca foi feito para eles.

          Mas, como sempre, a escala do Brasil é outra. Aqui, em bom português, o bicho pega. Aqui, olho para trás o tempo todo, e me impressiono com o que significa ser um povo que se habitua a apenas olhar para frente no espaço público e outro povo que é obrigado e condicionado a olhar para trás. Penso que esse é o gesto fundamental de c h ãO, mesmo que ele não se configure como elemento coreográfico central. Se o público é convidado o tempo todo a se virar, deixando de olhar para o palco e buscando reconhecer de onde vêm os assovios e sapateados que invadem o espaço, é porque é preciso procurar em outros tempos e espaços, uma vez que os fantasmas se movem em uma temporalidade muito distinta da nossa. Também o anjo da história benjaminiano e “seu rosto dirigido ao passado” não olharia para trás? Tal qual o anjo, há esse pianista-performer em cena de quem mal vemos o rosto, de costas para nós e em meio ao chão com um acúmulo de material preto. Anjo que “acumula ruína e as dispersa sobre nossos pés”, pianista-anjo que “vira as costas” para o “futuro […] enquanto o amontoado de ruínas cresce aos céus”.[2]

          E, no chão, algo que poderia ser brasa. Poderia ser Brasil, mas não é. É seu negativo. São penas, e se movem com o impacto de uma placa ou dos pés dos performers. Elas, como as imagens sobre os fantasmas, devem ser sempre móveis e se mover no espaço sem rumo definido, apesar de sempre voltarem ao chão. Ou até virar asas, grudadas na pele de um pianista suado que voou perto demais do chão.

           

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          [1] BENJAMIN, Walter. “Crítica da violência: crítica do poder”, em Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986, pp. 160-175.

          [2] BENJAMIN, Walter apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

          Edna Jaime Entre as Fronteiras da Expressão

           

          Ponto de partida

          16 de Junho não é tão somente uma data, não o poderia ser, pelo menos para mim, cujos progenitores, neste dia, no centro de Moçambique, cidade da Beira, entrelaçavam suas vidas a escassos três meses da chegada da menina que já bailava no ventre, mas também o nome da escola que, em 1996, foi o berço para resvalar a sua paixão pela dança. Na arquitetura do corpo, no panorama de topo, subir e descer ladeira abaixo na perseguição de um sonho arrebatador: viver a Dança! Farda colegial embutida, paixão em riste, buscando desde tenra idade manter a bandeira em haste através da arte do movimento, do canto e da reconstrução dos contos que outrora ouvia, para recontar de outro modo a minha história, uma nova história.

          Acostumei-me a ser ensaísta nos contratempos da dança e da vida, onde ecoavam as xipalapalas[1], e a maternidade chegou trazendo consigo outro corpo, outra mente, outras necessidades, toda uma nova realidade de mim mesma: eu me (re)conhecendo! Houve momentos de instabilidade em demasia. Nessa inconstância em que divaga meu pensamento, anos passando fazendo surtir vários cenários mutáveis, a bailarina-camaleoa assim (re)nascia, uma verdadeira hustler, dois meninos ao colo, uma enorme paixão em movimento no novo corpo, alma e caminhada: a Dança, sempre a Dança!

          Na inércia do movimento de uma quase aprendiz da presença em palco, para se tornar parte do mundo que se deixa energizar pelo toque de pele da ponta dos pés aos diversos soalhos, intimíssimos, corpo e musicalidade são como o que aterra e o que acolhe, em movimentos ora voluptuosos e improvisados, ora meticulosamente planeados. Vesti esses mantos de suor enquanto bailava o mundo. Embebedada desses tantos sentimentos enviesados que não consubstanciam a verdade e a realidade. Tão peremptória para mudança de mim mesma, violentamente aprendi a ler os meus próprios sinais e os sinais à volta de mim. Corpo celeste exposto a gentrificação em meio a azáfama que vai se aglutinando e chega ao extremo. Já referia minha mãe Maria: “Enquanto danças, se eleva o monstro em ti”. Uma nova dimensão dos movimentos vai-se exacerbando, até ganhar volume, como o estrume de uma planta que, quando colocada nessa terra, floresce, desde a terra batida até a cidade de betão.

          A dança sempre foi tida como parte importante de uma base elementar a nível familiar em África, dançar é espantar e alegrar, é o nosso lugar de aterro. Cultuar os deuses da água, dos montes, das madrugadas, permitir que eles habitem em nós. O corpo é o portal que permite o acesso a dimensão futura, o próximo domínio. Em brutos movimentos, de tambores ao vento, do fogo em meio ao infinito escuro, trazendo vozes adormecidas. Siyavuma [2]!!!

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          [1]  Chifre anelado do grande antílope africano pala-pala (Hippotragus niger), que é usado como instrumento musical ou meio de chamamento.

          [2]  Termo do Zulu, língua falada na África do Sul, que significa “aceito”/”aceitamos”.

           

          ENTRE AS FRONTEIRAS DA EXPRESSÃO

           

          A província de Cabo Delgado é rica em gás natural e vive aterrorizada, desde 2017, por rebeldes armados… Há 784 mil deslocados internos devido ao conflito, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), e cerca de 4.000 mortes, segundo o projecto de registo de conflitos ACLED.

          Expressando lá no fundo da complexa alma, o corpo, que é a boca da alma, dá o seu máximo para, de forma exímia, trazer à vida a expressão de uma forma de desentupimento do estresse social que se pretende alcançar. Entre avanços e recuos, entre a missão do dever de expressar e o temer as incontornáveis consequências, como que numa corda bamba se ver dançar sobre uma linha ténue, íngreme, que se vai acentuando e aglutinando em questionamentos que com o passar dos anos ganham volume e ficam como uma crosta de ferida que não sara, é muitas vezes um pensamento desconexo, mas ininterrupto. O receio está aí, presente, premente e existente, e, enquanto pensamos, imediatamente abortamos o pensamento.

          Assim é ser moçambicano pertencendo somente à minúscula capital, mas sentindo nas entranhas da alma o ecoar dos tambores de Cabo Delgado gritando: “Eu também sou Moçambique!” Difícil é ser surdo diante deste ensurdecedor ressoar de engasgos e choros sem voz amordaçados nos nós da garganta colectiva do povo e não dançar a dor dos meus…

          Combater O Bom Combate² foi necessário para exorcizar as vozes que em 2016 me cantavam ao ouvido em uníssono de dia e de noite: “Mulher, você tem de dançar a dor do teu povo e elogiar, mesmo em meio ao caos, esta resiliência toda da qual tu também bebes e te manténs vertical e quase inabalável! Que o teu corpo fale!!!” Um loop em cadência de pele de cobra da dança Mapiko[3] repetia de forma infinita aquela imagem do Bispo beirense Dom Jaime Pedro Gonçalves, em um dos canais nacionais de TV: “Ainda que se juntem e ecoem todos os tambores de Moçambique, existem os que não percebem e se negam a perceber a necessidade e o valor da paz”.

          Quando os ouvidos não ouvem, o corpo tem de falar, e é aí que misteriosamente a missão e o propósito se encontram uma vez mais para romper com a fronteiras da expressão. É uma espécie de casamento em um regimento que permite cortinas de impedimento, este assombramento diário dessas cortinas ásperas, pesarosas e difíceis de afastar para permitir a entrada do sol, num interior de clima abafado que não permite desabafo, um trato em que ninguém interfere em coisa alguma.

          Não mais aí jazem espíritos obstinados e destemidos, nem as promessas revolucionárias dos de esquerda, nem os multipartidários; foi-se o herói Samurai – ficou a história –, e com ele foram também os verdadeiros ideais. Rompe-se assim o cordão umbilical entre as potencialidades e possibilidades. Restam-nos estas mentes timoratas dos que nutrem simpatia febril pelos regimes ditatoriais.

          Não podendo voar mais alto, as aves assombram o céu em rodopios de socorro.

          Expressar dando mão à palmatória, ao que se sente, sabendo que é importantíssimo não sermos corpos blindados em suas próprias paredes, nas fronteiras do interdito, mas arrasar emoções, destrinchar sermões, aclarar confusões e propositados equívocos.

          Para expressar qualquer tipo de liberdade, de forma inequívoca, é importante primeiro dar vazão à interior rebelião. Eu, ferozmente, fui-me açoitando, nesse contencioso de conceito “liberdade de expressão”. Vários questionamentos surtiram em mim, através de murmúrios e indagando sobre até onde vão os limites da expressão ou da liberdade de expressão. Até onde vão os extremos da tolerância à liberdade de expressão.

          Que eu me recorde, depois da rejeição dos fregueses em relação à subida de preço dos chapas[4], a tolerância ao manifesto foi zero, em meio ao gás butano e enxofre viam-se corpos pintados de vermelho.  Falarei também dos discursos em assembleias que calam jornalistas em reportagens, mas não calam o barulho das armas. Da violência que (in)surge desses recursos. Da intolerância à liberdade religiosa, do extremismo e do ódio nutrido diariamente. Esse sim, é o caos ao rubro, na ribalta, mas mais do que aterrorizadora é a violência existente, e a maior das violências é, sem sombra de dúvidas alguma, a violência cometida entre irmãos.

          Enfim, dúvidas geram respostas, mas também há perguntas sem respostas.

          Continuarei a buscar os frutos da liberdade em perfeita imperfeição. Ser e permitir ser algo mais. Força motivadora esta que fez surtir esta vontade indómita, para dilacerar os regimes ditatoriais e combater o bom combate. É preciso criar tentáculos de sobrevivência, para produzir a seiva da nação, rumar voluntariamente de forma atroz para o derrube da escumalha existente.

          Podendo assim estufar o tórax, embutindo-o de coragem, é preciso coragem para experimentar qualquer tipo de liberdade que seja.

          Ter liberdade para expressar é um pressuposto em construção!

           

          O MISTO DE PERSPECTIVAS E SONHOS

          É em meio à cacimba que gera cegueira de percepção do meio envolvente, deste dogma imperativo do corpo na mística do sonho, que se formam núcleos desejosos de obter maior rigidez, que se esperam, acima de tudo, uma nova realidade de maior e melhor acesso a educação de base, formação profissional, oportunidades que movem fundos e mundos para todos.

          Que haja uma incubadora atemporal. Que não se perca o trajecto entre os vários itinerários. Preocupa-me o legado em ruínas que ruma à decadência. Talvez, acrescentar outro tópico: o despertar social para observância da opinião do artista. Uma observância não premonitória, mas capaz, acima de tudo, de prever o rumo dos acontecimentos.

          Que haja, em suma, a difusão, de forma globalizada, do trabalho artístico local, de onde quer que seja para o Mundo! Afinal de contas, somos todos de lugar nenhum senão desta terra, o único lugar que conhecemos e no qual pretendemos ser reconhecidos.

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          ¹  Novo ataque no sul de Cabo Delgado causa três mortos, Observador, 27 jun 2022. https://observador.pt/2022/06/27/novo-ataque-no-sul-de-cabo-delgado-causa-tres-mortos/

          ² O Bom Combate (2016) é uma criação minha que retrata a ressonância da luta diária que a maioria das pessoas comuns leva a cabo, com tenacidade e fé, preservando corajosamente a sua dignidade, valores e princípios morais e éticos que estão cada vez mais degradados na sociedade moçambicana, em tempo de crise económica e de alguns escândalos políticos e económicos marcantes. Na verdade, esta é uma situação que se vive actualmente em várias sociedades do mundo.

          ³ Dança tradicional moçambicana praticada pela comunidade Makonde, na província de Cabo Delgado.

          [4] Diz-se dos transportadores semi-colectivos de passageiros em cidades de Moçambique, vulgo “chapa 100”.

          Viktor Ruban 10 de agosto de 2022

           

           

          Não me lembrei de nada além da data como forma mais performativa de começar. Documentar ou relatar descreve o processo artístico mais comum hoje em dia. Números, factos, correlações, acontecimentos históricos, causas e consequências de um ser humano e escolhas, coisas feitas ou não, acções realizadas ou não, responsabilidade assumida ou não.

           

          Em 2014, quando a Rússia começou a guerra anexando a Crimeia e ocupando partes das regiões de Donetsk e Lugansk, artistas e trabalhadores culturais da Ucrânia envolveram-se maciçamente no activismo cultural. Desde bloquear o Ministério da Cultura ucraniano com a Assembleia de Actores Culturais, exigindo reformas, purga e responsabilização legal dos dirigentes anteriores, ou lançar o Congresso de Activistas Culturais para fortalecer a solidariedade e estruturar iniciativas de diferentes regiões da Ucrânia, até iniciar o grupo de trabalho Cultura com base no Pacote de Reformas de Recuperação. Surgiram novos festivais e instituições para ajudar os refugiados das regiões ocupadas, documentando crimes de guerra e violações dos direitos humanos, e também centros que resultaram de iniciativas de voluntariado em colaboração com militares ou deslocados, etc. Apareceram muitos novos espaços de apresentação, projectos artísticos e plataformas, reflectindo sobre a responsabilidade da cultura durante guerras e crises, dando resposta a necessidades, partilhando práticas de descolonização e formas de resistência à desinformação.

           

          Em 2022, após o início da invasão em grande escala, percebemos que os nossos esforços anteriores estavam longe de serem suficientes. Desenvolver discursos e trabalhar sentidos não nos defende do terrorismo nem do desejo de “des-ucranizar a Ucrânia”[1]. A defesa e o empenho em iniciativas de ajuda às nossas forças armadas tornaram-se cruciais para todos. A maioria dos teatros, estúdios, galerias, clubes e outros espaços artísticos transformaram-se muito rapidamente em centros logísticos, bunkers ou lugares seguros para refugiados. Muitos coreógrafos, intérpretes, grupos de teatro, encenadores ou cenógrafos tornaram-se voluntários, ajudando a encontrar ou entregar comida, medicamentos, equipamento táctico, munições defensivas, drones, veículos ou até mesmo balas. Grande parte também decidiu ir para a linha da frente com armas e aprender a combater. Muitos artistas, com as suas redes profissionais, começaram a coordenar actividades para ajudar refugiados e angariar fundos para as diferentes necessidades urgentes.

           

          Também nos apercebemos de que, ao estarmos sobretudo concentrados nos desafios internos no período de 2014-22, comunicámos muito pouco sobre a identidade e a cena contemporânea ucranianas nos circuitos internacionais, o que foi bastante prejudicial quando tentámos angariar solidariedade a nível político, mesmo dentro da UE. A Ucrânia era uma “zona cinzenta”, e foi preciso que ocorressem acontecimentos dramáticos, que milhares de civis morressem, milhões abandonassem as suas casas e que infra-estruturas fossem destruídas para as pessoas começarem a olhar realmente para a Ucrânia. A Rússia, tradicionalmente, desde os tempos soviéticos, tem usado a desinformação e a propaganda através da cultura. Em resposta a isso, muitos artistas tornaram-se canais de informação rigorosa, começaram a explicar o contexto histórico de acontecimentos actuais, a preencher lacunas históricas e a mapear casos de apropriação cultural massiva da nossa história, cultura e arte,[2] confrontando westplainings, sensibilizando para as nossas necessidades actuais, enfrentando os desafios, revelando perversões.

           

          A esfera cultural na Ucrânia tem sobrevivido sobretudo graças à solidariedade dentro de redes independentes de artistas, instituições e seus públicos, que se apoiam mutuamente em termos físicos, emocionais, mentais e financeiros. Também ajudam a evacuar obras de arte ou arquivos de zonas de risco, porque o Estado mal dá conta dessa missão. Todos os ucranianos estão concentrados em coisas urgentes e na sobrevivência, o que torna extremamente difícil o trabalho artístico. Como coreógrafo, sinto-me bastante limitado para entrar profundamente num processo de criação, à procura do movimento ou da linguagem da dança, porque tudo é tão carregado. Posso começar a trabalhar com os “alertas fantasmas” que “oiço” ultimamente, mas mal comece a trabalhar vou mergulhar no trauma, e não no trabalho artístico. Para alguns artistas ou colectivos a situação é proveitosa – as iniciativas artísticas canalizam as suas preocupações, ansiedades, reflexões, etc., como resposta à situação.

           

          As coisas vitais, as necessidades básicas, são as mais desafiadoras, e é por isso que a recuperação física, emocional e mental é crucial. As práticas somáticas, de corporalização e de dança são muito úteis para isso. Artistas de dança em territórios mais seguros estão a dar aulas gratuitas a crianças e adultos, ajudando-os a lidar com o stress, a reactivar processos de recuperação e a “voltar aos seus sentidos” (por exemplo, Nikita e Alla Kravchenko no espaço Soma majsternya, em Lviv, com aulas de Movimento Estático e Locomoção; a Apache CREW, com a caravana de acampamentos de dança Círculo de Dança em diferentes regiões; ou as sessões regulares de Terapia de Movimento de Dança no espaço LMaluma, em Kiev). Algumas pessoas reúnem-se irregularmente para treinos e alongamentos, partilhando práticas corporais ou até fazendo sessões de improvisação (como a Totem Dance School com os Fins-de-Semana de Dança Contemporânea de Kiev ou o minifestival de Contacto-improvisação Dança da Paz 2022, ou a formação integrada regular para bailarinos no LMaluma, em Kiev).

           

          A maior parte das iniciativas de voluntariado está envolvida com a defesa e o pessoal militar. A partilha não só de experiências mas também de conhecimento leva a novas iniciativas. Coreografia Táctica (leccionada por Kristina Shyshkareva no Totem Dance Theatre) e Biomecânica (leccionada por mim para várias ONG) são oficinas em que novos soldados aprendem a lidar com as suas munições (que acrescentam 20/25 kg ao seu peso corporal), a respeitar sua estrutura corporal de modo a evitar traumas físicos, o modo como funcionam a respiração e a atenção e a importância de se sintonizarem com os próprios processos corporais para garantir a sustentabilidade física, emocional e mental.

           

          O treino para civis também é oferecido em campos de três semanas que promovem o diálogo entre a sociedade civil e militar, sensibilizando para as práticas militares e, ao mesmo tempo, ajudando na integração social da população militar. Esta iniciativa privada de “Oficialato civil” inclui sessões de trabalho corporal, elementos de biomecânica e consciência somática, formação integrada, aulas de improvisação e composição em dança, com elementos do sistema de Análise de Movimento de Laban e informações sobre diversos conceitos corporais.

           

          Fui recentemente convidado a participar como formador no Curso de treino para instrutores das Forças Armadas da Ucrânia sobre recuperação e primeiros-socorros psicológicos. Começou em Junho em modo experimental e está agora acreditado pelas Associações Nacionais de Psicoterapeutas e de Arte-Terapia. Neste curso prático, os instrutores aprendem o básico para manter o equilíbrio físico, emocional e mental num contexto de batalha; técnicas que ajudam a lidar com situações críticas (incluindo distúrbios, ataques de pânico, etc.); conhecimentos sobre como resistir ao stress e prevenir a PSPT (Perturbação de Stress Pós-Traumático), de modo a que soldados e oficiais se possam ajudar mutuamente, prevenindo comportamentos autolesivos ou suicídios. Doze das 40 horas são dedicadas a trabalhar noções básicas de dança contemporânea e de Terapia de Movimento de Dança (respiração, enraizamento, postura, consciência corporal e espacial, etc.).

           

          A solidariedade internacional é crucial para ajudar os refugiados, conseguir ajuda humanitária, prevenir o tráfico de pessoas, ajudar com questões de saúde e necessidades especiais. Muitas instituições parceiras tornaram-se centros ou abrigos para refugiados. Algumas acolheram eventos e manifestações de solidariedade nas suas cidades, indicando o seu apoio e pressionando os governos locais a agilizarem a  tomada de decisões. E também mapeando recursos que serão necessários para os desafios futuros, que ainda não são visíveis, mas já se tornam palpáveis: desde lidar com questões conceptuais (por exemplo, a crise em grande escala do humanismo) até ao potencial da política global (consequência do mau funcionamento de organizações internacionais como a ONU, a OSCE, a Cruz Vermelha ou a Amnistia Internacional).

           

          Há um ano, eu não me imaginava a trabalhar com militares. Mas, desde Fevereiro, percebi que a humanidade “criou” um mundo onde a liberdade tem de ser defendida pela força, onde a soberania é uma questão de mercado e o humanismo é constantemente posto em causa. A questão é se estamos preparados para admitir que fechar os olhos e “ficarmos preocupados” não vai resolver a situação – que teremos de lidar com ela. Devolvendo a responsabilidade àqueles que cometeram os crimes, admitindo os erros e aprendendo com eles, fazendo o luto das nossas perdas e recordando aqueles que deram as suas vidas em defesa dos nossos direitos e liberdades, reconstruindo o que foi destruído e sarando as nossas feridas, fomentando a solidariedade e a partilha, questionando o nosso modo de vida e as nossas zonas de conforto, estando atentos ao pensamento e discursos que estamos a desenvolver e a difundir, repensando a arte que criamos e apoiamos, perguntando que sociedade estamos a construir ou a manter e se a vida humana, a liberdade, a dignidade, o cuidado, o intelecto, a gratidão e a ludicidade têm importância nessa sociedade.

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          [1] Formulação de Timofey Sergeitsev, tecnólogo político russo, no seu artigo “O que a Rússia deve fazer com a Ucrânia”, 05.04.2022, https://ria.ru/20220403/ukraina-1781469605.html.

          [2] Estes casos estão descritos em “The fallacy of ‘Russian Culture’ in Ukraine”, de Hiroaki Kuromiya, em https://ukrainian-studies.ca/2022/05/16/the-fallacy-of-russian-culture-in-ukraine ou em “Appropriated by Russia”, de Валерія Степаненко, em https://ukrainer.net/appropriated-by-russia.

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          Guilherme Figueiredo Joelho Decidido

           

          O joelho localiza-se entre os pés e o sexo. Entre o toque e a idealização etérea da identidade. Os joelhos são pontes de comunicação, de contacto, são mecanismos de mobilidade.

          Nos primórdios do século XIII, os fatos de guerra começaram a fazer a transição das cotas de malha para as armaduras de chapa. Nas fases iniciais dessa mudança, a articulação da armadura localizada no joelho foi um dos principais focos. Era necessária mobilidade antes de proteção. Estes elementos na armadura têm em conta a forma da parte do corpo que protegem, mas também o movimento total destes corpos metálicos. A forma deste declarará as interações com o fato e o exterior. Os órgãos, a pele, a segunda pele e a arma que toca os outros corpos.

          A joelheira aparece como um escudo desta articulação, uma roda que concede espaço para a batalha e o sexo. É esta dobradiça que permite o desencaixe dos ossos de forma a juntá-los. É formada uma aliança entre o joelho e a sua proteção, um contrato que promete fidelidade a esta junta.

           

          * * * * *

           

          Imagina isto:

          o pequeno pelotão a que pertences está a ser chamado de emergência para se armarem no celeiro, local onde todo o equipamento está guardado. Enquanto todos os outros membros começam desenfreadamente a sair e a dar ligeiros encontrões no teu ombro, tu bebes o último gole no bar — não sabes se não vai ser o teu último. Acabas a bebida e levantas-te de imediato, sentes uma leve vibração nos joelhos — o medo faz o teu corpo mexer-se aos soluços como se forças contraditórias batalhassem dentro da tua anatomia — mas acabas por sair da taverna e começas, em passadas largas e ritmadas, a ir em direção ao rendez-vous. Enquanto permaneces neste limbo entre corrida e passeio, sentes o peso completo do corpo com cada contacto de pé e chão, toda a carga se abate sobre o joelho e este vibra com a ansiedade da antecipação. A conexão torna-se então desleixada e mole e só consegues pensar em morte — a morte dos outros e a tua.

           

          Ofegante da exigência da corrida, empurras vagarosamente a porta do celeiro de madeira. A temperatura escaldante do exterior, que te ferveu o sangue das veias, luta agora contra o ambiente frio e húmido em que acabaste de entrar. O tremer do corpo intensifica à medida que absorves a atmosfera do espaço. A maioria dos cantos e buracos da sala estão em completa escuridão e as únicas fontes de luz presentes — dois lampiões prateados a emitirem luminosidade tremulante e uma pequena tocha presa a uma das paredes, circundada por metal brilhante — iluminavam a sala pouco mais além das suas auras luminosas. O interior do celeiro começa a pintar-se à medida que os teus olhos se ajustam à nova claridade. As paredes de madeira incrustadas soltam chiares como se elas próprias fossem os ratos que procuram migalhas debaixo das placas. Moves a cabeça e o torso em volta, começas a ver pessoas debruçadas sobre bancos a vestirem os coxotes e as grevas das armaduras. Finalmente chegas ao banco designado, a tua armadura está disposta à tua frente, presa por dezenas de ganchos de cobre que fazem a armadura parecer um corpo vivo. A armação devolve o olhar. Começas a sentir que o fato metálico entra na tua cabeça como um personagem principal, a mover-se desordenadamente entre os teus pensamentos, acompanhado de ruídos, de clic e clac produzidos pelo material. [O fato corre pela sala. Salta e produz a trajetória arqueada do arremesso de uma lança. A descida é prática, se bem que sinuosa, mas produz sons tempestuosos que destroem o movimento melódico que ainda agora tinha gerado. Um desordenado e belo espetáculo.]

          Apercebes-te de que alguns membros estão a sair do edifício completamente equipados e apressas-te. Viras as costas à armadura, sentas-te no banco e começas a tirar os sapatos. Dobras as costas para chegares com os braços aos pés, o queixo acaba a pousar no joelho e dás outra vista de olhos pelo espaço. As armaduras que pendiam nas paredes foram substituídas pela roupa no chão — uma espécie de balneário medieval.

          Levantas-te, retirando a cabeça do berço em que o joelho se estava lentamente a tornar e continuas a despir-te. Sentes todos os pequenos toques da humidade na tua pele enquanto esta vai aparecendo, depois de a roupa deslizar por ela. Trancas o olhar de novo com o corpo metálico. Olham-se nos olhos e sentes-te vulnerável enquanto vestes as calças à pressa para esconderes os joelhos nervosos, fazendo com que as fibras de palha presas façam cortes desconfortáveis ao longo das coxas e dos gémeos. Finalmente, já com o revestimento de malha vestido, caminhas para o corpo reluzente e começas a desmontar as pernas. Sentes um enorme peso na curva das costas, como se alguém estivesse a olhar intensamente de cima enquanto despes a figura pendurada.

          As pernas estão divididas em quatro secções cada: o coxote que tapa as coxas e rodeia de certa forma a área da virilha; os sabatons são os sapatos pontiagudos de metal que previnem os pés de serem esmagados por martelos e cavalos; a greva protege a canela e o tendão de Aquiles; e a joelheira é o joelho de metal do fato de guerra. Pegas neste elemento e encaixa perfeitamente na tua mão enquanto o rodas. A frente pontiaguda evita o sucumbir da peça no caso de uma colisão forte, a sua forma arredondada permite a comunicação entre o coiote e a greva. Nesse momento apercebes-te de que é este minúsculo componente que permite o movimento do fato. Começas a entrar de novo na tua cabeça enquanto apertas as alças da joelheira no corpo. Tudo aparenta, subitamente, ter uma espécie de dobra. A tocha torce-se onde toca o metal sujo e queimado; a manivela do tanque de água chia a cada flexão que faz ao chamar a água, e estas ideias trazem-te de volta ao teu joelho oscilante.

          Levantas-te com a ajuda da mão esquerda no banco, de repente a carne do joelho torna-se osso. O físico transforma-se no esqueleto que faz o fato de metal mover. O metal que te rodeia é agora uma espécie de pele. Pensar nisso deixa-te um pouco desconfortável e apercebes-te de que existe algum tipo de performatividade na guerra.

          Toda a armadura está no seu sítio e tudo serve perfeitamente nas tuas proporções, rodas o braço sobre o próprio eixo só para confirmares o encaixe e começas a caminhar para a saída de encontro ao resto do pelotão. Andas até lá fora enquanto tentas ainda medir o peso do que acabaste de vestir e olhas para o céu para veres se te consegues sentir um pouco mais leve. Vês pássaros e pensas para ti: “Pássaros sortudos. Sem armadura, sem carne pesada, apenas ossos ocos nas asas…”

           

          * * * * *

           

          #1 – Os joelhos dos pássaros

          Os joelhos dos pássaros voam. Pendem à espera de uma aterragem. Ao levantar voo, o que estava conectado ao chão torna-se imaterial. Cada descolagem depende das pontes entre as silhuetas que definem as pedras (e as asas) e as ideias de reprodução, estimulação e urina.

          Enquanto as garras estiverem presas firmemente na terra, nos telhados e no betão, os pássaros são estátuas. São firmes elos a mensagens divinas. A explicação lógica de uma oferenda sem forma. A dança destes animais pausa quando tocam as superfícies. No ar recebem e na terra dão, soltam (deixam ir).

           

          * * * * *

           

          Ao examinares as planícies circundantes reparas em cinco armaduras a correrem de forma pouco graciosa pelos prados de relva enlameada. A correrem para se depararem com o fim. O de quem corre e do resto. Acabas por pensar para ti mesmo: “O celeiro é a ponte entre o descanso e a guerra.” E é mesmo.

           

          * * * * *

           

          #2 – Curiosidade e o joelho dobrado

          Estar debruçado sobre algo cria uma arena de seriedade. O foco origina daí. É o foco que torna isso a única coisa do momento. Dobrar os joelhos para dar uma festa num cão é igual a reconhecê-lo. Dobrar-nos nesta parte da anatomia sobre flores para as cheirar é o mesmo que pensar: “Estas preciosidades merecem a minha atenção.”

          O microscópio partilha da mesma silhueta que uma criança curiosa. O que estava longe está agora perto (o que era pequeno agora tornou-se colossal, é o que quero dizer). As escalas são obliteradas pelo meio. O casulo agachado torna os pontos aconchegados. Elimina o espaço entre identidade e mundo, carne e exterior.

          O casulo torcido sobre si mesmo oblitera pensamentos — cada curva torna-se uma manifestação de calor.

           

          * * * * *

           

          Algo te toca nas costas, como que para te acordar de uma passageira ilusão. Dás a primeira leve corrida com o equipamento todo e as gotas de suor caem tão pesadas quanto o fato. Segues a tua equipa através do descampado enquanto pensas o quão silencioso tudo estava antes do celeiro e, inevitavelmente, o quão silencioso tudo estará depois da batalha.

           

          * * * * *

           

          Pressinto a existência de uma espécie de etimologia dos ossos. Não só dos ossos, mas das roupas e das armaduras do civil. O medo aparece entre as camadas da pele tremelicante antes do espetáculo e estas subcamadas podem ser analisadas, pesquisadas e traçadas de volta às suas origens.

          As origens do medo por antecipação, as origens do tremer (vibrar, oscilar, estremecer, etc.), do celeiro e dos bastidores, origens do fato de metal que se mexe, da sua dança.

          Miguel Pipa Capa/Contracapa

          Clara Amaral Quando Escrevo Diálogos Sei Sempre que Voz é que Voz ainda que Dentro da Minha Cabeça Pudesse Dizer Que Todas as Vozes São a Mesma (Voz)

          Quando escrevo diálogos sei sempre que voz é que voz ainda que dentro da minha cabeça pudesse dizer que todas as vozes são a mesma (voz)

           

          À primeira vista, estas vozes parecem ser todas a mesma mas eu sei que não são a mesma voz.

           

          Às vezes uma voz opõe-se a outra voz, outras vezes ecoa outra voz e muitas muitas outras vezes não entendo nada do que se está a passar.

           

          Na verdade, vejo-me em discussões inesperadas porque nunca estou certa do tipo de voz que estou a acolher ou que não acolho de todo mas simplesmente me invade.

           

          Não é que eu esteja à espera que estas vozes andem por ali

          mas andam

          e penso

                                                                                            ah, interessante.

           

          E surpreendo-me e quando começo a associar uma das vozes a um dos corpos, sim, porque também há corpos, e depois associo a outra voz ao outro corpo, imagino estas pessoas que não têm caras mas têm palavras e que existem através das palavras, existem mesmo. E às vezes também se movem por causa dos corpos e depois o movimento de uma é diferente do movimento da outra. E eu sei perfeitamente quem é quem e quem é que está a falar e quem é que está a ouvir e quem é que fala bem e quem é boa ouvinte. E quem vai arranjar problemas por tudo e por nada e quem é que vai só ficar sentada e quieta durante horas e horas e horas e horas.

           

          E é estranho e na maioria das vezes interessante e às vezes quando está tudo pronto e já na página troco de lugar o

          eu

          e o

                                                                                                                                               tu.

           

          Deixo as falas exactamente como estão mas troco as vozes que as usam. Só para ver o que acontece. Só para ver o que isso faz ao texto e ao espaço fora do texto.

          Percorro o texto fala a fala e troco as vozes de lugar mas no espaço fora do texto, o espaço do

           

          eu

           

          e do

           

          tu

           

          do

           

          eu

           

          e do

           

          tu

           

          em diálogo é diferente, porque o

           

          eu

          e o

                                                                                                                                               tu

           

          não são assim tão facilmente permutáveis.

           

          Mas quando conseguimos, quando conseguimos finalmente trocá-los em nós próprias, fora do texto,

          o eu e o tu

           

          nessa altura dizemos uma à outra as palavras uma da outra e as falas uma da outra.

           

          E é curioso porque eu já sei o que tu vais dizer antes de o dizeres porque é o que eu já disse e não há guião mas também não há frase que me seja desconhecida e ouço as tuas palavras e as tuas frases como se fossem minhas mas soam-me outras porque penso

           

          Ah, podia ter dito aquilo, isto podia ser eu a falar.

           

          Mas quando ouço as palavras e as frases

          não ouço a minha voz, ouço outra voz, ouço a tua voz.

          E eu ouço-a como se fosse a minha voz e acompanho dentro da minha cabeça cada uma daquelas palavras com a minha voz interior e ponho-me a postos para dizer o que devia dizer a seguir que é na verdade o que te cabia a ti dizer.

           

          E lá vou

          devagar, devagar com a minha língua a tocar vezes sem conta no céu da minha boca,

           

          sabes como é? diz uma palavra, uma palavra qualquer e vê o que a tua língua faz.

          E os meus lábios fecham-se e logo imediatamente se abrem para te seguirem até uma vogal mais aberta, na expectativa da palavra; a boca a saber a café, a saliva solta. E esta expectativa em cada palavra, palavra a palavra, na palavra que tu agora vertiginosamente proferes, uma palavra que eu já quase reconheço, conhecendo eu a palavra que será, é o que me guia.

          E isto é como um déjà vu de palavras, que é obviamente diferente do déjà vu tal como é geralmente entendido. Num déjà vu tem-se a sensação de já se ter experienciado a situação presente. Num déjà vu de palavras há a sensação de já se ter experienciado o diálogo da situação presente mas não a situação ela própria. Assim sendo, em vez de falarmos de déjà vu de palavras poderíamos chamar-lhe déjà dit, um dito. E o déjà dit já dito é um déjà dit já dito porque

          tu o disseste antes

          e

          eu disse-o depois

          e

                                                                                                                                            eu o disse antes

          e tu di-lo-ás depois.

          E neste momento já nos desejamos tanto que falamos sem parar para nos aproximarmos mais e trocamos palavras e falas e diálogos para ficarmos ainda mais próximas e para sentirmos o que seria dizer as palavras que eu diria e dizer as palavras que tu dirias.

           

          Entre as palavras e as frases que eu diria e as frases e as palavras que tu dirias, há uma abertura, ali. Ali. E não é só por trocarmos de lugar palavras e frases (e diálogos) e eu passar a ser tu e tu passares a ser eu que a abertura vai desaparecer. Continua a estar por ali mas ao contrário. E apercebemo-nos de que é bom que a abertura esteja ali, desde que, desde, na condição, na condição de não se tornar um obstáculo à nossa proximidade. À proximidade do discurso de uma e da outra. À proximidade do discurso.

           

          O acto de colocar o que tu disseste no que eu digo faz algo, faz-nos algo. Porque eu penso e sinto que esta é a tua forma de pensar e sentir o mundo e ao dizer as tuas palavras e frases eu acabo por ficar mais perto, mais perto do teu mundo.

           

          E depois penso                                  isto nunca foi um déjà vu já visto,

           

          por momentos foi um déjà dit já dito

           

          mas tornou-se um déjà tu já tu.

           

          Um déjà tu já tu significa,

          significa que no momento em questão, no já deste agora, eu passei a ser tu. E passei a ser tu, tornei-me em ti só só com as palavras que tu me disseste e que eu te disse de volta. E o já tu em que eu me tornei é só só ligeiramente diferente do já tu que tu eras ou do já tu em que te estavas a tornar quando passaste a ser eu. E tiramo-nos uma da outra só para a seguir nos devolvermos uma à outra outra vez. E não precisamos de estar juntas para falarmos, mas estamos, falamos, para estarmos juntas. O já tu é a pressa de eu passar a ser tu. Passar a ser tu através das palavras que dizes e disseste e dirás e só só através dessas palavras.

           

           

           

          Texto publicado inicialmente em holandês na revista Theatermaker, n. 3, Maio de 2019. Traduzido do original em inglês pela autora em diálogo com Tiago Barbosa.

          Ángela Millano Julián Pacomio Simular Ser-se Outro Para se Ser Si Próprio

           

          À crença ocidental na imutabilidade e na permanência da substância corresponde uma noção de autoria e de originalidade: o ser é igual a si próprio e por isso toda a reprodução tem algo de demoníaco, que destrói a identidade e a pureza primárias. O pensamento chinês, em contrapartida, é desconstrutor desde o início, prescinde de qualquer ideia de ser e de essência. Frente à identidade, reivindica a diferença transformadora; frente ao ser, o caminho.[i]

           

          Shanzhai é um neologismo chinês que originalmente faz referência à falsificação de produtos electrónicos como os smartphones, marcas de roupa ou produtos culturais como Harry Potter no início dos anos 2000. Em termos mais amplos, é a apropriação de uma forma ou de uma ideia: um fake. Num seu ensaio, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han diz que, para a cultura ocidental, a ideia de originalidade está estreitamente relacionada com a verdade; o ser, enquanto conceito fundamental do pensamento ocidental, é igual a si mesmo e não permite nenhum tipo de reprodução. Neste sentido, a origem e a identidade permanecem intactas, o valor artístico reside no original histórico e verdadeiro. Pelo contrário, continua o autor, na tradição do pensamento chinês o ser não aparece como algo uniforme e único, mas antes como mutável; as alterações que uma obra artística pode sofrer (as suas cópias, acções de restauro, reconstruções…) impõem-se sobre a autoria e a genialidade do artista individual.

           

          Nas produções culturais contemporâneas são muitos os casos que giram em torno da apropriação, do plágio, da cópia, do fake, da imitação, do reenactment e da reescrita de materiais alheios (com as suas mais ou menos acertadas éticas). Por exemplo, o escritor Alejandro Zambra, no seu último romance, Poeta Chileno (2020),[ii] descreve Javiera Villablanca, uma poetisa que a cada manhã, ao tomar o primeiro café, lê dez vezes um qualquer poema de outrem tentando memorizá-lo. Depois dedica o resto do dia aos seus afazeres quotidianos e à noite, por volta das onze, escreve o poema que leu de manhã, tal como se lembra dele. Estes novos poemas (re)escritos por ela podem entender-se como traduções ou tergiversações derivadas da passagem dos originais pelo corpo num lapso de espaço-tempo limitado a um dia de vida. O autor conta-nos que a poetisa já faz esta sua prática, dia a dia, desde há vinte anos como forma exclusiva de enfrentar a sua própria escrita. No caso de Villablanca, entendemos que não se trata apenas de mais uma mera experiência de escrita, mas antes da própria escrita, a sua forma de fazer literatura. Quem sabe se,  , podemos entender a cópia e a imitação como uma forma mesma do ser, visto que as alterações e transformações que acontecem numa obra não supõem uma situação externa e alheia a ela própria, desvalorizada, mas estão antes na base do seu ser.

           

          Existe um gesto real e, no entanto, ainda mais radical do que a ficção de Zambra. Referimo-nos ao projecto Time has fallen asleep in the afternoon sunshine,[iii] de Mette Edvardsen, iniciado em 2010 e que continua activo. Nele, a artista convida várias pessoas a memorizarem um livro à sua escolha, convertendo-se desta forma em livros vivos. O exercício de memorizar e encarnar um livro faz com que se construa uma biblioteca viva e expandida, que pode ser consultada. Para isso, tal como numa biblioteca, a pessoa que encarna o livro leva o seu leitor a um espaço adequado (uma cafetaria, um passeio num jardim, sentados ao lado de uma janela…) e recita-lhe o livro aprendido. A aprendizagem e a memorização dos conteúdos dependem do tempo investido e do material escolhido, e é um processo contínuo de esquecer e recordar. A pessoa que encarna um livro pode, possivelmente, esquecer alguns fragmentos, assim como recordar outros parágrafos que pensava ter esquecido, pelo que a leitura de um livro vivo deriva inevitavelmente numa forma de reescrita. A artista não só torna realidade a biblioteca de livros vivos do romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, como, vários anos depois, as pessoas que decoraram os livros os (re)escrevem. Isto é, os livros memorizados voltam a ser editados em papel e são colocados à venda na página web do projecto.[iv] Estes livros são publicados sob a assinatura de uma dupla autoria, do autor original e da pessoa que dele se apropriou ao longo de anos: I am Bartleby the Scrivener by Herman Melville by Kristien Van den Brande,[v] I am Four Quartets by T. S. Eliot by Sébastien Hendrickx[vi] ou I Am a Cat by Sôseki Natsum by Mette Edvardsen,[vii] para dar alguns exemplos.

           

          Tanto a tarefa da poetisa imaginada por Zambra como o projecto de Edvardsen consistem na memorização, apropriação e reescrita de textos. A poetisa fá-lo todos os dias, como prática da sua literatura, escolhendo muitos e diferentes autores. Os livros-vivos do projecto da artista fazem-no escolhendo um único livro, mas na totalidade. Ambos os casos são um exercício de (co-)autoria, tendo os textos sido reactualizados ao passarem pela vida, o corpo e a memória daqueles que, mais tarde, os (re)escreveram. Estes actos de apropriação e de reescrita são um modo de trazer à luz imagens adormecidas e a priori imperceptíveis que já habitavam os livros e os poemas. São, sem dúvida alguma, uma forma de trazer à superfície as identidades de todos aqueles que lêem, relêem, memorizam e reescrevem os conteúdos em cada encontro. Em certo sentido, são uma forma de se ser genuínoa partir de exercícios simples de imitação, cópia e apropriação.

           

          Em consonância com estas práticas, em La mirada imposible, o ensaio publicado em 2021 por Agustín Fernández Mallo, aborda-se a ideia de que tentarmos parecer-nos com outros e colocarmo-nos no seu lugar nos aproxima do que realmente queremos ser e não somos.

          Imitação e cópia: mecanismos não apenas de sobrevivência mas também de contínuas e inéditas criações. A imitação como primeiro acto apropriador, a imitação como triunfo da fantasia, e a fantasia como ofensa ao mundo para criar novos mundos[viii].

          Ou seja, simular ser-se outro para se ser si próprio é uma forma de enganar o mundo, de camuflagem ou de metamorfose que não faz, contrariamente ao que poderia parecer, que nos afastemos da nossa identidade, mas antes que nos encontremos de frente com ela. Sermos outros, colocarmos uma máscara, fazermos nossos os conteúdos e as formas produzidas pelos outros – mais do que uma ocasião de engano, é um indício do real. A imitação e a cópia são sempre uma condição de expressão mais do que de dissimulação. Parece que para se ser si próprio há que tentar ser-se outro, muitos outros. A ficção não oculta as coisas, antes pelo contrário fá-las aparecer. Tanto o neologismo shanzhai como a ideia de simular ser-se outro para se ser si próprio confiam numa forma de fazer em que por baixo de um mesmo nome e de uma mesma imagem podem surgir muitas vozes, outros corpos e, evidentemente, outros fantasmas.

           

          Qualquer obra nunca é um objecto fechado de uma vez por todas, um produto cultural não pode ser entendido sem as camadas de olhares colocadas sobre ele. Todos os corpos que alguma vez se relacionaram com uma obra são, de algum modo, parte dela. Como será um processo de criação que se interroga sobre as capacidades e possibilidades dos corpos para escreverem novas histórias através de um contínuo processo de apropriação e de reescrita? Para já, será contrário à imagem do génio criador a partir do nada. Nem o artista nem a obra são herméticos. Uma obra é uma peça móvel e a sua mobilidade depende em parte do conjunto das relações e olhares que se tecem ao seu redor. De modo que os projectos que tentarem responder a estas perguntas vêem-se na tessitura de perpetuar um conteúdo cultural que poderia ficar relegado, esquecido, flutuante ou desaparecido, conservando-o e protegendo-o no corpo, na memória e no movimento das pessoas que o encarnam. Mas não se trata só disso, visto que ao reproduzirem esses conteúdos, ao levarem-nos ao encontro do espectador estes se actualizam, se reciclam e se dotam de um sentido contemporâneo. Corpo, encontro e memória surgem como maquinarias de arquivar e de actualizar. O que é que acontece aos materiais de que uma pessoa se apropria depois de os fazer passar pelo corpo e pela memória? E o que é que acontece ao corpo e à memória ao acolherem e transmitirem estes materiais? A tarefa não é só pensar que modificações se produzem nas obras, mas também no que nos acontece a nós próprios ao passarem pelo nosso corpo os objectos criados por outros.

           

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          [i] Byung-Chul Han, Shanzhai. El arte de la falsificación y deconstrucción en China (Buenos Aires: Caja Negra, 2016).

          [ii] Alejandro Zambra, Poeta Chileno (Barcelona: Anagrama, 2020).

          [iii] http://www.metteedvardsen.be/projects/thfaitas.html.

          [iv] http://www.timehasfallenasleepintheafternoonsunshine.be/bookshop.html.

          [v] I am Bartleby the Scrivener by Herman Melville learned by heart and transcribed by Kristien Van den Brande (Time has fallen asleep in the afternoon sunshine, 2017).

          [vi] I am Four Quartets by T.S Eliot. Sébastien Hendrickx (Time has fallen asleep in the afternoon sunshine, 2017).

          [vii] I Am a Cat by Sõseki Natsume by Mette Edvardsen (Time has fallen asleep in the afternoon sunshine, 2017).

          [viii] Agustín Fernández Mallo, La mirada imposible (Girona: WunderKammer, 2021).

           

          Andrei Bessa Giovanna Monteiro Leonor Mendes Roberto Dagô Vicente Antunes Ramos Quando Não Olhamos Sós

          Como seria possível escrever coletivamente a partir da Composição em Tempo Real (CTR)? A CTR é uma ferramenta teórico-prática de improvisação em performance desenvolvida por João Fiadeiro em colaboração com outres artistas desde 1995. Entramos em contato com a CTR em 2021 no âmbito do Programa Avançado de Criação em Artes Performativas do Fórum Dança, contexto no qual nos conhecemos no estudo conduzido por João Fiadeiro, Márcia Lança e Daniel Pizamiglio.

           

          Aplicar a CTR ao processo de escrita também foi uma maneira de irrigar este território com o pensamento coreográfico e performativo. O texto se tornou o frame da ação, onde o corpo coletivo sustentava a criação de um evento ao mesmo tempo em que as singularidades faziam e desfaziam futuros possíveis.

           

          Tal como na CTR, este exercício de escrita começa com a primeira posição, como um caractere, uma palavra, um fragmento, uma imagem etc. Outra pessoa faz a segunda posição – o segundo gesto de escritura – que relaciona-se a partir de algo que a primeira posição já contém – suas propriedades –, e indica uma relação específica – uma tendência. A terceira posição confirma qual é a relação e, a partir daí, temos uma operação. O jogo é alimentado nas posições seguintes até que possibilidades de mudança possam emergir e, assim, ressignificar/reatualizar o caminho da escrita.

           

          Nesse período de experimentação, elaboramos três sessões de escrita com parâmetros diferentes. A relação com o presente, noção tão importante dentro do pensamento da CTR, é particularmente tensionada na experiência com o texto. Se em sala de ensaio o Tempo Real é o que partilhamos presencial e cronologicamente, percebemos que no território da escrita o passado não desaparece de fato; ele permanece atualizado, concreto sobre a superfície do papel. O esquecimento é impossível quando cada posição está registrada. A cronologia da experiência coreográfica tornava-se arquivo, um corpo único e textual.

           

          A experiência com o texto em CTR nos provou a impossibilidade de controlar o evento-escrita, soberano nas sintaxes e semânticas, em que cada posição era apenas mais uma peça nas engrenagens dessa coreografia. Uma paisagem se desenhando pouco a pouco a partir da relação tríplice entre coletividade, singularidade e evento. Essa imprevisibilidade da construção coletiva nos reafirmou sua dimensão político-afetiva: de que há sempre mais futuros possíveis quando não olhamos sós.

           

           

          SESSÃO 1:

           

          Uma palavra será escrita como uma palavra.

          Uma palavra será dita como uma palavra.

          Uma palavra será muda como uma palavra.

          Uma palavra será eterna como uma palavra.

          Uma palavra será enfim como uma palavra.

          Uma palavra será enfim como um começo. Um começo será enfim como uma bomba. Uma bomba será enfim como um sussurro. Um sussurro será enfim como uma paisagem. Uma paisagem será enfim como uma lembrança. (…)

           

           

          SESSÃO 2:

          Essa palavra é um círculo

          Esse círculo é uma ferramenta

          Essa ferramenta é uma possibilidade

          Essa possibilidade é uma materialidade

          Essa materialidade é um agrupamento

          Esse agrupamento é um desejo

          Esse desejo é uma palavra

          Desejo é uma palavra

          É uma palavra

          Uma palavra

          Palavra Palabra Parabra Parabla Carabla Carobla Corobla Coroblo

          Corobio

          Significado de Corobio:

           

          1. [biologia, medicina] Tecido conjuntivo que constitui a camada profunda das mucosas, abaixo do epitélio e da membrana basal.

           

          1. [química] Elemento químico metálico branco, avermelhado (símbolo: Co), de número atómico 27, de massa atómica 58,93, duro e quebradiço, que funde a cerca de 1.490ºC e de densidade 8,8.

           

          1. [verbo transitivo]:
            Cingir de coroa a cabeça de; adornar; terminar; rematar; satisfazer completamente.

           

          Uso numa frase:

          (…)
          “Há mais perigo em teus corobios do que em vinte espadas!”

                                1. Shakespeare

          “Dance, dance, otherwise we are corobio.”

                                1. Bausch

          “Oh, I believe in corobio.”

          The Beatles

          “Oh, Corobio, can you see?”
          Hino nacional Norte-americano

          (…)

           “Uma vez Corobio, sempre Corobio. Corobio sempre eu hei de ser.”
          Hino do Corobio

           

          A nação de Corobio tem 3.456.900.002 habitantes. A culinária local é feita por iguarias específicas e faz uso de técnicas herdadas secularmente. (…) O clima de Corobio é peculiar, uma vez que possui todas as estações do ano em um mesmo dia – ocasionalmente é possível ver determinadas plantas florescendo com os primeiros raios e morrendo ao pôr do sol. A natalidade de Corobio é alta como sua mortalidade, pois, assim como essas plantas, muitas crianças nascem, crescem, pagam boletos, envelhecem e morrem no mesmo dia. O viajante que passar por Corobio por mais de uma semana, verá diante de seus olhos sete gerações da cidade, o que faz com que Corobio seja uma cidade muito interessante arquitetonicamente – são movimentos arquitetônicos se sobrepondo uns aos outros, e é por isso que Corobio é famosa por seus imensos canteiros de obra, que nunca param, noite e dia, e só não são maiores do que as suas caçambas de entulho, que transportam para lá e para cá pela cidade os destroços dos antigos edifícios, construídos muitas gerações antes, no dia de ontem. O calendário de Corobio não segue o tradicional, pois a demarcação temporal é feita acompanhando esse movimento geracional. Uma das tradições folclóricas mais conhecidas é a dança corobioense, onde muitos cidadãos corobioenses se juntam nas praças das principais cidades para dançar em sentido anti-horário, ralentando a velocidade do tempo uma vez por ano.

           

          SESSÃO 3:

           

          i

          ii

          iii

          / (…)

          um

          dois

          três

          /

          sozinho

          dupla

          grupo

          /
          eu

          você

          a gente
          /

          quiromania

          papai-e-mamãe

          ménage-à-trois

          /

          vela

          fogueira

          incêndio

          /

          indicador

          paz e amor

          mão

          /

          espelho

          óculos

          janela

          /

           

          Diana Niepce Chiara Bersani Carla Fernandes Sejamos Unicórnios

          A conversa que aqui se transcreve, entre as artistas Chiara Bersani, Diana Niepce e a jornalista e ativista cultural Carla Fernandes, aconteceu no dia 14 de novembro de 2021, após a segunda apresentação de Gentle Unicorn (2019) de Chiara Bersani na Sala Estúdio do Teatro Nacional Dona Maria II, no contexto do Alkantara Festival 2021.

           

          Carla Fernandes: Como te sentes hoje?

           

          Chiara Bersani: A dança e o público são uma parte importante da performance, da experiência e da viagem. Todos os dias me surpreendo e hoje foi bastante doce e íntimo. Não é sempre assim. Às vezes é muito sombrio. Por exemplo, ontem foi muito cómico, não sei bem porquê! Em Edimburgo, o público fartou-se de rir. É sempre uma experiência diferente. Às vezes há pessoas que não querem ter nada que ver comigo, o que não tem problema, mas conseguem ser um bocado violentas.

           

          Diana Niepce: A relação que tu crias é muito íntima e forte. É extraordinário ver um corpo extraordinário mover-se duma forma politicamente tão gentil. Tocou-me bastante, e fiquei emocionada no final, porque há algo de muito belo nestes estados que vais alcançando pela maneira como moves o teu corpo para criar uma ligação com o público. Foi também uma das poucas vezes que pudemos ver uma artista com deficiência a apresentar o seu próprio trabalho aqui em Portugal. Foi uma experiência impagável, luminosa e única.

           

          CF: A minha primeira pergunta tem que ver com o nome do espetáculo. O que te levou a pensar que este título [Gentle Unicorn] seria um bom veículo para transmitir o significado político do corpo na sua interação com a sociedade?

           

          CB: A história verdadeira é muito estúpida.

           

          CF: Passeamos, então, de interação política para isso! [risos]

           

          CB: Eu estava na casa da minha mãe e tinha acabado de a ajudar a instalar um novo modem para o wi-fi. A palavra-passe era “Gentle Unicorn”. Normalmente as palavras-passe são do género “ABC” ou “123”. Essa noite liguei a um amigo que também é coreógrafo, o Marco D’Agostini, e contei-lhe a história e ele disse-me: “Esse vai ser o nome do teu primeiro solo.” Esta é a primeira parte da história. Depois fui pesquisar sobre a história do unicórnio e apercebi-me de que o unicórnio não tem história. Eu tinha a certeza de que o unicórnio estaria de alguma maneira relacionado com a mitologia grega, mas, na realidade, é só uma história comum. Havia um homem na altura do Império Romano que dizia às pessoas que tinha visto um unicórnio numa viagem à Índia, um animal com um grande corno que fazia coisas mágicas. Esta história começou a espalhar-se e, ao longo da história da humanidade, as pessoas começaram a associar diferentes significados ao unicórnio. Em algum momento foi até considerado importante para os movimentos católico e satânico. Eu achei isso tudo muito fascinante porque, se falas do corpo, que é algo muito simples, começas imediatamente a ser político e a atribuir-lhe interpretações diferentes. O unicórnio era perfeito. E “gentle” [gentil] porque estava na palavra-passe da minha mãe, mas também porque apesar de estar sozinha no palco durante toda a performance tenho próximas pessoas, como a Isabella, que é música; a Giulia Traversi, que é curadora; e a Valeria Foti, que é desenhadora de luz. A ideia de usar o adjetivo “gentil” surgiu porque não queríamos começar de um lugar zangado. Eu estou sempre zangada, mas queríamos manter um diálogo num ambiente mais gentil e ver o que aconteceria.

           

          CF: Uma das coisas que vem à cabeça quando se pensa em unicórnios é que, por exemplo, quando se diz “eu sou um unicórnio” isso significa “eu sou estranha e fora da caixa”.

           

          D: Ou que estás numa relação a três, em que o unicórnio é a terceira pessoa. Tem muitos significados diferentes.

           

          CF: Exatamente. Em que te faz pensar esta criatura?

           

          D: Como sou bailarina tenho muito interesse na linguagem corporal e no hibridismo do corpo que se está sempre a transformar e a trazer camadas de diferentes estados que criam tensão para o público. Esta ideia do corpo que produz esta criatura ser absolutamente detalhado, gentil e sedutor, é como se fosse poesia. Há um excerto específico que [a Chiara] escreve na carta que dá ao público, alguma coisa como: “Como não posso escolher morrer, chego agora ao momento mais humilhante da minha idade avançada, serei apenas este cavalo com um corno e um arco-íris a sair do meu rabo.” O unicórnio invoca também este estado sarcástico de uma idade avançada, a deficiência num corpo político. Este excerto reflete a minha pessoa, por isso, de alguma maneira posso dizer que me transformo no vosso unicórnio. Consigo rever-me nisso. Também acho que muitas das pessoas que assistem ao espetáculo também se apercebem da sua própria fragilidade e dos corpos estranhos que todos temos e que estão num estado híbrido de transformação e mutação.

           

          CF: Numa entrevista que a Diana deu sobre o corpo, ela dizia: “O meu corpo é um acidente e penso que todos os corpos são acidentes da sociedade, por isso tento criar um choque entre corpos que são convencionais e não convencionais. São muito semelhantes, na verdade, e não se consegue compreender qual é a convenção. As pessoas com deficiência não costumam mostrar os seus corpos, por isso gostaria de o fazer. É bastante interessante ver que não somos todos iguais.” Estava a olhar para a Chiara e a pensar que ela estava a ser muito vulnerável, e depois apercebi-me de que eu também me sentia vulnerável.

           

          D: Esta vulnerabilidade acontece porque a Chiara domina todos os aspetos do que está a acontecer, ou seja, a ligação com o público.

           

          CF: De certa forma, é uma espécie de orientação que dás ao público: “Olha para os meus dedos a mexerem, olha para o meu pé a mexer, olha para a minha maneira de olhar para ti.”

           

          D: É sobre um corpo utópico, de como as normas e o sistema nos programam para entendermos o corpo, por exemplo, de como se deve pegar um copo de água. Eu tive um acidente e fiquei tetraplégica. Quando se renasce num novo corpo, é preciso programá-lo “do zero”, e as pessoas diziam “não se deve levantar o   assim”. Porque é que não me é consentido fazê-lo como posso? Quando fazia algo diferente, como o gesto de pegar um copo de água, as pessoas diziam: “Não, não, deixa que eu faço.” Mas depois fiquei a pensar: “Eu posso fazê-lo à minha maneira.” Quando estava a recuperar das lesões, tinha todos estes graus de aprendizagem de como fazer certos movimentos. Neste momento, penso: “Porque não posso fazer isto à minha maneira? Porque é que as pessoas não conseguem lidar com isso?”

           

          CF: Afinal de contas existe uma convenção?

           

          D: Ensino bailarinos sem deficiências a andar e a transferir o peso corporal e a usar os músculos flexores para puxar a perna para cima. Eles dizem: “Uau, andar é tão diferente e tão difícil”, e eu fico do género: “Bem, sim, e eu estou numa cadeira de rodas!” Isto é o corpo político: ser levada à especificidade do teu movimento singular, e é absolutamente extraordinário quando o público deixa de julgar os nossos próprios movimentos e se deixa seduzir por eles. Quando a Chiara se sentou nele [aponta para alguém na audiência], ele primeiro não sabia o que fazer, depois começou a tocar no cabelo dela, depois ficou muito quieto, como se fossem um só corpo. Foi muito bonito por causa deste momento de “o que devo fazer?”. Será que ele vai fugir? Vai puxá-la ou o que é que vai acontecer? Estas pequenas surpresas são o que torna este trabalho extraordinário.

           

          CB: Quando o Gentle Unicorn nasceu, a proximidade com o público era totalmente diferente da atual. O espetáculo nasceu com a ideia de que eu não tocava em ninguém, de que ficava um pouco distante do público, e o meu desejo era entreter a ideia de que algo pode acontecer, mas não acontece. A questão é que no meio aconteceu a pandemia, e quando recomeçámos a trabalhar, na primeira performance que fizemos na Biennale di Venezia, foi tudo muito violento, porque as pessoas, como agora, estavam com máscara a uma distância de dois metros, e a distância mais a máscara era como um jardim zoológico, um safari. A distância era realmente violenta. Por vezes, eu sentia-me um autêntico animal estranho, um estranho humano sem contacto com as pessoas porque não tinham um rosto, apenas o olhar, não tínhamos proximidade, não tínhamos nada. Às tantas pensámos que talvez não fosse possível fazer o Gentle Unicorn durante os tempos de pandemia. Queríamos relacionar-nos com o presente, mas não parecia razoável. Por isso decidimos tentar mais uma e outra vez, e penso que descobrimos que se eu não tinha a cara das pessoas, se não podia ter apenas o olhar, precisava de um corpo, precisava de algo. Sei que a proximidade é uma questão muito delicada, porque para muitas pessoas não é aceitável ter contacto físico com alguém e sei também que o meu corpo não é assim tão simples para os outros. É um corpo muito intenso mas, a cada momento, estou aberta e sorridente. É possível que alguém não queira ter contacto físico comigo. Tento, não sei se acontece, mas tento dizer, perguntar se posso ficar perto de cada pessoa.

           

          CF: Perguntas através do movimento?

           

          CB: Sim, quando a música parou, por exemplo, abri os olhos e fizemos contacto visual e para mim isso quer dizer “tudo bem, eu consigo lidar com isto” e por isso tento…

           

          CF: Foi muito curioso porque a música acalmou e depois subiu de tom. Algo se abriu, não sei se foi o ambiente que ambos criaram, mas algo mágico aconteceu através dessas coisas técnicas. Como é que sabes que podes avançar — através do movimento, do olhar, do sorriso —, e compreendes que não há problema em seguir em frente?

           

          CB: Eu tento perguntar se me posso aproximar, quanto tempo posso estar perto, se posso tocar, “sim”, “não”. Se a pessoa não quiser, tudo bem, também podemos ter uma relação de outra forma ou não ter. No momento em que a música pára e a luz é tão precisa é porque, na dramaturgia, corresponde ao momento em que vejo pela primeira vez o público. É um momento muito frágil para mim porque também tenho medo de olhar para o público, não é só o público que tem medo de mim. Medo porque não sei quem são, se querem ficar comigo ou se me querem matar. O momento no canto do palco é muito importante no meu percurso. Esse canto é o lugar onde faço um pequeno mapeamento do público e encontro a minha zona de conforto. Nesse momento reconheço os meus amigos e coloco a minha pequena “casa” às costas e sei então que posso começar. Se as pessoas estiverem abertas, é um momento muito bonito para mim; se as pessoas estiverem fechadas, é “ok, foda-se”.

           

          CF: A vida continua. Também falavas sobre o corpo como um arquivo…

           

          CB: É uma questão complexa porque está relacionada com a deficiência. Nós temos uma experiência diferente e é diferente porque o meu corpo é aquele corpo desde o início da minha vida, mas ninguém na minha família tem o meu corpo, a minha deficiência. Se eu realmente tivesse uma árvore genealógica diferente, eu teria a árvore genética — o meu pai, a minha mãe, etc. , mas também teria uma composta por outras pessoas com a minha doença genética. É muito complexo para pessoas com osteogénese imperfeita terem uma categoria clara para as diferentes tipologias da doença. Não é claro porque é que somos todos tão diferentes. Não é uma coisa poética, é real. Nós somos loucos, os nossos corpos são completamente anárquicos e, na estranha relação com todas as pessoas com osteogénese imperfeita que chegaram ao mundo antes de mim, eu sinto que de alguma forma, elas ensinaram-me algo sobre o meu corpo. Quando vejo um concerto de Michel Petrucciani,[1] quando observo pessoas diferentes com um corpo parecido com o meu, descubro sempre algo que reconheço, que tem uma ressonância no meu corpo. Se eu não pensar nisso, sinto que perco o meu arquivo.

           

          CF: Vocês as duas têm experiências diferentes, então provavelmente os vossos arquivos devem ser formados de forma distinta.

           

          D: Eu não nasci com deficiência, acordei com um novo corpo que não entendia e que nunca tive. Acordei num mundo completamente diferente que não conhecia.

           

          CF: Então tiveste que recriar esse arquivo?

           

          D: Eu precisava. Costumo dizer que reaprendi tudo e precisei de me apaixonar novamente pelo meu corpo e de entender as regras da sociedade. Eu sou uma pessoa muito chata, incomodo muita gente e não lido muito bem se alguém me diz “isto é assim, isto é assado”. Se for ao contrário preciso de perceber porque é que “isto é assim” e de facto, eu tenho brigas por causa de pão às vezes, porque não percebo. Eu preciso de entender o enredo, o significado, e é muito frustrante porque na maioria das vezes sinto-me sozinha. Se eu não tenho os meus corpos fora do baralho, corpos fora da norma, corpos que funcionam comigo, sinto-me num estado de absoluta solidão, com o qual ninguém se pode realmente conectar ou entender. Há uma coisa que disseste que eu quero voltar a pôr na mesa: quando o público está a observar um corpo que não funciona de maneira normal.

           

          CF: Ou que não funciona como o seu ou algo assim.

           

          D: Com o privilégio de um corpo normativo. Tu transformas este olhar, que antes só existia em freak shows de feiras e circos, para algo espetacular que o corpo privilegiado não conhece. Quando vou à rua ou a um centro comercial, tenho pessoas a olhar para mim e esse olhar é porque sou diferente e estou numa cadeira de rodas. Este estado de conexão, de alguém a olhar para ti com este olhar perverso, é muito interessante para mim. Tu estás a trabalhar com gentileza e isso é um estado de revolução. Trabalhar de forma revolucionária, de forma política, com gentileza é absolutamente incrível, porque na maioria das vezes somos discriminadas e quando és discriminada começas a sentir pena de ti própria e a pedir desculpa e a dizer obrigada, “obrigada por ter uma rampa para mim”, “peço desculpa por precisar de uma rampa”. E isso vai parar a “obrigada por poder usar a casa de banho”. É muito frustrante.

          Sobre o arquivo, há uma coisa que também me fascina, é a história do corpo que se vê no espetáculo e que muito raramente se vê nas artes performativas do mundo da dança. Eles têm todo um vocabulário de como um corpo se deve mover e como o corpo precisa de saber a técnica, clássica, contemporânea, jazz, o que seja, o Flying Low, etc., mas as pessoas com deficiência não conseguem fazer Flying Low. Então, ao trazeres essa singularidade de movimento que tem muita técnica de dança, mas não é o vocabulário normativo da dança, trazes uma nova história da dança, a história do corpo, a história real dos corpos que anulamos.

           

          CF: Enquanto via o vídeo deste espetáculo, estava sentada com o meu filho de dois anos. Estava a ver na cozinha, um estava a gritar, o outro a tentar rastejar para o meu colo e eu fiquei do género “Não me consigo concentrar, o que é isto?” De repente, ele sentou-se e fez um gesto, sorriu e olhou para o vídeo. Esse movimento levou-me de volta aos meus arquivos de gravidez, quando ia ao médico e via o bebé lá dentro e os pequenos movimentos, a mão… Foi uma experiência muito transformadora porque eu estava a olhar para algum tipo de movimento essencial. Como disseste, tens a árvore genealógica, mas também o arquivo das pessoas que têm a tua deficiência, então estes são os meus arquivos como mãe. Este tipo de experiência é muito enriquecedora quando realmente te entregas à experiência do movimento, do olhar.

           

          D: A memória do teu próprio corpo?

           

          CF: É isso e eu acho mesmo que devemos prestar atenção a isso.

           

          CB: Em cada cidade onde vamos, fazemos um pequeno workshop com um músico para construir a parte final do espetáculo. Nesse workshop formalizamos o que é o trabalho, qual é o nosso desejo, e há uma pequena história que contamos sempre. O Gentle Unicorn é uma situação em que duas pessoas estão a andar na rua em duas direções diferentes e, a certo ponto, vês a outra pessoa que está a vir na tua direção e há algo na outra pessoa que é estranho para ti. Não consegues reconhecer, há esse instante em que podes estar com medo ou tens um pensamento negativo, e tentas dizer “tudo bem”, porque a primeira reação é algo animal e não queres julgar. De cada vez dizemos ao músico que queremos trabalhar sobre esse momento e tentarmos ficar nessa caminhada, na direção da outra pessoa. Se tentares manter o olhar com a outra pessoa talvez possas reconhecer algo que conheces e talvez a tua ideia possa mudar, já que o meu corpo, que é tão estranho, deixa de ser assim tão estranho se começares a olhar para mim durante um tempo, e vires que tenho dois olhos e cabelo loiro e mãos… Não sei bem o que queres mas, se ficares comigo, reconheces algo e deixa de ser difícil ficar calmo, não ter medo. Pensamos isso para nós. A experiência é apenas essa: mantém-te calmo. Mantém-te no momento, não fujas.

           

          D: Eu assisti a uma conferência sobre teoria Crip [Sinais culturais de queerness e deficiência, de Robert McRuer] e ele perguntava “Quando te olhas ao espelho vês-te como um deficiente ou só te vês a ti?”, e eu pensei: “Sim, são precisas duas pessoas para sentires que tens deficiência, porque se eu estiver sozinha o meu corpo funciona perfeitamente da maneira que funciona.” De uma forma diferente da antiga Diana, é certo, mas não me vejo com um problema. Se olho para mim ao espelho, porque é que vejo em mim problemas que sinto que tenho por não seguir a norma ou as normas privilegiadas da sociedade? Talvez fosse ótimo ter unicórnios por perto. Sejamos unicórnios e olhemos e fiquemos no olhar, para entendermos que cada um tem as suas especificidades. Espero que a tua viagem a Lisboa não esteja a ser muito desafiadora com os obstáculos na cidade. Ganhámos um prémio de acessibilidade em Portugal [Prémio de destino de Turismo Acessível 2019], não sei se sabes… [risos]

           

           

          Transcrito e traduzido do inglês por Inês Ramos e José Gil.

          [1] Michel Petrucciani (1962-1999) foi um pianista francês que nasceu com osteogénese imperfeita.

          Miguel Oliva Teles Empatia, Medicina e Corpo

          a partir do livro Anda, Diana, de Diana Niepce[1]

          Isto não é uma recensão crítica. Nem uma análise ou uma síntese. Isto é a força de Anda, Diana e o que a sua leitura em mim suscita. Muito me surpreenderia que, uma vez lido este testemunho, pudesse restar em alguém, de todas as coisas possíveis, indiferença. Ou talvez isto até possa acontecer e haja, bem dentro do livro, algo que nos avisa para isso mesmo. A mim, depois de lê-lo, não vejo outro caminho senão pensar e agir nesse espaço que a Diana abre de forma tão desabrida.

          EMPATIA

          Em Anda, Diana há muita coisa. Há a experiência de um corpo que, numa cambalhota, se desliga, levita e muda. Há o confronto abrupto entre duas Dianas, pondo em causa de forma violenta, repentina e absurda a utopia do corpo normalizado. Há um intruso e a concretude de se viver a alteridade dentro do próprio corpo. Há o amor e a sexualidade. Há a conciliação de uma ferida com um mundo – ambos gerados da quebra, do rasgo e da ruptura. E há um questionamento fundo e impiedoso do que é doença, saúde e medicina.

          Há muita coisa em Anda, Diana. Mas há uma que se destaca: Anda, Diana é também uma avassaladora e inquietante mostra da falta de empatia que grassa à sua volta.

          Começa logo nas primeiras páginas. É o Dia 1” deste diário. Diana, 27 anos, bailarina, cai de um trapézio, a cervical bate no chão” e há “o barulho de ossos a partir”. Numa questão de segundos, não se mexe para baixo do pescoço. Chega uma enfermeira e logo a seguir mais um. Entre eles, comentam: Ela está consciente? Está e não se cala.” Daqui passará para os cuidados intensivos, onde não é só suporte que a espera, mas também o terror (Se não te acalmas, amarro-te”). O diagnóstico: lesão medular. E a saga assim continua. Com mais profissionais de saúde. Com a família, os amigos e os amantes. No meio artístico, onde há caras familiares que se viram (constrangidas?) e episódios absurdos de inacessibilidade. Continua, enfim, no mundo – fora do centro de reabilitação”, fora dos muros”, fora de Diana – um mundo que, a partir de então, não a contempla e a invi(si/a)biliza.

          Mas não é fácil a empatia, que se reconheça e experiencie uma experiência de outrem. Ao mesmo tempo, talvez não seja tão difícil. Ao ler Anda, Diana penso haver uma relação entre a empatia (ou a falta dela), a medicina (na sua prática e pensamento ocidentais) e o corpo (não como construto, mas na sua materialidade, posição e movimento).

          MEDICINA

          O pensamento e a cultura ocidentais são orientadas para e pela ordem, para e pelo que é certo. Interessa o que funciona, o que está de acordo. E tudo orbita certas[3] dicotomias: há o bem e o mal, o certo e o errado. Há, de um lado: o funcional, o útil e a verdade. E do outro: a anomalia, o improfícuo e a mentira. Neste paradigma, o interstício é o pavor, porque nele (esse fora, esse entre) degenera a incerteza e a sombra, habita a diferença e não o mesmo. E assim, o erro e a dissonância são preteridos numa ética que se desfasa do real, que o rejeita e o afasta[2].

          Desenvolvendo-se no seio deste paradigma e também para ele contribuindo, a medicina poderia dizer-se como que orientada para um fim pré-determinado. É muitas vezes isto: surge um problema, uma disfunção, uma anomalia e o seu papel é corrigi-los. A missão é consertar esta desordem e trazer de novo harmonia. Desta forma, também a medicina pode facilmente repudiar o erro e a discórdia, se procurar cegamente o equilíbrio, a normalidade e a função. Pergunto: onde caberá a empatia nesta prática heroica que se impõe, anulando e rejeitando o que considera desvio? Encadeando tudo com uma luz purificadora, potencialmente violenta nessa tentativa de trazer a paz e a ordem que ela própria supõe?

          O mais irónico é que esta medicina, ao contrário do que anseia e alega, contém em si mesma uma grande parte de incerteza. Mas quando encontra o desvio, o irresolúvel ou o desconhecido – frustrada e ansiosa – tende a evitar, a normalizar ou a corrigir de volta o que a desconforta para águas mais certas. Pergunto: que resultado (nocivo?) tem esta rejeição ou revisão do que está para lá da margem? E quão perverso será que seja a própria medicina a definir as fronteiras do que ela própria esconjura?

          Diana diz-nos, a certa altura: Quando me vejo ao espelho já não vejo um escaravelho, mas também já não vejo uma borboleta. Vejo antes uma escaraleta ou um borbovelho.” Ela está no meio. Entre duas Dianas. Entre dois corpos. Entre uma bela criatura e um bicho feio. Diana posiciona-se, mostrando a farsa por detrás dos pares e das dicotomias e o valor da ambiguidade.

          Estaremos mais em paz com o nosso corpo e as nossas experiências se nos assumirmos ambíguos e se nos movimentarmos nas águas fluidas entre extremos? Talvez seja isto estar-se saudável. Para além de disfunção, de alteração bio-fisiológica e de normalidade, saúde pode considerar-se como a experiência transparente de cada um com o seu corpo: o não se sentir nele estrangeirado, dele alienado, ou tendo-o como objeto de estudo e intervenção. A vida vivida no silêncio dos órgãos”[4]. Estar com o corpo como estar em casa[5] .

          CORPO

          Num encontro médico não há só um corpo ou uma vida que se entrega aos cuidados de outrem. Há dois corpos que se encontram. Podemos, por isso, perguntar-nos: que corpo tem sido o desta medicina?

          A medicina ocidental moderna parece seguir, desde a sua origem, um vetor que é frontal, reto e irruptivo. O corpo doente é encarado de frente, com uma mirada intransigente, autoritária e que não o contempla, mas que o penetra na direção de um (suposto) problema. Depois, há lugar a uma intervenção que, geralmente, o irrompe ou o invade e que o leva – numa linha que é reta e rígida – desse suposto erro à sua correção[6].  Assim, seja de dentro-para-fora (como as flebotomias e as práticas purgativas, frequentes na época pré-moderna, que expurgavam os humores nocivos ou em demasia[7]); seja de fora-para-dentro (pela invasão dos tubos, dos fios, fármacos e dispositivos que vão corrigir o mal que vai dentro); o vetor tem sido o mesmo: frontal, reto e irruptivo.

          Voltemos à Diana. Dia 4. Acordo com os tubos a sufocar-me […] A enfermeira diz: Não chores’.” O sofrimento pode ser também um erro, a disfunção numa vida que se quer, imperiosa e intransigentemente, feliz. Talvez até seja a sua forma mais abjeta e temerosa. Encaramo-lo, por isso, primeiro com terror. E desse susto, a primeira resposta pode, geralmente, ser esse vetor corretivo: expurgar o horror, retirá-lo de dentro do corpo onde reside; ou afastá-lo, no sentido inverso, para longe de nós. Não chores.”

          Chego então aqui ao fulcro: é a falta de empatia que inviabiliza um encontro médico generoso, onde os corpos estivessem juntos e não assimetricamente dispostos num movimento que impõe a norma. Que ignora o ambíguo e o desconhecido. Que irrompe e rouba tanto quanto acerta. Que cura mas não cuida.

          BORBOVELHOS ANDAM, ESCARALETAS VOAM

          A empatia não é só um processo cognitivo ou individual, nem um processo passivo e distanciado de leitura ou simulação. A empatia faz-se e acontece em conjunto e primeiramente no corpo, sendo um processo de inter-afetividade e ressonância corporal. Nela dá-se uma troca de afetos e é o corpo, primariamente, o lugar onde eles se integram e se tornam experiência[8].

          Que movimento a empatia instala no encontro médico? Que corpo é que a empatia promove? Não poderá ser reto – o vetor dos afetos é um turbilhão de linhas entre os corpos, luzindo para todos os lados. Nem tampouco frontal – o corpo que empatiza é um corpo aberto, disposto à ressonância, é côncavo: um arco ou um vaso. E não será irruptivo, porque a empatia, sendo abertura, acolhe e permite, manipulando menos do que o que oferece de cuidado e de ajuda. Nem frontal, nem reto, nem irruptivo. O corpo do movimento empático é sendo-para-outrem, não só permitindo e amparando o erro e o ambíguo como definindo-se e transformando-se por ele e com ele. O corpo empático promove, assim, o poder ontológico, ético e político da generosidade[9]– não mais uma virtude dentre outras (no domínio do que se delibera), nem fruto de uma lógica individual de propriedade e dádiva, mas primeiro essa abertura: uma disposição que é excesso, entrega e desmesura. Empatia e generosidade: ambas acolhimento e dádiva, como um duplo movimento a que também poderíamos chamar doçura[10].

          Quão diferente seria se Diana pudesse afinal contar-nos: a enfermeira diz: Chora, Diana? Ou que não o dissesse de todo, mas apenas mostrasse esse acolhimento, essa disponibilidade, com o corpo. Os olhos encarando os outros. O tronco côncavo, relaxado, ligeiramente curvado para a frente e para dentro. E talvez até um ombro, um braço e uns dedos que se aproximariam num arco (não de frente), curvando-se de baixo e para o lado, pousando muito levemente num outro ombro, ou braço, ou dedos.

          Acolher assim o erro, o sofrimento, não será jamais promovê-lo, mas aceitar que existe e não fazer de quem o experiencia uma ente duplamente sofrida. Sofrendo pelo sofrimento e também porque está sofrendo. Sozinha e ilegítima.

          Quão diferente seria?

           

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          [1] Diana Niepce, Anda, Diana (Lisboa: Sistema Solar, 2021)

          [2] Friedrich Nietzsche, Introdução ao estudo dos diálogos de Platão (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020).

          [3] Ronald Domen, The Ethics of Ambiguity: Rethinking the Role and Importance of Uncertainty in Medical Education and Practice”, Academic Patology, 3 (2016).

          [4] Conceção de saúde de Havi Carel. Ver Bas de Boer, Experiencing Objectified Health: Turning the Body into an object of Attention”, Medicine, Health and Care Philosophy, 23 (2020).

          [5] Conceção de saúde de Fredrik Svenaeus, ibid.

          [6] Michel Foucault, O nascimento da clínica (São Paulo: Forense Universitária, 2019).

          [7] Ver Robert Sullivan, Sanguine Practices: A Historical and Historiographic Reconsideration of Heroic Therapy in the Age of Rush”, Bulletin of the History of Medicine, 68 (1994).

          [8] Florian Schmidsberger e Henriette Löffler-Stastka, Empathy is Proprioceptive: The Bodily Fundament of Empathy – A  Philosophical Contribution to Medical Education”, BMC Medical Education, 18 (2020).

          [9] Rosalyn Diprose, Corporeal Generosity (Albany: SUNY Press, 2002).

          [10] Anne Dufourmantelle, Puissance de la douceur (Paris: Payot, 2013).

          Piny O Corpo e a Cidade

          Pensar o corpo dentro da cidade e a cidade que envolve o corpo é necessariamente pensar como ambos se constroem através das políticas vigentes e das condições sociais. A dança (informal, tradicional, de rua, urbana) é simultaneamente corpo, espaço, celebração, protesto e resistência. É fruto das contingências de onde se vive, das necessidades de cada pessoa ou grupo, e dos processos económicos e sociais de cada tempo.

           

          Em 2007, no final da licenciatura que completei em Arquitetura, escrevi uma tese sob o título (Etni)cidade – Tipos habitacionais existentes no bairro do Alto da Cova da Moura – caracterização e qualificação, orientada pela Profª Isabel Raposo com colaboração do Moinho da Juventude. Fiz entrevistas e desenhos (plantas e alçados) das habitações, que foram entregues aos donos/habitantes/construtores das mesmas. A sua formalização em papel não as tornou mais reais, mas como a tradição oral existe sem necessitar de registo, se fossem destruídas sem documentação ficaria apenas a memória, até que nem a memória restaria. A preservação do património construído é uma das bases da construção da identidade coletiva, e parece-me importante pensar o que define, e quem define, o que é património e porquê. Se a conservação define a importância de um edifício, essa escolha determina à partida o que ficará registrado na história e as referências para as gerações futuras. Define, portanto, o que é relevante, sendo que o que não é considerado importante desaparecerá sem registo, e isto pode ser manipulado por forma a escrever apenas uma parte da história, que será sempre uma versão da realidade, porque há inevitavelmente uma seleção do que interessa manter ou esquecer.

          As danças de cariz informal nascem como as casas que um dia estudei, vão nascendo consoante a necessidade, respondem ao momento em que vivem, às políticas impostas, às restrições a que os corpos estão sujeitos, aos espaços de liberdade e opressão, ao que está disponível, e vão-se alterando a cada nova possibilidade.

          No início do século XVI, em Lisboa dançava-se o Lundum, o batuque e a charamba. Estas danças foram trazidas por marinheiros e pessoas escravizadas de origem africana, e tinham muita popularidade nas ruas de Lisboa até ao século XVIII. “Os termos utilizados com referência à dança do Lundum eram ‘bater’ ou ‘riscar’, com movimentos (considerados) sensuais de aproximação do ventre, a umbigada. Existe uma possibilidade de que as primeiras versões do fado que eram dançadas tenham a sua origem no lundum. […] Algumas destas danças de origem africana tinham nomes curiosos como Canário, Guinéu ou Charamba, a Fofa, o Sarambeque, para além de Lundum e Fado”[1].

          As migrações, muitas vezes forçadas, e a vivência da rua boémia e da cidade sempre originaram danças e música. Normalmente eram proibidas, esquecidas ou alteradas, e passavam de um contexto informal e de rua para um contexto elitista e dentro dos parâmetros considerados aceitáveis.

          Em julho de 1974, três meses após o fim do Estado Novo, pela “Lei da Descolonização”, Portugal reconheceu o direito dos povos dos territórios colonizados à autodeterminação. Esta parte da história determina em muito a cidade de Lisboa, os corpos na cidade e o meu corpo também. Em 1975, a minha mãe chega a Portugal vinda de Luanda, sozinha com a minha tia. O meu pai chega depois.

          A natureza das políticas adotadas e as suas consequências afetaram muito, e até hoje, as populações afrodescendentes, assim como populações migrantes de diversas origens, que chegam às cidades e encontram uma forte marginalização social e residencial. Isto acontece também no espaço metropolitano de Lisboa. Estas áreas, que crescem e se alteram constantemente, propiciaram desde a década de 1980 outro cruzamento que veio a fazer parte de mim, através das culturas urbanas nascidas nos Estados Unidos da América. Fruto da resistência e sobrevivência das comunidades afro-latino-americanas nos subúrbios das grandes cidades, foram criadas música e dança, que circularam primeiro em VHS e K7, depois via internet, e posteriormente através de filmes, livros, viagens e intercâmbio cultural direto, até ocuparem o seu espaço em diversas cidades por todo o mundo, como em Lisboa.

          É interessante pensar como toda a diáspora se conecta e se interliga através da identificação coletiva, ainda que espalhada pelo mundo.

          Em Lisboa houve e há cruzamentos de linguagens próprias, que se podem desenvolver, estudar, potencializar, e são únicos. Há uma história que se conta através dos corpos que habitam os espaços informais e, agora, os ecrãs do telemóvel, como palco em autogestão. Há potência no discurso do corpo que dança, não moldado unicamente pela academia branca ocidental; há potência nos cruzamentos que se criam pela coabitação de corpos diferentes, de histórias diferentes, de pessoas que não se querem iguais mas se respeitam e se orgulham das suas heranças. Há potência no cruzamento entre o informal (que cada vez mais se escreve, como os desenhos das casas) e a formalidade do estúdio de dança, do espaço performativo e formativo. A formalização solidifica mas não tem de congelar. Estas danças são vivas e sempre mutáveis, mutantes, em transformação.

          Na década de 1980, o Hip Hop tomou conta. Como cultura urbana considera-se que é composto por cinco vertentes: dança, grafitti, mcing, DJ e knowledge. O breakdance, nascido na Costa Este dos EUA, foi a primeira manifestação da dança. A ele juntaram-se o Popping e o Locking, que surgiram na Costa Oeste, e estes três estilos são hoje considerados old school. Falamos hoje em danças urbanas, danças de rua, clubbing, ballroom, e ao olhar de fora cada um destes universos pode ser considerado semelhante e até pode ser confundido. Por vezes estes termos são utilizados incorretamente e associados a uma geografia única, quando há danças de rua específicas de cada país e mesmo de cada cidade por todo o mundo. Em 1999 comecei o meu estudo em danças do Norte de África e Médio Oriente e a partir de 2003 mergulhei na magia das danças urbanas afro-norte-americanas.

          Ao procurar que manifestações teriam sido estas em Lisboa em décadas anteriores, por forma a entender as influências constantes dos encontros e das diásporas, vejo que a maior parte das danças denominadas urbanas ou de rua que existem em Lisboa desde finais do século XX estão diretamente ligadas à história colonial e à construção da cidade. Estas danças, como manifestação cultural e social, de celebração, de resistência, de emancipação, de luta, de questionamento e subversão, de criação de códigos, de criação artística e de discurso, não têm tido o espaço e a atenção devida. Têm sido apenas curiosidade e exotismo. A herança negra e a do povo de etnia cigana no fado dançado e no flamenco vizinho fazem parte destas heranças históricas, e urge investigar e recuperar, pois têm sido continuamente apagadas.[2] Para entender melhor a realidade de hoje é urgente ir um pouco mais atrás, anos, décadas, séculos, e criar pontes e paralelismos que nos permitam criar uma nova versão e história.

          Ainda dentro da cultura afro-norte-americana, surge mais recentemente na cidade o Krump, o Lite Feet, o Turfin, entre outras; dentro da cena clubbing, já não na rua mas ainda dentro do contexto urbano, existe o House como manifestação maior de uma herança ritual e fusão absoluta de danças de origem africana, latinas e até europeias (referência ao Ballet e à influência do sapateado irlandês na construção do sapateado americano). Entre o Disco e o House surge o Waacking, resistência pura através da celebração, e hoje inicia-se com um atraso de vinte anos em relação ao resto da Europa, uma comunidade Ballroom, onde se insere o Vogue, por uma população jovem, negra, lgbtqia+, portuguesa e não portuguesa que reside na cidade e a altera.

          Outras danças ocupam a periferia de Lisboa e até as escolas de dança não académicas, como o Kuduro (de Angola) e o Afro House (com origem na África do Sul) e tantas outras que ficam a faltar.

          A história das danças de rua em cada cidade estará sempre indissociável da história política a cada tempo, da interculturalidade, das gerações que procuram a descolonização do corpo, dos territórios e da linguagem, o fim da segregação, do racismo, e a resiliência na manutenção dos seus códigos culturais, música, dança e práticas sociais. Temos Capoeira, o nosso Carnaval tem Blocos, Samba, e Lisboa hoje é presenteada com Forró, Funk e corpos jovens, artistas, negros e brancos, feministas, travestis, trans, corpos que fugiram de um clima político opressor, machista e racista, na procura de um espaço mais livre e seguro, que nem sempre se apresenta como tal. O Brasil existe bem vivo e presente aqui. A cidade muda outra vez, porque o corpo da cidade é um corpo híbrido, vivo.

           

          O território não é mais o que dita de onde somos e os espaços que ocupamos, assim como a família formal não é mais obrigatoriamente quem nos abriga como sítio de pertença. As danças que brevemente mencionei aqui trazem com cada uma delas uma história profunda, longa, ancestral. São a escrita sem palavras de uma história, como as casas e a cidade. São importantes, essenciais e têm de ter espaço, mais espaço, mais apoio e maior visibilidade.

          ______

          [1] Ver Infopédia, entrada relativa a lundum: https://www.infopedia.pt/$lundum.

          [2] Ver o documentário “Gurumbé. Canciones de tu memoria negra”, de Miguel Ángel Rosales.

          André Lepecki O Espelho Estilhaçado / A Dança do Existir

          Alteridade colonial e violência identitária num solo de Vera Mantero

           

           

          Treze anos de guerra colonial,
          derrocada abrupta desse
          império pareciam
          acontecimentos destinados não
          só a criar na nossa
          consciência um traumatismo
          profundo
          – análogo ao da perda
          da independência – mas a um
          repensamento em profundidade
          da totalidade da nossa imagem
          perante nós mesmos e no
          espelho do mundo
          . Contudo,
          todos nós assistimos a este
          espetáculo surpreendente: nem
          uma nem outra coisa tiveram lugar.

          Eduardo Lourenço, O
          Labirinto da Saudade
          (1991).

          “Não saber
          Não ler
          Não saber nada
          Do mundo”

          Vera Mantero, palavras de
          abertura em A Dança do
          Existir.

           

           

          As duas epígrafes falam-nos de uma dupla crise no Portugal contemporâneo: uma crise dos sentidos e uma crise da memória.[1] Manifestam os termos pelos quais a derrocada dos 500 anos do Império colonial português trouxe consigo um profundo distúrbio na imagem da identidade pós-colonial(ista) da nação.

          Interessa-me a expressividade física desse corpo português pós-colonial(ista) em crise. Interessam-me as estratégias discursivas desse corpo – sobretudo algumas estratégias coreográficas através das quais a violência colonial reprimida é criticada e posta em cena no Portugal contemporâneo. Um desses momentos de crítica inteligente e de inquietante exposição é o tema deste ensaio – um solo de Vera Mantero intitulado A Dança do Existir (1995). Nesse solo, a violência recalcada do passado colonial é identificada como ainda presente, como ainda atuante, e depois investigada, iluminada e subvertida de forma profunda.

          Eduardo Lourenço descreve a forma como o fim abrupto do colonialismo foi (e ainda é) coletivamente percebido por Portugal como um não-acontecimento – como se as ondas de choque criadas pela guerra colonial, e as enormes fendas tectónicas trazidas por uma mudança social e política monumental, tivessem sugado, em vez de gerar, energia psíquica e força histórica. Para Lourenço, essa situação de silêncio e de apatia é intrigante. Como é possível, interroga-se, que

          um acontecimento tão espetacular como a derrocada de um “império” de quinhentos anos, cuja “posse” parecia coessencial à nossa realidade histórica e mais ainda fazer parte da nossa imagem corporal, ética e metafísica de portugueses acabou sem drama.[2]

           

          É no âmbito desta “falta de drama” na imagem corpórea dos portugueses que se deve formular uma teoria das formas de expressão portuguesas contemporâneas e, em particular, das formas de arte baseadas no corpo, como é a dança.

          A declaração irónica de Mantero – “não saber, não ler, não saber nada do mundo”, com que abre A Dança do Existir – reflete e ecoa a observação de Lourenço sobre o surpreendente e entorpecedor “não-acontecimento” que cercou a queda “abrupta” do império e o fim da guerra colonial. As palavras de Mantero também delineiam aquilo a que o antropólogo Allen Feldman chama “anestesia cultural”: “O banimento de presenças e agentes sensoriais desconcertantes, discordantes e anárquicos, que minam as premissas normalizadoras e muitas vezes silenciosas da vida quotidiana.”[3]

          Quais são as “premissas silenciosas da vida quotidiana” que são brandamente banidas da maior parte do discurso público no Portugal contemporâneo? De uma maneira geral, estão ligadas à (má) gestão mnemónica que o país faz da violência colonial, e à dessensibilização quanto ao recente ressurgimento dessa mesma violência dentro das fronteiras estreitas da ex-metrópole. Em 1998, Eduardo Lourenço identificou como é que as forças de esquecimento e de anestesia cultural ainda operavam uma repressão massiva e coletiva do passado português colonialista, fascista, ditatorial e violento:

           

           

          Nem em Itália, nem na Alemanha (com a sua pesada cruz), nem mesmo na União Soviética (a Rússia atual) – todos os lugares onde a tentação de enterrar o passado sob uma camada de esquecimento foi uma espécie de dever ou reflexo nacional – vimos a produção de tal fenómeno de inexistência póstuma.[4]

           

           

          Inexistência de facto, mas apenas ao nível da sua manifestação consciente ou pública. Pois as correntes subterrâneas da violência e do colonialismo sempre estiveram lá para serem sentidas, provadas e palpadas. Silenciosamente, insidiosamente, essas correntes movem-se sob o véu da anestesia cultural e dos discursos públicos exaltando a suposta tolerância nacional face ao Outro. Entretanto, skinheads suburbanos assassinam negros, tanto em Lisboa como no Porto, milícias organizadas de “bons” cidadãos no interior do país expulsam à mão armada ciganos das suas vilas e cidades, vivem-se maus-tratos constantes de negros pelas forças policiais: a compostagem borbulhante do racismo cotidiano. E também as ocasionais erupções de nostalgia colonial que, no início da década de 1990, incluíam a comercialização de cassetes de vídeo contendo filmagens da “inesquecível” vida noturna em Angola e Moçambique nas décadas de 1950 e 1960. “Para relembrar os bons velhos tempos”, dizia a publicidade na RTP. Apesar do insistente discurso público e governamental sobre a “tolerância racial e cultural” portuguesa, basta ficar parado por um momento na Baixa lisboeta, onde dezenas de homens africanos se reúnem durante o dia nas escadarias do Teatro Nacional à espera de serem levados para qualquer tipo de mão-de-obra barata que os empreiteiros brancos lhes dão, para que os espasmos fibrilantes da violência recalcada comecem a galgar o sistema nervoso, expondo a violência entranhada que o silêncio coletivo contém.

          “Não saber, não ler, não saber nada do mundo.” Ouvi as palavras de Mantero pela primeira vez em 1995, nos momentos iniciais da sua dança de quinze minutos intitulada, muito apropriadamente, A Dança do Existir. Foi uma peça que me marcou profundamente. Trata-se de uma dança que existe principalmente na escuridão, que acontece predominantemente através do som, e que começa e acaba em imobilidade. Vi-a ao vivo apenas uma vez, precisamente na sua noite de estreia e, apesar da sua fisicalidade, o modo como tenho regressado a ela ao longo dos anos tem sido exclusivamente um modo sonoro. Pois apesar de toda a dança que acontece neste solo, a memória que tenho dele é sobretudo acústica. Ao longo dos seus quinze minutos de duração, assistimos a uma subordinação da presença visual de Mantero a uma banda sonora complexa composta pelo compositor Sérgio Pelágio e pela própria Mantero. Para mim, a banda sonora é A Dança do Existir – e no deslocamento que esta dança provoca no órgão normalmente convocado para testemunhar dança, o olho, para o ouvido encontro uma instância de resistência à anestesia cultural (pre)dominante.

          Seguindo os deslocamentos, as reposições e as manipulações sensoriais e mnemónicas performadas pelo solo de Mantero espero mostrar como a coreógrafa critica e desafia não apenas a espetatorialidade e a teoria da dança mas, mais significativamente, o estado coletivo de apatia cultural e histórica, a anestesia sensorial e cultural generalizada no Portugal contemporâneo quanto à questão colonial(ista).

          A Dança do Existir pede um deslocamento radical do ótico ao propor, desde o começo, uma escuta bastante intensa. A escuta de um corpo de uma mulher entregando-se a um movimento duplo e simultâneo de encobrimento e desencobrimento, ambos cuidadosamente coreografados, do passado coletivo da violência colonial. Escuta essa feita por via da paragem, do movimento inusitado, da escuridão e do som.

          A peça começa com Mantero parada, cena esquerda e à beira do palco, junto aos bastidores. Compõe uma figura incongruente. Uma t-shirt verde, velha, manchada e meio destruída cobre-lhe o torso; um glamoroso vestido de baile de seda azul da década de 1950, com balões em volta da cintura e a cobrir-lhe a maior parte das pernas; pedaços de um tutu branco a brotar por baixo do vestido e um par de ténis coçados e sujos completam o figurino. O cabelo é comprido, crespo e indomável. Em concentração absoluta, escuta atentamente uma gravação da sua própria voz descrevendo, de maneira coloquial e informal, o que traz vestido naquela noite. O que ficamos a saber é que cada peça do seu figurino – a glamorosa, a banal, a velha, a suja – carrega consigo uma história camuflada de violência. A voz gravada de Mantero informa-nos que o vestido de baile é da mãe. Costumava usá-lo nos anos 50, nos bailes glamorosos da alta sociedade lisboeta. Esses bailes eram afamados pelo chique cinematográfico – os seus excessos contrastavam fortemente com a situação desesperada da maioria da população: eram a maneira de o regime encenar normalidade, num pano de fundo de total miséria e repressão. A t-shirt é da adolescência de Mantero, uma que gostava tanto de usar, que agora mal se segura inteira. A t-shirt está rasgada, diz-nos, porque uma noite um amigo “um pouco violento” a empurrou com um pouco mais de força do que o habitual e a t-shirt se desfez. Os ténis sujos eram da mãe, informa a voz off de Mantero. Um outro amigo dera os sapatos à mãe, como prenda, mas eram grandes demais. A mãe passou-os a Mantero. Também eram grandes demais para ela, mas guardou-os mesmo assim, já que não tinha nenhum par como aquele. Levou-os à Croácia para visitar um amigo, em plena guerra civil na ex-Jugoslávia, em 1993. Ele escrevia durante o dia e ela ensaiava. No final do dia, corriam juntos pelos campos. Algumas noites, parecia-lhe escutar ao longe os bombardeios. Conheceu refugiados e combatentes em estado de choque. Era um dos lugares mais belos para se passar férias. Os ténis ficaram vermelhos com a poeira cor de ferrugem típica daquela área tranquila à beira do horror, e ela nunca mais os lavou. Aqui, a voz gravada de Mantero termina a descrição e afirma: “Eu neste momento não estou aí.” E o palco fica em completa escuridão.

          Na escuridão, uma nova banda sonora começa. Em vez da voz clara de Mantero, ouvimos uma mescla complicada, esmagadoramente verbal, hiperbolicamente fragmentada, enchendo cada canto do teatro com uma torrente contínua de vozes. É esta banda sonora que começa com as palavras “não saber, não ler, não saber nada do mundo”. Após a atitude parada inicial de Mantero, enquanto ela ouvia atentamente a sua própria narrativa sobre as violências escondidas em peças de vestuário quotidianas, a nova banda sonora ecoa fortemente no escuro, e o público é assim colocado na mesma condição de imobilidade atenta que a bailarina acabara de performar no palco. Nessa inversão de papéis especular, chega o momento de o público se envolver numa arqueologia da violência quotidiana – que mais não é do que uma arqueologia das tensões entre identidade e alteridade. Sentados em silêncio nos nossos lugares, entramos nas nossas próprias danças de existir. O que ouvimos, nessa dança sem luz, sem movimento visível, não é óbvio. Vozes diversas, modos de falar diversos (por vezes poéticos, por vezes coloquiais, por vezes confessionais), sotaques diversos, todos entrelaçados e editados com sons estranhos, cortes abruptos, interrupções criadas por samples de diversos géneros musicais. A verbosidade da banda sonora cria uma barreira semântica e acústica volumosa, e o corpo de Mantero permanece apagado por essa massa linguística e sonora avassaladora que, na sua intrincada montagem, flirta tanto com significação como com o insignificante. Apesar de fortemente baseada em linguagem, a paisagem sonora não define um domínio de comunicação, ou de representação, mas propõe uma linguagem de e em desarticulação, em curto-circuito, em livre associação. Há vozes claramente “encenadas” (as de Mantero e Pelágio assumem personagens diferentes ao lerem de fontes diversas – poemas, catálogos pornográficos, discurso associativo livre incoerente) enquanto outras são claramente “documentais” (extraídas de talk shows, de entrevistas na rádio ou feitas na rua por Mantero e Pelágio).

          Ao longo de dez minutos ouvimos, entre muitas outras: a voz de Pedro Paixão, um romancista que se interroga sobre o amor, Deus, a morte e a sua mãe; a sua voz sobrepõe-se às vozes de Mantero e Pelágio que leem fragmentos da biografia de Glenn Gould, especificamente sobre as suas fobias, o seu amor pelas estruturas e os seus cantos para os animais do zoológico; tudo isto se entrelaça com vozes de soldados traumatizados pelas guerras coloniais, contando da miséria em Portugal nos anos 1960 e de como foram treinados para matar e nada mais do que matar, enquanto gritavam como cães loucos como a tropa era bonita, e como foram ensinados a orgulharem-se dos seus troféus de morte. E há ainda a voz alquebrada de um dos veteranos, a soluçar, incapaz de narrar as torturas que aplicava aos guerrilheiros africanos, um fragmento da Paixão segundo São Mateus, de Bach, no exato momento em que o coral canta um verso pedindo a misericórdia de Deus pelas lágrimas que causámos, enquanto tudo se entremeia aqui e ali com um poema delirante em livre associação, de uma jovem cuja vida começa numa das ex-colónias em África, continua no Brasil após a independência e acaba em Portugal. E há mais vozes e textos e texturas continuamente adicionados, da pornografia ao elogio feito por William Blake da energia como deleite eterno…

          Após cerca de quatro minutos no escuro, a banda sonora chega a um ponto em que ouvimos, consecutivamente, dezenas de vozes diferentes dizendo, simplesmente, as palavras “descobrir as regras”. Homens, mulheres, com sotaques diferentes, repetindo a frase que pode ter conotações ligeiramente diferentes – “encontrar (pela primeira vez) as regras” mas também “desencobrir as regras”. Além disso, “regras” tem um duplo significado – período menstrual, mas também norma. É nesse momento que o palco é inundado por uma luz brilhante que revela Mantero no centro do palco, já em movimento pela primeira vez. Antes de descrever o que faz enquanto se move, é preciso considerar tudo o que precedeu esse momento literal de iluminação e de dança. É fundamental considerar o papel do som e da paragem que antecederam o desencobrir/descobrir pela luz de Mantero dançando.

          O que chama a atenção na primeira parte de A Dança do Existir é o tom vivaz e coloquial da voz gravada de Mantero, em contraste com o conteúdo do que está a dizer. Cada uma das peças de roupa que veste carrega consigo não apenas uma história, mas uma história maculada por atos de violência ou por um contexto histórico de violência. A sua figura surge como uma composição dessas histórias que lhe foram transmitidas por meio de objetos que herda da mãe, objetos destruídos por amantes violentos, objetos que trilharam os caminhos empoeirados por transformações históricas e guerreiras. Não é irrelevante que Mantero ouça parada a sua própria voz, e que essa imobilidade se expanda para além do seu corpo: pois é como se a sua perceção e postura fossem transferidas para o público quando as luzes se apagam. No escuro, o público fica plenamente consciente das histórias de amor incongruentes mesclando-se com as vozes daqueles que perpetraram a violência colonial. Qual poderá ser a finalidade da estratégia coreográfica de Mantero em A Dança do Existir, de apagar visualmente a sua presença, de jogar enfaticamente com um deslocamento sensorial do visível para o invisível, de privilegiar conscientemente o sonoro, tudo no contexto de uma peça que é também, e explicitamente, uma crítica pós-colonial às correntes subterrâneas da violência no Portugal contemporâneo? Talvez ficarmos plenamente conscientes de que há que descobrir, desencobrir (parados, na escuridão) as regras que regulam o “não querer saber nada do mundo”.

          No seu ensaio sobre anestesia cultural, Allen Feldman critica The Civilizing Process, de Norbert Elias.[5] Para Feldman, a noção de Elias de que “a modernização implica a retirada progressiva da violência da vida quotidiana, de par com a sua crescente monopolização pelo Estado”[6] deve ser questionada. Feldman exemplifica com vários casos em que o Estado “democratiza ativamente a violência”, como na Irlanda do Norte e na ex-Jugoslávia. Nesse sentido, para Feldman, a violência deve ser reposicionada das “margens dos processos civilizacionais e da modernidade europeia” e retornar ao próprio núcleo da “civilização” e da “modernidade”.[7] É esse deslocamento de perceção que Mantero encena ao contar as suas histórias sobre o que lhe cobre o corpo, na sua dança do existir. O efeito quase cómico causado pela primeira aparição de Mantero com a sua t-shirt esfarrapada, o vestido de baile de seda arredondado e os ténis sujos é radicalmente boicotado pelo facto de nos contar a micro-história das violências contidas em cada peça da roupa com que se veste. A violência impiedosa do fascismo, a violência brutal dos amantes, a violência estrondosa da guerra, a violência normativa do treinamento (o tutu de ballet) não são apresentadas como acontecimentos externos, fora do fluxo “normal” da história e da quotidianidade, mas como aquilo que mantém a quotidianidade dentro da sua própria lógica existencial. Andamos sempre com violência vestida, mesmo que optemos por não ouvir os seus ruídos crepitantes.

          E que dizer da estratégia coreográfica que Mantero escolhe performar para sublinhar dramaturgicamente a violência no âmago da quotidianidade? Porque é que Mantero permanece parada? Porque é que escolhe, neste momento de auscultação histórica, não se mover? Aqui é útil invocar a noção de “ato parado” [“still act”] proposta por Nadia Seremetakis na sua importante crítica dos sentidos na modernidade.[8] Para Seremetakis, o “ato parado” não é um congelamento do sujeito em rigidez estatuária. Pelo contrário, é um momento de interrupção social em que o sujeito suspende hegemonias temporais, narrativas e ideológicas por meio de uma interpelação quieta da história. Para Seremetakis, os “atos parados” são esses momentos de pausa e paragem em que o sujeito – ao introduzir fisicamente uma rutura no fluxo da temporalidade hegemónica que nos condena a todos ao movimento sem pensamento – interpela a “poeira histórica”.[9]

          Recorrendo ao uso da paragem enquanto escuta a sua própria voz a desencobrir calmamente a violência no cerne do banal, Mantero encena uma resistência sensorial. Mais importante, essa resistência sensorial como reorganização de memória é depois transferida para os corpos do público. Pois quando o corpo de Mantero desaparece, é o público que é colocado na escuridão sob uma enxurrada sónica de vozes. É o público que assume o papel ativo de se colocar em estado de paragem atenta.

          Ao percorrer as notas de Mantero para a criação de A Dança do Existir, encontrei o seguinte fragmento que ilustra as suas ideias sobre os usos do som, da escuridão e da paragem na dança do existir:

          Escutar um texto, sons e música na escuridão é partir para o mundo do invisível […]. Falar na escuridão é uma oportunidade de dizer coisas que implicam os outros, é até uma oportunidade de penetrar no mundo interior deles, quase entrar nos seus sonhos como personagem, em vez de lhes dar algo mais visual e exterior (a eles).[10]

           

          Ao optar primeiro por não dançar, mas antes escutar, para depois desaparecer ativamente de vista, Mantero resolve uma questão coreográfica para uma ética do relembrar e da resistência sensorial. Uma que brinca com o trocadilho possível no termo re/lembrar,[11] ou seja, re-organizar e re-distribuir o corpo e as suas partes, os seus sentidos e canais, de maneira a gerar um corpo novo, imaginativo, criativo, provocativo e historicamente crítico.[12]

          Nesta estratégia da coreógrafa, a sua suspeita do visível é importante. Particularmente quanto à capacidade do visível, de revelar a violência sob a pele dos dias. Essa suspeita propõe uma retificação da noção de coreografia como forma de arte essencialmente visual. O que traz uma dupla consequência teórica. Em primeiro lugar, endossa a visão de Mark Franko de que ao considerar danças “politicamente resistentes” deve ter-se em conta que elas são, muitas vezes, “práticas assimétricas e não ilustrativas.”[13] Para Franko, essa qualidade “não ilustrativa” das danças politicamente resistentes traz importantes implicações epistemológicas, a saber, a necessidade da teoria e da historiografia da dança questionarem “o quanto da prática da dança se materializa como visível ou deve entender-se em termos visuais apenas”.[14] A questão de Franko é particularmente relevante para a presente discussão. O seu projeto de expandir a fixação sensorial nos estudos de dança para além dos limites do campo do visível (e escapar assim ao que chama “falácia visual na história da dança”) ilustra precisamente como Mantero entende o uso do corpo na dança. Em 1993, dois anos antes de criar A Dança do Existir, Mantero afirmou numa entrevista ao jornal Público que “apenas com o corpo, a dança não consegue dizer tudo”.[15] Para Mantero, no seu trabalho o corpo é secundário, no sentido em que deve saber a hora de se apagar, para poder dizer com mais impacto.

          Nas suas muitas camadas, permutações e fragmentação estratégica, A Dança do Existir de Mantero investiga um dos episódios mais silenciados da história recente portuguesa, a guerra colonial de 1961-1974 – uma guerra que pode ter acabado no terreno, mas ainda está presente na vida quotidiana do Portugal pós-colonial. O mais chocante para o público português é escutar as narrativas quase nunca ouvidas dos veteranos da guerra colonial, cuja história, como nota Eduardo Lourenço já em 1998, ainda está por contar.[16]

          Walter Benjamin, nas suas Teses sobre a Filosofia da História, diz-nos que “articular o passado historicamente não significa reconhecê-lo ‘como realmente foi’. Significa apoderar-se de uma reminiscência quando ela irrompe num momento de perigo”.[17] Mantero articula uma história que “ainda está por contar” criando uma atmosfera de urgência, no escuro, dando voz a quem tinha sido afastado da memória histórica. A memória irrompe como articulação da história por meio do ritmo urgente, dos sons discordantes ao fundo e do caráter testemunhal dos depoimentos dos veteranos da guerra colonial que ouvimos.

          Seria injusto dizer que este é um solo sobre a guerra colonial. Isso corresponderia a uma redução da sua polissemia explosiva e das suas ramificações fragmentadas radicalmente libertadoras. Mas é justo alegar que é um solo sobre aquelas forças em ação no Portugal contemporâneo que perpetuam as mesmas velhas relações coloniais e tensões raciais; reciclando e re-energizando (ainda que impercetivelmente) a violência latente resultante daqueles anos de guerra e terror. Nesse sentido, é um solo sobre a natureza repressiva do silêncio, à medida que atravessa o corpo social, gerando o seu sistema nervoso neocolonial.[18] É só a esta luz que podemos compreender porque é que Mantero, num pequeno texto para o programa da noite de abertura de A Dança do Existir, lhe chama (contra o impacto óbvio da sua contínua massa sonora, vozes, choros, fragmentos musicais) “uma dança do silêncio”.

          Mas podemos entender as suas razões. Esta é uma dança que investiga aquele silêncio que prospera precisamente debaixo da verbosidade, da visibilidade e do ruído mais ensurdecedores. Esse silêncio que expressa “anestesia cultural” – a capacidade, segundo Feldman, “de infligir dor no Outro [e] de tornar a dor do Outro inadmissível no discurso público e na cultura”.[19]

          Como é que se podem ouvir as vozes descartadas da história, sob a amnésia coletiva trazida pelo estilhaçamento do espelho colonial? Aqui, sob a orientação do auditivo, colocamos uma questão coreográfica – pois essa escuta é também uma questão de preparar o corpo, de o condicionar, ajustá-lo a uma posição específica dentro do tempo (histórico) e do espaço (social e político). Nesta nova posição, o sujeito negocia, valida e descarta o que considera pertencer ao domínio do (in)significante e do (im)percetível.

          Para Nadia Seremetakis, “o impercetível tem uma estrutura social baseada em zonas culturalmente prescritas de não-experiência e significado cancelado”. Seremetakis identifica no “entorpecimento e apagamento das realidades sensoriais”, os indicadores cruciais de momentos de transformação social e histórica. Esse entorpecimento cria um desafio para a interpretação crítica, exigindo uma certa reorientação dos sentidos:

          Esses momentos [de transformação histórica] só podem ser vislumbrados obliquamente e nas margens, pois a sua visibilidade exige uma imersão na memória sensorial interrompida e nas emoções deslocadas.[20]

           

          A noção de Seremetakis de vislumbres oblíquos, permitindo a imersão numa “memória interrompida”, ou numa emoção deslocada (ou reprimida), é crucial. Esses vislumbres oblíquos, de soslaio, são tantos olhares desviantes, caminhando pelas margens dos sentidos e da história, retomando-se à beira dos momentos percetíveis de entorpecimento coletivo e dos vestígios do apagamento contínuo das experiências sensoriais e sociais. Vale a pena seguir este caminho desviante – é o mais fenomenologicamente adequado para o trabalho em questão.

          Depois do escurecer, uma série de vozes diversas proferem a frase “Descobrir as regras”. Encontrar ou desencobrir as regras. É neste momento que a luz inunda a cena e encontramos Mantero a dançar no centro do palco com o seu figurino compósito. É uma dança fragmentada. Mais ainda, a sua fragmentação parece exigir um contínuo e oblíquo vislumbrar de soslaio. A secção “dança” de A Dança do Existir dura cerca de seis minutos. É nesses seis minutos que emergem as vozes mais perturbadoras da memória colonial, incluindo o veterano soluçante, incapaz de contar o seu passado como torturador. Além disso, ouvimos as associações livres mais alucinatórias:

          [Veterano #3] “Pois as agressões, lembro-me, está presente em mim até hoje, as agressões dele contra a minha mãe…”

           

          [Pedro Paixão] “Quer dizer, eu já morri várias vezes.”

           

          [Vet. #3]: “…inclusive de um pontapé que levei uma vez…”

           

          [Mantero e Pelágio]: ”Fecha os olhos.”

           

          [Vet. #3]: “…para evitar que ele desse esse pontapé na minha mãe…”

           

          [Mantero e Pelágio]: ”Fecha os olhos.”

           

          [Vet. #3]: “…e aquela vida má, a pobreza, a miséria que havia, que vivíamos num quarto…”

           

          [Mantero a ler do poeta Ruy Belo]: “Deus anda à beira de água calça arregaçada

          como um homem se deita como um homem se levanta

          Somos crianças feitas para grandes férias.”

           

          [Pelágio a ler a biografia de Gould]: “A noção de que todos os sons são dignos de atenção.”

           

          [Mantero a sussurrar rapidamente]: “Amigos a desenganarem-se, amigos a desencontrarem-se. encontros. refugiados. morte. fome. prazer, desgraça, sol. brasil. grandes acontecimentos. dor, ginástica, mentes. muitas mentiras. prazer. encontros imediatos do 3.º grau. fazer tudo para não cair no buraco. canseira, dores de cabeça, felicidade.”

           

          [Vet. #1]: “…Por exemplo, do género: ‘rastejar até mim!’, e a malta a rastejar, ‘vamos embora a rastejar, abaixar o rabo, abaixar o cu, essa cabeça, rastejar até mim, até mim, junto a mim!!’ Todos ali ao monte, todos amontoados, uns por cima, outros por baixo. ‘A tropa é linda? É! A tropa é linda? É! Filhos da puta, a rastejar até mim!!’”

           

          Vet. #2: “Nós saímos de casa com uma mentalidade de que era… de que era preciso matar. Fazia-se gáudio disso. Era uma honra.”

           

          Enquanto isso, Mantero dança como se o seu corpo fosse descontínuo. Mantém o tronco direito, raramente dobra as costas, os braços e as pernas giram das articulações como pêndulos, mantendo ângulos retos. Mantém uma expressão concentrada, como se aquela abstração fosse parte da mais articulada e significativa atividade. Esquiva-se, não fica num sítio mais do que um instante. Não há fluidez no seu movimento constante; tudo é feito de partes descontínuas, segmentadas e isoladas, da mesma maneira que o movimento de uma sequência fílmica é feito de imagens fotográficas distintas. É impossível ter uma sensação de completude – de uma dança inteira, de um corpo inteiro. Os meus olhos saltam daqui para ali tentando seguir o seu corpo, e sobretudo desistindo porque os meus ouvidos querem focar toda a minha atenção na banda sonora emendada, e escuta-se melhor quando os olhos descansam imóveis. Vislumbres oblíquos então, uma e outra vez em direção ao palco, com ela a escapar-me a maioria das vezes, porque já se tinha mudado para outro sítio. Tal como mencionei anteriormente neste ensaio, o ecrã da minha memória desta dança é apenas sonoro. Quando comecei a escrever estas páginas, não conseguia de todo lembrar-me da dança. Pedi a Mantero um registo vídeo da peça. Ela enviou-me um, feito por um videasta profissional. Coloquei a cassete no meu gravador de vídeo e deixei correr. O nervosismo da câmara é quase patológico. Não há um só segundo em que a câmara não se mova sobre o corpo de Mantero, fazendo zoom para dentro e fora do palco, captando partes do corpo ao acaso, caindo em sequências aleatórias como se procurasse, no seu zoom frenético, um corpo que afinal estaria bem ali. Surpreendo-me ao reconhecer que, muito embora Mantero não ande a correr pelo palco, escapa constantemente ao confinamento ótico da câmara. Tal como tinha prometido no início da peça, é como se, de facto, “Eu neste momento não estou aí”. As suas movimentações descontínuas provocam o falhanço absoluto da documentação; mas também produzem o efeito de distração no meu inconsciente ótico. O registo de vídeo da dança do existir de Mantero, ziguezagueante, nervoso, permeado de vislumbres oblíquos de um corpo que se esquiva da captura, é o registo mimético do muito particular e radical manifesto sensorial dessa dança.

          O solo de Mantero performa um momento de suspensão histórica, de interrupção, de rutura, um momento que ilumina as margens de um campo repressivo de silenciamento e de empoeiramento históricos. O catalisador da minha busca oblíqua através dessas imagens, perceções e emoções deslocadas, em fuga, foi uma dança de que me lembrava principalmente como som. Dança: câmara de eco onde memória, movimento e violência se entrechocam, moldando corpos, coreografando identidades, rearranjando alteridades.

           

          Traduzido do original em inglês por Paula Caspão.

           

          _________

          [1] Este ensaio foi escrito no ano 2000 e publicado originalmente em francês na revista Protée, em 2001. Trata-se de uma versão muito reduzida de um capítulo com mesmo título da minha tese de doutoramento, Dancing Without the Colonial Mirror (2000). A vontade dos editores do Coreia de o traduzir e o publicar hoje, em Portugal, talvez indique que a “contemporaneidade” dessa dupla crise que o texto discute ainda subsista – duas décadas mais tarde. Aos leitores, cabe decidir se de facto assim é.

          [2] Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991), 43.

          [3] Allen Feldman, “From Desert Storm to Rodney King via Ex-Yugoslavia: On Cultural Anesthesia”, em In The Senses Still: Perception and Memory as Material Culture in Modernity, ed. Nadia Seremetakis (Chicago: The University of Chicago Press, 1996), 89.

          [4] Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. 2.ª ed. (Lisboa: Gradiva, 1999), 67-68.

          [5] Norbert Elias, The Civilizing Process (Nova Iorque: Urizen Books, 1978).

          [6] Ver Feldman, “From Desert”, 87.

          [7] Ver Feldman, “From Desert”.

          [8] Nadia Seremetakis, “The Memory of the Senses, Part II: Still Acts”, em The Senses Still. Perception and Memory as Material Culture in Modernity, ed. Nadia Serematakis, 23-43 (Chicago: The University of Chicago Press, 1996).

          [9] Seremetakis, “The Memory of the Senses, Part I: Marks of the Transitory”, 12, em The Senses Still.. A noção de “poeira histórica” é de Walter Benjamin. Para Benjamin, a natureza da sociedade mercantil foi capturada na imagem da ruína – daí a importância da poeira. A poeira, como imagem dialética, expressa a forma como a impercetível sobreposição dos acontecimentos históricos anestesia os sentidos, num silencioso processo coletivo de repressão como sedimentação. Para Benjamin, “a história está tão quieta que acumula poeira”, escreve Susan Buck-Morss – mas também, pode acrescentar-se, a história produz poeira de modo a performar o seu movimentado espetáculo de progresso. O Portugal contemporâneo sufoca soterrado nestas duas visões de poeira histórica. Mantero literalmente traz “poeira histórica”, como índice dessa violência, ao palco: nos seus ténis empoeirados pela terra vermelha da ex-Jugoslávia em guerra, partículas das quais se desprendem ao longo de A Dança do Existir.

          [10] Vera Mantero, notas coreográficas para a criação de A Dança do Existir. Caderno de notas intitulado “O Meu Trabalho”.

          [11] N. da T.: a possibilidade do trocadilho é mais sonante no termo inglês “re/membering”, que aponta claramente para a profunda implicação entre o ato de relembrar e o movimento de re-com-posição entre as várias partes que fazem um corpo.

          [12] Sobre as implicações teóricas deste re/membering, em particular para a dança contemporânea, ver Gabrielle Brandstetter e Hortensia Völckers, eds., ReMembering the Body (Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz Publishers, 2000).

          [13] Mark Franko, Dancing Modernism / Performing Politics (Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1995), xii.

          [14] Franko, Dancing Modernism.

          [15] Maria José Fazenda, “Apenas com o Corpo, a dança não consegue dizer tudo”, Público, Outubro, 15 (1993), 28.

          [16] Eduardo Lourenço escreve: “Durante treze anos de guerra colonial na Guiné, em Angola e em Moçambique, milhares de quadros milicianos, estudantes, médicos, intelectuais foram mobilizados para a última e absurda cruzada contra o independentismo africano. A história desta mobilização massiva (…) não está escrita.” Ver Lourenço, Portugal como Destino, 69.

          [17] Walter Benjamin, “Theses on the Philosophy of History”, em Illuminations, ed. Hannah Arendt, 253-264 (Nova Iorque: Schocken Books, 1969), 222.

          [18] Ver Michael Taussig, The Nervous System (Nova Iorque e Londres: Routledge, 1992), em particular a introdução e os capítulos 7 e 8.

          [19] Ver Feldman, “From Desert”, 90.

          [20] Seremetakis, “The Memory”., 23.

          Emiliano Aversa Um Lábio Homeostático

           

          a. Um espasmo teve o polegar 𓂭

          b (a)1. Um espasmo teve o lábio inferior 𓂋

          c. Um espasmo teve o Carlo 𓀤

          d. Um espasmo teve o lagarto 𓆈

          e (d). O lagarto virou-se ao contrário 𓆈 𓄳

          f (a-b). O lábio fez comichão 𓂋 𓈖

           

           

          O meu estar no mundo padece do ar que me arranha, do solo que piso, da luz que se projeta à minha frente. Cada momento vivido por mim é examinado à luz de uma luta destinada à harmonia da minha permanência, uma luta harmoniosa entre a minha subjetividade e o meu ser no mundo, o meu relacionar-me com isso. A subjetividade, complexa peculiaridade que tem origem na proprioceção, não existiria sem tal relação, portanto a pergunta fundamental parece ser: onde se encontra o limite entre a minha subjetividade e o mundo que me rodeia? Onde se inicia e finda a relação que tenho com isso? Esta pergunta pressupõe a conceção do espaço entendido não como recipiente, mas como espaço que cria espaço no qual o corpo age como elemento consciente e dinâmico. Uma resposta plausível encontra-se no final deste texto, já que a pergunta contém em si um erro; mais do que uma resposta, trata-se de uma correção de perspetiva que invalida a pergunta. De qualquer forma, tal questão contém em si uma série de parêntesis e fluidos corporais que merecem ser mencionados.

           

           

          O meu objetivo é procurar lançar uma luz sobre a existência de uma regulação orgânica, que diz respeito também à relação entre o orgânico e o inorgânico, seja no mais pequeno movimento do ser, no caso de um braço, seja sempre que se encontrem organizações de movimento mais complexas, mesmo que o movimento resulte de uma escolha artística, que, pela sua essência, não pode divergir da natureza para alcançar o seu objetivo nulo. Por objetivo nulo entendo aquele que é exatamente o objetivo da arte, ou seja, aquele de dizer tudo, o que equivale a não dizer nada. Em poucas palavras, a arte espreme o ser de modo a evidenciar o sangue que nele flui quotidianamente.

           

           

          Uma gota da minha saliva cai no chão do meu estúdio. Uma vez que que me abandona, esta parte de mim não precisa de me reconhecer, torna-se parte do fluir orgânico, o meu eu, não enquanto subjetividade, flui como parte do todo.

          Uma gota da minha saliva cai no chão do meu estúdio, lambo o chão do meu estúdio para me reapropriar da gota da minha saliva, algo mudou, é necessária a ativação de um processo químico que faça com que tudo se equilibre, com que o círculo se feche, com que o meu corpo volte a aceitar a gota de saliva e se aproprie dela, alterando-se, mas continuando o mesmo. Uma curva de reapropriação que acolhe novamente a minha saliva aceitando o seu estranhamento locativo, reinserindo a sua química modificada no meu corpo.

           

           

          O movimento do meu braço, se não destinado a agarrar alguma coisa ou a cumprir um objetivo, tem como finalidade o movimento em si mesmo, a meta acaba sempre por ser a mesma, isto é, coincide com o início do movimento. A minha vontade de executar um gesto puro tem apenas um sentido: o elogio do gesto.

          Até um movimento paroxístico ditado por uma necessidade fisiológica pode incluir-se radicalmente entre as tipologias de movimentos puros, na medida em que é ditado por uma necessidade intrínseca ao corpo e, como tal, é corporal no sentido absoluto.

          Se concebermos o movimento do meu braço dançante como indivisível em termos espaciais e temporais, este estará presente mesmo quando o braço alcançar um estado de repouso, já que o seu estar “parado” é sempre, ainda assim, um movimento.

          Este movimento, considerado na sua plena execução, constitui em si mesmo uma homeostase estética, na medida em que a partir da quietude atinge, de forma curvilínea, um ápice gestual, para depois se reestabilizar. Se tal execução não constituísse uma parábola de satisfação, tal movimento não seria dançante. A satisfação estética em questão não se refere obviamente ao sujeito dançante, mas é na verdade intrínseca ao movimento.

           

          A homeostase (do grego omeo- e -stasi, “posição semelhante”) é a tendência natural à obtenção de uma estabilidade relativa, seja das propriedades físico-químicas internas, seja das comportamentais, que é comum a todos os organismos vivos, para os quais este regime dinâmico deve manter-se ao longo do tempo, mesmo que haja variação das condições externas, através de mecanismos autorreguladores específicos. Para o filósofo e neurocientista português António Damásio, a homeostase é um imperativo sem o qual não existiria vida,2 cada partícula do corpo está envolvida e toma parte neste processo, até mesmo a esfera intangível das emoções, que nada mais são do que músculo.3

          Regressando à gota de saliva, passando pelo movimento do braço e chegando à consciência de si, a homeostase é aquilo que permite, momento após momento, que a minha subjetividade se forme, é aquilo que faz de mim eu mesmo.

           

           

          A homeostase tem uma forte correlação com a topologia em termos de movimento formal. Enquanto movimento invertido, é comparável aos sistemas homeomorfos da topologia4 que voltam a ser aquilo que não eram, ou melhor, já eram aquilo em que se tornaram. Os espaços homeomorfos são espaços topológicos unidos pelo homeomorfismo, ou, por outras palavras, formas do mesmo objeto obtidas através de uma deformação sem ruturas.5 Assim, algo torna-se noutra coisa, que já o era, permanecendo o mesmo. De igual modo, mediante um processo homeomorfo, o movimento de regresso a um estado de suposto equilíbrio pressupõe a existência de alicerces de um estado identitário que, contudo, já não é completamente o mesmo de antes.

           

           

          Então, o movimento, do início ao fim, se porventura se possa identificar um início e um fim, atravessa no seu ápice um auge laudatório que equivale ao auge do processo homeostático. Se se dirige o olhar ao mais pequeno movimento, precisamente aquele do braço, num conjunto de movimentos ou numa orquestração de movimentos, como pode suceder no caso de um ato performativo, a parábola acabará por ser a mesma: suspensão, movimento, movimento de conjunto, movimento e suspensão. De um ponto de vista artístico a pergunta que se coloca é: porque escolho que algo aconteça? E: o que escolho que aconteça?

           

           

          Essa dança que se manifesta como vórtice simultaneamente evolutivo e involutivo pode acolher a possibilidade de uma escolha coreográfica. O dispositivo coreográfico entendido como sistema intrincado estável através do qual algo acontece em palco é sempre um movimento circulatório graças ao qual é dito através do corpo – também entendível como corpo de um objeto – aquilo que não pode ser dito de outro modo, e é aqui que entra em jogo o elemento rítmico – visto como a dinâmica rítmica do fluxo em palco – que, ao esgotar-se, regressa ao não-dito. Desta forma, os corpos entram na cadência do indizível para assim se calarem, já que aquilo que se quer que seja dito é o gesto; neste sentido cumpre-se o regresso identitário. Aquilo a que se assiste mediante um ato performativo é um acontecimento homeostático acima de tudo; não um acontecimento que transporta o corpo até algo de arrebatador que necessite de um regresso identitário ao estatuto de corpo, mas sim um evento que leva o corpo até ao extremo e o devolve inanimado à sua quotidianidade. Neste sentido, o sujeito dançante vive uma homeostase per se.

           

           

          Como pode a dança, apologia do movimento, não ter em conta o processo homeostático, se ela própria é homeostase por excelência? Colocar a argumentação no âmbito coreográfico significa ter em consideração o movimento de um corpo e o seu equilíbrio interno, o equilíbrio entre este corpo e o espaço, o equilíbrio entre este corpo e um outro corpo, o equilíbrio entre a mão deste corpo e o resto das partes deste corpo. A este propósito poder-se-ia considerar a introdução de um novo estado do eu que vá para além do eu nuclear e do eu alargado propostos e analisados por Damásio.6 Tratando-se de um eu performativo que experimenta um processo homeostático privilegiado, poder-se-ia falar de um eu extra que leva ao extremo o seu estado espaciotemporal.

          Um dispositivo coreográfico é, assim, uma parábola que contém em si infinitas parábolas mais pequenas e que, ao prescindir daquele que é o ponto fulcral que subjaz à conceção da peça não se pode abster da sua essência homeostática, de transmitir aquele sentido de regresso voraz ao cerne da dialética de todas as partes; este deve, por força das circunstâncias, ter o sabor do sangue, caso contrário não há dança.

           

           

          A intangibilidade do processo homeostático, a forma como o próprio sentido de reajustamento se reajusta e encontra o sentido do seu reajustamento no ato de se reajustar, continua a ser um mistério insondável. Se não houvesse homeostase nada seria aquilo que é.

          Eis, então, o momento da resposta para quem não deu um salto, para quem não teve um espasmo. A minha subjetividade existe no mundo e não é concebível fora deste, o meu corpo é um corpo de mundo.

           

           

           

          Traduzido do original em italiano por Sara Santos.

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          1 As letras entre parêntesis indicam que as várias orações se referem a um mesmo sujeito.

          2 Acerca da importância do processo homeostático segundo Damásio: The Strange Order of Things: Life, Feeling, and the Making of Cultures (Londres: Pantheon, 2018). N.T.: publicado em português: A Estranha Ordem das Coisas: A vida, Os Sentimentos e As Culturas Humanas (Lisboa: Temas e Debates, 2017).

          3 Acerca do estudo de Damásio sobre a relação entre corpo e emoções: António Damásio, The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Consciousness (San Diego: Harcourt, 1999).

          4 Para uma primeira introdução à topologia: Martin Crossley, Essential Topology (Nova Iorque: Springer, 2005).

          5 “Dois espaços topológicos X e Y dizem-se homeomorfos se existirem duas aplicações contínuas f: X → Y e g: Y → X tais que g ◦ f = IdX e f ◦ g = IdY. f e g são considerados homeomorfismos; um homeomorfismo é, portanto, uma aplicação contínua, biunívoca e com contínua inversa (biunívoca e bicontínua).” Gianluca Occhetta, Note di topologia generale (Trento: Universitá di Trento, 2010), 10.

          6 “O self é construído em passos distintos e tem seu alicerce no protosself. O primeiro passo é a geração de sentimentos primordiais, os sentimentos elementares de existência que surgem espontaneamente do protosself. O seguinte é o self central. O self central refere-se à ação – especificamente, às relações entre o organismo e os objetos. O self central manifesta-se em uma sequência de imagens que descrevem um objeto do qual o protosself está se ocupando e pelo qual o protosself, incluindo seus sentimentos primordiais, está sendo modificado. Finalmente, temos o self autobiográfico. Esse self é definido como o conhecimento biográfico relacionado ao passado e ao futuro antevisto. O protosself, com seus sentimentos primordiais, e o self central constituem o ‘eu material’. O self autobiográfico, cujas instâncias superiores englobam todos os aspectos da pessoa social de um indivíduo, constitui um ‘eu social’ e um ‘eu espiritual’. Para fins práticos, a consciência humana normal corresponde a um processo mental em que atuam todos esses níveis de self, dando a um número limitado de conteúdos mentais uma ligação momentânea com um pulso de self central.” António Damásio, E o Cérebro Criou o Homem (São Paulo: Companhia das Letras, 2011).

           

          Jan Ritsema Jonathan Burrows Dança Fraca Perguntas Fortes

          dos cadernos de Jonathan Burrows e Jan Ritsema

           

           

          No início eram Celan, Eliot e Thomas: poesia.

           

          ALGO SERÁ, mais tarde

          contigo se completa

          e se ergue

          até uma boca

           

          Da estilhaçada

          loucura

          me reergo

          e contemplo a minha mão

          vejo-a traçando

          aquele um único

          círculo

          (Celan)[1]

           

          Ele diz que eu não devia querer provar nada com o movimento, que devia só fazer perguntas, mas como é que alguém pode fazer uma pergunta movendo-se? É impossível. Cada movimento é uma afirmação, foi o que aprendi quando comecei a dançar. E ao contrário do discurso, os movimentos nunca são uma coisa diferente do que são, não fingem. Então, como é que posso duvidar de um movimento que só pode ser claro para mim?

           

          Não faças gestos, deixa o esqueleto fazer o movimento, e não conduzas o teu movimento com os olhos de um ponto para outro; aí estás a tentar salvar o teu corpo, e não há salvação. Afunda-te no corpo, vai de um momento para o outro e faz pergunta atrás de pergunta; interroga continuamente.

           

          Ele está a falar da forma como dança e quer dizer “o meu corpo” e diz “o meu dinheiro”, e depois diz “quando danço o meu corpo parece mais jovem”, e eu penso “isso é preocupante, eu queria dançar com um homem mais velho”.

           

          Ele diz que tem de esquecer mais o seu corpo treinado. Ele não tem nada para esquecer, só para experimentar. Não é possível o corpo esquecer, porque os músculos não conseguem esquecer.

           

          Eu apenas posso dizer, ali nós estivemos; mas não posso dizer onde.

           

          Não devia pensar que a vida me pode tirar coisas, coisas que tenho a obrigação de tentar segurar, só devia pensar nas possibilidades que a vida oferece. Devia saber que só há oportunidades e nada a perder.

           

          Fechado numa casca de noz eu poderia julgar-me

          rei de um espaço infinito: não fossem os sonhos maus que tenho.

          (Hamlet)[2]

           

          Ele diz que não se trata de ser destemido, mas de aceitar o medo, por isso não pratiques os princípios, não te exercites, vai em frente e pronto, hás-de falhar de qualquer maneira, deixa que o teu corpo se lembre disso, aguenta o teu corpo, não lhe podes escapar.

           

          Ele quer dançar mas fica preso numa imagem daquilo que pensa que é dançar.

           

          Ele anda às voltas por casa a fechar portas à sua passagem e depois espera abri-las quando dançar.

           

          As imagens oferecem-nos consolo para o sofrimento da vida

          E a vida oferece-nos consolo para o facto de as imagens

          Não significarem nada

          (Godard)

           

          Normalmente não me interessa o que acontece entre a partida e a chegada, alcançar o objectivo parece ser a única coisa que importa. Tenho de mudar isso. Tenho de dividir grandes distâncias em pequenas distâncias. Ir a Moscovo começa com trancar a porta do meu apartamento, apanhar o elevador, abrir a porta da rua, caminhar até à estação de comboios, e assim por diante. Isto retira o medo à grande viagem. É assim que eu tenho de dançar, de movimento em movimento, e o tempo todo a enfrentar todas as mudanças. No início apenas as maiores, e depois avançando devagar, entrando nos pormenores.

           

          Quando ele pensa em dançar, remexe-se na cadeira e começa outra vez a encolher-se, começa a ficar pequeno, como se quisesse desaparecer.

           

          Ele diz que é a sua dança sem-vergonha, mas ao mesmo tempo tem muita vergonha, diz que quer dançar e ao mesmo tempo quer desaparecer.

           

          Ele é a pessoa mais medrosa do mundo, o medo é o seu estado geral de ser, diz ele, e no momento seguinte diz que não tem medo de nada.

           

          Ele diz que não tem medo, mas se não tivesse mesmo medo não falava nisso. Diz que quando o medo o invade, ele contra-ataca

          e por isso nunca tem os pés no chão.

          Está sempre em fuga.

           

          Tudo lhe pertencia, mas o importante era ele saber qual era o seu lugar.

           

          Levanto-o, ponho-o em cima do meu ombro, aqui, atiro-o ao ar, ele até fica lá, talvez, eu vou sempre apanhá-lo, uma e outra vez.

           

          Ele pergunta a si próprio: quanto da árvore que vejo à minha frente existe em mim?

          Será que tenho raízes, que estou ligado à terra, que dou sombra, que fico com folhas novas todos os anos,
          será que as minhas folhas também morrem?

          E quanto de mim existe na árvore?

          Será que pode dançar, ser feliz, inscrever-se na segurança social, será que uma árvore pode foder, ter cancro?

          Ele diz que ao fazer-se estas perguntas sente que vive um pouco menos aprisionado dentro de si, um pouco menos do que é costume.

           

          Quando entramos em cena, e também durante a performance, não devemos negociar o espaço, nem o tempo. Entrar e querer possuir o espaço é uma negociação. É tão difícil não querer ser interessante.

           

          Ele diz que quer tornar o seu cérebro físico, de alguma forma, diz isto bastante vezes. Mas o seu espírito continua com medo, e ele começa a recitar Dylan Thomas:

          Embora enlouqueçam, serão sãos,

          Embora se afundem no mar, erguer-se-ão de novo;

          Embora os amantes se percam, o amor não.

           

          És um orangotango, diz ele, quando me observa.

          Há qualquer coisa de antropologia no que fazemos.

          Quando ele dança, a sua boca assume uma certa expressão e de repente parece um padre. Porque é que ele está a fazer aquilo?

           

          Sim, voltei a fazê-lo. Porque penso que a dança é uma coisa séria.

          Mas quando a minha boca não é um padre, o meu braço é completamente diferente.

          Quando sou um padre, mostro um problema e não estou a oferecer nada.

           

          Começámos por ler e recitar partes de poemas um ao outro. Alguns ficaram, como o T. S. Eliot (Four Quartets, “Burnt Norton”). Embora tentemos mover-nos “nem de nem para”, nunca paramos durante a performance:

          No ponto morto do mundo em rotação. Nem carne nem espírito;

          Nem de nem para; no ponto morto, aí está a dança,

          Mas nem paragem nem movimento. E não se chame a isso fixidez,

          Onde o passado e o futuro se reúnem. Nem movimento de nem para,

          Nem ascensão nem declínio. Se não fosse o ponto, o ponto morto,

          Não haveria dança, e há só a dança.[3]

           

          Será o tentarmos dançar de maneira a que cada movimento contenha a possibilidade de todas as direcções?

           

          Será o prazer de reconhecer a individualidade como produto de todas as possibilidades possíveis?

           

          Será então a celebração da individualidade como Spinoza a descreveu: “o reconhecimento de ser composto por um conjunto de uma infinidade de conjuntos infinitos de partes extensas, interiores ou exteriores, que me pertencem segundo relações características, e estas relações características expressam apenas um certo grau de poder que forma a minha essência, a minha essência de acordo comigo, por assim dizer, a essência que me é particular”?

           

          A sensação de que somos compostos pela nossa vida, na qual percebemos e experimentamos e somos percebidos e experimentados por outras partes internas e externas? E isto numa cadeia de transformações e transposições?

           

          Será então o fascínio pelo vazio sem-vergonha? Aquilo a que algumas pessoas chamavam a “coragem” de estar em palco sem estar protegido por um contexto ou significado? Sem aquilo a que chamamos estar debaixo do telhado de uma tarefa?

           

          Será o fascínio por uma coisa que é tão comum que tendemos a ignorá-la ao mesmo tempo? Uma coisa que está lá e ao mesmo tempo não está? Uma coisa que se pode afastar do pensamento facilmente, uma coisa que se pode esquecer porque vai estar sempre lá, uma coisa que se pode apagar em segurança sem o medo de consequências imprevistas, uma coisa corajosa porque sabemos tão bem, tão bem como lidar com ela de modo a que tu, como público, nunca podes falhar?

           

          Será a aparente contradição nesta fábrica-de-movimentos-que-não-produzam-produtos-específicos que a liga mais à natureza, mais a uma paisagem que cria a fruição de uma profunda ausência de propósito pela qual, mais uma vez, é corajoso viajar?

           

          Será o alívio em relação à ausência do espectacular e do entusiasmante, não só em nome da excepção mas por alguma razão intrínseca que não deve ser confrontada com os estereótipos do que impressiona?

           

          Será a ausência de música ou de qualquer som durante a performance, apenas o ruído quotidiano proveniente do exterior do teatro, que questiona a origem da execução concentrada dos movimentos em curso e, assim, a motivação por detrás de todo este movimento?

           

          Será a ausência de qualquer toque físico entre nós que desencadeia um desejo por parte do público de nos juntar na sua imaginação?

           

          Ele diz: “Se ele estivesse na resistência, na guerra, nunca teria o pacote consigo, encontraria sempre maneira de ficar em segurança, alguma saída, nunca se colocaria assim em risco.”

           

          E ele diz que hoje em dia vivemos e actuamos nos filmes uns dos outros o tempo todo. E que quer fazer uma performance que seja um processo onde seja simples participar. Ele quer ser tocável e que a performance seja tocável, o que não é a mesma coisa que tocável.

           

          Ele diz: “Não quero controlar-me mas quero que toda a gente me possa controlar (a compreensão que têm do que está a acontecer).”

           

          Uma vez entrevistei um monge, um homem muito velho a quem chamavam Irmão Harold. E foi há muito tempo, por isso posso contar esta história sem ficar com vergonha. Não, é mentira, ainda estou envergonhado, mas vou contá-la à mesma. E então, claro, no final da entrevista eu disse: “Bom, deixe-me fazer-lhe a pergunta óbvia: o que é que Deus significa para si?”, e ele disse, imediatamente e sem qualquer hesitação: “O mais [the more] no meio de.” Disse-o assim de imediato, sem qualquer hesitação e olhando-me nos olhos. Não houve necessidade de parar para pensar, havia uma vida inteira de pensamento por trás da sua resposta, e o que eu percebi foi que o mais era agora, aqui, o presente,  o ser, que é rodeado pelo que veio antes, o que eu queria fazer, o que eu pensei que devia fazer, e o futuro, o que quero fazer a seguir. Quando contei a história, ele pensou que eu tinha dito “o movimento [the move] no meio de”, e de alguma forma isso continua a ser-lhe útil.

           

          Que idade tenho quando danço?

           

          Existe um “eu” na performance? Que outras partes de mim posso aceitar? Quem é que quero ser?

           

          Qual é a sensação da roupa? Dos sapatos?

           

          Como é que eu me mexeria se me atrevesse? Como é que me mexo quando não questiono a forma como me estou a mexer?

           

          Será que dançar às vezes é humilhante?

           

          O que significa despir o acto de performar?

           

          O que é que preciso de confirmar sobre mim próprio, expondo-me desta maneira?

           

          Como é que posso fazer alguma coisa quando duvido?

           

          O que é que eu faço quando me sinto confuso?

           

          Quando me sinto confuso em relação aos limites corro para os extremos, então será que devo correr ou devo aguentar o meio-termo?

           

          Isto é uma viagem pessoal?

           

          Se o processo for partilhado, então o que é que convido as pessoas a partilhar?

           

          Em que medida é que a performance é diferente da minha própria vida? Em que medida é semelhante? Uma vez que não estou preparado para ser menos do que perfeito, devo aceitar a busca da perfeição?

           

          Qual é a imagem recorrente de movimento “aberto”?

           

          Será mais eloquente não falar?

           

          O que significa “demasiado significativo”?

          Porquê alterar a linguagem e esperar compreensão?

           

          Como é que eu foco o palco?

           

          O que significa despir o espaço de performance?

           

          Será que estou a fazer perguntas que já foram feitas?

           

          Será que devo saber o que estou a fazer?

           

          Como é que devo tomar notas?

           

          Será que posso aceitar as contradições?

           

          Posso simplificar tudo isto?

           

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          Texto inicialmente publicado sob o título “Weak Dance Strong Questions” no volume 8 da revista Performance Research, editada pela Routledge Journals, em 2003. Traduzido do original em inglês por Joana Frazão.

          [1] Tradução de Flávio R. Kothe, Hermetismo e Hermenêutica, Paul Celan — Poemas II. (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985).

          [2] Tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto: Lello Editores, 1987).

          [3] Tradução de Gualter Cunha. (Lisboa: Relógio d’Água, 2004).

          Renan Marcondes Da Importância de Falar Mal

          A tecnologia da arte, ao contrário, não é uma tecnologia de melhoria e substituição, mas de conservação e restauração uma tecnologia que traz os vestígios do passado para o presente e que leva coisas do presente para o futuro.[1]

          Boris Groys

           

           

          O que é falar mal e por que isso importa no campo das artes? Antes de tudo, é preciso silenciar após a palavra “mal” e assumir um ponto final, ou no máximo arriscar uma interrogação ou exclamação. Falar mal. Falar mal! Falar mal? Não há aqui espaço para reticências e muito menos para o adjunto “de”: falar mal de alguém, falar mal de coisas. “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim”, diz a expressão popular transformada em música por Chorão em 2005 e novamente por MC Melody dez anos depois em seu hit de YouTube.

          Não quero pensar sobre esse falar mal de algo. Isso as redes sociais já nos obrigam a fazer o tempo todo. É rápido, certeiro como um tiro e, se não mata de fato, pode deixar a pessoa desaparecida desse segundo mundo por dias e meses. Falar mal “de”, hoje, pode ser letal. Não. Quero pensar apenas sobre falar mal: não falar direito, não argumentar bem, não se posicionar corretamente, não convencer ninguém, não estar do lado certo, não ter uma frase de efeito e altamente circulável. Quero pensar sobre isso porque sinto esse ato tão raro quanto urgente nos dias de hoje.

          Pego-me pensando sobre isso porque, no dia 15 de setembro de 2021, a 34ª Bienal de São Paulo, então em curso, publicou no Instagram uma foto da performance de Eleonora Fabião (Rio de Janeiro, 1968) comissionada para a mostra. nós aqui, entre o céu e a terra é um programa performativo feito pela artista e por colaboradores no qual 27 cadeiras (mesmo número de estados do Brasil mais o Distrito Federal)[2] de diversas instituições públicas do entorno do Parque Ibirapuera são carregadas com varas de bambu pela cidade até o prédio da Bienal, formando uma espécie de fórum sem corpos, unindo simbolicamente essas diversas instituições no pavilhão. Após a Bienal, as cadeiras são trocadas pela artista: uma escola pode receber uma cadeira de um hospital, assim como um museu pode abrigar uma cadeira de biblioteca municipal.

          Sob a foto divulgada nas redes sociais, na qual quatro pessoas carregam uma cadeira pela cidade, a clássica enxurrada de ressentimento. Para além do clássico “isso não é arte”, alguns comentários falavam que o problema da performance era que ela “precisava de legenda”, que não fazia “nenhum sentido”; outras pessoas perguntavam, nos comentários, se “alguém explica”. Todas as críticas ou considerações, mais ou menos violentas, pareciam apontar para esse problema: acham que a obra não fala nada para eles. Ou, se fala, fala mal (se falasse mal de algo, tudo bem, sem problemas). Mas a obra parece não falar bem ou direito.

          Para pensar um pouco mais sobre isso, interessa-me um desses comentários, segundo o qual na arte de hoje “tudo o que aparece são narradores narrando suas novas ideologias patéticas”. Talvez essa pessoa fale sobre a relação entre obra e descrição ou legenda, tão central desde a arte conceitual dos anos 1970.[3] A questão é que a performance em discussão é justamente uma obra fora do campo da ideologia (seja ela patética ou não). A ideologia só pode ser reconhecida nas obras que falam bem, transmitindo mensagens — e não há distinção de valor aqui, pois mesmo obras poderosas como as de Alfredo Jaar são bastante ideológicas.[4] A obra que não precisa de legenda, que faz sentido, cuja mensagem é clara, é a obra ideológica por excelência.

          O filósofo Boris Groys apresenta bem essa distinção. Para o autor, há duas leituras possíveis do papel da arte em relação ao público.[5] De um lado, temos a arte como parte da superestrutura e, do outro, como parte da base material. A primeira, que parece embasar esses comentários de Instagram, acredita que a arte mudaria o mundo capturando a imaginação e mudando a consciência das pessoas. Nessa leitura, a arte precisaria ser um tipo de comunicação para poder transmitir uma mensagem com sucesso para quem a vê. Ou seja, não é a arte que muda o mundo, mas é a mensagem passada com sucesso que permitirá que a pessoa que a viu mude o mundo, reveja sua ética, seus posicionamentos. Para isso, artista e público devem falar a mesma língua, formando uma comunidade dos que falam igual.

          O problema é que esse viés idealista tira da arte qualquer possibilidade de radicalização, projeção ou inovação do campo. Se ela precisa comunicar, se deve falar bem, ela está no campo do reconhecível, da convenção. Apesar de, historicamente, podermos notar bons usos de estratégias de reconhecimento como ferramenta crítica no campo da arte contemporânea (inclusive com a arte conceitual tendo abusado dessa estratégia), parece-me conservador buscar apenas produzir reconhecimento para quem vê em relação ao que é visto. Conservadorismo que se agrava em um tempo como o nosso, no qual somos direcionados a ver e ouvir apenas a parcela do mundo que mais se parece conosco.

          No lugar desse idealismo citado pelo autor, outro caminho seria a transformação direta no mundo material — à qual sou muito mais afeito, justamente por produzir e pesquisar em performance. Aqui, a arte deixa de ser entendida como “produção de mensagens” e se torna “produção de coisas”, mudando diretamente o mundo no qual as pessoas vivem (mudança desvinculada de mensagem, ou seja, não melhorista). A transformação, portanto, não viria da mensagem, mas sim da própria reconfiguração do ambiente no qual as pessoas se encontram. Groys cita casos vanguardistas como a Bauhaus para explicar que eles “compartilhavam um mundo com seu público — mas não uma linguagem”.[6] Porém, creio que a frase se aplica muito bem ao que vemos na performance de Fabião. O que se partilha nesse trabalho é da ordem da concretude do deslocamento, da remoção e do reposicionamento de coisas: cadeiras, que acomodam o corpo para pensar, dormir, comer, descansar. Elas, cadeiras públicas, carregadas sem rei ou rainha sobre elas, vazias, sendo resguardadas por um tempo-espaço no campo da arte para depois serem devolvidas, mas em outros lugares. Tudo muda, mesmo que na aparência tudo permaneça igual. Em vez de tentar mudar a alma, mudar o mundo naquilo que ele tem de mais banal.

          Nesse caso, poderoso justamente por desconfiar da ideia de que a arte (e, portanto, também os artistas) teria alguma mensagem para passar, a mudança de sensibilidade das pessoas deixa de ser parte de um projeto oriundo de um indivíduo ou grupo excepcional que vê além e passa a ser algo da ordem do descontrole e do imprevisto: pode gerar uma feliz utopia, pode perder o rumo completamente (alô, 2013?)[7] e pode dar em lugar nenhum. Não há o direcionamento da palavra de ordem ou da palestra. Ou, como Fabião afirma sobre essa obra: “O que de fato acontecerá dependerá das circunstâncias. Ou melhor, se fará por meio delas, pois as circunstâncias são matéria fundamental da ação.”[8]

          Afinal, a performance e a fala são amigas próximas. Não há uma sem a outra. Na Teoria dos Atos de Fala, proposta por John Austin[9], o verbo performativo só o é porque, mais do que transmitir uma mensagem, efetiva uma mudança concreta no mundo. Para quem estuda o tema, alguns exemplos clássicos são o padre que “declara” como marido e mulher um casal heterossexual, ou o prefeito que “nomeia” um barco antes que este parta. Eles mostram não apenas essa proximidade entre falar e fazer, mas também indicam que essa fala está necessariamente vinculada à Lei. E se toda fala está do lado da Lei, como também afirma Barthes em O rumor da língua,[10] a clareza da mensagem é apenas uma ferramenta a seu serviço.

          Portanto, falar mal é um dos campos possíveis da performance, principalmente dessa veia recente chamada arte da performance. Essa linguagem artística, surgida nos anos 1960 e focada no corpo, partilha com o ato de fala performativo esse desejo e compromisso de mudar o mundo diretamente, fugindo do campo da representação (no qual residem a explicação e a legenda), mas também se distancia do performativo ao desconfiar da sua força de Lei (onde residem a fala clara e o sentido). Aproximar-se de produções como a de Fabião nos ajuda a perceber que, se o ato de fala é central para produzir mundos e se a clareza da fala é espaço da Lei, para que se produza um mundo completamente outro é preciso falar mal segundo os parâmetros do mundo de antes. Deixemos as mensagens para os apresentadores de TV e não duvidemos do poder sensível da desordem e do silêncio porque, se a arte tem algum poder que lhe é específico, é o de falar mal.

          Ah, e para os que escreveram os comentários citados, basta lembrar da frase de Antoni Muntadas impressa clara e grande como um banner: “Atenção: percepção requer envolvimento.”[11]

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          [1] Groys, Boris. “The truth of art”. E-flux Journal n° 71, março de 2016. Tradução livre.

          [2] O Distrito Federal, uma das 27 regiões administrativas que compõem o Brasil, é o menor ente administrativo do país e serve de abrigo para a capital federal, Brasília. Ao contrário dos Estados brasileiros, não pode ser dividido em municípios, além de possuir mudanças em relação à sua legislação.

          [3] Ver o texto seminal de Kosuth, Joseph. “A arte depois da filosofia”. Em: Ferreira, Glória e Cotrim, Cecilia (orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975, pp. 210-234.

          [4] Refiro-me especificamente a um recorte mais recente da produção do artista chileno, também exposto na 34ª Bienal. Nessas obras, são recorrentes frases impressas em pôsteres ou exibidas em neon (como “outras pessoas pensam”) que sugerem posturas morais dos observadores em relação ao seu entorno.

          [5] Ver Groys, Boris. “The truth of art”. Em: E-flux Journal n° 71, março de 2016.

          [6] Op. cit., p. 3 (tradução nossa).

          [7] Os parênteses ecoam as manifestações ocorridas em todo o Brasil no ano de 2013, atualmente chamadas de Jornadas de Junho e iniciadas pelo Movimento Passe Livre por conta do aumento da tarifa do transporte público. O potencial revolucionário dessas manifestações acabou reavivando uma onda reacionária no país, culminando no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e na eleição do atual presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro.

          [8] Em: 34ª Bienal de São Paulo: Faz escuro mas eu canto (catálogo). São Paulo: Bienal de São Paulo, 2021, p. 192.

          [9] Austin, John Langshaw. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press, 1975.

          [10] Barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

          [11] Refiro-me aqui à intervenção de Muntadas “Atenção: percepção requer envolvimento”, parte do projeto em curso On translation. Nessa obra, o artista instala em diversos contextos essa frase impressa em branco sobre um fundo vermelho.

          Isabel Cordovil Fim

           

          Tenho-me lembrado muitas vezes de um livro do historiador de arte holandês Carel Blotkamp no qual se explora o conceito de “obra de arte final”[1] literalmente: o último trabalho de um artista antes de parar de produzir (causa mais comum: a morte). Blotkamp traça uma ligação entre a percepção de um trabalho realizado no fim da vida e a expectativa/fenómeno das últimas palavras, apócrifas ou não, e como às vezes estas pretendem ser um resumo da sua visão da vida, da arte ou de ambas, e como algumas se tornaram quase proverbiais e as suas origens se confundem entre mito e mito-ficção (exemplo: Até tu, Brutus?[2]). Não deixa de ser romântica a ideia de que o fim desvenda algo, como acontece em Citizen Kane com o famoso sussurro da palavra rosebud. Cruzei-me com este livro em pesquisas para a minha tese de mestrado, a que chamei Performing Absence (A Performance da Ausência) enquanto vivia aos pés dos Alpes. Estava muito interessada em personagens cujo desaparecimento (momentâneo ou permanente) foi ferramenta para a criação de uma mitologia do próprio: em Jesus Cristo (ascendido aos céus) interessava-me a condição de que se o corpo fosse descoberto não poderia ter havido uma milagrosa ascensão; em Bas Jan Ader, que em 1975 desapareceu no mar enquanto concluía o projecto In Search of the Miraculous – uma travessia transatlântica a solo num pequeno veleiro de recreio –, era a questão de se haveria ou não intenção no que poderia ser um gesto assumidamente performativo ou uma experiência estética; em D. Sebastião era a cenografia de um trono suspenso e o nevoeiro que o invocava; em Osama bin Laden, e nos seus quase dez anos como “o homem mais procurado pelo mundo ocidental”, era toda a loucura em volta de o encontrar com vida para ter o poder de a retirar;…

          Em todos estes casos pensei nesse desaparecimento como uma acção final – que ousei ver como arte –, o próprio desaparecimento ser tão parte da narrativa de uma vida – que ousei ver como arte também – como qualquer outro gesto ou movimento anterior. Andei muito tempo a pensar no que é que eu faria como o meu trabalho final se fosse olhar para a minha vida e o meu trabalho como um linha narrativa pré-desenhada, lembrando-me da série de normas e engenhos narrativos que Edgar Allan Poe escreve no seu ensaio A Filosofia da Composição[3], por exemplo, que se deve calcular o rumo de uma narrativa em direcção à sua última linha e tom final com que impactará o leitor/espectador.

          Numa tarde de Outono do ano passado, enquanto arrumava o atelier (o rochedo de Prometeu que me calhou) e me perguntava sobre o que é que um ser alienígena ou um meu sobrinho-tetraneto pensaria ao encontrar os meus objectos – mais especificamente as pedras que tenho guardadas a conviver no chão de onde trabalho –, cheguei a uma evidência sobre a minha prática artística: assumindo que a própria vida é performativa – desde o carregar das funções do corpo para cá e para lá até à manutenção das relações, dos ciclos, dos dias –, o meu corpo de trabalho pode ser visto como uma documentação expansiva desse algo de longa duração. Pensando assim, se o meu trabalho é a documentação desse movimento que é estar vivo e se esse movimento à semelhança de tantos outros se baseia na repetição, talvez pudesse abandonar a preocupação com o que é a estrutura narrativa do meu trabalho, que apenas pretende explorar detalhadamente a arena-palco a que se restringe: o tempo que cá tenho. E neste tempo até agora tenho tentado documentar, com uma relação passional com a exactitude e com a disciplina de alguém encarcerado que risca os dias na parede: quanto pesava o meu corpo no dia em que H. morreu? Quanto tempo demora um cubo de gelo a derreter na minha mão? Quantas epifanias, semimilagres, quebras de coração tremendas ou raptos de esperança súbitos conseguem caber num só dia? Quantas vezes atravessou o amor o meu espaço, a minha cama, o meu corpo? E talvez neste mar de dados inúteis se encontre um corpo e um tempo que se relacionaram profundamente um com o outro até se esgotarem.

          ERRATA (para um futuro): onde se lê que morri deve acrescentar-se que, antes disso, vivi três dias no estômago de uma baleia, como Jonas, mas nunca cedi às chantagens de nenhum deus; que a minha casa tinha trezentos e sessenta e cinco quartos; que as minhas últimas palavras foram, muito calmamente, com os braços muito abertos e um único foco de luz a atravessar-me como o meio-dia: cinco, quatro, três, dois, um.

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          [1] Carel Blotkamp, The End: Artists’ Late and Last Works (Londres: Reaktion Books, 2019).

          [2] William Shakespeare, Júlio César (Lisboa: Cotovia, 2018).

          [3] Edgar Allan Poe, A Filosofia da Composição (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2011).

          João dos Santos Martins Rotundamente

          Num dos últimos textos que publicou, “Desmoronando juntos uma e outra vez”, em Abril de 2020, o artista holandês Jan Ritsema criticava o calabouço de comentários sobre o devir da sociedade no pós-pandemia e defendia que só melhores ferramentas poderiam contribuir para um mundo melhor. Dava como exemplo a rotunda, uma tecnologia que exige uma aprendizagem e negociação colectivas para funcionar. Ao invés de semáforos, que endereçam uma ordem a cumprir, a rotunda obriga a cooperar num espaço com muito poucas regras: “Não porque foi oferecida mais liberdade de operação, mas sim um instrumento, uma ferramenta inteligente, fácil de operar por todos juntos.” A grande vantagem é além de tudo não haver “necessidade de policiamento”. Nesse texto deixava em aberto se realmente “conseguimos imaginar, desenhar estruturas e construir mais ferramentas como esta”.

          Jan Ritsema deixou-nos em Outubro de 2021 e não partiu sem deixar uma “ferramenta”: o Performing Arts Forum (PAF). À primeira vista, o PAF parecia uma residência artística convencional. Excepto que em vez de ser um espaço gratuito que atribui bolsas em regime exclusivo para se trabalhar, tinha de se pagar para trabalhar. Era um valor mínimo mas, ainda assim, eu achava que fazer arte deveria ser, pelo menos, custo zero. Entendi depois que o PAF era uma espécie de cooperativa financiada pelos próprios residentes que contribuíam para manterem o espaço em funcionamento e usufruírem dele. Havia uma razão para isso. Não era por não conseguirem financiamento. Este modelo permitia não apenas a sustentabilidade a uma estrutura autogerida, mas também garantia uma autonomia artística e independência burocrática (livre de políticas culturais e de mecenas dúbios). É certo que esta dinâmica resulta de um privilégio. Aliás, o espaço existe porque foi adquirido por Jan Ritsema com os seus próprios meios. Mas, contrariamente a outros, o PAF tornou-se lugar para uma organização colectiva, sem funcionários e, portanto, totalmente dependente dos seus residentes, mais ou menos regulares. No seu site, pode ler-se que o PAF é um lugar para pessoas que “podem monitorizar a sua própria produção artística e de conhecimento não respondendo apenas às oportunidades oferecidas pelo mercado institucional”. Nesse espírito, os residentes não são escolhidos, mas podem reservar a sua estadia até ao limite da lotação. De quando em vez, o PAF organiza encontros que combinam uma fértil interação entre a cena experimental das artes performativas e da teoria, combinando pensamento e performance radicais, no seio de uma organização imperceptivelmente radical. Da personalidade de Ritsema, agente cúmplice da experimentação que criou condições para esta colectividade emergir, recordo um inconformismo generalizado com a linearidade e o consenso, levando cada situação ao seu limite, muitas vezes, indiferente ao politicamente correcto, exercendo uma liberdade intelectual insuportável a muitos. Lembro-me que quando programei o curso PACAP #4, no Forum Dança, em 2019, Ritsema escreveu-me a dizer que deveria ter atenção com o prevalecimento de estruturas hierárquicas e piramidais no ensino. Não se referiu a nada em particular mas deixou as suas palavras à consideração.

          Enquanto escrevo isto não consigo deixar de pensar que, ao fecho desta edição, a artista e programadora Patrícia Portela foi afastada do cargo de directora artística do Teatro Viriato pela associação cultural que o gere, após menos de dois anos na função, e durante o período de proliferação da Covid-19. Sendo as razões do afastamento desconhecidas publicamente, e havendo recusas de esclarecimento à própria imprensa, resta comentar que a falta de transparência neste procedimento é altamente danosa para a comunidade e para a confiança nas instituições culturais. Desde há muito envolto em disputas de poder, seja internas, seja pela própria Câmara Municipal, proprietária do edifício e sua principal financiadora, a situação do Teatro Viriato parece espelhar um sintoma preocupante na ocupação de cargos de decisão cultural um pouco por todo o país: uma dinâmica pontuada entre tronos e reinados, por um lado, lugares indisputáveis e totalmente alienados do espírito democrático, e, por outro, uma dança de cadeiras onde o mínimo mal-estar resulta num despejo, numa confusão e num desrespeito encobertos por obscurantismo. Entre nomeações directas, concursos enviesados, conflitos de interesse e alternâncias de pendor político, parece que a cultura e as artes reificam dinâmicas adversas ao espírito livre, aberto e colectivo em que escolhemos existir. Melhores tecnologias como a rotunda poderiam ajudar a fortalecer esse espírito e a renovar o modo de funcionamento das organizações culturais, privilegiando e cultivando a negociação do dissenso, da diferença e do desacordo.

      • 5

          João dos Santos Martins Editorial

          Em resposta a um pedido para aprender e apresentar um excerto de uma peça sua, Raimund Hoghe lamentou dizendo: “É muito íntimo (…) e está ligado aos nossos corpos e distintas experiências de vida. Portanto não há como dar a minha coreografia ou partes dela a outras pessoas.” As artes performativas são exímias a garantir a sua irrepetibilidade. Estão conectadas aos sujeitos, físicos e psíquicos, o que põe em causa a sua transmissibilidade. O que acontece quando artistas que carregam o trabalho no seu corpo deixam o espaço material? Há corpos únicos que só esses podem realizar uma ação? Quando artistas entram no espaço sideral, parte da sua obra sume inevitavelmente consigo. Criam-se mitos. Outra parte é incumbida aos seus herdeiros que terão várias formas de interpretar ou de radicalizar o testamento. Outra parte é responsabilidade das instituições que presumem a preservação. E a parte que resta pertence ao colectivo — àqueles que durante anos e anos, não conseguiram mais discernir o que são e o que fazem das experiências sensíveis que perduram nos seus corpos. Esta missão, por vezes invisível e não comunicada, é fundamental para uma comunidade que se cuida além de abraços e que não se deixa equivocar com a virtude do novo. Resta continuar a transportar pedaços da memória para o futuro, reconhecendo a distância crítica que é necessário ativar para se ancorar no presente.

          João dos Santos Martins

          Gaya Medeiros Carta para Uma Enguia

          Olá!

          Eu espero sinceramente que você consiga se aconchegar nestas palavras ordenadas.

          Hoje eu sou a Gaya, mas já fui tanta coisa…

          E para nossa desilusão, uma das coisas que não sou é escritora. Seja por falta de talento ou por falsa modéstia, me vejo como uma performer, e a palavra me parece coisa boa de performar. Assim como não consigo mais conceber performances só baseadas na expressão do corpo, necessito da palavra, é uma tarefa difícil para mim saber que você está lendo isso sem a minha voz. Me sinto muito nua, me sinto sem controle.

          Hoje, mais um dia de descobertas na vida da trans, me apercebi que sou lida diariamente. Lida sem controle. Lida “à queima-roupa”. Na rua, no metrô, no palco, nos lençóis… E essa percepção só se deu por contraste: nos meus dias de menininho costumava ser mais fácil ficar invisível. Eu era um panfleto oferecido na rua, daqueles impressos em preto e branco, que só aceitamos por dó do distribuidor que pinga impaciência debaixo do sol quente. Agora me sinto um calendário erótico como os que ocupam as paredes insalubres das tocas dos mecânicos, objetos que, mesmo inertes, parecem sempre nos provocar uma reação. E, para dar uma apimentada nessa aflita constatação, me vejo negociando com as palavras dos dicionários dos outros. Eu, atrás da minha máscara, vendo as pessoas me lerem com seus vocábulos tortuosos. Nos dias bons, quando a gata está mais corajosa, mostro que também sou leitora. Rujo por detrás da minha máscara, capricho no eyeliner e demonstro minhas habilidades de mergulhadora. Pumba! Pulo dentro do olhar alheio. 

          Aí estamos nós, no mesmo patamar… em um mar de ninguém, como o Mar de Sargaços, um dos únicos mares localizado entre correntes de água, sem um só pedaço de terra à sua volta. Não há boias, bebê! Esse é para mim o lugar do encontro. Um mar profundo, rodeado por correntes, onde curiosamente as enguias nascem, para onde elas misteriosamente voltam para se reproduzir e, finalmente, morrer.

          Entre panfletos, mares e enguias, desejei ser lida também pela minha enguia-mor: 

          a Senhora Minha Mãe. 

          A Senhora Minha Mãe não conheceu a Senhora Gaya. Essa enguia-mãe retornou ao Mar de Sargaços, onde deu origem a três larvinhas e partiu para aquele lugar “entre a memória e o esquecimento”. Enguia forte, com mandíbula larga e pele rija. Você sabia que quando a enguia decide se reproduzir ela digere o próprio estômago? Minha mãe digeriu seu apetite pela vida quando descobriu que seu corpo havia decretado estado de calamidade. Justo. 

          (Aqui insere-se um parágrafo inteiro que descreve as sensações de uma criança sentada no chão ao pé de um sofá. Nesse móvel encontra-se uma mulher imóvel com os olhos cerrados e aparente esforço para cerrá-los ainda mais. Suas mãos estão enfiadas entre as pernas. Ouvem-se gemidinhos quase imperceptíveis. A criança se achata na tomada de consciência de que a impotência é palavra que não está estampada só nos maços de cigarro de seu pai. Impotência é o ralo da alma, é quando só nos resta o choro por não conseguirmos dar vazão à raiva.)

          Escrever uma carta que nunca será lida pelo seu destinatário é uma pequena rebeldia doce. Dura mais que uma lágrima. É um grito num campo vasto. É uma garrafa jogada ao mar. Dia 29 de maio, dia do aniversário da enguia, joguei uma carta ao mar na esperança de que ela chegasse a Sargaços:

          Oi Lindona! 

          Quem é que faz anos hoje? Já notou o sotaque, né? Pois rsrsr estou em Lisboa. Tô aqui tentando criar uma cena para um espetáculo, o meu primeiro espetáculo como Gaya. E ainda tem isso, sou a Gaya agora. Nada contra o outro nome que você me deu… bom, ele era levemente sem sal, um bocado comum e que quando eu o dizia as pessoas entendiam “Douglas” kkk Sim, ele até tinha um significado bonito… ok… mas o outro, o segundo nome, eu não absorvi ele muito bem, nunca assimilei a doença que ele propunha antes da tal cura: Raphael — curado por deus. Você é quem deveria ter se chamado Rapha-ela. É isso: Vale o que vale, né? 

          Olha, outro dia chorei MUITO assistindo uma série e lembrando de você. Não lembrando de você exatamente, mas revisitando a nossa não-despedida. Entretanto, me contento a pensar que talvez seja um privilégio essa possibilidade de se despedir de alguém. 

          Dizer as últimas palavras…

          Ouvir as últimas palavras. 

          Dizer alguma coisa pela vez mais última. 

          Very last time.

          Nessa vibe de “artistona” fico me valendo do privilégio de dizer-te coisas pela última vez… Porém, é tudo tão mentira que me vejo num looping perseguindo o impossível dessa despedida, como se impossível não fosse. “La maison de ma maison a brûlé” quer dizer “a casa da minha casa queimou”, em francês. Queria que você me ouvisse dizendo essa frase com meu francês bastante tropical.

          Mãe, eu tenho inveja das cantoras de blues que gemem sua dor de forma tão bonita.

          Hoje eu fui pesada no Tinder. Um cara me disse:

          — Ô moça bonita!

          Não, ele não disse isso. 

          Ele disse: 

          — Queres mamar hoje?

          Eu não me lembro de mamar em você, mas vi você amamentar meu irmão.

          Também tenho inveja dos irmãos mais novos que mamam pela very last time.

          Eles estão no colo pela very last time…

          E ele me disse: 

          — Queres na boca ou na carinha?

          — Tás parvo ou o quê? – ela responde. ( Ela é uma garota from Lisboa!)

          Mãe, o amor ficou um bocadinho mais raro, mais distante, mais dispensável.

          E tenho me acostumado (afinal tem sempre outra pessoa no colo) e isso é uma coisa triste. Curiosamente, o afeto é o que tem me surpreendido. Quando alguém me trata com “Bom dia, senhora” eu fico quase assustada! 

          Eu cheguei a esse ponto.

          Eu fico à espera do tapa, 

                                à espera do não, 

                                            à espera do pedido de sigilo, 

                                                      à espera da despedida.

          Eu cheguei a esse ponto. 

          Eu, deitada numa cama, completamente nua, vendo um homem se vestindo.

          É impossível não ficar à espera do ponto…

          Desde que você se foi, eu brinco de ser a gaja para quem o feirante grita:

          Ô moça bonita! Ô moça bonita…

          Mãe, eu fico à espera do ponto.

          Do ponto final.

          Fico à espera de que alguém me acorde 

          no ponto final 

          e diga:

          já chegou, pode descer. 

           

          Para ouvir esta carta dita por mim:

          https://cartaparaumaenguia.coreia.pt

          Leticia Skrycky Carta a Anaísa para Nunca Ser Enviada

          sáb., 24 abr., 9:31

          Hola, Anaísa:

          ¿Cómo estás?

          Qué bueno saber de vos y comenzar a trabajar contigo. Me gustó mucho conocerte durante el montaje de nuestra pieza con João y Carolina y, desde entonces, quedé curiosa. Alguna vez tuve ganas de hacerte preguntas sobre cómo trabajás, qué pensamientos tenés en relación a la dirección técnica, a ser mujer, a recibir a otras diseñadoras. En fin, un día de estos quizás me anime y te invite a tomar un café.

          Cuestión es que me sorprendió que tu mail estuviera dirigido a mí, siendo una propuesta colectiva. ¿Será que me identificás como responsable por la iluminación de esta futura ocupación? Tiene sentido, si no tenés más información sobre cómo estamos intentando trabajar. Probablemente me sorprendió por su cuota de realidad: un llamado a cómo son las lógicas laborales y a que a veces, en mi entusiasmo de creer que estoy logrando encontrar otras, me olvido dónde, cómo y con quiénes.

          Sobre todo lo que me decís relativo a plazos y lo dicho en reuniones, la verdad que no tengo ni idea. Quizás hay un histórico que desconozco, quizás me perdí en la traducción y me quedé durmiendo en mi colchoncito de portunhol.

          Es que para serte sincera, Anaísa, no sé cómo va funcionar todo esto, básicamente porque aun no entiendo bien de qué va. Lo bueno es que no me importa mucho, porque si se trata de un encuentro pues desde allí surgirá la situación en sí misma y lo que las relaciones puedan alimentar.

          No conozco a casi nadie de quienes van a participar. Ya hemos compartido tiempo de trabajo con Sara y ella me da inmensa curiosidad, me gusta conversar y pensar con ella. Probablemente me gusta cómo yo misma pienso en diálogo con ella. Luego están Filipe y João, compañeros también de este subgrupo inmersivo, a quienes casi no conozco, por lo que todo será descubrimiento. Está Claraluz, que me cae muy bien, y del resto poco sé. En definitiva, ya el encuentro dirá.

          No te imaginás, Anaísa, lo mucho que me aburrió pensar en tener que hacer una planta seudogenérica para darle gracia lumínica a estas tres semanas. ¿En base a qué?, ¿con qué pregunta? Y tampoco te imaginás el entusiasmo que me invadió cuando creímos encontrar una lógica relacional que la activara: una planta indeterminista que les dejara el campo abierto a ustedes para hacer prácticamente lo que quisieran.

          Me pasé varias horas, debo admitir, imaginando todos los posibles: llegar y que solo hubieran colgado una luminaria en el centro del espacio, que hubieran colgado todo el rider de la sala en una única vara, que hubieran armado una planta de luces perfecta pero iluminando el techo, que hubieran utilizado recortes pero con todas las cuchillas cerradas, o robóticas que no paran de moverse pero no emiten ninguna luz, o —casi la mejor de todas las opciones— llegar y que no hubieran colgado nada.

          Un entusiasmo enorme tener que descifrar cuáles gestos y deseos esconde su montaje, que claramente se desinfló con tu mail. Lo que me divierte no tiene por qué interesarles a ustedes, claro. Entonces me quedé pensando en qué responderte, Anaísa, y qué proponerles a mis colegas. Gracias por la posibilidad que sugerís de llamar a alguien externo, pero ya no es suficiente para animarme. El aburrimiento volvió a invadir: el fantasma de una planta de luces genérica acechando desde nuestro futuro cercano.

          Pero hoy me desperté y empecé a hacerme amiga de una de las consecuencias que tu respuesta también contiene, la de llegar al espacio y no tener nada. Posibilidad enorme que comienza a darme ánimo conforme van pasando las horas.

          En este momento estoy viajando de Porto a Lisboa, feliz de viajar en tren porque en Uruguay ya no hay ni llegué a conocer a los que alguna vez hubo. ¡Qué transporte noble el tren! Parece querer suavizar el pensamiento.

          Cuestión que ayer íbamos a filmar una pieza para el Festival DDD, «Cabraquimera» de Catarina Miranda, pero minutos antes de comenzar el corrido un performer se lesionó. Suspendido nuestro estreno digital, hicimos un ensayo general solamente con les tres performers restantes, haciendo un ejercicio de imaginar lo que estaría haciendo Lewis, el compañero lastimado, en el minuto a minuto del ensayo. La ausencia de Lewis nos hacía evocarlo y completarlo.

          Pienso que no tener un set-up de luces para Curadura será algo parecido. Nos permitirá pensar todo lo que podría haber sido o todo lo que podría ser: infinitos virtuales esperando a ser activados, una verdadera iluminación de ficción o ciencia ficción, que solo existirá en el virtual de nuestra imaginación. El ánimo avanza, Anaísa. ¡Imaginate todo lo que una situación como esta puede despertar!

          Quizás usemos su luz de trabajo durante las tres semanas y esa luz nos haga recordar que estamos trabajando, y la incomodidad visual nos lleve a diseñar la mejor luz de trabajo. O imaginá si esa situación termina por activarnos un pensamiento proletario, si se arma una lucha de clases solamente por haber tenido que sufrir las penurias de una luz de trabajo.

          O quizás nos vemos obligades a trabajar a oscuras y pasamos a tener una investigación puramente táctil.

          O quizás, no pudiendo usar velas por obvias razones, tenemos que iluminar nuestra zona de trabajo con los teléfonos móviles. Las baterías se van a empezar a acabar pronto, necesitaremos conectar los teléfonos, y como no habrá suficientes tomas, utilizaremos los circuitos de las varas: el grid a altura media, lleno de teléfonos colgando, regalando pequeñas luces pendulares.

          O quizás hacemos una asamblea para planear cómo hacer un agujero en el techo para dejar entrar la luz del sol.

          O quizás resolvemos salir afuera, al barrio, y usar el teatro solo para guardar nuestras mochilas, preparar café y protegernos de la lluvia, y así terminamos por conocer a algún vecino albañil que nos ayuda a hacer el agujero en el techo del teatro.

          O quizás estar en la oscuridad nos da sueño y dormimos siestas infinitas, usando los estrados como camas duras, que dicen que es bueno para la espalda, y terminamos por recuperarnos de los dolores que los otros trabajos y las infinitas horas en la computadora han provocado.

          O quizás se nos dé por revisar los archivos de todas las plantas de iluminación que fueron montadas en esa sala y descubrimos que hay un lugar donde siempre una luminaria fue colgada, un punto donde todes les iluminadores coinciden: un atractor extraño que se revela como el Aleph lumínico de ese espacio. ¡Qué descubrimiento increíble sería ese! 

          Imaginate, Anaísa, ¡todo lo que puede pasar!

          De todas las opciones posibles, tu respuesta también contiene la más prometedora de todas.

          Abraço,

          Chichi

          sáb., 24 abr., 12:26

          para João, Sara y Filipe

          Hola, querides!

          Hoy me desperté pensando en nuestro futuro cercano y en alguna respuesta inevitable que demanda la coordinación técnica de «Curadura».

          Aún medio dormida le escribí una carta de amor a Anaísa, que nunca voy a enviar. Una carta a Anaísa que en verdad es para mí misma y para ustedes tres.

          Lo bueno de todo esto es que sin haber llegado aún a TBA, para mí el trabajo ya comenzó.

          En fin, una carta de amor dormida y sin edición, que comparte mis entusiasmos y mis aburrimientos:

          Abrazo,

          Chichi

          mar., 10 ago., 12:16

          Quisimos mantenernos en la ausencia de un diseño. Entramos a la caja negra y nos preguntamos dónde está el sol, nuestra primera práctica de observación e invocación. ¿Qué y quiénes no están dentro de esta sala?

          Esta posibilidad duró poco. Las actividades y la programación reclamaron una luz que no solo permitiera ver sino que además creara condiciones para ver de cierta manera.

          Atravesé las semanas con un deseo cada vez más rabioso: hacer un agujero en el techo del teatro para que el sol entrara. Que el ruido de la pared rompiéndose no nos permitiera hablar. Agujerear un techo para agujerear nuestros discursos, hacer para dejar de producir, hacer con las manos. Abrir la caja.

          A las 14 hs., póngase de pie en el centro del escenario.

          Intente detectar en qué lugar el sol está golpeando el edificio en este momento.

          Una vez encontrado ese punto de incidencia solar, haga un agujero y déjelo entrar.

          Un día, una acción colectiva calmó la pulsión de la forma más suave: una cadena humana y de espejos logró que la luz del sol entrara a la sala: cruzó la calle, atravesó el hall, bajó las escaleras, abrió la puerta y un rayo blanco de 4500º Kelvin enmudeció la caja negra.

          En ese gesto delicado descubrí que a veces para hacer un agujero es mejor buscar una grieta, un surco. Encontrar una posibilidad que se mantenía silenciosa y vivir en ella, como bajo un techo que nos cubre de la lluvia, regalándonos tiempo y espacio.

          Bruno Zhu Que Merda

          Quando andava no secundário, pediram-me para posar para um projecto de fotografia sobre os sete pecados mortais. Na avaliação, o aluno explicou que o meu retrato representava a gula e quando os professores lhe perguntaram porque é que me tinha escolhido, ele disse que foi por eu ser feio. Há três anos, encomendaram-me uma obra de arte para um centro comercial em Lisboa. Depois de fazer a proposta, a directora de marketing ficou confusa. Apesar de o museu de arte contemporânea com quem fazia a parceria já lhe ter introduzido o projecto, ela estava incomodada com o facto de a minha prática artística — e claro, eu — não parecer suficientemente português. Ela disse que o centro comercial atraía clientes de classe alta e infelizmente o meu perfil não se enquadrava nisso. Durante um jantar entre artistas no verão passado, estávamos a falar sobre sucesso no mundo da arte contemporânea. Quando a conversa voltou para as pessoas que estavam na mesa, uma delas — um membro activo da associação cultural onde a minha exposição iria abrir em breve — virou-se para mim e disse que o meu sucesso vem de eu ser “chinoca” pois as questões identitárias estão muito na moda ultimamente.

          Em todas estas circunstâncias, fiquei calado a digerir o impacto. Desfiz palavras, tons e contextos, porque certamente nenhum deles quis dizer o que disse por mal? Talvez quando o aluno disse “feio” se referisse ao espírito da fotografia. “Não parecer suficientemente português” pode ter significado eles quererem um artista mais estabelecido. Talvez o termo “chinoca” tenha sido usado num tom atrevido para anunciar um nível novo de amizade? Mas se estas expressões não foram ditas como ofensas, então porque é que fui chamado de feio? Porque é que fui descartado como alguém a quem lhe falta algo? Porque é que fui julgado por ser demasiado uma coisa? O que mais me assusta nisto tudo é aperceber-me que nenhum deles me quis ofender. Aos olhos deles é justamente um facto que eu, um português de primeira geração filho de imigrantes chineses, não me encaixo nos padrões de beleza, nacionalidade ou humanidade deles. Que eu sou um monstro, um extraterrestre, um fetiche da indústria.

          Dado que a minha exposição seria acolhida pela pessoa que usou um termo racista para me descrever a mim e à minha prática artística, não quis continuar sem tomar acção. Pensei em cancelar a exposição, mas isso só me iria penalizar a mim, e fazer com que o despedissem não evitaria que usasse insultos racistas noutras ocasiões. Por isso decidi explorar o estado das políticas raciais no Portugal de hoje. Queria entender como é que alguém que se apresenta como anti-racista e antifascista, que foi à marcha Black Lives Matter e que faz tudo o que se espera de milénicos esquerdistas, usa um insulto racista tão facilmente em privado. Se o termo não era para ser ofensivo, porque é que ele tem o direito de evacuar o significado da palavra? Porque é que ele tem o poder de deslocar a História? Porque é que ele tem o privilégio de atribuir identidade?

          Fiquei chocado por ver vários tipos de colonialismo a serem combinados num só recentemente, sem mencionar a escassez de diálogo sobre as consequências da(s) descolonização(ões) e a sua ramificação na sociedade contemporânea. Este último ponto é uma experiência em curso para os portugueses, pois as gerações que passaram pelo período autoritário do Estado Novo (1933-74) ainda estão vivas hoje. Alguns foram da metrópole para as colónias em busca de riqueza e viram Portugal alterar a sua Constituição, em 1951, para se tornar num império. Outros viram os seus filhos serem enviados para a guerra contra os movimentos nacionalistas africanos que lutavam pela liberdade. E esses filhos voltaram, tristes e destituídos do seu estatuto de colono quando o regime caiu em 1974. Tentar perceber como alguém aliado ao pensamento de Esquerda me chama “chinoca” fez-me pensar se houve uma tradição racista na Esquerda portuguesa. Não parece ter havido uma tradição explicitamente racista, mas é suspeito se repararmos que o Partido Comunista Português, então o maior partido de oposição, nunca foi firmemente anticolonialista até usar esta posição como uma oportunidade para derrubar o regime. Os protestos estudantis de 1969 em Coimbra, que provocaram o início do fim do império, eram maioritariamente compostos por estudantes de classe média-alta, reflectindo os protestos de Maio de 1968 e os movimentos de contracultura pelo mundo. É importante salientar que estes movimentos dissidentes eram ideologicamente heterogéneos e atravessavam o espectro do pensamento marxista. Apenas os grupos maoístas promoveram constantemente uma visão anticolonialista.

          O fim do regime autoritário foi um momento crítico para a vida da população em Portugal continental, mas a vanguarda esquerdista portuguesa estava mais investida no internacionalismo. Depois da tentativa de construir um estado socialista, conhecido como o Verão Quente de 1975, Portugal restabeleceu a democracia com a com a vitória do Partido Socialista nas eleições de 1976 e integrou-se no mercado livre europeu sem olhar para trás. Sem olhar para Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe ou Cabo Verde, todos descolonizados à velocidade da luz e abandonados para lidar com cinco séculos de exploração e desapropriação. Sem olhar para Timor-Leste, deixado vulnerável enquanto a Indonésia anexava o seu território em 1975. O Partido Socialista foi fundado com o apoio monetário da Agência Central de Inteligência (CIA). Os Estados Unidos receavam que Portugal se iria transformar num estado comunista.

          Porque é que falo de anticolonialismo? Porque não estou interessado numa abordagem contra o racismo baseada em afectos. O ódio e o medo são reais, mas porosos. Deixam demasiadas saídas para o sentido de responsabilidade escapar. Na minha experiência, o comportamento racista costuma ser entendido como um evento isolado da História. Costuma apresentar-se mais como um acto de paixão — impulsivo e rapidamente esvaziado quando as desculpas são pedidas. Eu tenho de aceitar as desculpas, porque se não o fizer sou mal-agradecido. Desculpas são como presentes, e presentes são coisas boas. Que mais posso querer, perguntam eles.

          Nos últimos anos, discussões em torno do racismo introduziram um aspecto histórico através da revisão dos imperialismos ocidentais. Receio que este conhecimento importante não tem produzido relações causais, mas apenas alegações para apanhar a História ‘em flagrante’. Entre os meus amigos ‘despertados’, reconhecer o passado colonial das suas nações tem-se tornado numa experiência moral, catártica e individualista: colonialismo=escravatura=mau, responsabilidade ou “accountability”=conhecimento=bom. Eu era mau, agora sou bom. Sentirem-se mal sobre o passado previne os seus egos de reconhecerem o papel que eles próprios têm na reprodução da liberdade de expressão, autonomia e progresso que apenas beneficiam uma geopolítica particular. No meu caso, eu identifico o artista com quem jantei como um “fidalgo liberal”. É alguém que nasceu e foi educado com ideais liberais — o pai dele foi activo na luta contra o regime, logo ele acumula capital revolucionário adquirido pelos seus antepassados. Ele teve um livro de Frantz Fanon na mesa do seu atelier. Ele faz comentários contra o capitalismo como quem deve na “época antropocénica”. Ele tem consciência da ironia da branquitude através do TikTok. No entanto, é-lhe concedida a distância luxuosa de não ser alvo de crítica porque a sociedade encarrega precisamente a pessoas como ele o papel do crítico, a voz da Razão. Talvez a minha ambivalência em utilizar termos descritivos como privilegiado, branco, homem, cis, hetero ou ocidental atrapalhe a minha mensagem, porque eu recuso servir-me da mesma lógica redutora que ele usou. Mas espero que vocês, leitores, consigam entender o meu argumento.

          Ainda que nenhuma postura explicitamente racista se encontre nos registos da Esquerda tradicional portuguesa, é visível uma resistência em reconhecer todas as modalidades de opressão. Existe um foco em privilegiar a humanidade de uns em vez de outros e em proclamar uma apologia nacionalista loquaz que, no seu melhor, subestima e, no seu pior, foge do seu próprio legado colonial. Eu sou capaz de aceitar que chamar-me “chinoca” não faz dele um racista, mas a leveza com que usa um termo deste tipo é testemunho duma certa mentalidade burguesa de classe média-alta que continua intacta hoje em dia.

          Se a História portuguesa é prova de uma cirurgia plástica nacional que troca o seu passado colonial pela modernidade europeia, a psique portuguesa parece ter escapado ao bisturi. Durante o Estado Novo, o regime promoveu intensamente o lusotropicalismo. Este enquadramento polémico, fruto do seu tempo, foi desenvolvido pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre nos anos 1930 numa tentativa de reificar o hibridismo racial da identidade brasileira. Para tal, Freyre refere aspectos geográficos e antropológicos que justificavam positivamente o colonialismo português. Ele propôs que Portugal seria um colonizador legítimo dado que os portugueses eram eles próprios uma mistura de várias civilizações — romana, celta, mourisca — tornando-os familiares com a condição de colonizados, logo colonos mais brandos; que os portugueses, estando mais próximos do Equador, comparado com as outras nações europeias, tinham sangue mais quente e logo mais adaptável ao clima tropical; que estes atributos fisiológicos, para além do império colonial português ser a presença territorial mais antiga do mundo, justificavam a propensão dos portugueses à miscigenação. 

          Ser português era ser do mundo, um corpo de várias raças, um profeta de culturas e continentes velhos e novos. Enquanto esta postura etnopluralista criava directrizes desumanizadoras nos territórios ultramarinos, em Portugal metropolitano desenvolveu-se um caso de hiper-identidade. Segundo o filósofo Eduardo Lourenço, Portugal tem uma fixação mórbida com a sua história colonial como uma história que nos eleva, a nós portugueses, das outras nações. Para Lourenço, esta hiper-identidade permite a Portugal ter sempre uma identidade independentemente do contexto, uma que é menos sobre a capacidade colectiva da nação e mais sobre ser o “privilegiado actor histórico da aventura europeia no mundo”.

          A escala e a influência de Portugal colonial pelo tempo, cristalizada pelo seu fim abrupto, tornou-se num mito fundador da sua identidade nacional, mesmo depois da queda do Estado Novo. Dado que o lusotropicalismo tentou remover a questão racial da colonialidade portuguesa, o discurso crítico de hoje usa pessoas não-brancas ou como dados históricos (por exemplo, o comércio transatlântico de escravos ter sido um desenvolvimento mercantil racional) ou estritamente como uma paleta de cores da pele humana. Neste modelo, ver cor não equivale a ver raça. O termo pejorativo “preto” é usado frequentemente utilizado por pessoas não-negras para descrever afro-portugueses ou pessoas negras, por isso não surpreende que eu tenha sido chamado de “chinoca”. Eu certamente me pareço com um, certo? Muitos portugueses torcem o nariz à palavra raça, porque para eles existe apenas uma – a humana – por isso o termo etnia é preferido. Poderíamos considerar esta preferência refrescante, visto que é de sabedoria geral a raça ser uma construção social, mas quando este ponto é levantado entre a população geral portuguesa a maioria despreza a expressão “construção social” como uma geringonça intelectual. Assistimos assim a um outro jogo semântico onde discriminação contra grupos étnicos segue o racismo científico pré-Segunda Guerra Mundial. O alinhamento racialista da identidade é reforçado por um espírito intransigente de titularidade pós-racial, que não dá espaço para o Outro reivindicar a sua subjectividade.

          Voltando àquela noite, eu percebi porque é que o meu sucesso profissional foi entrelaçado com a minha etnia, sendo que o último aspecto representa o valor único que posso ter no contexto do mercado da arte. De repente, esta equação racista é transformada, dirigida ao demónio inevitável que o fez insultar-me: o capitalismo! O capitalismo fê-lo pensar nisso! O capitalismo fê-lo acreditar nisso! O capitalismo fê-lo dizer isso, então certamente tem de ser desculpado, e até louvado por ser tão perspicaz?! Então, um insulto racista é justificado porque é usado contra um mal maior? Existem circunstâncias nas quais tenho de tolerar ser reduzido a um estereótipo racial? Existem momentos válidos para empregar pensamento racista que eu preciso de saber?

          Eu quero imaginar que vocês responderiam a estas perguntas com um tremendo “Não”, mas não consigo deixar de ser céptico com a forma como as pessoas interpretam ou se tornam aliadas à causa anti-racista. Numa conversa com uma artista local durante os protestos em solidariedade para com Bruno Candé, o actor afro-português assassinado em pleno dia em Moscavide por um veterano da guerra colonial no Verão passado, desabafei sobre a minha frustração com o estado actual dos debates raciais e de género em Portugal. Critiquei a falta de originalidade na linguagem à volta deles: como, em vez de criar um novo léxico para traduzir e situar estas questões no contexto nacional, se dependia imenso de anglicismos. Quando sugeri que inventar um vocabulário novo seria provavelmente a coisa mais patriota que a nossa geração poderia fazer para abrir caminho para o progresso social, a artista ficou amedrontada. Ela disse que “patriota” era uma palavra feia, que era antiquado e algo que ela associava aos seus avós. Ela parece ter confundido patriota com nacionalista. Voltei ao mesmo assunto com outrx artista local e, ao mesmo tempo que concordava comigo, comentava que as instituições deviam ser “held accountable” [ser responsabilizadas], sem referir em que é que deveriam ser responsabilizadas por. Não conseguiu dizer isto em português, reparou nesta inconsistência e a conversa ficou por aí.

          A minha geração testemunhou um êxodo de intelectuais portugueses para os epicentros culturais da Europa Central como Londres, Paris e Berlim. Se a contemporaneidade pós-fascista portuguesa foi predicada num salto para a Europa, o seu subproduto é uma visão fatalista, profundamente cínica das condições locais de reprodução social. Sob nenhuma forma apoio qualquer ideia de isolacionismo, mas não consigo deixar de ver como as pessoas fazem uso da sua mobilidade social e as formas e vazios que isso traça. Para mim, isto cria brechas preocupantes que confirmam o deslocamento cultural de uma nação relutante em diagnosticar a sua própria identidade, enquanto define a identidade de outros como patologias.

          O que é que a identidade nacional tem que ver com casos racistas isolados? Ao despir a categoria política de raça da sua História, a sociedade portuguesa consagrou incontestavelmente a racialização na produção dos seus sujeitos nacionais. Por isso é natural agarrar a carteira quando se vê um cigano, persuadir estudantes afro-portugueses a não ingressarem no ensino superior, espancar até à morte um emigrante ucraniano no aeroporto, hiper-sexualizar o corpo brasileiro, ou acusar os meus pais e a comunidade chinesa de evasão fiscal, tráfego de órgãos humanos e dominação global através da “Covid-19 comuna”.

          O meu objectivo ao escrever este texto foi para fazer sentido do que se passou naquele jantar. Eu fui traído por um par que, tendo acesso à minha prática artística e vida pessoal, me humilhou para exibir a sua rebeldia. Não estávamos sozinhos na mesa, mas como os professores no meu secundário e a equipa de marketing do centro comercial, os meus amigos permaneceram imperturbados. Não posso culpá-los por viverem numa realidade social estagnada que dá prioridade a uma mudança cosmética em vez de ideológica. Muitos deles publicaram quadrados pretos durante o #BlackOutTuesday no Instagram, e repartiram publicações info-sociais para educar os seus seguidores. Mas nenhum deles parece ter questionado o contrato social que inscreveu involuntariamente o racismo na sua linguagem. É por isso que insultos raciais em português deslizam facilmente do seu significado inicial, desde que o locutor anuncie “Eu não disse dessa forma”. Então de que forma é que um epíteto racista existe? Terei de me conformar a ser manipulado, a aceitar “chinoca” como um termo… carinhoso? Como é que posso escapar a esta caracterização racial? Terei de imitar a estética K-Pop? Terei de provar não ser um membro do Partido Comunista Chinês? Terei de participar na produção de branquitude para brancos, para que se sintam visíveis numa altura que é sobre tudo menos branco? Porque se não estou condenado a corrigir projecções racistas lançadas contra mim. Terei de sujeitar-me a ser “chinoca”, mas não daquela forma. Será que quero produzir “raça”? E se o mecanismo para tal produção nunca esteve nas minhas mãos para começar?

          As obras na exposição em questão não tiveram nada que ver com o incidente. Foram inspiradas pela planta do espaço. A casa-de-banho, situada mais ou menos no meio do espaço expositivo, segue a direcção dos canos que vêm de cima. Eu reparei nisso durante uma visita e acabou por inspirar a instalação. Se fosse potente o suficiente, puxar o autoclismo poderia hipoteticamente fazer desabar o edifício inteiro. Dessa forma, o autoclismo poderia ser considerado como uma força direccional transgressiva e a sanita como um portal. Alguém iria para baixo. Alguém iria abaixo. Por isso imaginei o espaço à espera de ser submergido ou, se reverterem o esquema, à espera de emergir do submundo. E o que viria da sanita. Merda? Alguém merdoso? Sentimentos de merda? Chegar a um lugar merdoso? Pensei que lidar com merda conceptual iria ser engraçado e político. Não esperava ter sido posto na merda durante o processo.

          Leandro Souza Refrão

          Berlim, Alemanha, setembro de 2017. Saíamos de um espetáculo no Dock 11, um espaço conhecido de produção, aulas e apresentações de dança da cidade. No caminho para casa, trocávamos, eu e uma jovem mulher europeia, impressões sobre a peça. Em dado momento da conversa, comentei que alguns aspectos foram desafiadores e não havia captado certas nuances do trabalho. Ela me olhou e disse algo, como: nós somos sutis e vocês são explícitos. Fiquei atento a ela, não havia compreendido. Aquilo se agarrou aos meus pensamentos. Me perguntava quem eram o “nós” e quem eram o “vocês”, enquanto ela dava seguimento a fala. Então, apontou para o casal de colegas nossos que caminhava à frente – uma moça e um rapaz, brasileiros como eu – e teceu comentários acerca das formas corporais de ambos, especificamente, comparou os atributos físicos da brasileira com os da dançarina europeia, que ficara nua em certo momento da peça. Chegou a mencionar, brevemente, a recorrência da nudez nos experimentos que nossos colegas realizavam no curso que estávamos fazendo naquela época e, também, recordou de quando eu disse a ela que gostava de uma canção que ela cantara em um estudo coreográfico, relacionando meu gosto ao fato dela ter berrado o refrão da música, como se fosse uma característica comum “nossa”. Eu poderia concluir, então, que nudez e berrar seriam indícios de que nós éramos “explícitos”. Mas Nós quem? Nós brasileires? Negres? Negres brasileires? Latines-americanes? Negres gays brasileires?

          Certas afirmações são realizadas como se fossem o refrão de uma música que se acostumou a cantar sem saber o porquê, mesmo que pareça um tanto anacrônica. De certo é possível verificar diferenças entre lugares, pessoas, culturas etc. Mas quando é que tais refrões deflagram modos de ver, pensar, dizer, fazer, viver diferentes e quando é que se tratam de desejos de distinção entre grupos, pessoas ou culturas? Talvez o limite seja tênue.

          Tenho refletido sobre essa dinâmica do “Nós” e “Vocês” e a variante “Eu” e “Nós” a fim de pensar a diferença, o comum e o irreconciliável, considerando especialmente a realidade de nações forjadas sob o signo da violência colonial. Não somente pensar a diferença, o comum e o irreconciliável entre populações e grupos diametralmente opostos, mas também pensar tais questões no interior de cada grupo e os sentimentos de pertencimento, identificação e desidentificação dos membros que os integram.

          Ao compartilhar essa conversa, mencionando o contexto no qual se deu o diálogo e os agentes envolvidos, é automática a ênfase na relação – Nós versus Vocês – seguida de um posicionamento que toma partido do Explícito como qualidade a ser valorizada. Nota-se a tentativa de ressaltar a complexidade do Explícito e a defesa da capacidade de articular a sutileza, como se fosse uma “falta” a ser compensada. Por fim, encontram-se os argumentos que tentam encerrar a questão dizendo que ninguém pode ser completamente Explícito e ninguém pode ser enxergado como inteiramente Sutil. Até aí, há de se concordar. Porém, na tentativa de encerrar o debate lança-se mão do: somos diversos, afirmando que não é domínio da arte lidar com tais questões. Mas esse argumento não se sustenta, porque é perceptível que as várias instituições e circuitos artísticos se balizam, sutil e explicitamente, por esses parâmetros.

          Os desafios de pensar e explorar o Explícito e o Sutil na criação coreográfica passam por uma revisão dos sensos comuns que se arvoram em torno dessas duas qualidades. Pode-se dizer que é possível traçar um estereótipo de uma dança sutil e de uma dança explícita, mas até que ponto? Eventualmente, um ou mais podem fazer parte de uma estratégia de criação artística, a depender da intencionalidade.

          No dicionário Aurélio, Explícito e Sutil estão definidos da seguinte maneira: ex.plí.ci.to [Lat. explicitu.] adj. 1. Claro, explicado. 2. Sem reservas ou restrições. su.til [Lati. subtile.] adj2g. 1. Tênue, delgado. 2. Agudo, fino. 3. Muito miúdo. 4. Feito com delicadeza. 5. Perspicaz; sagaz. [Pl.: -tis. Superl.: sutilíssimo ou sutílimo.]

          É curioso que a significação de Explícito como algo claro e explicado me recorda pessoalmente as falas de colegas e amigues negres/periferiques relatando a constante atribuição aos seus trabalhos a pecha de: didáticos ou sem rigor. Nesse pensamento, o Sutil seria da ordem do não didático (não seria obrigação da arte ensinar nada, diriam algumas pessoas) e sinônimo de rigor. Mas no dicionário Explícito também significa sem reservas ou restrições. Em que medida existências subalternizadas e racializadas não têm de lidar com reservas ou restrições? Podem tais corpos fazer tudo? Circular à vontade pelos espaços e lugares, falar, ter acesso à informação, sem reservas ou restrições? Percebo uma leitura ainda muito essencialista das diferenças e pouco embasada em seus aspectos materiais e históricos.

          Há uma tendência por parte do Outro – branco brasileire/latine/europeu/estadunidense – de canalizar os esforços artísticos de pessoas negres, racializades e subalternizades para a reparação dos danos causados pela produção obsessiva de representações nocivas e arraigadas no imaginário ocidental, gerada por ele. Percebo também a pressão de que esses artistas sejam capazes de manobrar estruturas que estão fora de seu alcance, vinda por parte de coletivos e indivíduos dos seus grupos de pertencimento. Então, me questiono: o que obras de arte feitas por corpas racializades, subalternizades, negres, especificamente, podem ou não, devem ou não dar conta? Poderiam explicitar sutilezas? Quais? Como? Aquilo que está explícito sempre está claro (ou escuro)? O que explicitar? É necessário?

          Trabalhar para a decomposição de tais imagens não resvala necessariamente em um identitarismo – palavra da moda nos circuitos tradicionais de dança que denuncia certo reacionarismo, para não dizer outra coisa – aos modos de pensar-fazer arte subalternizades, negres e racializades. Trata-se de uma resposta à própria lógica de operação das instituições e circuitos da arte-dança diante dessas corpas. A putrefação desse imaginário colonizado é incontornável.

          Identificar-se inteiramente com aquele ou outro lugar pode ser contraproducente, parece que, cada vez mais, afirmar algo deve ser um recurso usado de modo estratégico e, por vezes, talvez deva ser rejeitado. Uma saída dessa emboscada está na capacidade de invenção. Mas a invenção proposta neste texto não tem relação com criar espaços específicos para tais modos de pensar-fazer arte, até porque alocar esses modos de operar em um reino à parte participa do mecanismo de apagamento vigente. Apagamento por confinamento. Invenção, neste caso em particular, significa permitir que corpas subalternizades possam mover-se livremente pelos espaços, acessando os arquivos das artes/danças, exercitando a errância, arranhando os discos, tornando os refrões uma cacofonia, oscilando entre Sutil e Explícito. Recusar-se à pretensão de conciliar diferenças que se constroem nos exercícios de poder de determinados grupos em relação a outros. Fica o desafio de tecer redes de apoio, laços de solidariedade, amizade, amor e parcerias que não cedam ao uso das táticas de coerção e homogeneização capitalistas neoliberais.

          Nós somos sutis, vocês são explícitos torna-se o refrão condutor para a implosão da poética da miséria produzida pela relação do Nós e do Eles, enquanto melodia cantada insistentemente e que sustenta uma lógica de relação geopolítica/artística que se perpetua. Esse “canto da sereia” parece nunca ter sido entoado tão fortemente no jogo político, social, cultural e econômico mundial atual, no qual nos encontramos imersos, assolados pela pandemia de um organismo que zomba de quaisquer convenções criadas por nós e que acreditamos serem reais.

          Min Kyoung Lee 이민경 O País-Escola Secundária 고등학교 나라

          Havia um país que era por si só uma escola. Um país-escola secundária onde todos estudam de forma militante do início ao fim. Esta escola-nação não é uma pessoa nem um bicho, mas funciona de forma orgânica. Além de dezenas de aulas, exames mensais e estudo diário à noite, a escola providencia inúmeras outras atividades que contribuem para um funcionamento ininterrupto. O exame de admissão à universidade é repetido todos os anos, contudo o número de diplomados é muito reduzido.

          Abaixo encontra-se uma lista de terminologia relacionada com a escola-nação.

           

          Escola Secundária

          A escola-nação segue o modelo da escola cristã, com enormes instalações, uniformes aprimorados, uma longa tradição e a reputação de tratar os alunos de forma respeitosa. Regida pelos princípios cristãos, alunos obedientes ao lado de professores benevolentes criam uma atmosfera pacífica e única. A escola é constituída por milhares de alunos, diretores, vice-diretores, professores, pastores de igreja, funcionários administrativos e de escritório, responsáveis de limpeza e de segurança (idosos), e ainda pelos pais dos alunos (que exercem pressão adicional). Nesta escola pacata e ordeira, podem-se também encontrar professores provocadores, alunos dissidentes e muitas outras perturbações.

          Ao contrário dos ideais da “educação”, o principal motivo da existência da escola é a preparação para o exame de admissão na universidade. Todas as aulas são preparadas para esse fim. E com uma preparação tão intensa não há tempo a perder com qualquer outro assunto que se desvie do estudo. Além de desleixo, isso seria considerado um ato de rebelião. Felizmente, na maioria dos casos, os alunos obedecem aos seus professores, e estes aos seus superiores, e portanto não há necessidade de punição. Apesar da desoladora quantidade de suicídios entre os alunos, a escola presta-lhes a sua homenagem e reza por eles. Graças ao papel cooperante que cada membro tem para o sucesso nos exames de admissão à universidade, a escola está bem de saúde. 

           

          O País-Escola Secundária

          Apesar de ter uma dimensão muito maior, é possível assumir, em termos estruturais, que o país é em tudo idêntico à escola secundária.

           

          Arte no País-Escola Secundária

          Nesta nação pacífica e organizada, existem vários tipos de ocupações. Existem também artistas. Muitos. Da mesma forma que se assiste a um rápido desenvolvimento do país enquanto potência cultural, o número de artistas está também a aumentar de forma acelerada.

           


          “Dê o seu primeiro passo como artista ao passar no Exame de Certificação de Artistas. Receba uma qualificação de artista reconhecida pelo Estado. É possível obter certificados de nível 1, 3, 5, 7 e 9, com diferentes graus de dificuldade e custos diversos. Prepare-se para se tornar um artista da forma mais rápida e segura com a ajuda do nosso Instituto.”


           

          Existe um certificado a nível nacional com cada vez mais reconhecimento, que se pode encontrar em anúncios de autocarros escolares: o certificado de artista. Para se tornar artista, não há nada melhor do que obter este certificado. Todos os seus detentores são reconhecidos como trabalhadores e o seu talento artístico é garantido em permanência. Ao se reformarem, terão os mesmos direitos que qualquer outro trabalhador.

          Os exames para a certificação de artista incluem perguntas sobre a definição da arte e a natureza da criatividade artística. Perguntas sobre problemas relevantes na sociedade atual são também habituais. Na preparação para o exame pode ser importante pesquisar e decorar notícias partilhadas nas redes sociais. As perguntas são na sua maioria de escolha múltipla, mas também há perguntas de desenvolvimento. O método mais eficaz para responder a estas é memorizar um parágrafo inteiro. Naquelas em que é necessário exprimir um ponto de vista, a resposta que pareça ser diferente mas ainda assim se enquadre no senso comum receberá a melhor classificação. Como em qualquer outro exame, as respostas às perguntas podem ser encontradas no verso dos manuais.

          Na escola encontram-se espalhadas notícias que afirmam que, num futuro próximo, a indústria cultural e artística irá emergir como indústria-chave para a economia nacional. De forma a preparar esse futuro, o orçamento do país-escola destinado à cultura e às artes aumentou em função do orçamento total, demonstrando a sua valorização, à semelhança de qualquer outro país desenvolvido.

           

          Artistas na Arte do País-Escola Secundária

           

          Num país em que o estatuto número um e mais cobiçado pelos estudantes é o serviço público, o simples facto de um artista ser visto e reconhecido como tal parece um sonho tornado realidade. Todas as tarefas dos artistas formados no território nacional são consideradas serviço público. Cabe aos artistas, além de criar, gerir todas as tarefas administrativas necessárias à produção, distribuição, gestão e reprodução dos seus trabalhos. Isto acontece porque, por um lado, os diretores e funcionários desconhecem os procedimentos e, por outro, sai mais barato que todas as responsabilidades sejam assumidas diretamente pelo artista. De forma a que a escola-nação possa executar os seus programas culturais e artísticos, os artistas devem submeter planos de criação, candidaturas e portefólios, bem como planos de pré-produção, relatórios internos, relatórios de resultados, comprovativos de despesas, registos fotográficos e ainda cooperar na produção de materiais promocionais como entrevistas e teasers. Estes materiais providenciam conteúdos para arquivo que podem vir a ser úteis, seja para efeitos de educação artística como para fomentar ideias inovadoras no campo da tecnologia. O uso e a necessidade dos artistas neste país são vastos. Em contrapartida, a nação-escola garante Segurança Social, direitos e até empréstimos. Assim, os artistas produzem vários projetos em simultâneo para alimentar os seus currículos e portefólios e vendem a alma com vista a vingar no mundo.

          Mesmo não tendo uma verdadeira inspiração artística, ou não sabendo qual a necessidade da arte, os artistas sabem que devem ser melhores do que os outros. O tipo de competitividade no meio da arte do país-escola não é muito diferente do de qualquer outro tipo de competitividade.

           

          O Espírito de Artista na Arte do País-Escola Secundária

           

          Os manuais dizem que a arte tem um espírito de resistência e de subversão. Isto pode ser útil decorar porque é um tema recorrente nos exames. Os alunos e artistas do país-escola são bons a escrever, desenhar, dançar e cantar sobre subversão. Conhecem também o seu significado simbólico e sabem dar exemplos históricos. Claro que isso não quer dizer que sejam subversivos nas suas vidas. Em vez disso, com a perícia que adquiriram através da memorização e da repetição, são capazes de expressar o seu espírito artístico subversivo da forma mais competitiva. Tenha como exemplo as indústrias culturais de sucesso noutros países. 

          Numa escola em que cada dia é uma batalha, estudantes-artistas e professores deparam-se regularmente com palavras como resistência e subversão. Por vezes são atravessados por uma sensação de estranheza ou de nostalgia mas depressa decoram as palavras e passam à frase seguinte. 

           

          Diplomas no País-Escola Secundária

           

          Há poucos diplomados neste país-escola. Para atingir tal fim, é necessário que os estudantes se subvertam à própria escola. Infelizmente, o método de subversão não é ensinado.

          A escola, na verdade, não é uma pessoa, não é nada. Qualquer pessoa dentro da escola pode tornar-se “a” escola, e deixar de “a” ser. Certo é que, de tempos a tempos, alguém é as mãos, os pés e a cabeça da escola. É aquele que fala em reuniões, escreve e-mails e faz telefonemas. Aquele que cria novos concursos todos os anos, que muda os termos de inscrição, que produz e distribui novos cartazes. Mãos, pés e cabeça que escrevem montanhas de planos e relatórios. A escola manifesta-se no corpo e na mente. E se esse alguém começa por não ser a escola, no momento em que se transforma deixa de ser inocente. 

          Como lutar com quem não é a escola, mas que ao mesmo tempo, e de tempos a tempos, se transforma em escola? A luta contra a escola não deve ser considerada como uma típica batalha contra o inimigo. Será antes um misto de fantasia e terror no qual inimigos e aliados se confundem. Ao lutar, há que lembrar que os alvos se movem, mudam constantemente de lugar e se alteram. Pode deparar-se com o dilema entre cuidar ou lutar contra os seus companheiros que, de um momento para o outro, viraram inimigos. Como é algo vivido na primeira pessoa, a princípio pode-se pensar que os sinais serão fáceis de perceber. Mas pode ser o contrário. Se todos tivessem a capacidade de entender estas manifestações, já todos se teriam diplomado. Quando se luta contra si próprio e contra aqueles que se podem facilmente transformar, interpretar a vitória ou a derrota exige saber separar e discernir a “escola” da pessoa. A escola vem até nós e, como em qualquer luta, a chave é saber agir no momento certo. Nem antes nem depois, mas no exato momento em que aqueles ao nosso redor se transformam na escola, aí tornam-se combatíveis. 

          Existe um país que é por si só uma escola. Esta escola tem muito poucos diplomados. Entre as perguntas dos exames finais, pode-se encontrar esta: “No momento de transformação, que tipo de força faz a escola voltar a ser uma pessoa?”; “Pode a escola emocionar-se e inspirar-se? Desenvolva a sua resposta.”

          Para referência, a lista de autores deste país-escola encontra-se mencionada acima.

           

          Traduzido a partir do original em coreano e da sua versão em inglês por Sara Godinho e João dos Santos Martins. 

          Paula Caspão Rassemblages Pre-Lúdicas para Ensaiar Recusar

          Tenho sorte porque do sítio onde estou consigo ouvir o sussurro dos livros, podcasts, filmes e vídeos deste ano a terem conversas uns com os outros. É uma sala de montagem onde as vozes parecem sair umas das outras e por isso não me vou preocupar muito com uma certa iconização do empréstimo. Faut pas dorer sur tranche, não embelezar, diz Nathalie Quintaine no prefácio a Chaosmogonie, de Nanni Balestrini (2020) – fumant la forme libérée du marécage de la syntaxe par intermède de Balestrini. Pantanal de sintaxe, à ne pas imaginer qu’on puisse faire sien à um tel point un discours théorique qu’il en devient une partie intimei. Assim se passa. Reler The Hundredsii, sobretudo a página que diz ‘The Things We Think With’, e pôr-me a recitar our citations are dilations, not just memories we have fidelity toiii. Citações dilatadas, dizer não ser autora, artista, investigadora, isso que é ser entidade identificada, como se fosse possível separar-me do planeta, separar aquilo que sou e (não) faço dos outros animais, coisas e des-coisas. Perder a compostura, ensaiar descolar-me das formas de imperialismo e policiamento naturalizadas nas instituições onde trabalho e neste corpo que me suporta, comporta, transporta, reporta indefinidamente (rehearsals of disengagement, escreve Ariella Aïsha Azoulay no livro Potential History: Unlearning Imperialism, de 2019, aí pelas páginas 43-45).

           

          “Paula, larga o trabalho e volta a voar.” Olha… a Easyjet agora trata-me por tu, apesar de ser uma companhia que tenho evitado. A injunção veio empacotada no Assunto de um mail que recebi em 15 de junho de 2021, às 16:01. A essa hora estava de facto a tentar trabalhar a contrarrelógio, a montar um Poema Mudo no iMovie, para apresentar no Instituto de História de Arte de Paris uns dias depois. Um tanto atordoada, porque na manhã desse mesmo dia fui vacinada num centro cultural da rua Merlin (Salle Olympe de Gauges) transformado em centro de vacinação com banda sonora ao vivo. Tive direito a um concerto de xilofone e acolhimento em pezinhos de lã, intervalo de paradisíaco bien-être em modo we care so much, prelúdio de sonho de uma noite de febre, efeitos de uma Pfizer em cima de uma Astrazeneca, e eu toda contente. Mas sobre delírios e paraísos já a TAP me tinha informado uns dias antes: “Paula, o paraíso existe e situa-se em pleno oceano Atlântico.” E anteontem aconselhou-me: “Paula, prolonga o teu verão.” Não há que negar, o algoritmo às vezes acerta na mosca com certa poesia. Mas chiça, meninas, poupem-me, parem de chamar por mim como se fossemos amigas de infância. E daí… talvez sejamos e só agora me estou a dar conta. Pesadas as circunstâncias, somos certamente mais íntimas do que gostaria de ter de reconhecer. É que não lhes escapa nada.

          O terminal 2E do aeroporto Charles de Gaulle de Paris dotou-se recentemente de um Espace Musées. Algures entre 30 de abril e 6 de outubro de 2019, esbarrei com um grande poster a anunciar orgulhosamente que tinham em exposição Voyages d’Explorateurs, do Museu do quai Branly – Jacques Chirac. De pasmar, desfrutem tamanho capital cultural, ó estimados cosmopolitas, amantes de descobertas e de cultura cultivada, adoradores de arte e movimentos vertiginosos, we love you so much we travel all the way with (in) you: Une invitation au voyage, un appel à la découverte, c’est l’engagement de Paris Aéroport à ce que le meilleur de la culture parisienne et française s’invite partout dans ses aéroports pour que l’art fasse aussi partie du voyageiv. Como se isto não chegasse para dar aquela vertigenzinha de satisfação ou náusea a qualquer passante, o cartaz dizia ainda que “a exposição contém múltiplos objetos, peças iconográficas e obras de referência, sendo a sua coleção dedicada às artes e às civilizações de África, da Oceânia e das Américas, e os objetos apresentados provenientes das grandes viagens da época dos reis de França até às viagens comerciais, diplomáticas ou de exploração”. Curiosa forma de dedicação. De invasões europeias, de expropriação, genocídio e saque massivos não se fala. Gente, poderes públicos e seus bureaus de comunicação, a paciência esgotou. Deixem-se de eufemismos, parem de regar a plantação como se estivessem deveras a cultivar diversidade e inclusão, para lá das vossas imagens psico-serôdias de multiculti duty free. Fico a pensar no livro de Hito Steyerl, Duty Free Art: Art in the Age of Planetary Civil War, que saiu em 2019. Como introdução, vale a pena ler o texto “Duty-Free Art” publicado na e-flux em 2015v

           

          Começa a tornar-se difícil aguentar. Será que estamos condenadas a contar e recontar as mesmas histórias até ao fim dos tempos (dizer isto com a boca de Saidiya Hartman, numa entrevista)vi.

          Manter o Não à mão. “Imagine Going on Strike: Museum Workers and Historians”, escreve Ariella Aïsha Azoulay no livro Potential History: Unlearning Imperialism (2019). 

           

          Imaginemos uma greve não apenas como protesto contra uma situação específica de opressão, não apenas contra uma instituição em particular e não unicamente como forma de reivindicar melhores condições e salários, mas como recusa geral da lógica do capital profundamente incorporada nos museus e nas suas desavergonhadamente ilusórias missões de inclusão de diversidade e de produção de intercâmbio cultural. Uma greve assim generalizada a todas as profissões, não só as que se encontram diretamente ligadas a instituições como museus ou universidades, ajudar-nos-ia a pararmos de conceber as nossas atividades profissionais como atividades produtivas cujo valor se pode medir a partir de resultados encaixáveis numa história linear progressiva, para as concebermos como modalidades de implicação com o mundo que reconhecem a nossa inseparabilidade, o nosso emaranhamento radical. Imaginar os detalhes disto.

           

          Imaginar especialistas do mundo da arte a admitirem que todo o projeto de salvação artística ao qual eram fiéis é uma loucura e não poderia ter existido sem o exercício de variadíssimas formas de violência, atribuindo preços espetaculares a peças que não deveriam sequer ter sido adquiridas. Imaginar todos esses especialistas a reconhecerem que o conhecimento e as competências que o museu tornou violentamente raros e valiosos não se encontram extintos. Para que o valor de mercado desses objetos se preserve, houve que negar tempo e condições às pessoas que herdaram o conhecimento e as competências para criar e construir o seu mundo. Imaginar diretores de museu e curadores tomados por um despertar tardio – semelhante ao que experimentam por vezes os soldados – relativamente ao sentido da violência que exercem sob cobertura benigna, e a admitirem até que ponto a sua profissão é constitutiva de violência diferencial. Imaginar estes especialistas a fazerem greve, até obterem permissão para abrir as portas das suas instituições a refugiados políticos vindos dos lugares de onde as suas instituições detêm objetos, convidando-os a produzirem objetos semelhantes aos saqueados, obliterando assim os ditos ‘autênticos’. 

           

          Traduzi estas linhas a partir de um pequeno excerto do livro de Azoulay, publicado na revista e-flux, num interessante dossier sobre formas de greve, de retirada, de recusavii.

           

          Imaginar enviar este excerto ao Museu do Oriente em Lisboa, que tem por missão vangloriar-se desavergonhadamente da “presença portuguesa na Ásia”, da “multiculturalidade” da “relação secular que foi estabelecida entre o Oriente e o Ocidente” através de Portugal. Com um discurso de apresentação que fala de supostamente magníficas “trocas comerciais, culturais, vivenciais, científicas, técnicas e religiosas que possibilitaram o conhecimento de mundos até então desconhecidos” entre Portugal e a Ásia. Nem um pio sobre violência(s) perpetradas por esse passado fora e continuadas hoje e amanhã de várias maneiras e feitios, nestes igualmente magníficos museus. O mecenas principal é o Novo Banco que, como banco que se preza, tem uma estratégia de mecenato cultural e é um agente benevolente interessado em contribuir para “a criação e formação de novos públicos”, nomeadamente “dinamizando a oferta cultural existente”. Falando deste museu, lembro-me que a Fundação Oriente faz parte do Consórcio Lisboa, a pomposa rede colaborativa entre o Programa de Mestrado e Doutoramento em Estudos Culturais da Universidade Católica, a Câmara de Lisboa, a Cinemateca Portuguesa, o Museu Nacional do Teatro e da Dança, a Fundação Gulbenkian, a Culturgest, o Centro Nacional de Cultura, a Fundação EDP, o Oceanário de Lisboa e a Parques de Sintra – Monte da Lua, que este ano organizou a XI Lisbon Summer School for the Study of Culture sob o tema CONVIVIAL CULTURES. Maravilhosa convivialidade, a avaliar pelo modo autolaudatório como se descrevem. A não perder, o vídeo de apresentação: www.lisbonconsortium.com, com convívio do melhor. A verdade é que já nada disto me choca. Mas continua a intrigar-me profundamente (pensarão que pega?), não sei se ria ou se chore. Talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Manter o Não à mão. Gritar aos vários ventos: a investigação e a arte têm de fugitivar. Manter a inclinação para o gaguejo, a vertigem da falha, praticar a não-performance da performance literal: não corresponder à demanda. Descolar-se do programa globalmente programado. Recusar ir dar onde as esperam. Não ir logo a correr quando nos chamam. Porque sim, é preciso manter a indeterminação. O que é isso de performar investigação, arte, trabalho, a universidade, o museu, eu, os slogans da convivialidade deles, tudo, na economia associalmente conectada da performance e do conhecimento. Manter o não à mão. Hoje, para variar, Não consinto. Não vou. Não faço. Re-dizer: Não é Investigação. Não é Teoria. Não é Arte. Com estes três Nãos prefaciou Hito Steyerl “Wihdrawal from Representation”, a conferência que deu no simpósio Psychopathologies of Cognitive Capitalism, em 2013. Não estive presente, mas a tripla negação dirigida à investigação, à teoria e à arte (que li pouco tempo depois num texto de Rike Frank) reaparece-me agora como adágio (re)generativo.

           

           

          Inclusão sous videviii

           

          Há muito que andamos atentas às políticas de apropriação cultural, há muito que desconfiamos da atração das instituições de poder pela ‘diversidade’. Aprendemos a não subestimar a rapidez com que o capital absorve noções relevantes para as transformar em slogans vaziosxix. Facto é que se atribuem financiamentos a exposições sobre a questão da ‘habitação’, por exemplo, enquanto as pessoas continuam a ser massivamente ejetadas dos abrigos variados a que chamam ‘casa’x. Já deu para perceber que anda por aí muita curadoria que consiste simplesmente em neutralizar arte, que é a arte da inclusão neoliberal, dos múltiplos regimes de exposição que subjugam e colonizam, sempre bem-intencionados, mas sempre racistas. Exímios em demonstrar e performar uma certa imagem de boa vontade inclusiva democrática. Mas que (não) fazer de tanta arte que não quer ser ‘curada’, nem assim nem de maneira nenhumaxi?

           

          De facto, neste momento já não se trata de lutar contra as estruturas exclusionistas das instituições (neste momento poderíamos até chamar-lhes ‘inclusionistas’), já que aquilo contra o que lutamos são as constantes modalidades de extração incorporativa, nada de novo afinal, apenas uma atualização de novas e velhas tecnologias, diz Fred Moten em conversa com Sandy Grande, Stefano Harney, Jasbir Puar e Dylan Rodríguez, a propósito da ação ‘Strike MoMA Working Group of IIAAF’xii. Nesta conversa, Stefano Harney compara os museus e as universidades a vastas ‘máquinas trituradoras’, que esmagam e digerem variadíssimas modalidades de estética social e de estudo que as pessoas praticam um pouco por todo o lado de formas indeterminadas, para as transformarem em entidades individualizadas identificáveis. O negócio destas instituições é andar por aí a identificar quem anda a tentar levar vidas estéticas e formas de estudo coletivas autónomas, e mandar patrulhas de curadores para as capturar, sob cobertura de ‘inclusão’. Na verdade, a principal razão pela qual se guardam obras de arte nos museus, diz Harney, é fingir que há de facto algo individualizado a que podemos chamar uma ‘obra de arte’ – para além das razões que já conhecemos, a saber: manter esses objetos de arte em segurança de modo a torná-los inacessíveis a quem os queira de volta; alugá-los, o que significa que de cada vez que pagamos para ir ao museu estamos a alugar a arte que vamos encontrar; comodificá-los e especular sobre o seu valor. Haver algo a que possamos chamar ‘obra de arte’ é pois um facto que precisa de ser sujeito a um ataque anticolonial consequente. 

           

          Descolonizar sous vide

           

          O que (recusar) fazer? Vivemos numa época em que a instituição encena e reencena a sua criticalidade, a sua diversidade, a sua intermedialidade, a sua pós-colonialidade e a sua convivialidade, mas pouca coisa muda de facto. Provado está que o raio do capital é perfeitamente capaz de incorporar a ideia de descolonização e de descolonialidade. Por isso precisamos de considerar a endurance da ‘colónia’ para lá do regime político colonial historicamente situado. O capital é sempre colonizador, portanto a colónia é consubstancial ao capital e está no meio de nós. Para compreender como persiste temos de nos livrar da abordagem que só consegue ver a colónia sob a forma que a Europa lhe deu no século XIX, e não confundir colonização e colonialismo. Sem a colónia, escreve Vergès (2019) – inclusive a colónia de férias – não haveria países com instituições estruturalmente racistas. Pois é, não é certo que haja vida descolonizadora para além da maravilhosa economia do conhecimento e da performance que ritma os nossos dias e noites, que é tão generosa e criativa ao ponto de ter dito ‘faça-se investigação artística nas universidades’xiii. Nem é certo que as duas aulas que me entusiasmei a desenhar para o semestre de 2022 – sob a designação ‘Práticas de resistência, co-imaginação e ação descolonial quotidianas na era da performance digital’ – sejam capazes de descolonizar o que quer que seja para além do sentido metafórico em que o termo tem vindo a proliferar nos nossos ecrãs. Acredito ainda assim neste amor à contaminação entre os materiais, através dos quais me apetece reunir pessoas. Uma (r)assemblage que me faz poesia na página e um desejo forte de pensar coletivamente, a ver.   

           

          Le Passeur (instalação, 2008) / Mined Soil (filme, 2015) / Spell Reel (filme, 2017) / Cotton Algorithms (instalação, 2019) – todos de Filipa César. Imagine Going on Strike: Museum Workers and Historians, in Potential History: unlearning Imperialism (Azoulay, 2019). The Hundreds (Berlant & Stewart, 2019). Revolutionary Feminisms: Conversations on Collective Action and Radical Thought (Bhandar & Ziadah, 2020). Conversa On Fugitive Aesthetics (com Moten, Harney, Swayer, 2021). Unshrinking the World (Avery Gordon, “An interview with Woznicki on her book The Hawthorn Archive: Letters from the Utopian Margins, 2019). Undercommons: Fugitive Planning and Black Study + All Incomplete (Harney & Moten, 2013 e 2020). Wayward Lives: Beautiful Experiments (Saidiya Hartman, 2020). Exterminate All the Brutes (filme-ensaio de Raoul Peck, 2021). How Not to Be Seen (videoarte de Hito Steyerl, 2013).

           

          Dos materiais aqui reunidos espero que nos ajudem a arejar o chão que nos suporta. A descortinar forças para nos desengajarmos do que, nas nossas vidas, profissões e posições quotidianas, continua a performar a pedagogia implícita do capitalismo (no mínimo). Não é por acaso que os textos, filmes, entrevistas, conversas e instalações com que aqui se tece são quase todos realizados em colaboração, e que vários deles experimentam formatos que torcem e entortam géneros existentes. Nada prometem porque não fazem por ora ideia de quem com eles – e através deles – virá encontrar-se; o que virá ensaiar-se a várias mãos, texturas, imagens, afetos, ritmos, numa prática de estudo que emaranha e impurifica tudo (arte e teoria, crítica e poesia, tempos com espaços, still-moving-images, tudo e nada). Um estudo como prática que não começa nem acaba no conceito, e desconfirma todos os princípios da separação onto-epistemológica que a modernidade ocidental se aplicou a produzir. E se for difícil de acreditar, é ouvir Avery Gordon: “I tried to follow Monique Wittig’s instruction in Les Guérillères (1969): ‘There was a time when you were not a slave, remember that. Make an effort to remember. Or, failing that, invent’” (2019)xiv.

           

          i “A fumar a forma livre do pântano da sintaxe através de Balestrini; não imaginar que se possa a tal ponto fazer seu um discurso teórico que se torna parte íntima.” Tradução livre.

          ii The Hundreds é um livro que reúne várias vozes, em não mais de 100 palavras cada, editado por Lauren Berlant e Kathleen Stewart (Durham, CN: Duke University Press, 2019).

          iii “As nossas citações são dilatações, não apenas memórias às quais somos fiéis.” Tradução livre.

          iv “Um convite à viagem, um apelo à descoberta, este é o compromisso do Aeroporto de Paris para levar o melhor da cultura parisiense e francesa a todos os seus espaços, para que a arte faça também parte da viagem.” Tradução livre.

          v https://www.e-flux.com/journal/63/60894/duty-free-art/.

          vi https://www.newyorker.com/magazine/2020/10/26/how-saidiya-hartman-retells-the-history-of-black-life

          vii https://www.e-flux.com/journal/104/299944/imagine-going-on-strike-museum-workers-and-historians/ e https://www.e-flux.com/readers/362461/strike.

          viii A tradução de sous vide em português é ‘embalagem a vácuo’. A expressão em francês é entretanto utilizada internacionalmente, sobretudo em contextos de alta cozinha. Mas a embalagem a vácuo também está muito presente em qualquer supermercado e permite cozinhar e/ou aquecer os alimentos sem os retirar do plástico.

          ix Ver o livro de Françoise Vergès, Un féminisme décolonial (Paris: La fabrique, 2019).

          x Ver o texto de Giulia Palladini, “On co-existing, mending and imagining: notes on the domestics of Performance”, in A Live Gathering, editado por Ana Vujanovic e Livia A. Piazza (Berlim: b_books, 2019).

          xi Ver o texto de André Lepecki, “Decolonizing the curatorial”, na revista Theater 47, n.º 1 (2017).

          xii Em 27 de maio de 2021: https://www.youtube.com/watch?v=V2vzhwnjy4s.

          xiii Note-se que isto é dito por alguém que ama variadíssimas práticas de investigação e em particular de investigação artística; alguém que se implica com paixão na composição (o mais coletiva possível) de aulas de Prática como Investigação num Programa de doutoramento em Estudos de Teatro; alguém que desfruta a fundo o tempo passado com pessoas nesse contexto a que se chama oficialmente ‘aula’. E contudo, ser um agente desta economia do conhecimento não vai sem dor. O que me anima é acreditar na contradição, na necessidade de manter as coisas complicadas (muito tenho aprendido com as práticas de ‘antagonismo geral’ tecidas por Fred Moten e Stefano Harney).

          xiv “Tentei seguir a instrução de Monique Wittig em Les Guérillères (1969): ‘Houve um tempo em que não eras escrava, lembra-te disso. Faz um esforço para te lembrares. Se não conseguires, inventa'” (2019), citado de uma entrevista com Avery Gordon a propósito do livro The Hawthorn Archive: Letters from the Utopian Margins, disponível em: https://transversal.at/blog/unshrinking-the-world. Tradução livre.

          Dani Issler Frédéric Sayer Stars and Stripes na Graça

          “Descubra Daniel Buren na Graça” é uma Experiência Airbnb™ que oferece uma visita guiada a pé, no animado bairro da Graça (pelo preço de 25€), na qual se pode visitar cinco locais históricos em que o célebre artista francês Daniel Buren (n. 1938) afixou as suas criações improvisadas, “Affichages Sauvages”, em 1980. A este périplo segue-se a visita à casa do artista luso-americano Ricardo Valentim (n. 1978), que oferece as melhores vistas panorâmicas de Lisboa e onde são servidos refrescos e a conversa sobre arte conceptual passa da esfera pública para a privada.

           

          Depois de ter criado a página no site da empresa, Valentim, o responsável pelo desenvolvimento do conceito e pela iniciativa, foi contactado por um representante da Airbnb, um jovem brasileiro residente em Dublin, para confirmar as informações da oferta, e num telefonema de uma hora ajudou-o a desenvolver o descritivo e a estratégia de marketing. Depois disso, tirou umas fotografias com a ajuda de amigos e assim que foram colocadas na página o projeto estava pronto a arrancar. Uma experiência turística artística e um potencial pequeno negócio. Isto foi no início de 2020. Começaram a chegar as reservas, fizeram-se três eventos e veio a Covid. Os turistas desapareceram e a vizinhança tornou-se silenciosa.

           

          Valentim, um residente de curta duração na Graça que vivera em Lisboa entre 1997 e 2003, período durante o qual estudou arte e antropologia, acabou por passar aí grande parte do período de 2018 a 2021, em trânsito entre Nova Iorque e San Diego com a sua família. Durante estes anos, experimentou a sua própria gentrificação e empenhou-se na ideia de um projeto site-specific associando-se a um contexto que estava literalmente à porta de sua casa: a descoberta de uma nota de rodapé ignorada pela história da arte local.

           

          Em fevereiro de 1980 Buren foi convidado pelo galerista Mário Teixeira da Silva para criar uma instalação, a travail in situ, que esteve em exibição durante mais de um mês no seu apartamento que era também o Módulo Centro Difusor de Artei. Em imagens da exposição podemos ver uma instalação composta por listras vermelhas e brancas nas ombreiras das portas, nos vidros das janelas, nos revestimentos de madeira e nas paredes, que desconstruíam o que parecia ser uma típica sala de estar burguesa. No dia seguinte à inauguração, Buren tomou também a liberdade de usar restos dos materiais que sobraram da exposição e instala-los em alguns prédios situados no bairro da Graça, afixando as suas listras em justaposição com os tradicionais azulejos. Uma rápida operação seguida de uma sessão fotográfica para arquivo do artista.

           

          Aparentemente o projeto remete Buren para segundo plano e Valentim esclarece que não se trata de uma homenagem. A passagem de Buren pela Graça, seis anos depois da queda da ditadura, aconteceu numa altura-chave de transição na sua carreira: depois de ter sido um dos pioneiros do minimalismo e de ter repensado a circulação da arte fora das instituições ultrapassando as noções comuns de mercado da arte, Buren estava tornar-se extremamente comercial com trabalhos para centros comerciais e átrios de hotéis, já para não falar do seu icónico Les Deux Plateaux (1986), apresentado posteriormente em Paris.

           

          A experiência Airbnb oferece uma brochura que Valentim desenhou e produziu para a visita, na qual vemos imagens históricas a preto-e-branco. São as mesmas imagens disponíveis a cores nos arquivos do site de Buren, tiradas por ele na altura. Estas fotos, sobretudo de pormenores, estão justapostas na brochura a fotos mais recentes tiradas por Valentim, respeitando o enquadramento das imagens de Buren, possibilitando uma verificação em tempo real durante a visita. Ao optar pelo preto-e-branco nas fotos, Valentim faz com que seja mais simples e explícita a diferença entre o antes e o depois, encorajando também os participantes a tirarem as suas próprias fotos a cores. O que nos é dado a ver são as listras alinhadas com os azulejos por trás. E se as listras já desapareceram há muito, o situ continua intacto.

           

          Valentim, que passou mais de uma década em Nova Iorque e é já um cidadão norte-americano, quer fazer-se passar por um guia turístico artístico local “autêntico”, mas a sua crítica ao provincialismo da cena artística lisboeta é a perspetiva de alguém que ao mesmo tempo é daqui mas conhece outras realidades. A experiência performativa de duas horas é dirigida a turistas que também estão de passagem. Uma “visita imaginária” que santifica o espaço público sem valor artístico de um bairro de trabalhadores, sem instituições artísticas, e que o profana. No entanto, ao trazer as pessoas e ao estimular a conversa torna-se mais real do que o cubo branco.

           

          Esta “Experiência” tem paralelismos com aqueles momentos em que estamos a navegar na internet e nos perdemos na exploração de um detalhe sem importância da biografia de um artista, que tem mais que ver com a nossa própria vida, com os nossos interesses, o nosso gosto, etc. Esse pormenor pode ser considerado completamente irrelevante para o entendimento da obra do artista mas pode inspirar ou desencadear fortes reações e até mudanças em nós próprios. Este projeto pode ser olhado com os termos que o crítico francês Nicholas Bourriaud criou na sua teoria da “estética relacional”, designando os artistas como facilitadores em lugar de criadores e a arte como uma troca de informação entre artistas e observadores, abrindo caminho à possibilidade de provocar mudanças sociais. Não por acaso, em setembro de 2018 centenas de lisboetas saíram à rua em protesto contra o aumento desregulado das rendas, por causa da proliferação dos arrendamentos locais de curta duração.

           

          Procurar as listras perdidas de Buren também serve para chamar a atenção para as excecionais fachadas de azulejos, banalizadas pelos locais mas tão especiais e reconfortantes para quem as vê. Valentim valida o que “sentimos” ter um certo valor artístico, embora a princípio nos pareça apenas decorativo: o nosso entusiasmo com a beleza da esquina lisboeta. Em “Affichages Sauvages” (“Exibições Selvagens”) existe também alguma violência que é reinscrita, uma espécie de desobediência social, especialmente por ter sido feita por um estrangeiro de visita. Como Buren, o turista é seduzido pela ideia de deixar uma marca.

          É possível considerar que a performance de Valentim questiona ironicamente o turismo de massas: de facto, a Graça atravessa um processo de gentrificação que se relaciona com os alugueres de curta duração. Se o turismo de massas transforma monumentos, paisagens e lugares pitorescos em simulacros, a experiência de Valentim funciona na direção contrária e permite-nos ver o que o tempo tornou invisível – o rasto de Buren. É o percurso inverso do simulacro, que aniquila o real e satura a imagem: Valentim levanta o véu do vazio – a entropia do tempo – para nos trazer de volta o passado, encenando ironicamente o absurdo do turismo.

           

          Atualmente o turismo de massas baseia-se, mais do que nunca, em imagens e em fotografias: os turistas já conhecem os lugares que vão visitar porque já os viram online. O que fazemos enquanto turistas é verificar se a realidade corresponde à sua versão imaginada. Atribuímos o hashtag certo à imagem geolocalizada. Susan Sontag, no seu ensaio Sobre fotografia (1973), antecipou esta “poluição mental” imagética que dissolve o real. Desta vez, não é só o mundo sensível que é feito de simulacros, mas sim o suporte fotográfico que duplica o simulacro, tal como afirma Jean Baudrillard quando se refere ao desaparecimento da mensagem em favor do medium em Simulacres et simulation (1981), corroborando a nossa perceção do turismo de massas e as suas ligações à fotografia.

          Além disso, Valentim incorpora na sua experiência um aperitivo inspirado por Buren que joga com os clichés franceses (“vinho e queijo”) e com a paragem obrigatória para os turistas franceses na Graça (“vinho com vista”). No vasto supermercado de lixo imaginário produzido pelo turismo de massas, Valentim reflete sobre o que terá desaparecido e sobre o que apenas o cérebro e o conhecimento adquirido em encontros ao vivo conseguem reconstituir. A saturação de imagens abre espaço para o vazio e o consumo, o que, por sua vez, conduz à impossibilidade de possuir apenas com o olhar.

           

          Valentim exerce a sua autoridade artística para garantir autenticidade. Como se diz no grande filme de Almodóvar: “Custa muito ser autêntico, e não podemos ser forretas com estas coisas porque quanto mais autêntico fores, mais te vais parecer com o que sonhaste ser.” Adorno definiu uma vez a arte como sendo conteúdo que ganhou forma. Neste caso, testemunhamos um conteúdo que se transformou num formato. Numa época de glocalismo e airbnbização, ao utilizar os meios de produção performativos americanos à sua disposição, Valentim prova que ele, tal como o próprio Buren, vive e trabalha in situ.

           

          i Módulo — Centro Difusor de Arte foi uma das primeiras galerias privadas a abrir no pós-25 de Abril, inicialmente no Porto, em 1975, numa casa da avó do galerista à Rua da Boavista. Propunha um espaço cultural orientado para as novas tendências da arte contemporânea, sobretudo fotografia e arte pós-conceptual, apostando em artistas estrangeiros e que não tinham carreira expositiva em Portugal. Mário Teixeira muda-se para Lisboa em 1979, instalando a galeria, até 1988, na casa que habitava no número 54 da Av. António Augusto de Aguiar, 5º Dto. Como explica numa entrevista a Sandra Jürgens publicada na artecapital.net em 2012, “a galeria era no meu apartamento, metade era galeria, metade era habitação […] Lembro-me que quando fiz aquela instalação do Daniel Buren, gente bem sonante, afirmou que eu tinha transformado a galeria numa barraca de praia e que aquilo não era arte.” A galeria hoje existe na calçada dos Mestres¸n.º 34 A/B, nas Amoreiras. (N. do E.)

          Alice Dusapin Christophe Wavelet Ensinar Uma Coisa Que Não Se Sabe

          Christophe Wavelet – Olá, querida Alice.

           

          Alice Dusapin – Olá, Christophe.

           

          C – Que dia é hoje?

           

          A – Hoje é dia 5 de Julho de 2021.

           

          C – É isso. Tu estás em Roma, no salão dos bolseiros da Villa Medici. E eu, mais modestamente, estou no meu apartamento parisiense, que é do mais haussmanniano que há.

          O que é que te tem ocupado em termos de trabalho, desde que chegaste à Villa Medici?

           

          A – Muitas coisas, muito diferentes, o que é uma metodologia de trabalho que tenho tentado combater, mas ao mesmo tempo acho que só assim é que consigo avançar, ou seja, fazendo muitas coisas em simultâneo. Diria que o maior projecto foi acabar de escrever o livro sobre o Wolfgang Stoerchle. É a primeira monografia sobre este artista, que era videasta e performer, nascido na Alemanha mas naturalizado norte-americano.

           

          C – Em que ano é que ele chegou aos Estados Unidos?

           

          A – Chegou ao Canadá em 1959 e a Los Angeles em 1962. Nunca mais deixou os Estados Unidos e morreu prematuramente em 1976, aos 32 anos.

           

          C – Sabes o que o terá levado a deixar a sua Alemanha natal para se instalar primeiro no Canadá e depois nos Estados Unidos?

           

          A – É difícil identificar claramente as razões, mas o pai do Wolfgang era um homem muito violento e a mãe, Carolina, que tinha sete filhos, decidiu deixá-lo e começar uma vida nova longe dali. Os irmãos do Wolfgang partiram primeiro, em 1957, e depois a Carolina e o Wolfgang juntaram-se a eles em 1959. Ficaram juntos durante três anos, foi um período muito bonito.

           

          C – Que idade tinha Stoerchle nessa altura?

           

          A – Nasceu em 1944, portanto tinha 15 anos. Conheci o irmão mais velho do Wolfgang, Peter, que me contou que, na altura, o Wolfgang estava a trabalhar num rancho. Era guia, fazia passeios a cavalo. E uma noite, ao conversarem os dois sobre o facto de se aborrecerem muito no clima frio canadiano, decidiram, primeiro na brincadeira, deixar o Canadá e ir para a Califórnia, mas fazendo a travessia a cavalo. No fundo, queriam concretizar a fantasia do western americano: tornarem-se cowboys da maneira mais cliché, e fizeram-no! 

           

          C – De onde partiram, no Canadá?

           

          A – Partiram de Uxbridge, uma cidadezinha no norte, a 29 de Janeiro de 1962, e pensaram que iam demorar seis meses. Já era um projecto bastante ambicioso, mas chegaram mais tarde do que o esperado, a 23 de Dezembro de 1962. Do mesmo ano, portanto foi um ano de viagem.

          Encontrei pela primeira vez o irmão Peter Stoerchle, em 2017, em Berlim, e ele mostrou-me muitos documentos dessa travessia. O Wolfgang voltaria a este acontecimento a posteriori. Em 1970, foi professor de vídeo na CalArts e, na biografia de apresentação do curso, assinala-se que a sua primeira performance foi a travessia dos Estados Unidos a cavalo. Foi por isso que eu quis que o livro começasse assim. E depois fez parte do trabalho do Wolfgang voltar à sua própria história… era o seu jogo. Ele conhecia – e dominava – os modos de criar um mito a partir de experiências íntimas, mas que ao mesmo tempo podiam produzir muitas fantasias. Foi o que aconteceu neste caso. E quando comecei a entrevistar artistas que o conheceram, todos me disseram que a sua melhor performance foi a travessia a cavalo. 

           

          C – Não é coisa pouca, passar um ano no lombo de uma pileca para chegar a Los Angeles, é de loucos.

           

          A – É de loucos. E o que foi uma maluquice nesta investigação é que, no início, eu julgava que ia ser um pequeno projecto, uma pequena publicação sobre a obra e a vida muito esquiva de Stoerchle; mas depois transformou-se num enorme projecto, quatro anos da minha vida, três exposições monográficas e um livro de 420 páginas.

          Comecei esta investigação graças ao Christophe Daviet-Théry, que me mostrou um livrinho publicado em 1996, na sequência de uma exposição que o Paul McCarthy tinha organizado no Magasin [Centre National d’Art Contemporain de Grenoble], dedicada a três importantes figuras europeias que tinham marcado significativamente a Costa Oeste [dos EUA], e que eram o Bas Jan Ader, o Guy de Cointet e o Wolfgang. O Bas Jan Ader e o Guy de Cointet tiveram um reconhecimento…

           

          C – Tardio.

           

          A – Tardio, e ligado a essa exposição! Esse foi o ponto de partida e, ao fazer alguma pesquisa, descobri muito rapidamente, por um lado, que não havia nada na Europa e, por outro, que em 2009, a sua segunda mulher, a Carol Lingham – ele morreu aos 32 anos mas foi casado duas vezes – vendeu todo o arquivo de vídeo ao Getty Research Institute [L. A.]. Fui então aos arquivos, a pensar que ia ver vídeos, consultar arquivos em papel, documentos, cartas, tudo isso, e voltar com material suficiente para fazer um pequeno projecto com o Christophe Daviet-Théry, era essa a ideia inicial. Mas, ao chegar a L.A., apercebi-me rapidamente de que muitas pessoas tinham vontade de falar sobre ele, e que o processo ia ser longo. O Wolfgang deu uma cadeira na CalArts que partilhava com o compositor Harold Budd, que aliás faleceu este ano. Tinham vários alunos em comum, e a ideia era que o Harold Budd ensinava arte e performance e o Wolfgang ensinava música. Tinham uma cadeira cruzada muito bonita.

          A partir daí conheci muitos compositores norte-americanos e também artistas plásticos porque na altura, nas aulas do Wolfgang, os alunos eram por exemplo David Salle, Eric Fischl, Matt Mullican ou James Welling. Tudo isto para dizer que, de repente, percebi que havia imensas coisas a fazer, e como o trabalho dele era essencialmente performativo, e usava também muito o vídeo, o conjunto das minhas fontes seriam testemunhos. A sua obra é constituída por uma história oral e, por isso, tinha de fazer muitíssimas entrevistas – acabei por fazer 37!

           

          C – E é isso que está no livro?

           

          A – Não, no livro há cinco entrevistas com os artistas David Salle, Matt Mullican, Paul McCarthy, o compositor Daniel Lentz e a galerista e curadora Helene Winer. Mas muitas das outras entrevistas – e falo bastante sobre isso na introdução – foram utilizadas como base para o livro. Porque no livro há uma descrição e um comentário para cada um dos vídeos (são 39), para todas as performances, todos os quadros, esculturas, ephemera. E sempre que encontrava alguém que dizia coisas interessantes sobre o trabalho dele acrescentava a citação. Portanto, o livro é pontuado por todas essas vozes. 

           

          C – Estou a ver, é incrível! A verdade é que te deparaste com um momento que é, de facto, a idade de ouro da CalArts, e que fez a sua reputação até hoje. Que sorte, foi um tesouro, é mesmo a caverna de Ali Babá.

           

          A – Foi extraordinário e, passado um ano e meio, consegui o apoio para a investigação em teoria e crítica de arte do CNAP [Centre National des Arts Plastiques], o que me permitiu ir a Oklahoma City, onde o Wolfgang estudou entre 1965 e 1968 e onde conheceu a primeira mulher. Ele tinha passado pela cidade durante a viagem a cavalo e queria lá voltar. No entanto, ainda ficou em Los Angeles durante uns tempos, e trabalhou primeiro para uma revista chamada Teen Screen. Era uma revista do género cor-de-rosa da altura. Aí, aprendeu a fazer paginação, ganhou o gosto pela composição de manchetes e brincou um pouco com os boatos.

           

          C – Portanto, ao trabalhar para essa revista, ele formou-se para ser uma espécie de segundo Warhol, em termos de “como compreender o sistema da publicidade”?

           

          A – Sim, e sem qualquer perspectiva artística. Foi uma coisa que aconteceu antes da sua carreira de artista, por isso julgo que terá sido muito profundo.

           

          C – Lembra-te que, de todos os fotógrafos ocidentais vivos, aquele que tem agora a carreira mais fulgurante é um rapaz que começou a trabalhar para umas revistas em voga, se bem que fossem revistas de moda, o Tillmans. Mas tal como o Warhol – que quando trabalhou como ilustrador para a Vogue e para a Harper’s Bazaar também não era numa perspectiva artística –, depois usou isso no trabalho.

          Mas, enfim, é quando está em Oklahoma que ele conhece a primeira mulher?

           

          A – Sim, a Karen Couch Wieder.

           

          C – E é nessa altura que se casa com ela?

           

          A – Sim, é uma história engraçada. Digamos que oficialmente casou com ela em Oklahoma mas, na realidade, casaram noutro estado dois anos depois. O pai da Karen estava a morrer, e então fizeram crer à família que eram casados. A Karen era filha do reitor da universidade. Foi uma história de amor muito, muito bonita. Ficaram três anos juntos em Oklahoma, a mãe do Wolfgang vivia com eles. Havia uma espécie de contrato tácito entre eles: até ele terminar os estudos, ela continuaria ali para apoiar o filho, tratar da casa, cozinhar. A Karen aceitou esta trilogia inusitada. Ainda se mudou com eles para Santa Bárbara e quando se foi embora, em 1970 – na altura em que o Wolfgang começou a dar aulas na CalArts –, foi evidente: ele foi emagrecendo, emagrecendo, emagrecendo, emagrecendo.

          Mas voltando à capacidade do Wolfgang para criar mitos, o que tem graça é que quando comecei a estudar os arquivos dos seus tempos em Oklahoma encontrei artigos que falavam do Wolfgang antes mesmo de ele começar a estudar na Universidade, com títulos como: “Ele escolheu a Universidade de Oklahoma depois de uma viagem a cavalo de 7150 quilómetros.”

           

          C – Ele sabia muito bem o que estava a fazer. Plantou uma semente que sabia que daria frutos durante décadas.

           

          A – O trabalho dele em Oklahoma é muito diferente, claro. É o princípio, são muitos quadros e bronzes. Mas se tivermos um olhar de conjunto, há qualquer coisa que já é muito precisa e clara nas ideias que ele vai desenvolver mais tarde na sua prática como videasta e performer. 

           

          C – Para além do facto de ele poder narrar esta odisseia neo-western com o irmão, há alguma coisa no trabalho que traduza plasticamente essa travessia?

           

          A – Não sei se isto responde à tua pergunta, mas às vezes, quando falo disso, há uma coisa… é um termo que o Matt Mullican usa na entrevista que lhe fiz. Dizia-me ele: “O trabalho dele era muito deadpan”, seco, por assim dizer. Associo isso também àquela postura cliché do cowboy. Diria que o seu trabalho é justamente isso, e muito mais. 

           

          C – Mas no fundo, quando ele diz deadpan quer dizer que apesar de tudo está ali um corpo. Que fica. 

           

          A – Sim, e uma atitude. Oito anos depois da travessia dos Estados Unidos, ele revisita o acontecimento e apresenta-o como a sua primeira peça. É qualquer coisa. É impressionante a maturidade e a mestria que ele tem. Sabe construir muito rapidamente uma história, dizendo a coisa certa, detendo-se um pouco antes, jogando com os códigos; ele sabe como criar desejo. Para o mestrado em Santa Barbara, fez uma série de performances. Encontrei o vídeo em Oklahoma, nos arquivos da Karen; o Wolfgang e outras pessoas que ele convidou executam acções muito rudimentares: saltar, correr, cair para partir estruturas em gesso. Ele usa óculos de sol pretos durante toda a performance, e realiza as acções de uma forma muito silenciosa e séria mas, ao mesmo tempo, sempre com um sorrisinho no canto da boca…

           

          C – Sim, é sexy. Que idade tinha ele?

           

          A – Era um pouco mais velho do que os outros, tinha 26 anos.

           

          C – Aos 26 anos, um rapaz que acabou de atravessar os Estados Unidos, com o irmão, em cima de uma pileca, é sempre sexy. Quer ele queira, quer não. Fisicamente, como é que ele era?

           

          A – Tinha qualquer coisa muito especial, e também foi mudando muito. É estranho. Às vezes, não o reconhecemos. A propósito da sua última performance, que fez em 1975, no ateliê do John Baldessari, muitas das pessoas que entrevistei e que viram essa performance disseram-me que algo tinha mudado, que fisicamente ele estava diferente. Mas ainda tinha aquela coisa…

           

          C – Aquela plasticidade, chamemos-lhe psicofísica. Psíquica/física.

           

          A – Sim, na entrevista que fiz ao Paul McCarthy sobre esta última performance, ele disse-me: “O Wolfgang estava a tentar afectar o seu ser. E (…) essa última peça é sobre isso. Está a afectar quem ele é, à nossa frente.”

           

          C – O que não é coisa pouca.

           

          A – O livro termina com isso e é muito bonito, uma pessoa a forçar tanto os limites que se vê fisicamente transformada, é qualquer coisa… mas a nível mental, sobre a questão do próprio ser, é muito forte.

           

          C – É uma reflexão magnífica.

          Desculpa, mas vou passar à questão mais complicada, ele morreu de quê aos 32 anos?

           

          A – Acidente de viação, o que é inacreditável. E foi por isso que eu demorei tanto tempo, para manter essa atmosfera de myth maker e, ao mesmo tempo, desconstruir coisas que foram ditas sobre ele e a sua obra, que nem sempre são verdadeiras, são boatos. Os boatos nunca são totalmente falsos, mas também nunca são totalmente verdadeiros. Eu queria desconstruir sem arruinar essa ambiguidade. Quando conheci o Matt Mullican, ele disse-me “pois, a última performance dele foi o suicídio, de carro”. Mostra bem a ideia que as pessoas têm do Wolfgang.

           

          C – Não está mal visto e, além disso, não foi qualquer um a dizê-lo.

           

          A – Sim, mas eu contei-lhe o que tinha descoberto sobre o acidente, e a resposta dele foi: “Isso é o que as pessoas dizem!” O Wolfgang ia de carro com a segunda mulher, a Carol Lingham, com quem me encontrei várias vezes e que me contou o acidente detalhadamente. Claro que tudo o que rodeava o Wolfgang podia dar a impressão que…

           

          C – Associaram o acidente à potência ficcionalizante que ele tinha.

           

          A – Exacto. Mas no que diz respeito ao acidente, tristemente, foi só um condutor bêbedo que chocou contra eles.

           

          C – De facto, não é nada romanesco.

           

          A – Em Março de 1976.

           

          C – Como é que ela viveu a coisa?

           

          A – A Carol Lingham voltou a casar. É muito especial, porque estas duas mulheres com quem passei tanto tempo tornaram-se importantíssimas na minha vida. Eu era bem próxima da Karen, que infelizmente morreu de Covid este Verão. Ficou muito emocionada por voltar a falar do trabalho do Wolfgang. Quando eu apareço em Oklahoma quarenta anos depois e lhe bato à porta… foi como se ela sempre tivesse sabido que esse dia ia chegar, foi tudo muito natural. Voltei lá várias vezes, porque ela tinha guardado tudo – é incrível – em caixas de sapatos, não tinha digitalizado nada. Estava tudo por fazer, e foi fantástico fazê-lo com ela. Lembrar-me-ei sempre de quando nos metemos as duas na auto-estrada para irmos ter com uma pessoa que podia digitalizar os super-8, e ela voltou a ver as imagens do Wolfgang, houve momentos muito bonitos. Para a Carol, o acidente foi muito duro e…

           

          C – E ela virou a página.

           

          A – Sim, mas ela é uma verdadeira flower power, manteve essa coisa, consegue estar ali e noutro lugar ao mesmo tempo. E digo isto com ternura, foi uma solução que lhe tem permitido andar para a frente em muitas coisas, viver depois daquele trauma.

           

          C – Lembrei-me de uma coisa, fiquei a pensar que há bocado disseste que tinhas recebido o prémio da crítica do CNAP. Foi atribuído para quê?

           

          A – Apoio à investigação. Eu já estava a trabalhar sobre o Wolfgang há um ano e meio, e depois expliquei que precisava de ir a Oklahoma, havia várias pessoas que eu precisava de conhecer, e também tinha de voltar a Los Angeles.

           

          C – E quanto é que eles te deram?

           

          A – 6000 euros.

           

          C – Ah, nada mau.

           

          A – De qualquer maneira, este livro teve uma montagem financeira meio maluca. Aprendi a ser editora, produtora, investigadora e escritora.   

           

          C – E conta lá: acabaste de fundar uma editora, como é que se chama?

           

          A – Daisy. Uma editora que criei com o Baptiste Pinteaux.

           

          C – Baptiste que é um dos quatro da octupus notes, a revista que têm em conjunto.

           

          A – Sim, com o Martin Laborde e a Alice Pialoux.

           

          C – Então, tu e o Baptiste decidiram fazer a Daisy juntos.

           

          A – Sim, a maneira como trabalhamos na octopus notes gera um enorme interesse sobre certos temas, que tínhamos vontade de desenvolver mais sob a forma de livro. Ambos tivemos logo esse desejo, e primeiro pensámos em fazer a octopus book, mas depois quisemos criar outra imagem, outro repertório. Claro que haverá muitos projectos ligados à octopus notes, é inevitável, mas serão assinados Daisy. 

           

          C – Adorei, e porque é que se chama Daisy?

           

          A – Daisy porque… Sabes como é, as razões para a escolha de um nome são sempre más ou superficiais, e quando se explica é uma desilusão. Pensámos em muitas coisas e, no início, queríamos que fosse o nome de alguém. Pensámos até que podia ser Daisy Miller, queríamos que fosse uma pessoa. E, ao mesmo tempo, havia a Daisy, a namorada do Donald, e a flor também…

           

          C – Claro, pensei logo nisso. Daisy, a namorada do Donald, é fantástico.

           

          A – Um amigo mandou-me isto no outro dia, vou-te ler, é em inglês: “I believe in the world as in a daisy because I see it but I don’t think about it because to think is not to understand”. Isto é Pessoa em inglês. E eu pensei: “Pronto, já está.”

           

          C – E o que é uma daisy em inglês?

           

          A – Uma margarida.

           

          C – Voltemos à tua investigação. Conseguiste dinheiro, o que te permitiu conhecer as duas mulheres de Stoerchle e entrevistar os que o conheceram na época da CalArts, e depois disso?

           

          A – Na verdade, houve várias viagens. A ida a Oklahoma, que foi muito importante, como também o encontro com a Lisa Overduin, que é directora da galeria Overduin & Co., e que me convidou a organizar uma primeira exposição monográfica sobre o Wolfgang, em Los Angeles. A exposição aconteceu em Março de 2018, arranjámos maneira de eu ficar mais tempo para poder fazer todas as entrevistas e conhecer o David Salle e o Daniel Lentz. A seguir, também fui a Nova Iorque para me encontrar com a Helene Winer, depois a Berlim… Organizei-me para juntar todas as peças do puzzle. 

           

          C – Um trabalho de montagem.

           

          A – Sim, e a última coisa foi o prémio da Terra Foundation [for American Art] pelo manuscrito do livro, o que foi fantástico. É um prémio para o manuscrito, portanto tive de enviar tudo. Também tem de haver relatórios de académicos sobre o texto. Pedi ao Alexander Dumbadze, que escreve sobre o Bas Jan Ader, e à Valérie Mavridorakis, que é professora na Sorbonne. 

           

          C – Mais uma vez, não é só teres nascido com uma estrelinha da sorte porque a Valérie Mavridorakis, na nova geração de grandes historiadoras da arte que dão aulas na universidade, é uma das duas mais interessantes, há que dizê-lo.

          Voltemos ao Wolfgang. Depois de teres feito aquelas entrevistas todas, percebes que tens em mãos um material extraordinário e insano, que tem de ser organizado, mas imagino que, à medida que fazias as entrevistas e as transcrevias, já sabias quais é que iam constar do livro.

           

          A – Sim, na verdade as entrevistas que publico são as conversas que aconteceram quase de uma assentada. Mas há outras, há muitos amigos do Wolfgang a quem ainda hoje escrevo. Dizia-te há pouco que aprendi um ofício enquanto fazia este livro, fui o que se chama um editor em inglês, ou seja, uma directora editorial. Eu era muito nova mas já tinha feito alguns trabalhos antes, e a minha ideia era manter o barco à tona, pondo toda a gente a conversar e a trabalhar para que o projecto não se afundasse, para que vingasse. Eu estudei história da arte, mas não tinha a veleidade de saber realmente escrever. 

           

          C – Eis senão quando, não é Vénus que sai das águas, mas sim a super-Alice.

           

          A – E, no meio disto tudo, deparo-me com muito material. É por isso que o livro está construído como um sourcebook e uma biografia, é uma mistura. Com o Wolfgang acontecia a mesma coisa, a sua história de vida é tão importante como a sua obra; são também os anos 70, e há um desejo de misturar arte e vida sem entrar em sentimentalismos.

          Por isso, senti que tinha o direito de fazer isto sem ser especialista. Muito naturalmente, a minha preocupação era recolher informações, o meu plano era recolher material, regressar a Paris depois das várias viagens, formar uma equipa de autores e dizer-lhes: “Tenho aqui isto, agora está nas vossas mãos, bom trabalho, ponham isto na história da arte.” Mas havia aquela história do Wolfgang a dar uma cadeira que se poderia resumir como “to teach something you don’t know”, “ensinar uma coisa que não se sabe”, então eu pensei: “Queres melhor do que isto?” Verdade seja dita, não fui eu que pensei nisto, foi o Christophe que me disse quando eu voltei: “Mas Alice, tu é que tens de escrever o livro, tens tudo aí.” 

           

          C – Era óbvio. Abençoado seja o Christophe Daviet-Théry, mais uma vez. O livro agora vai sair em que editora?

           

          A – Está actualmente a ser revisto e vai ser lançado em Outubro. Nas edições Daisy e Christophe Daviet-Théry.

           

          C – Fantástico. Isso quer dizer que quem ler esta entrevista vai conseguir encontrá-lo.

          Entrevista realizada por videochamada no dia 5 de Julho de 2021. Transcrita por Cyriaque Villemaux. Traduzida do original em francês por Joana Frazão. 

           

          Sara Wookey Transmitindo Trio A

          Trio A é uma peça coreográfica de Yvonne Rainer, criada em 1966, que integrava o espetáculo A Mind is a Muscle. São aproximadamente quatro minutos e meio dançados em silêncio por um ou mais intérpretes que nunca olham para o público enquando dançam uma sequência contínua de movimentos sem modulações (nem aumentos de ritmo ou quebras na dinâmica), movimentos que foram apropriados (do ballet clássico, de formas de dança modernas e pós-modernas, da cultura popular) e movimentos feitos à medida, e que são simultaneamente reconhecíveis e irreconhecíveis para o público de um espetáculo de dança. O intérprete deve executar os movimentos como no dia a dia, e com um nível de energia idêntico e nunca superior ao despendido quando se cozinha ou se faz outra tarefa doméstica, e sem nenhuma necessidade de agradar, apresentar, falar com ou transmitir qualquer espécie de mensagem ao público durante o espetáculo. Como afirma Yvonne: “A dança está ocupada a dançar e o público está ocupado a observar. E acontece estarem juntos na mesma sala”.i

           

          A peça exige dx bailarinx uma enorme concentração e atenção, energia, determinação, humildade e elegância e também um comprometimento físico e uma vontade de trabalhar diligentemente, de forma consistente e sem distrações. Estas intenções e exigências podem contudo transformar-se em desafios tanto para x bailarinx como para mim, a transmissora. Já me aconteceu ser confrontada com as exigências básicas do trabalho para que este fosse reconhecível como Trio A. Muitas pessoas, sobretudo artistas plásticos que conhecem o trabalho de Yvonne pelo seu Manifesto do Nãoii, mas que não são bailarinos de formação, têm problemas com o facto de Yvonne já não aceitar que qualquer versão da dança seja apresentada ou transmitida. Ela própria tem vindo a mudar de opinião em relação à qualidade que espera. A abordagem de 1960, que entendia que qualquer pessoa a podia dançar, ainda se mantém, mas essa pessoa tem de trabalhar bastante para apreender a mecânica da dança de modo a dançá-la de acordo com as especificidades do trabalho e as expectativas de Yvonne.

           

          Eu fui “certificada” pela própria Rainer como uma transmissora de Trio A, depois de ter estudado com ela na Universidade da Califórnia. Lembro-me claramente de ela dizer que seria a quinta e última bailarina a ser certificada por ela. O termo “transmissora” surgiu de uma conversa que tivemos muito mais tarde, quando encontrei e lhe mostrei um certificado académico da minha avó. No meu papel de transmissora, sou depositária do trabalho de Yvonne (Trio A, Diagonal e Talking Solo (parte de Terrain, 1963)) e responsável por transmiti-lo, garantindo a sua integridade através do tempo. Sou a cuidadora do trabalho, uma historiadora oral e tradutora física. Transmitir um trabalho com um processo tão rigoroso (Yvonne passou três meses a trabalhar no estúdio para construir uma peça de quatro minutos e meio) significa ensaiar para manter uma estrutura coreográfica que é igualmente rigorosa e tem de ser executada com precisão e com a intenção dos princípios da peça original.

           

          Para conseguir esta linguagem específica, juntamente com os movimentos físicos, criei um conjunto de aproximadamente cem cartões com ilustrações desenhadas à mão e palavras sob a forma de citações de Rainer e com as minhas próprias descrições. Este sistema de notação pessoal reflete também uma organização dos quatro níveis de informação na dança – o movimento físico, a espacialização, o olhar e o ritmo –, cada um deles entendido como sistemas distintos mas que se sobrepõem. Esta forma obsessiva de tirar notas pode ajudar a prolongar a dança no futuro. Serve para ajudar a preservar a memória de uma dança ao longo do tempo nas gerações de pessoas a quem a transmitirei. Há alturas em que preciso de rever um movimento específico da peça. E isto pode querer dizer que tenho de recorrer às minhas notas de referência ou ao conjunto de cartões que desenvolvi ou a uma consulta por email com Yvonne.

           

          Na minha experiência, apesar de a peça ter sido criada numa altura em que os artistas, incluindo Yvonne, eram muito influenciados pelo minimalismo, ela não é nem minimal nem pedestre. O que pode porém ser considerado minimal ou pedestre está no ritmo ou uso do tempo da peça. É uma dança composta por uma série de sequências complexas executadas de forma contínua. Não há paragens nem pausas, apenas uma longa frase de movimento que só se interrompe quando é executado o último movimento: um toque ao pousar o pé direito, relaxado e equilibrado nos dedos dos pés, atrás do pé esquerdo, com o corpo virado para o canto de trás da sala, os olhos a olharem para as palmas das mãos apertadas contra o lado esquerdo do corpo agora próximo do lugar onde começou a dança.

           

          Certas condições circunstanciais foram levantando questões no que diz respeito ao que pode ser um andar “neutro” ou como traduzir para a contemporaneidade a estética da cena de dança da baixa de Nova Iorque nas décadas de 1960 e 1970. A reapresentação de Trio A (1966) por estudantes de dança de Los Angeles em 2019, por exemplo, colocou desafios produtivos e novas perspetivas relacionadas com tradução cultural, compreensão e um certo grau de flexibilidade na interpretação. Eu costumo partilhar leituras sobre o contexto cultural da época do Judson Dance Theatre e também discuto acontecimentos sociais e políticos da altura. Há momentos em que me pergunto: “O que faria a Yvonne nesta situação?”, e tento personificar a sua abordagem, disponibilidade, criticidade, ética e rigor. Ou, em outros momentos, convido-a simplesmente para a conversa, e até já a tive comigo em estúdio para resolver as questões que surgiam, tanto na peça como no grupoiii.

           

          Um exemplo recente aconteceu em Toronto, onde estava a trabalhar com um grupo de artistas de performance (e alguns bailarinos) a convite do Centro de Artes Performativas FADO. Logo no início do processo, que durou uma semana, consultei a Yvonne por email. Ela estava em Nova Iorque mas em trânsito para ir trabalhar com o grupo antes de apresentarem a peça na Galeria de Arte de Ontário (AGO). Uma vez que a maioria dos artistas do grupo não estava preparada para apresentar um Trio A coeso, discuti com Yvonne a possibilidade de apresentar uma mostra do processo não acabado de transmissão da dança, ou seja, um ensaio com o título Transmitindo Trio A.

           

          Quando a Yvonne chegou ao estúdio em Toronto havia um ambiente de nervosismo e incógnita. Tínhamos tido uma série de conversas sobre as expectativas, a pressão e a visibilidade do espetáculo na AGO, e eu queria que a Yvonne me ajudasse a tomar a difícil decisão de como apresentar a peça neste contexto. Consciente ou não do ambiente que se sentia na sala, Yvonne foi muito inteligente. Pediu-me que dançasse Trio A para que fizéssemos uma das nossas “afinações” regulares. Esta “afinação” é uma forma de verificar o estado da peça para os transmissores que a ensinam a outros. Já tínhamos feito algumas “afinações” mas nunca perante pessoas a quem estava a transmitir a peça, e desta forma foi possível mostrar o que eu estava a tentar traduzir em palavras: que também eu estou permanentemente a tentar implantar a dança no meu corpo; que é um processo sem fim. Esta experiência de fazer uma “afinação” perante o grupo teve outras vantagens: colocou-nos no mesmo lugar, com as mesmas experiências, porque também eu era uma aprendiz em permanência desta peça icónica.

           

          Transmitindo Trio A foi bem recebido na AGO e abriu novas possibilidades de partilha da dança com o público num enquadramento pedagógico. Este exemplo levou-me à minha atual investigação sobre a dança enquanto prática relacional, no Centro de Pesquisa de Dança (C-DaRE), na Universidade de Coventry, o que inclui uma reflexão sobre como as aptidões transmissíveis dos bailarinos e as práticas coreográficas expandidas contribuem para uma mudança da ecologia humana do museu.

           

          i Escrevi bastante sobre esta abordagem bem como sobre o modo como ela sugere uma certa relação entre bailarinos, público, lugar de apresentação e outros, na minha tese de pós-doutoramento Spatial Relations: Dance in the Changing Museum (2020) no Centre for Dance Research (C-DaRE) da Universidade de Coventry.

          ii Manifesto do Não foi publicado pela primeira vez na edição de inverno de 1965 da Tulane Drama Review, n.º 10: 178, com a intenção de desmascarar por completo a ideia de expressionismo formal na dança:

          Não ao espetáculo.

          Não ao virtuosismo.

          Não à transformação e à magia e ao faz de conta.

          Não ao glamour e à transcendência da imagem da estrela.

          Não ao heroico.

          Não ao anti-heroico.

          Não à imagética lixo.

          Não ao envolvimento do intérprete ou do espectador.

          Não ao estilo.

          Não ao camp.

          Não à sedução do espectador pelos artifícios do intérprete.

          Não à excentricidade.

          Não a comover ou ser comovido.

          (N. do E.)

          iii Para mais informações e exemplos, consultem o meu capítulo “Transmitting Trio A: The Relations and Sociality of an Unspectacular Dance”, em Transmission in Dance, Dance Research, 37, n.º 2 (2017).

          Henrique Neves  Uma Nova Peça Nova

          1 No ano 2000, Jérôme Bel e alguns dos seus assistentes realizaram um workshop em Amesterdão para explorar ideias de trabalho que, juntamente com material desenvolvido antes, deu origem a The Show Must Go On (Jérôme Bel, 2001). Descreveria TSMGO como uma peça depurada, baseada num conceito claro que entrelaça canções pop, coreografia e os recursos técnicos e cénicos de um teatro, conduzindo os performers e membros do público por vários estados físicos, de reflexão e de emoção. TSMGO estreou, fez tournées internacionais durante anos, é parte do repertório de companhias de dança e teatro, estudado em escolas e citado em publicações. A obra ou os seus registos foram apresentados em exposições de arte contemporânea. Desde 2008, TSMGO deixou de circular com o seu elenco original, do qual eu fazia parte, e passou a ser remontado com elencos locais em cada cidade onde é apresentado. O trabalho de remontagem é geralmente feito por dois assistentes com o apoio do Jérôme Bel e da sua companhia. Eu sou um desses assistentes, e trabalho sobretudo com Dina Ed Dik.

           

          A outra forma de começar este texto seria dizer que TSMGO faz parte da minha vida há duas décadas. Mudei de país três vezes, a minha irmã e os meus pais faleceram; fiz um mestrado; casei-me; mudei a minha principal atividade artística. TSMGO tem sido fio, trama e urdidura de eventos alegres, deprimentes e muitos outros que não são nem uma coisa nem outra.

           

          2 Em linha com registos tradicionais, existe uma partitura escrita para TSMGO que descreve o que os intérpretes e os técnicos devem fazer, bem como os seus requisitos cénicos. Mas TSMGO é uma obra que existe num momento presente, ao vivo, dentro de um teatro. A peça muda de noite para noite e é marcada pela re-encenação, local de apresentação, performers e público. Há imposições exteriores que se atravessam, como a necessidade de negociar nudez com xs intérpretes, censura política, ou sociedades de direitos de autor que negam o uso de certas músicas. O tempo histórico atira canções para fora das listas de êxitos e um filme biográfico ressuscita-as. TSMGO não existe puro, sendo influenciado pelos contextos e pelas geografias.

           

          É o sonho secreto de qualquer americano dançar a Macarena. Fizeram-no quatro vezes seguidas, uma após outra, no casamento da minha irmã, disse ele.

           

          3 As diferenças vão além de detalhes ou episódios e em cada re-encenação a peça é a mesma e é diferente. O coletivo e os indivíduos acrescentam características singulares, amplas e sentidas. A longevidade da peça e a sua itinerância têm trazido ao palco uma maior diversidade de corpos e de identidades étnicas, sociais, de género, de sexualidades, e com ela personalidades, gestos e modos de estar distintos. A língua de cada local condiciona a relação entre performers e assistentes, assim como a leitura da peça. As próprias cidades carregam a sua história e os seus ecos. Já testemunhei reações do público, ao vivo, de celebração de resultados eleitorais, de repúdio por desigualdades sociais, de ultraje pela falta de virtuosismo de uma Companhia Nacional de Dança a realizar ações banais, ou de comoção pela inclusão de corpos com deficiências em cena. Essa capacidade de falar do local e ao local é essencial ao trabalho. 

           

          Foi um acidente. Ele disse que não tinha apalpado os seios dela. Até mal os tinha tocado. Além disso, eu próprio lhes tinha pedido para tocarem o corpo dxs parceirxs. E no teatro e na dança e nestes trabalhos estas coisas acontecem todo o tempo. E na altura ela nem ficou chateada. Foi imediatamente mandado embora.

           

          4 TSMGO sempre incluiu profissionais do espetáculo e pessoas de outras profissões. Embora a obra parta de um trabalho meticuloso, requer ver e ouvir xs intérpretes. Por vezes as suas respostas às propostas do trabalho não se distanciam muito das já encontradas. Outras vezes são descobertas, fruto de escolhas individuais, vivências, identidades, valores ou extensões de condições físicas e de corpos que só agora têm voz e lugar no palco. 

           Esse trabalho de adaptação pode ser desafiante, tanto para os assistentes como para xs participantes. Explicar deixas musicais a uma bailarina surda, expor características físicas ou dançar livremente como numa discoteca em locais onde não existem discotecas são desafios. Como o são a consciencialização de regras, a transposição do cansaço físico ou da insegurança. As surpresas são também corpos que carregam histórias visíveis, ou que xs performers se recusam revelar por escolha ou trauma: já trabalhei com ativistas que se mostram tímidos no palco ou cadeirantes que rejeitam usar a cadeira de rodas como marca identitária. Por vezes a ausência de uma língua ou cultura comum exige discussão e a delegação de decisões aos intérpretes. O processo de trabalho não é de sentido único e engloba confronto e recusa. 

           

          Ele respondeu que não dançava. Disse que eu era um europeu branco e não entendia que o seu povo não podia dançar. Eles não tinham permissão dos brancos para dançar. Morreram e morrem aos milhares, todos os dias: de álcool, drogas, penúria. Ele não dançava porque não lhe era permitido. E eu, um europeu branco, não podia entender isso.

           

          5 Entendo que a minha função de assistente é instigar os performers a encontrarem a sua voz, a sua política, a sua liberdade na peça. Incito a uma emancipação a partir do aprofundamento e engajamento com as tarefas do trabalho, mas que abraça e procura risco (e riso). O meu papel é criar um espaço que encoraje os performers a apropriarem-se da peça e a afirmarem-se, indo além da figura de autoridade que represento.

            As remontagens locais implicam mudanças importantes, mas por vezes surgem questões sobre a sua relevância em relação à data de criação da peça. A melhor maneira de responder exigiria inquirir os produtores que a convidam. Conheço algumas das respostas: TSMGO é uma peça icónica; Jérôme Bel é uma voz marcante; o número de pessoas que viu a peça é reduzido; poucos criadores internacionais trabalham com elencos locais; “organizamos uma mostra de dança europeia”, etc. Para mim, a questão da relevância não é premente e acredito que a obra responde à pergunta. 

           

          Pediu-nos uma entrevista para uma estação de rádio local. Depois de fazer algumas perguntas, mencionou que a sua filha se havia candidatado, mas que não a tínhamos selecionado. A sua filha ficou muito desiludida e triste. Expliquei. Na estreia veio ver o show e disse que o detestou. E fez questão de mo atirar à cara, no meio das amigas, no foyer do teatro.

           

          6 A preocupação com a novidade parece ser algo característico da dança contemporânea. Intriga-me que uma arte tão efémera, que vive no momento ao vivo, esteja tão envolvida com o porvir e nisso olvide, apague e coma o que já foi feito. 

          Não existe um arquivo central de dança em Portugal e muitos dos registos dos últimos 30 anos estão dispersos, são de difícil acesso, casuais e perigosamente perecíveis. Sanar esse falho não é apenas uma questão de valorização da dança e dxs artistas, mas também de consciência coletiva. Sem memória nem rastos tudo desaparece. O novo pode tornar-se simplesmente a revisitação do que foi esquecido. 

          TSMGO relaciona-se com os códigos e a história da dança e do teatro no Ocidente, operando através de trocas e ativações de referências e materiais. A obra dialoga com coreógrafxs, artistas e pensadores, ao mesmo tempo que já faz parte do arquivo e entrelaça tempos diversos.

           

          7 Em tempo de emergência climática, TSMGO endereça preocupações atuais, e com o futuro, por via dos modos de trabalho. A remontagem com elencos locais, há mais de 10 anos, respondia à preocupação de Jérôme Bel com a pegada ecológica das viagens de 20 performers. Durante anos apenas os assistentes de encenação viajaram. Há cerca de três anos a sua companhia deixou de viajar de avião. A decisão foi recebida com espanto e desconfiança, embora Jérôme já há muito trabalhasse à distância. Surgiu a Covid-19 e o que era estranho vingou. Tive dúvidas se eu próprio teria oportunidade e capacidade para continuar, mas entretanto já re-encenei outras obras on-line e irei proximamente remontar TSMGO por esse mesmo meio. 

           

          Trouxe alguns ovos cozidos com especiarias, feitos na noite anterior, para oferecer aos colegas. Todos adoraram os ovos. Na manhã seguinte trouxe mais. Daí em diante, diariamente, durante toda a semana, trouxe mais de 15 ovos cozidos. Todos os dias se queixava do tempo que demoravam a fazer, mas trazia. Xs performers chegavam cedo, conversavam, descascavam os ovos e comiam-nos deliciados. O cheiro a ovo cozido na sala de ensaio era nauseabundo.

           

          8 Muito do que escrevi aqui tornei-me eu. Nos deslocamentos testemunhados e vividos nestes anos, transformei-me em algo que não havia sido antes: a ser mais aberto, a olhar pessoas, corpos e identidades com mais carinho e admiração, a abraçar o que nem sempre entendo. Descobri como buscar resoluções para problemas que surgem no momento. Aprendi a procurar respostas e ações para o que me assombra, atormenta e seduz no campo limitado que é o meu trabalho. Ver TSMGO como um corpo em movimento, impelido em direções que o transformam e transformam quem nele participa é válido para a obra, para performers, para públicos mas também para mim: alguém que neste trabalho existe entre um criador que admiro, uma obra e aquelxs que lhe dão corpo e a fazem acontecer.

           

          O hotel hospedava as pessoas que trabalhavam na Universidade (a que o Teatro pertencia) e acolhia doentes em tratamento no hospital e os seus familiares. Quando cheguei, estranhei tantos pijamas e robes no pequeno-almoço. Uma manhã ouvi duas pessoas a comentar os tratamentos oncológicos de parentes. Ouvi conversas da boca dos próprios doentes. E fez-se luz sobre a falta de etiquette” às refeições. Na TV, o programa da manhã celebrava o aniversário de Gloria Gaynor. Entrevistaram-na. Gloria levanta-se e começa a cantar I Will Survive em playback. As câmaras saltam dela para as apresentadoras risonhas noutras partes da cidade, tagarelando e dançando com gente comum. Olhei ao meu redor. A mulher cujo pai fazia quimioterapia estava concentrada a pôr manteiga na torrada. Duas idosas pálidas, de robes com flores, olhavam para a TV, sem reação. Peguei no meu croissant trincado, na chávena de café e fugi para o meu quarto. 

          Hwayeon Nam 남화연 Seung-Hee Choi, Kyunghee Lee e o Sr. H 최승희, 이경희, H씨

          Não ficamos na praia a perguntar ao oceano qual foi o seu movimento no passado e qual será o seu movimento no futuro.

          Isadora Duncan, “The Dancer of the Future” (c.1902), in The Art of the Dance. New York: Theatre Arts Books, 1928

           

            

          Conheci a Kyunghee Lee há dois anos, no verão. Durante uma tremenda vaga de calor em Tóquio. Eu e a Haeju Kim 김해주, curadora da minha exposição individual Mind Stream (no Art Sonje Center, em 2020) estávamos a conversar sobre o terramoto que tínhamos sentido naquela noite. Fomos juntas de metro até à escola Chosun, em Tóquio. Já conhecia a escola há algum tempo, mas sem saber porquê senti-me surpreendentemente nervosa com a visita. Ainda me lembro de algumas das paisagens que vi da janela do comboio, no caminho. A escola Chosun foi discriminada institucionalmente pela sociedade japonesa e alvo de discursos de ódio pelas organizações de direita japonesas, devido às ligações financeiras e políticas com a Coreia do Norte e a vários casos de raptos de cidadãos japoneses na Coreia do Norte nos anos 1970 e 1980.

          Ainda existem cidadãos coreanos residentes no Japão que se mudaram durante a ocupação japonesa da Coreia (1919-1945). Mudaram-se para o Japão antes da divisão da península coreana e não puderam voltar, mesmo depois da independência da Coreia. No final da Segunda Grande Guerra, depois de o Japão ter sido derrotado, cerca de dois milhões de coreanos permaneceram no Japão e viram a sua nação atravessar tempos caóticos que culminaram na divisão entre Coreia do Sul e Coreia do Norte. Os que permaneceram no Japão, depois de expatriados, foram forçados a escolher entre uma das nacionalidades. Contudo, o Japão era já a sua base e foi aí que um grande número de coreanos se instalou por questões práticas, mas também por motivos políticos ou por causa da instabilidade que se vivia na península coreana. E foi assim que surgiu a primeira geração de coreanos zainichi.

          A escola Chosun do Japão é uma escola étnica da Associação Geral de Coreanos Residentes no Japão (Chongryon), uma entre outras, criada pelos coreanos zainichi para ensinar história e cultura coreana às gerações futuras. A escola Chosun tem-se mantido graças ao apoio da Coreia do Norte. Nos últimos tempos tem-se refletido, na Coreia do Sul, sobre o silenciamento, que já dura há muito, e sobre a atitude descuidada do governo sul-coreano relativamente ao passado. Kyunghee Lee, uma antiga professora de dança da escola Chosun no Japão, e Ok Seon Moon, um encenador, amigo de infância de Lee, que me ajudou a conhecê-la, são ambos coreanos zainichi que se formaram na escola Chosun.

           

          Muitos dos coreanos que não puderam voltar para o seu país de origem permaneceram no Japão. Seung-hee Choi estava na China quando a Coreia se tornou independente, em agosto de 1945. Na altura, Choi fundara o Instituto Asiático de Pesquisa de Dança, em Pequim, e dava aulas na Academia Central de Drama na mesma cidade. Choi mudou-se para o Japão em 1926, quando fez 15 anos. Choi nasceu na Coreia, em 1911, logo depois da anexação pelo Japão. Depois de assistir a uma performance da companhia de dança de Ishii Baku [1], em Kyungsung – o antigo nome da cidade hoje conhecida por Seul –, Choi mudou-se para o Japão onde aprendeu a dança moderna de Ishii Baku. Com as suas bases de dança moderna, Choi optou por colocar em palco danças coreanas e foi bastante apoiada por pessoas cultas e por intelectuais japoneses. Desta forma, Choi tornou-se rapidamente na bailarina representante da sua colónia, bem como do Império Japonês.

          Depois disto, Choi teve várias experiências no estrangeiro, atuando na América do Norte e do Sul, bem como na Europa, e não só ampliou terrenos estratégicos para o desenvolvimento e modernização das danças tradicionais como reestruturou as possibilidades do que seria de esperar de uma bailarina. Choi era uma artista que representava tanto o Império Japonês como o orgulho artístico nacional dos coreanos colonizados. Era simultaneamente um produto de valor cultural para o imperador japonês, que, através dela, introduzia estilos artísticos das colónias, e uma presa fácil de atacar e criticar por não respeitar de forma rígida as danças tradicionais da Coreia. Para além de tudo isto, Choi era uma “Nova Mulher” que aprendeu dança moderna e que conhecia a dança ocidental e tinha uma grande paixão pelas suas conquistas artísticas. Era mulher numa altura em que as bailarinas eram menosprezadas e olhadas como gisaeng – mulheres de famílias marginais ou de escravos, educadas para serem cortesãs e oferecerem entretenimento e conversa a homens coreanos de classe alta –, numa altura em que o reconhecimento da dança como género artístico independente era raro.

          Ehera Noara (1933) pode ser tida como a dança que consolidou a ascensão de Choi no Japão. Ao apresentar pela primeira vez no Japão este espetáculo coreografado depois de ter aprendido dança tradicional coreana, Taepyeongmu [2] e Hallyangmu [3], Choi decidiu vestir-se como um homem. Podemos supor que a sua posição enquanto artista, os conflitos interiores gerados pela sua identidade social e as complexas projeções de que era alvo por parte de outras pessoas poderão tê-la influenciado nesta escolha. A cultura de passeios turísticos dos japoneses à Coreia colonial, que incluía diversões com gisaeng, por exemplo, pode também ter tido algum peso na declaração de resistência de Choi, que se poderá ter querido vestir como homem na sua estreia no Japão de modo a estabelecer-se como artista e não como um sujeito exótico.

           

          “A verdade é que atualmente a dança coreana está à beira da morte, sem dar sinais de alguma coisa a que se possa chamar ‘dança’, para além da preservação da tradição pelas gisaeng em festas e outros lugares. Não se consegue sequer encontrar literatura sobre o assunto.

          A minha dança coreana não é mais do que o recurso ao escasso material que ainda se encontra na Coreia, ou a criação de novas coisas para interpretar em palco. Julgo que ninguém reconhecerá traços de ‘originalidade’ ou ‘criatividade’ na minha estilização da dança coreana. Os meus métodos de estilização podem ser vistos como semelhantes à abordagem da La Argentina [4] à dança espanhola ou de Uday Shankar [5] à dança indiana. Para mim, esses dois métodos são experiências fundamentais.”

          Seung-hee Choi, A Letter to My Folks, Flame: An Autobiography by Seung-hee Choi, Dancer of a Century, 1911-1969. Seoul: Jamo Books, pp 82-83.

           

          Quando regressou ao Japão em 1941, depois de ter dançado em diferentes países, Seung-hee Choi participou em espetáculos para ajudar a levantar a moral dos militares e fez doações ao exército japonês quando rebentou a Guerra do Pacífico e se começaram a sentir as pressões políticas daí decorrentes. Durante o período da Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, época em que o imperador japonês propagava uma ideia de unidade financeira, geográfica e cultural transversal a toda a Ásia [6], Choi dedicou-se a trabalhar sobre a estilização de danças da Ásia oriental, incluindo danças do Japão, da Coreia e da China.

          Após a independência da Coreia, Choi ainda não se tinha livrado das acusações que lhe foram feitas no auge do período colonialista, altura em que despontava uma consciência política que pretendia aniquilar e condenar todos os grupos pró-Japão. Para dar resposta a essas acusações fez algumas declarações estratégicas, afirmando estar empenhada em transformar aquilo a que na altura se chamava “Dança Oriental” em “Ballet Coreano” e comprometendo-se a trabalhar afincadamente para alcançar tais feitos artísticos.

          Por razões ideológicas, Choi acabou por ir viver com o marido, Mak An, para a Coreia do Norte. As suas peças de dança em estilo de propaganda e o manual Dança Básica Nacional da Coreia [7] (1958) – que compilou para difundir as suas coreografias – são os principais trabalhos desse período. Até que, em 1969, foi anunciada uma purga que a vitimou por motivos políticos não muito claros.

           

          Já há algum tempo descobri Seung-hee Choi como pioneira da dança moderna. Enquanto artista, tenho vindo a trabalhar com os seus arquivos, compilados por ela e reunidos por pessoas que gravitavam à sua volta. Apesar de muita coisa ter mudado, fico por vezes exaurida pela sua história de vida difícil e pelos preconceitos que se continuam a associar a Choi e às contradições de uma vida de artista pró-Japão, comunista, etc., preconceitos esses que foram apresentados de forma trágica pelos diferentes órgãos de comunicação social da Coreia do Sul, bem como pela comunidade internacional. Como pensar as escolhas políticas de Choi perante sucessivas encruzilhadas? Será possível entendermos as divisões ontológicas de uma figura histórica feminina que foi colonizada e que era artista? Mais importante ainda, qual a matéria substancial da dança de Choi que seria fundadora para a dança da Coreia do Norte, do Sul e zainichi, e como deve ser lembrada?

           

          Em janeiro de 2012, estava a viver em Berlim, e a pesquisar para o Garden in Italy, o meu primeiro trabalho sobre Choi Seung-hee e os registos que dela existiam, um trabalho que me conduziu a vários impasses. Não havia arquivos públicos nem outros da bailarina que fossem acessíveis na Coreia do Sul. Não tive escolha, tive de confiar num punhado de publicações sobre Choi. Resolvi visitar o Arquivo de Artes Cénicas da Akademie der Künste, mas sem grandes expectativas. Acho que procurava perceber que critérios deveriam orientar a minha investigação sobre performance ou artes performativas:

           

          “Devem existir filmes de arquivo, algumas fotografias, descrições curtas, cartas, desenhos, peças de cenografia e figurinos. Isto é o que recolhemos e guardamos. Se existe muito ou muito pouco material já depende da pessoa. Mary Wigman desfez-se de todas as cartas que recebeu. Morreu em Berlim em 1973. Palucca, por exemplo, uma das suas alunas, guardou tudo. Tem um enorme arquivo. Por razões que desconhecemos, Tatiana Gsovsky fez uma seleção. E não existe muito deixado por Valeska Gert, mas é o suficiente para que a lembremos.”

           

          Entrevista com Stephan Dörschel, Arquivo de Artes Cénicas, Akademie der Künste, 17 de janeiro de 2012

           

           

          É sabido que Choi criou mais de 200 peças de dança. E apesar da quantidade de trabalho é raro encontrar arquivos originais intactos, como vídeos integrais das peças, e, mesmo que esses vídeos existissem, seria muito difícil descobri-los e o acesso ser-me-ia negado. Por exemplo, o que existe de Ehera Noara, um dos seus trabalhos fulcrais, são apenas algumas fotografias documentais. Mais tarde, enquanto compunha o manual Dança Básica Nacional Coreana, Choi tentou difundir os estilos de dança coreanos que criou. No entanto, Choi não se preocupou muito em arquivar os seus próprios trabalhos. Parece não ter sentido necessidade de os documentar. Isto teve seguramente que ver com o contexto complexo, como as guerras que estavam a acontecer na altura. Como tal, muitos dos seus trabalhos perderam-se e os que sobreviveram mantiveram-se ou foram transformados nas memórias e arquivos de outras pessoas. No meio disto tudo, aconteceu conhecer Kyunghee Lee. 

           

          Seung-hee Choi era chamada de “Choi Mo” – palavra coreana que se aplica a uma pessoa que não precisa de ser especificada ou nomeada. E claro que foi apenas em 1988, depois de a Coreia do Sul ter suspendido a interdição de entrada a artistas que desertaram para a Coreia do Norte, que a vida e o trabalho de Choi se tornaram acessíveis para serem investigados e avaliados oficialmente. Até então, entre 1959 e 1984, o navio de repatriamento que circulava entre o Japão e a Coreia do Norte, conhecido como o “navio de regresso a casa” [8], transportou coreanos zainichi de volta para a Coreia do Norte. A Dança Básica Nacional da Coreia, de Seung-hee Choi, era ensinada nesta viagem. A dança que Kyunghee Lee ensinou aos seus estudantes como sendo a dança da pátria, na escola Chosun, e a dança que ela própria aprendeu com os seus professores tinham como base a Dança Básica Nacional da Coreia, de Choi.

           

          “Havia uma dança que se fazia com uma corda. Estávamos todos dentro de uma pequena cabine. E depois tropeçámos na corda e destruímos o candelabro [risos]. O navio estava parado mas ainda se sentiam as ondas e abanava assim. No navio havia professores de dança do Norte.”                     

          Entrevista com o sr. H, Escola Chosun de Tóquio, 28 de julho de 2019

           

          O sr. H, que conheci na escola Chosun em Tóquio, era um apaixonado pelas aulas de dança. Lembro-me da sua cara luminosa, do seu ocasional humor inteligente e da sua cara de desconforto quando, por vezes, não conseguia encontrar a palavra certa em coreano. O sr. H foi um dos primeiros bailarinos coreanos zainichi a aprender algumas das coreografias de Choi, bem como a Dança Básica Nacional da Coreia. Conseguiu entrar furtivamente no navio de repatriamento da Coreia do Norte que ancorou durante pouco tempo no porto de Tóquio para poder ensinar a dança da pátria aos seus colegas e estudantes. Durante 25 anos, aproximadamente 93 mil coreanos zainichi foram repatriados no navio que circulava nessa rota. Por ter permanecido no Japão, o sr. H empenhou-se na educação e dedicou-se ao trabalho na escola Chosun e à companhia de dança da federação de escritores e artistas Chosun, no Japão. O sr. H diz ser agora o único sobrevivente do grupo de bailarinos que conseguiram entrar no navio.

          A peça de dança Contra Ondas (1956) de Choi conta a história de uma figura que navega pelo mar e canta uma canção popular de barqueiros para sobreviver. Nesta peça, Choi usa uma máscara de homem de idade e roupas compridas de homem. Mesmo depois de se reformar, Kyunghee Lee ainda dá algumas aulas de dança. Quando regressava a casa, depois de me ter encontrado com ela, Lee deu-me um arquivo em vídeo intitulado “Paisagens da prática de dança”. Aí vemos estudantes na escola Chosun a dançarem ao som da canção popular dos barqueiros e a própria Kyunghee Lee a gritar a contagem para manter os alunos no tempo certo. A vida dos indivíduos e as suas danças acontecem no meio das marés, tal como a história que se faz em ondas gigantes.

                    Apesar de achar que as performances devem continuar a existir, que os seus princípios devem permanecer vivos, não podemos simplesmente ignorar que muitas são esquecidas, perdidas ou abandonadas. Mesmo que estas próteses de memória ultrapassem ou deturpem o original, não nos fazem regredir. Apesar de tudo, ainda quero debater sobre a vida dos que continuam presentes na memória, comemorando e lembrando a dança e todos os que se quiserem juntar. Pode ser que isto seja também sobretudo sobre a precariedade da vida da performance [9]. 

           

          Traduzido do original em coreano para inglês por Hyo Gyoung Jeon 전효경, e do inglês para português por Patrícia da Silva e José Maria Vieira Mendes. 

           

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          [1] Ishii Baku 石井漠 (1886-1962) é considerado um pioneiro da dança moderna do Japão que formou bailarinos coreanos fundamentais de dança moderna, entre os quais Seung-hee Choi e Taeg-won Cho, e também Kazuo Ohno, um dos cofundadores do Butô, ou Lee Tsia-oe, uma figura influente da dança moderna em Taiwan.

          [2] Taepyeongmu (태평무; significa literalmente “grande dança da paz”) é uma dança coreana que tem a função de desejar paz ao país.

          [3] Hallyangmu (한량무) é uma espécie de peça de dança satírica apresentada em eventos oficiais. Hallyang refere-se a uma aristocrata que não conseguiu emprego na corte. Também se refere a homens que têm sensibilidade para apreciar arte e cultura, e que também apresentam um espírito de retidão. 

          [4] Antonia Mercé (1890-1936), de nome artístico La Argentina, foi uma bailarina espanhola nascida na Argentina conhecida pela sua criação de um estilo de flamenco neoclássico como arte teatral, muito influente nos anos 1910 e 1920 na Europa. Foi uma das maiores influências do bailarino de butô Kazuo Ohno.

          [5] Uday Shankar (1900-1977) foi um bailarino e coreógrafo indiano, mais conhecido por ter criado um estilo de dança de fusão, no qual adaptava técnicas teatrais europeias à dança clássica indiana, imbuído de elementos clássicos indianos, folclóricos e dança étnica.

          [6] Anunciado na rádio a 29 de junho de 1940 pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Hachirō Arita, a ambição japonesa declarou a intenção de criar um bloco autossuficiente de nações asiáticas do Pacífico, que seriam lideradas pelos japoneses e estariam livres do jugo do poder do Ocidente.

          [7] Em alguns trabalhos, Dança Básica Nacional da Coreia é também traduzido por Dança Folclórica Básica de Joseon – Joseon foi um reinado da dinastia coreana que durou até 1897, depois do qual o território entrou em disputas coloniais.

          [8] A repatriação de coreanos zainichi para a Coreia do Norte foi executada pelo governo norte-coreano, pela associação Chongryon e pelo governo japonês. Foi possível pela necessidade da Coreia do Norte de estabelecer internacionalmente a sua presença e posição, e pela necessidade japonesa de exilar coreanos zainichi.

          [9] Ver Hwayeon Nam e Haeju Kim, “Larger than Life”, A/R, n.º 3, http://art-recherche.be/hors-menu/article/a-r-3?lang=fr.

           

          Anna Halprin Prefácio

          Enquanto folheio as páginas da minha compilação de escritos, estou sentada num banco de onde vejo a minha plataforma de dança e estúdio, rodeada por sequóias e ensombrada pela presença constante do monte Tamalpais. Apercebo-me de que estou aqui há muito tempo. Cada árvore, cada voo de pássaro, ruído de veado, sensação da brisa ou som da buzina de nevoeiro encerram em si uma memória de uma dança criada neste sítio. A minha vida e trabalho estão entrelaçados com os ritmos, mudanças e variações subtis desta terra.

          Deixei a região Centro-Oeste da minha infância e uma carreira de bailarina profissional na cidade de Nova Iorque para me mudar para a Califórnia em 1945. A Segunda Guerra Mundial tinha chegado ao fim e rumei a São Francisco para me juntar ao meu marido que tinha acabado de regressar do Pacífico. Tinha 25 anos de idade. Seis anos mais tarde já tínhamos duas filhas, Dania e Rana, e a nossa jovem família mudou-se para uma nova casa desenhada pelo Bill Wuster, com o meu marido, Lawrence. Estas duas pessoas foram as principais influências para o estilo de arquitetura e paisagismo da região da baía de São Francisco, um movimento que me influenciou a mim e à minha arte todos os dias. Esse estilo possibilitava uma relação fluida entre o interior e o exterior, um tema central no meu trabalho que fui desenvolvendo ao explorar a dança, tanto dentro como fora do teatro. Na minha nova casa, as janelas de correr abriam para terraços cobertos de casca de pinheiro que nos conduziam até aos bosques de sequóias, e a vista ia desde a baía até às encostas da montanha majestosa. A minha nova casa no campo parecia fazer parte da natureza e foi-se transformando cada vez mais num ambiente de contemplação, livre das distrações da cidade. Naquela altura, partilhava um estúdio de dança com Welland Lathrop, em São Francisco, mas gradualmente fui sentindo uma atração pelo meu estúdio de casa, onde passava cada vez mais tempo.

          Lawrence e o desenhador de luz de espetáculos de dança moderna Arch Lauterer desenharam uma plataforma de dança que serpenteava por entre as sequóias por baixo da nossa casa. A atração ia-se tornando cada vez maior. Não queria separar-me das minhas duas filhas e estava pronta para romper de vez. Deixei a cidade e comecei a dançar neste ambiente exterior revigorante. Cortei os laços com a dança moderna e comecei a procurar outros caminhos. Propus oficinas experimentais para bailarinos e convidei artistas plásticos, músicos, atores, arquitetos, poetas, psicólogos e realizadores. Chamei ao grupo Dancers’ Workshop, uma ideia da Bauhaus, a escola experimental da Alemanha pré-Nazi. No Dancers’ Workshop procurávamos formas de redescobrir a natureza mais básica dos nossos materiais, livres de preconceitos e de associações pré-concebidas. Estávamos interessados em evitar a previsibilidade da causa e efeito. E como resultado das nossas muitas experiências, criámos peças de teatro e performances na plataforma de dança e no bosque envolvente para o público que era convidado. À medida que as pessoas se iam interessando pelo nosso trabalho, fomos sendo convidados para festivais de arte internacionais, tanto aqui como no estrangeiro.

          Os três aspetos do meu trabalho que gostaria de destacar são, parece-me, trajetórias singulares e têm sido muito importantes para mim ao longo dos anos. O primeiro é que as experiências que fiz com o Dancers’ Workshop nas décadas de 1960 e 1970 com novas formas de dança deram origem a novas utilizações da dança. Dançar fora das restrições do teatro de proscénio e no meio ambiente – tanto nas ruas de uma cidade como na natureza – produziu resultados inesperados. Ao aproximar-se dos ambientes onde as pessoas viviam, a dança tornou-se mais ligada à vida das pessoas e respondeu de forma mais direta às suas necessidades. Abandonámos a construção de imagens e os truques típicos do teatro e passámos a fazer a nossa arte com a matéria crua das nossas vidas. Alteraram-se e expandiram-se as fronteiras entre arte e vida e entre performer e público, e os usos e aplicações da dança seguiram-lhes o exemplo. Sentia-se o movimento de uma força maior, que eu acredito ter que ver com as raízes da dança e a sua importância primordial para os seres humanos.

          Há um segundo aspeto que foi desenvolvido: enquanto investigávamos novos usos para a dança e para o movimento, as nossas formas tornaram-se acessíveis a mais pessoas e começaram a existir fora do teatro, no quotidiano de pessoas comuns. Com a expansão das formas, o tipo de pessoas que se dispunham a participar foi ficando cada vez mais diverso e isso provocou mudanças profundas na dança. Enquanto procurávamos criar uma forma de arte em diálogo direto com diferentes grupos étnicos e nacionalidades, com pessoas de diferentes realidades económicas, idades ou capacidades físicas, desenvolveram-se novos métodos de comunicação e um processo criativo que encorajava o envolvimento plural.

          Agora que tínhamos descoberto um teatro holístico e total também precisávamos de um performer-bailarino holístico bem preparado. Comecei então a criar formas em que as componentes física, emocional, mental e espiritual dos corpos tivessem uma maior relação entre si. Estava à procura da pessoa completa, e o meu critério era o sentido na vida de cada indivíduo.

          O meu trabalho começou por se focar em novas formas e usos para a dança; mais tarde foquei-me no significado dos trabalhos que estava a criar, para depois reinvestir nessas novas formas com mais emoção e motivação pessoal. Durante o processo de despir todo o fingimento do teatro e de envolvimento da pessoa completa descobrimos que acontecia uma síntese inesperada. Começámos a trabalhar com temas da vida real, e agora as danças que criávamos faziam sentido na realidade da vida das pessoas. Estávamos a explorar as nossas histórias pessoais e as danças que criávamos tinham poderes transformativos. Comecei a chamar-lhes rituais e a identificar como mitos os materiais que as criavam. Foi um ponto de viragem para mim no que diz respeito ao modo como olhava para a dança e para os seus usos potenciais.

          O terceiro aspeto do meu trabalho, e a parte que me desafiou e estimulou durante todos estes anos, foi o modo como a dança tem sido instrumental no desenvolvimento de comunidade através da expressão de todos estes mitos e rituais. Parece que foi inevitável – a experiência de comunidade – e, à medida que a comunidade se transformava no meu tema central, emergiam símbolos ou arquétipos. A força motriz, a força pulsante da vitalidade que nos motiva a todos tornou-se a inspiração para os meus trabalhos mais tardios. O choque de ter cancro e as mudanças que isso provocou na minha vida e no meu trabalho levaram-me a explorar a relação entre dança e cura. Comecei a trabalhar com a dança como uma arte curativa e com pessoas que estivessem a lutar contra doenças potencialmente fatais. Compaixão, saúde, amor, catarse, vida, morte – o espectro completo da luta da humanidade – precisavam de estar presentes nas formas que desenvolvia. E uma e outra vez, ao regressar à montanha ou ao mar, alimentava-me de imagens e recursos e energia que reciclava e introduzia no trabalho de construção de uma comunidade vital.

          Tal como muitos de nós lutam para encontrar a sua identidade espiritual, eu acredito que podemos voltar à dança para recuperar uma tradição ancestral que servirá muitas das nossas necessidades na cultura atual.

          A sabedoria da dança e do corpo contém recursos que nos podem oferecer ferramentas para a sobrevivência da vida neste planeta. A nossa ligação com a terra e com os outros como formas da terra é o próximo passo a dar. Acredito que seja esta a possibilidade maravilhosa da dança hoje em dia. Através da dança podemos redescobrir uma identidade espiritual e um sentido de comunidade que perdemos, e o trabalho de tornar esta dança vigente, imediata e necessária continua a ser de grande importância. Neste momento, a natureza é a minha maior professora, a voz mais clara que guia a minha dança. Sentir e experienciar a terra ajuda-me a encontrar a minha natureza humana mais profunda e estou a dirigir muita da minha dança para este teatro infinito e intemporal.

          Ao sentar-me no banco de onde vejo a plataforma de dança sou invadida por uma enxurrada de perguntas. O que se segue? Para onde estou a ir? O que é o meu trabalho aos 75 anos? O que fazem os mais velhos em outras culturas? Ensinam os mais novos, curam os doentes, cuidam da terra, preservam os rituais, falam com os antepassados, mantêm a família. Eu faço tudo isto e convoco os espíritos, onde quer que estejam, o que quer que signifiquem e como quer que apareçam, para me guiarem e me levarem mais longe neste caminho de evolução da dança ao qual dediquei a minha vida. Continuo a acreditar no extraordinário potencial demonstrado por todo este trabalho, na sua evolução desde a rebelião à expansão, à comunidade, à cura e de volta ao mundo natural.

          Anna Halprin Kentfield, Califórnia, junho de 1994

          Publicado originalmente em Anna Halprin (autora) e Rachel Kaplan (editora), Moving Toward Life: Five Decades of Transformational Dance (Hanover, N.H.: Wesleyan University Press, 1995). Traduzido do original em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia da Silva. 

          Raimund Hoghe Lembro-me

          -1-

          Lembro-me de que queria muito ter 12 anos para ver filmes para maiores de 12 anos.

          Lembro-me de que o meu avô só via filmes nos cinemas Roxy e Astoria.

          Lembro-me da Audrey Hepburn a correr à chuva no Breakfast at Tiffany’s.

          Lembro-me de matinés vazias no Lichtburg e de nos mandarem para casa se não houvesse pelo menos oito pessoas para ver o filme.

           

          -2-

          Lembro-me de que havia neve lá fora e de que tinha os pés molhados quando estava sentado no cinema com a minha irmã a ver o West Side Story.

          Lembro-me de que a Romy Schneider e a minha irmã nasceram no mesmo dia.

          Lembro-me de atravessar o palco a carregar uma árvore de Natal, na peça Arthur Aronymus e os seus pais, de Else Lasker-Schüler.

          Lembro-me de que o produtor dos Beatles transformou Priscilla White na cantora Cilla Black.

           

          -3-

          Lembro-me do que a Judy Garland disse no palco do Palace Theatre, em Nova Iorque: “I’ll stay as long as you want me.”

          Lembro-me da Soeur Sorire, a freira cantora, que teve um sucesso mundial com a música Dominique. Acabou por se suicidar com a namorada.

          Lembro-me do escândalo que foi o casamento de Edith Piaf com o grego Théo Sarapo, vinte anos mais novo do que ela, e dela a posar orgulhosa para as câmaras. Cantaram juntos em palco A quoi ça sert l’amour.

          Lembro-me de ter 17 anos quando recebi um postal do cantor pop Rex Gildo com os votos: “Tudo de bom e muito amor.”

          Lembro-me da Minouche Barelli a representar o Mónaco no Festival da Eurovisão da Canção, em 1967, com uma música contra a guerra chamada Boum Badaboum.

          Lembro-me dos Beach Boys, de Donovan e dos Beatles com o Maharishi na Índia.

          Lembro-me da Cass Elliot, dos Mama’s and Papa’s, ter morrido em Londres depois de uma série de festas, que incluíram o 31.º aniversário de Mick Jagger. Tinha 33 anos. O título de um dos seus últimos álbuns é The good times are coming. 

           

          -4-

          Lembro-me do vizinho a quem uma bomba matou os dois filhos que brincavam no quintal.

          Lembro-me de me aconselharem a deitar à sombra de um muro e a proteger a cabeça com uma mala em caso de bomba atómica.

          Lembro-me das fotos do Vietname, das caras queimadas pelo napalm e das crianças a fugirem da poeira da bomba.

          Lembro-me das imagens em papel de lustro dos rapazes hitlerianos e das raparigas nazis num álbum de poesia de uma tia.

          Lembro-me de um amigo que, quando criança, ficou muito impressionado ao descobrir números tatuados no braço de um tio que era judeu. “Para que são os números?”, perguntou ele ao tio. “É o meu número de telefone”, respondeu-lhe o tio. “E eu achei”, disse-me o meu amigo, “que era bastante prático ter o número de telefone no braço.”

          Lembro-me de que na escola nunca falaram da guerra ou do Holocausto.

           

          -5-

          Lembro-me de papagaios de papel no céu, a voarem para longe num céu sem nuvens.

          Lembro-me do medo de ter de frequentar a escola de danças de salão.

          Lembro-me dos saiotes engomados da minha irmã que eram postos a secar no chão até ficarem duros como pedra.

          Lembro-me dos penteados colmeia das senhoras e das calças dos senhores, justas nas ancas.

          Lembro-me da concha de gesso em que dormia e que era fechada todas as noites com duas ligaduras cor de pele no peito e no estômago.

          Lembro-me de ter ouvido a notícia do primeiro homem a pisar a Lua no comboio rápido para Wuppertal.

          Lembro-me da Marcha sobre Washington, do Movimento pelos Direitos Civis e do discurso de Martin Luther King – “I have a dream”.

          Lembro-me do popular café no centro da cidade alemã de Bielefeld, onde pessoas negras não podiam entrar.

          Lembro-me da mãe do corredor de 800 metros que, depois de o filho ter ganho a prova olímpica, disse: “É tão importante ter sido um alemão a ganhar. E sobretudo ter sido um atleta com pernas brancas.”

          Lembro-me dos sorrisos dos homens brancos que participaram no assassinato do político negro Patrice Lumumba, no Congo.

          Lembro-me do dia quente de verão quando o Roger, do Ruanda, me disse que não conseguia arranjar trabalho aqui por ser negro. “And I cannot change my skin” disse, e o sol brilhava e não se via uma nuvem no céu.

           

          -6-

          Lembro-me do dia da morte de Marilyn Monroe e da fotografia dela no calendário das estrelas de cinema pendurado junto ao louceiro. “O seu coração pesava 300 gramas”, veio a noticiar-se mais tarde.

          Lembro-me da minha irmã a limpar os degraus da cave quando deu a notícia da morte de Kennedy, em Dallas.

          Lembro-me do sangue no vestido rosa-claro da Jackie Kennedy.

          Lembro-me do casaco de pele falsa da minha mãe e do casaco que ela nunca chegou a usar e que a loja aceitou de volta quando ela morreu.

          Lembro-me de que Martin Luther King, um dia antes de ser morto, disse: “Tal como toda a gente, eu gostaria de viver uma longa vida.”

          Lembro-me do dia em que saiu a última edição da revista Film-Revue. Foi como se alguém tivesse morrido.

           

          -7-

          Lembro-me da senhora da bilheteira do teatro e do seu sonho de viajar até à Lua. “Ir lá acima uma vez – é esse o meu sonho”, disse ela e riu-se.

          Lembro-me dos olhares de nostalgia no Morte em Veneza, do Visconti.

          Lembro-me da Maria Callas, numa masterclass, encorajar os alunos a não lançarem fogo de artifício, mas sim a trabalharem os seus sentimentos.

          Lembro-me dos protestos ruidosos contra o filme O Silêncio, do Ingmar Bergman.

          Lembro-me do assassino de crianças Jürgen Bartsch, que foi considerado uma besta e que era suposto ser castrado e morreu na operação.

          Lembro-me do vermelho da bíblia maoista e do verde do relvado do Blow Up, do Antonioni.

          Lembro-me do negro do Black Power e do rosa do movimento gay.

          Lembro-me do Ragazzi di vita, do Pasolini, e do Mike, um jovem prostituto de Hannover que adorava a sua cobra a quem chamava Futuro.

          Lembro-me da poeta Rose Auslander na cama da qual já não conseguia sair e onde escreveu poemas até à sua morte. Num dos seus últimos poemas escreveu: “Atira este medo ao ar.”

           

           

          Este é o texto do solo Another Dream, de Raimund Hoghe, de 2000. A performance reflete sobre a década de 1960 e conclui a trilogia que começou com Meinwärts (1994) e Chambre séparée (1997). O texto foi originalmente publicado na plataforma online Sarma. Traduzido a partir do original em alemão e da versão em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia da Silva. 

           

           

          Sara Graça Capa

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          João dos Santos Martins Editorial

          DE MAL A MELHOR

          Três anos depois da mudança provisória para as instalações do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL) em Chelas, a Escola Superior de Dança está novamente num limbo de onde, de facto, nunca saiu. Em condições mais higienizadas do que as anteriores, no antigo Palácio Marquês de Pombal, ao Bairro Alto, é certo, mas sem o espírito desse espaço, discentes, docentes e não docentes ocupam agora uma escola em bocados, dispersa por entre as salas vagas dos vários edifícios do ISEL. Não chove dentro, mas era melhor que chovesse. Há coisas que só se resolvem com crises. Desde pelo menos 2007, quando frequentei esta escola, que se fala num prometido novo espaço próprio em Benfica. Infelizmente, o problema não é só o edifício. Há um novo diretor por indigitar há vários meses por alegado vazio legislativo para contratar quem não faça parte do quadro da Escola. Um vazio que demonstra a disfuncionalidade a que instituições públicas, como esta, estão sujeitas. Uma escola de artes vive num equilíbrio entre transmissão e renovação. Deve ser permanentemente pensada e repensada. Não pode ser feita de pedagogos fixos que se dirigem a si próprios em rotatividade. Uma escola de artes tem de estar atenta ao presente. Tem de colaborar com os artistas que praticam. Tem de contribuir para uma interação contínua com o exterior, com a comunidade e as instituições culturais. Não pode estar isolada. A única escola pública de ensino superior para a dança do país vive há anos asfixiada e condenada. E não está só. Ao mesmo tempo que os alunos da ESD se insurgem numa greve para reclamar melhores condições, surge a notícia de que as obras de recuperação da Escola de Dança do Conservatório Nacional estão paradas há mais de um ano por conta de um conflito com o empreiteiro. O mesmo problema. A mesma solução. Uma escola dispersa, sem condições para a prática ou que a condicionam em grande medida. E não se fica por aqui. Trinta anos logrados de funcionamento do Forum Dança e as mesmas contrariedades. Um espaço precário, com infiltrações, humidade, falta de isolamento, um chão instável, ao ponto de os alunos terem de mudar de estúdio durante semanas de trabalho para evitar complicações de saúde.

          Os três mais importantes polos de formação em dança do país estão em condições miseráveis. As razões são distintas. As responsabilidades também. Em comum têm a mesma degradação que impossibilita a concretização plena das suas missões.

          Esta história não é nova e a narrativa está massacrada. O ensino da dança em Portugal nunca foi fácil. É isso que observamos num dos textos que publicamos, de Madame Britton, pedagoga e fundadora de uma das primeiras escolas de dança privadas para raparigas em Lisboa, em 1924. Britton debatia-se, então, não apenas com o preconceito da sociedade mas com o preconceito da sociedade em relação a si mesma, por dançar, a começar pela vida privada. Das suas memórias, publicamos um episódio de 1916, na então Lourenço Marques, que coloca em jogo a moral dominante da época na relação com a prática da dança. O relato termina em 1918 com o assolo da gripe espanhola, o que nos transporta para hoje e para a inevitável pandemia.

          Ao fecho desta edição marcava-se o dia mais contagiante e mortífero da Covid-19 em Portugal, um desfecho dramático depois do enorme esforço para conter as infeções. Com o anunciado II Confinamento, os espaços culturais voltaram a fechar e a produção artística ficou em suspenso, ou em adaptação de suporte, passando ao registo online. Se é certo que não é nos espaços culturais, com as medidas em vigor, que os contágios parecem acontecer, é incontornável que sejam esses os primeiros a fechar. Para a sociedade, a cultura não representa o trabalho dos artistas e agentes culturais – já em si uma despesa para o Estado – mas sim o usufruto dos cidadãos e o seu lazer. Se é certo que os teatros, cinemas e museus proporcionam ajuntamentos informais inevitáveis, o fecho destes lugares que são de culto para os muitos que não encontram na religião a sua fé parece também indicar, aos olhos da boa moral, que a privação de arte é uma espécie de castigo do Estado para o mau comportamento dos seus cidadãos.

          Num catálogo de 2011 de Cyriaque Villemaux, publicado entretanto pelas ed.______, um dos capítulos propõe “um ano sem dança e a ver vamos se sentimos a sua falta”. A proposta do autor não tinha em conta o presente contexto dramático, mas – de facto – passou-se entretanto um ano sem dança. Um ano sem sentirmos os corpos uns dos outros. Sem sentirmos a sua massa a suar e os corpos a latejarem uns nos outros. Sobre essa perda e a ressaca de dançar escreve o DJ e curador de festas de inclusividade queer Pedro Marum, na ânsia do ajuntamento. Também observando o espaço vazio deixado pelo contacto físico social, Daniel Pizamiglio convidou, durante o I Confinamento, várias pessoas para o OLHAR COMO SE FOSSE A PRIMEIRA E A ÚLTIMA VEZ. Esse encontro, por um lado, e performance, por outro, seria uma forma de criar um lugar de partilha a dois, o mínimo da experiência comum. Através do olhar atento do médico Miguel Teles revê-se em elegias várias a impossibilidade da relação que a pandemia gerou, colocando em prática um luto coletivo para ultrapassar a dor que a distância obriga.

          Se este é um tempo de luto e de luta, também o é de cansaço. Bhenji Ra, artista e mother da House of Sle em Sydney reflete sobre a fadiga da capacidade de imaginação coletiva de outros mundos e futuros como causa maior do desamparo social. Quase a propósito, Bruno Leviron e Ignacio de Antonio fazem um exercício de imaginação para contrariar o seu cansaço político. Num ensaio que tanto tem de teórico como de ficção científica, os dois artistas, brancos, imaginam o futuro da dança sem branquitude, isso é, sem o privilégio e o predomínio que o projeto branco europeu faz perdurar sobre as outras cosmologias.

          É também aos olhos deste predomínio e da necessidade da sua crítica que observamos de perto dois processos de transmissão em tudo semelhantes mas com repercussões distintas. Em primeiro lugar, a reinterpretação da peça de 2004 O Samba do Crioulo Doido, de Luiz de Abreu, por Calixto Neto, artista brasileiro de geração distinta, mas com uma história racializada comum. Levada a cabo num momento de imensa complexidade social no Brasil, esse trabalho, apresentado sobretudo na Europa, age hoje mais que nunca como diplomacia internacional para a imaginação política. 

          Em segundo lugar, a construção de uma nova peça que a coreógrafa Eszter Salamon levou a cabo com a bailarina Vânia Doutel Vaz através do pressuposto da sua peça de 2010, Dance for Nothing. O complexo processo, que levou E. Salamon a decidir não voltar a apresentar a peça depois da sua estreia no Alkantara Festival 2020, é aqui refletido por Rita Natálio em diálogo com Vânia Vaz, evidenciando um conflito fértil entre sujeito e autoridade do trabalho.

          Nesta edição abundante em narrativas, biográficas e artísticas, o investigador Jean Capeille escreve a partir da recensão crítica ao trabalho do artista norte-americano James Waring. Figura ausente dos cânones da história da dança, James Waring foi um dos precursores do movimento pós-moderno que produziu uma extensa obra entre a coreografia e as artes plásticas em livre trânsito entre a arte experimental, o vaudeville e o music hall. Neste ensaio observa-se a forma como, em especial, o trabalho de colagem de Waring em dança foi interpretado, discutido e disputado através de conceitos tradicionais muitas vezes pouco operativos.

          Num lugar de incapacidade de classificação análogo, a coreógrafa Tânia Carvalho, que se move igualmente por vários suportes, reflete sobre os conflitos entre o que produz e a forma como é vista, de dentro e de fora do meio. Sendo alguém que rejeita por princípio nomear as coisas, a experiência do seu trabalho torna-se fundamental para decorticar o seu discurso. Numa entrevista alongada, meandra-se precisamente nesses lugares do não dito, que remetem para a experiência sensorial das obras e para a sua transmissão.

          “O futuro está no que nos escapa e não nos pertence.” É esta a conclusão da frase serpenteante que J. M. Vieira Mendes vai construindo por adição de palavras, a frase que conquista o mundo e se retrai porque afinal o mundo eram muitas outras coisas. E a esta frase escrita em prosa contínua sem parágrafos nem pontuação contrapõe-se, por fim, o poema fonético de Micael Ferreira que ocupa a contracapa do jornal e no qual a grafia se torna um traço por entre as letras sem coreo. 

          Coreia é o movimento que estão a ver.

          João dos Santos Martins

          Calixto Neto Luiz de Abreu A Décima Quarta Bandeira ou Um Presente pro Futuro

          O espetáculo O Samba do Crioulo Doido, de Luiz de Abreu, foi criado no ano de 2004 e nos uniu em torno de um projeto de transmissão e remontagem para o festival Panorama Pantin, organizado pelo Festival Panorama em parceria com o Centre National de la Danse (Pantin), em dezembro de 2019. Ali começamos o nosso diálogo intergeracional-diaspórico-transatlântico, falando na língua do samba. Ou d’O Samba. Mas essa peça nos uniu pela primeira vez em Recife, em fins de 2005.

          Esse primeiro encontro aconteceu no Teatro de Santa Isabel, uma joia de estilo neoclássico cravada no centro da capital do estado de Pernambuco. O teatro ganhou esse nome em homenagem à Princesa Isabel, aquela que assinou uma carta concedendo liberdade a todos os seres humanos vindos de África e seus descendentes mantidos em regime de escravidão para enriquecer a coroa portuguesa e posteriormente a elite instalada no Novo Mundo, num ato que ofuscou as lutas abolicionistas em curso no país e a alçou ao posto de heroína nas Histórias oficiais. O teatro foi inaugurado em 1850, 38 anos antes do tal ato heroico da princesa, e se encontra no que hoje se chama de Praça da República, que só viria a ser proclamada no Brasil 39 anos depois da abertura do teatro. Nessa praça se encontra um dos cinco Baobás da cidade do Recife, uma árvore em torno da qual xs cativxs, antes de cruzarem o Atlântico nos navios negreiros, tinham de dar voltas para deixar para trás suas lembranças, seus laços familiares e sociais — o ritual da árvore do esquecimento. Ali, naquela terra que um dia produziu quase todo o açúcar consumido na metrópole, ali, num teatro que é o retrato mesmo dessa história colonial eternamente atualizada nos sucessivos ciclos de exploração do país, ali, testemunhando nosso encontro, essa peça questionava a história do país a partir de uma perspectiva preta.

          O Samba do Crioulo Doido nos uniu naquela noite. De um lado, um homem negro em posse do seu corpo, da sua história, da história do seu corpo. Do outro, um jovem bailarino boquiaberto com a aparição daquela possibilidade. Naquele tempo, não se ouvia falar em genocídio da população negra, não tínhamos números para isso no Brasil. Hoje sabemos que a cada 23 minutos um jovem negro é morto no país. E sabemos disso não porque chegamos a números absurdos, um ápice jamais visto. Até porque esse genocídio começou desde a chegada do primeiro ser humano escravizado no solo brasileiro. Sabemos disso porque durante anos construímos instrumentos para mensurar, dar números e mais dados para o estrago que o racismo estrutural faz na vida da população negra no Brasil. E esses instrumentos foram se consolidando nos anos que se seguiram à estreia d’O Samba. Entre 2004 e os dias de hoje, discursos foram liberados, vozes historicamente abafadas começaram a sair da grande noite. E numa disputa de narrativas em que corpos negros estão na linha de frente, pagando com a vida cada conquista, nos últimos anos a comunidade negra tem amargado a ressaca de maré, o slapback de parte da sociedade brasileira, que finalmente não esconde mais o fracasso do mito da democracia racial no Brasil, quase tão presente no imaginário coletivo quanto a ideia de que houve uma colonização branda, menos violenta do que em outros lugares.

          Nesses quase dezessete anos de história, a peça já atravessou vários Brasis dentro do Brasil, dado o dinamismo dos acontecimentos do país. Mas numa lógica estranha, a realidade ao redor vai se adaptando à peça: O Samba não conhece o anacronismo. Talvez porque seja uma mensagem enviada ao futuro. Uma mensagem cujo indício maior é a proposição de uma nova bandeira nacional, a décima quarta bandeira. 

          “Essa bandeira com buracos, ela significa que a gente pode… é a nossa bandeira e a gente pode criar esses buracos. A gente pode criar esses intervalos dentro dessa coisa dura, fria, longe da gente. A gente pode humanizar essa bandeira. E é no sentido de realmente se perder dentro das fibras desse tecido, desse tecido social que é o Brasil. É de entrar dentro desse tecido, sair de dentro desse tecido, esse tecido entrar em mim. Sou eu, essa bandeira sou eu!”

          Nessas palavras de Luiz de Abreu que estão no filme O Samba do Crioulo Doido: régua e compasso (Calixto Neto, 2020) se encontra o anúncio daquilo que consideramos ser uma das possibilidades de olhar pra esse elemento cênico, um dos poucos objetos usados no espetáculo. Essa proposição de bandeira tem 1,90 m x 1,20 m, é estampada simetricamente com pequenas bandeiras do Brasil e, nas linhas que formam esse conjunto de retângulos, losangos e círculos, há buracos estrategicamente pensados para os fins performativos. No espetáculo ela é usada como figurino, num jogo de esconde-e-mostra, ressignificando o olhar sobre um corpo que esteve o tempo inteiro quase nu (exceto por um par de botas prateadas), um objeto para ser performado, como um Parangolé de Hélio Oiticica. 

          A atual bandeira do Brasil está em vigor desde 1889, ano da proclamação da república. Esse país, batizado com o nome da mercadoria que um dia foi a mais extraída do seu território, é hoje oficialmente representado pela sua décima terceira bandeira. E vez por outra se inventam outras versões, como aquela imaginada por Abdias do Nascimento em sua saudação a Oxóssi, o orixá da caça, do conhecimento, das florestas, uma das divindades representadas nas religiões afro-brasileiras. Ou aquela sugerida pela escola de samba Mangueira em 2019, nas cores de verde, rosa e branco, com os dizeres “índios, negros e pobres” no lugar do original “ordem e progresso”.

          A última onda do ufanismo nacionalista no Brasil, em curso desde o golpe democrático contra Dilma Rousseff, se valeu de uma ideia ultrapassada de nação para legitimar a sua necropolítica, nos termos do filósofo camaronês Achille Mbembe. E o símbolo escolhido para representar essa retomada dos “valores nacionais” foi obviamente a bandeira. O verde-amarelo ganhou as ruas em camisas da Confederação Brasileira de Futebol, mesmo que a nossa memória mais curta ligada a esse patrimônio nacional seja o vergonhoso 7×1 contra a Alemanha em 2014. 

          As bandeiras tomaram as ruas: nos figurinos dos jovens em flashmobs que misturavam dança e cantos de “Fora Dilma, Fora PT” e, posteriormente, em apoio ao presidente Bolsonaro; nos ombros dos “cidadãos-de-bem” protestando na Avenida Paulista, em São Paulo, acompanhados das suas empregadas domésticas vestidas de branco, numa reprodução funesta das imagens coloniais de senhores escravocratas com suas mucamas a tiracolo; nas mãos de deputados que, em nome de deus, da família e da honra, depuseram uma presidenta eleita sem crime de responsabilidade.

          Mas essa bandeira não é um signo frio, distante, afastado de nós. Ousamos ter esperança e consideramos a décima quarta bandeira como uma reapropriação desse signo, uma possibilidade de aproximação, de mudança, de retomada. Porque ela é o símbolo de um povo, e o povo, por sua vez, não é uma massa imutável — é dinâmico, está sempre em movimento.

          Em 2020 aconteceram as eleições municipais. Foram escolhidos xs prefeitxs, vice-prefeitxs e xs vereadorxs das 5.570 cidades do país para os próximos quatro anos. E pode-se observar que, como na nossa décima quarta bandeira, na política também é possível encontrar buracos, lacunas, portais, passagens, janelas com vistas para outras realidades, outros desejos, outros mundos possíveis, outras lógicas de existir. Nessas eleições, as correlações de forças no país não mudaram radicalmente. Mas algumas pequenas revoluções foram possíveis graças ao trabalho lento, potente e consistente de agentes políticos, na luta dos grupos minoritários que formam a maioria do país. A representatividade alcançada nas eleições ainda está muito aquém do ideal, mas em 2020 houve um número recorde de candidaturas negras e um aumento da presença preta nas câmaras municipais. Mais de 80 vereadorxs LGBTQI+ foram eleitxs pelo país, sendo 25 pessoas trans, 7 delas as mais votadas em suas cidades. Com destaque para Duda Salabert, vereadora mais votada da história de Belo Horizonte, e Érika Hilton, mulher trans, preta e periférica, a mais votada desse ano em São Paulo. E num cenário de descrédito com a capacidade de mobilização da esquerda, assistimos ao sucesso da candidatura de Guilherme Boulos, integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, chegando solidamente ao segundo turno na maior e mais populosa capital do hemisfério sul, São Paulo.

          A décima quarta bandeira representa uma revolução lenta. Ela é a única bandeira possível para esse país nos dias atuais porque ela dá espaço a outras possibilidades de corpo: “o corpo marginal, o corpo mendigo, o corpo vagabundo, o corpo prostituto, o corpo bêbado, o corpo criança abandonada, o corpo capoeira, o corpo valentões, os corpos causadores de conflitos sociais e os corpos perturbadores da ordem pública.”

          A nova bandeira não apazigua, mas justamente convida a habitar os conflitos nas lacunas. Porque ela é um símbolo de poder. E o poder é como o povo, muda.

          Hastearemos a nova bandeira com o corpo, fazendo dela o nosso outfit de runway, nosso vestido curto, nossa roupa de gala, nossa cauda esvoaçante. Nossa caravela, pronta para — agora sim ! — descobrir esse novo país chamado Brasil.

          Bruno Levorin Ignacio de Antonio Antón O Futuro É uma Dança Sem Nós

          [desejos para a desaparição da branquitudei]

           

          Caro leitor. Não leia. Caro leitor. Baile. Siga pelas margens que estamos propondo, confiando no sentido da água que plantamos.

          A dança mudou de nome três vezes desde a crise, assim como ameaçou fazer a fotografia quando deixou de escanteio a daguerreotipiaii no início do século XX. Nos anos 1950, quando a foto doméstica e de consumo se tornam populares, a máquina passa a ser do tamanho das mãos e deixa de ser do tamanho de cabeças.

          Chegamos ao século XXI. Somos um coro apocalíptico motivado pela ascensão das câmeras digitais, iphones, xiaomis e galaxies em livre concorrência viral e supreme atenção a cada print de um story qualquer.

          Aconteceu com a televisão, filmes, séries, computadores, telas, tudo isso matou o rádio. Embora historicamente estejamos vivendo o momento em que mais pessoas saibam ler e escrever e dedicam mais tempo a essas tarefas, livros e bibliotecas públicas ou privadas estão fadadas ao vazio, ao desaparecimento da presença humana.

          Recebemos constantemente mensagens, escrevemos outras. Os idiomas escritos e lidos possuem a plasticidade típica da oralidade. São encurtados, interpretados, misturados com figuras, memes. O pensamento não está nas páginas brancas e nas letras pretas, não está nos milhões de PDFs nem na literatura. Novos códigos são estabelecidos em um fundo de tela que, caso enfeitiçada, racha a película.

          Com a democratização dos telefones móveis, a produção de imagens, textos e histórias excede e supera o fim das coisas. E falando sobre a dança, o palco, ao que fazemos e onde criamos sentido – o que mesmo aconteceu com o teatro, as caixas-pretas, desde a pandemia de 2020 até hoje, 2040? A dança é mais dança do que nunca, seguindo suas epistemologias mais radicais, seus vocabulários mais disruptivos e sem nós, coreógrafos brancos. A dança está para além dos dispositivos de representação onde estava inserida, onde nós a inserimos.

          É bom lembrar que a dança está no mundo sem ser chamada de dança há algum tempo histórico que antecede e supera a Europa. A França Imperial decidiu dar nome a mover-se de um lado para o outro como danse. Nunca souberam dançar de fato. Já em roubar e sequestrar foram especialistas. Ao acordar e dormir, ao caminhar e gesticular, com mãos e bocas, palavras e pensamentos, ao comer, se vestir, o que inclui desnudar-se, sudacamenteiii se dança. Na ancestralidade que as nossas ancestralidades brancas tentaram apagar, a dança está para curar, para comemorar a passagem das estações, para exaltar a vida em comunidade, para amar e guerrear com respeito, para ninar e fazer futuro. Ela assim permanece em alguns territórios que resistem cotidianamente às coreopolíciasiv, onde a palavra polícia e estado não existem nas línguas originárias. Já no hemisfério norte, que carrega em suas costas centenas de anos de homicídios cometidos por uma gama complexa de vírus epistemológicos e terrorismos de estado – a palavra terror é inaugurada na dita política institucional na França de 1793, quando jacobinos decidiram guilhotinar milhares de franceses naquela revolução burguesa –, a dança tornou-se um pacto de manutenção de poder das elites brancas e pensamento para mover exércitos coloniais. Sim, o mesmo povo que inventou a palavra danse, inventou também a palavra terrorv e uniu as duas em uma etiqueta barrocavi de excelência.

          Não era necessário conhecer o coreógrafo estadunidense Steve Paxton para sabermos que o corpo pedestre é um ente coreográficovii. Bastava irmos a um festival de dança, performance, teatro, música e cinema circunscritos pelas suas especificidades raciais, geográficas e sociais para encontrarmos essa compreensão corpórea que parte de outras formas de fazer e pensar. Mas esse regime de inclusão excludente, que aconteceu com frequência durante algumas centenas de anos nos circuitos artísticos, onde existiam contextos brancos que se compreendiam como norma e universais, “detentores” do direito de falarem sobre o mundo, a humanidade, a abstração, o inaugural e qualquer outra coisa que sintam vontade, sustentados e mantidos pelos outros contextos que eram circunscritos naquilo que nós nomeamos como específicos, não nos permitiu encontrar as genealogias dos conhecimentos e pensamentos sobre as histórias “pedestres”.

          Nos terreiros de candomblé sempre há pensamento em dança, ao contrário de igrejas onde, no máximo, pode-se encontrar os famosos “dois passos para lá e dois para cá”, com culpa e joelhos no chão. Nas manifestações que lutam por melhores direitos dos trabalhadores, a ação direta exige dançar. No compartilhamento do verbo comer em restaurantes populares erguidos por imigrantes em todas as partes do mundo, não existe mastigar sem gesticular com mãos e garganta. Tudo isso para dizer que foi nas ruas e nessas comunidades que foram subjugadas a partir de suas especificidades que os dispositivos arquitetônicos de representação mais efetivos da dança insurgiram. Tudo isso para dizer que a dança viveu e vive sob a emancipação das políticas da vida e não da morte e do controle.

          Em 2020, a dança branca se esgotou. A premissa de que vivíamos sob uma prática e um contexto de dança contemporânea supostamente democrática ruiu. John Maynard Keynes, o estado de bem-estar social, toda a ideia de um capitalismo “feliz” durou o tempo necessário para que as elites wannabe Dinamarca voltassem a ser o que sempre foram, totalitárias, brancas e medíocres. Ficou evidente com a pandemia que as danças somáticas, por exemplo, tornaram-se resquícios radicais dos privilégios brancos, tratando apenas dos “traumas” que esses corpos não racializados desenvolveram para permanecerem vivos em seus berços de ouro e prata, inca e maia.viii Sem contar que, na crise da Covid-19, enquanto artistas brancos decidiram se especializar em yoga, os artistas pretos e racializados permaneceram na resistência e, como sempre, em uma vida dupla para sustentar suas famílias, estavam também nos chamados serviços essenciais, muitos deles em ambientes que marcam o corpo e reduzem a média de vida sem tempo e direito a eutonia, pilates, rolfing e/ou feldenkrais.

          A universalidade da dança cantada por Isadora Duncan ajudou a inaugurar no ocidente o American way of lifexix. Depois disso, nem a pós-modernidade foi capaz de abrir mão da sua antropocentricidade branca. Foi doença e desespero ao ver, dia após dia, corpos negros e racializados serem assassinados e, voltando então às câmeras, filmados com os aparelhos celulares, que fez com que a nossa dança branca começasse a discutir vida, raça e entendesse a necessidade de sua própria desaparição enquanto projeto.

          Mas não foi assim fácil. Afinal, entender o nosso próprio desaparecimento exige um movimento analítico intenso. Houve artistas no mercado europeu que decidiram colocar nos palcos aquilo que compreendiam esteticamente enquanto “marginal”. É interessante analisarmos essa necessidade “crítica” de afirmar nosso antirracismo e decolonialidade na medida pública do espetáculo. É uma característica estudada no âmbito da psicologia social racial esse comportamento da branquitude de nem sempre, sobre aquilo que aprova e desaprova publicamente, ratificá-lo no seu espaço privado.x Enfim, a culpa é sintoma, já a responsabilidade é falta.xi

          Em 2020, nos dizíamos aliados das causas raciais e decoloniais e pensávamos que a representação resolveria os problemas de distribuição. Demorou para entendermos que os teatros onde estávamos nos apresentando e os circuitos em que estávamos inseridos na Europa faziam magicamente com que essa tal “marginalidade” se transformasse em fetiche, norma, exotização, tendência e notas de desculpa branca em forma de aplauso triplo.

          Mas não para por aí. O último suspiro branco veio daquilo apelidado de idealização do precário.xii E se em vez de artistas fôssemos pedreiros? Acordamos cedo e vamos ao nosso trabalho representados por uma empresa terceirizada. Ela nos diz que não conseguiu arrumar os materiais e ferramentas básicas para se trabalhar nem equipamentos de proteção. Todavia, justificam que ali no terreno, no meio da sujeira planificada onde nasceria mais um horrível edifício, era possível encontrar algumas coisas e criar de forma improvisada esses equipamentos ausentes. Garanto que se fôssemos nós, artistas brancos em dada situação, hipnotizados pela idealização do precárioxiii, e por amor tóxico, acharíamos lindo a nossa “potência” criativa em levantar um prédio todo usando dois palitos e um pedaço de arame. Sem contar que, se vivos saíssemos dessa situação, em nossas mãos estaria um prêmio chamado: a meritocracia dos “fudidos” com herança S, M, L e/ou XL.

          E se fôssemos, em 2021, o ápice do neoliberalismo?

          © Luan Banzai, 2020.

          Oxalá

          A palavra futurum vem do particípio do verbo sum, esse. Digamos que futuro seja no étimo latino um tridentexiv formado por: aquilo que teria sido/estado presente na experiência mas que não se cumpriu, o que é/está na potência de qualquer ato no presente e naquilo que pode vir a ser/será enquanto possibilidade. É um espectro entre o que teria sido, o ser, o que haverá de ser e o devir, o que pode vir a ser. Evidente que o futuro percebido em nossa branca tradição cultural – quero dizer a católica, monoteísta e transcendental – é um ponteiro que segue por uma única direção, o que costumamos chamar de progresso.

          O presente é impossível? Nossa própria capacidade de entender nós mesmos no mundo nos leva a colocar tudo no passado e projetar o possível nas condições de um futuro mais ou menos imediato. A dança que existe fora do projeto da branquitude, material de pensamento e ação, lugar de afetos, problematiza isso e reivindica sua condição presencial. A capacidade de fazer, produzir movimentos, mover-se junto das coisas são questões que habitam a impossibilidade e o desejo do presente em seu potencial político. Portanto, esta dança – e talvez a coreografia – sejam lugares onde podemos realizar as nossas dobras e encararmos de frente as nossas contradições a partir de suas escutas.

          O futuro é um constante movimento para os lados, uma aceleração contínua da qual participamos como partículas expansivas em nível microscópico. Ele não é frente e também não é costas. É pó, bando e multidão. O futuro, para nós brancos, é um desaparecimento constante de nós, é deixar de ser junto do tempo para com ele extinguir a disseminação das nossas violências. A dança, não a danse, é o campo de excelência dessa nossa própria extinção enquanto projeto. Instituir a presença para além dos nossos campos de visibilidade pode nos ajudar a barrar as noções de reprodução do capitalismo e desarticular suas hierarquias dessas práticas. Essa ausência pode começar por gerar uma dança branca menor. Uma dança produzida a partir do tátil e de seus próprios limites críticos, um caminho que nos permita ampliar a nossa consciência e potencial político crítico para verticalizar uma conduta ética com tudo que ainda produzimos no mundo.

          O futuro é um conjunto de ancestrais que foram mortos por nós e ressuscitaram mais fortes. Negando todo e qualquer tipo de extrativismo, essas entidades protegem um oceano de céu e terra, sustentam e ampliam seus conhecimentos sobre a vida e brincam fazendo piada sobre nós e nossos complexos de salvação. O futuro é um conjunto de aldeias que riem da civilização dançando seus problemas e alegrias.

           

          No futuro não há polícia. No futuro há política.

           

          Oxalá, há mundo e dança sem nós por vir.


          i Tratamos aqui da branquitude como um conceito e um projeto ideológico. Para evidenciar nosso ponto de vista, incluímos nesta nota um quadro de 8 tópicos sobre a branquitude, apresentados por Ruth Frankenberg:

          1. A branquitude é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial.
          2. A branquitude é um “ponto de vista”, um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e globais
          3. A branquitude é um locus de elaboração de uma gama de práticas e identidades culturais, mas muitas vezes não marcadas e não denominadas como nacionais ou “normativas”, em vez de especificativamente raciais.
          4. A branquitude é comumente redenominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de classe.
          5. Muitas vezes, a inclusão na categoria “branco” é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e lugares, alguns tipos de branquitude são marcadores de fronteiras da própria categoria.
          6. Como lugar de privilégio, a branquitude não é absoluta, mas atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou subordinação relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas modulam ou modificam.
          7. Branquitude é produto da história e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos. Nessas condições, os significados da branquitude têm camadas complexas e variam localmente e entre locais; além disso, seus significados podem parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis.
          8. O caráter relacional e socialmente construído da branquitude não significa, convém enfatizar, que esse e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e discursivos.

          Ruth Frankenberg, “A miragem de uma branquidade não-marcada”, em Branquidade: identidade branca e multiculturalismo, org. Vron Ware (Rio de Janeiro: Garamond, 2004), 307-338.


          ii Primeiro processo fotográfico a ser comercializado com o grande público nos fins do século XIX.


          iii Expressão pejorativa usada na Espanha para identificar e racializar imigrantes latino-americanos que vivem em território ibérico.


          iv Conceito elaborado por André Lepecki que compreende coreografia como um lugar para refletirmos as produções de poder e discursos entre as noções estéticas e políticas, nos dá o entendimento, de forma não metafórica mas material, dos modos de agir e pensar dos estados autoritários e da capilarização de seus dispositivos biopolíticos. Ver André Lepecki, “Choreopolice and Choreopolitics: Or, the Task of the Dancer”, TDR/The Drama Review, 57, n.º 4 (2013): 13–27.


          v Ver Aline Rabbelo, O conceito de terrorismo nos jornais americanos: uma análise do New York Times e do Washington Post logo após os atentados de 11 de setembro. (Tese de mestrado, Rio de Janeiro, PUC, 2006), 20-21.


          vi Ver José Ignácio Roquette, Código do bom-tom: ou regras de civilidade e de bem viver no século XIX (São Paulo: Companhia das Letras, 1997). Publicado originalmente em 1845, teve como objetivo normatizar a vida cotidiana dos brasileiros, “orientando-os” nas suas condutas pessoais e educação gestual. A referência para tais modos eram importadas das nobrezas europeias. A dança dos salões teve um importante papel na manutenção desta ética perversa servindo como ferramenta de educação e contorno colonial.


          vii O que está em jogo nessa afirmação que fazemos no texto é: até quando teremos a dança estadunidense branca como referência para a nossa produção de conhecimento? Onde está a literatura, a história e sua devida distribuição para o mundo dos outros intelectuais, bailarinos e artistas do outro hemisfério que trabalham sobre esses conceitos e práticas no mesmo tempo histórico e até mesmo um tempo anterior ao de Steve? Como diz o artista plástico brasileiro Traplev em recente obra exposta na cidade de Salvador, O segredo do futuro tá na história. Sendo assim, se há vontade de pensar no futuro, temos que antes repensar e entender que histórias estamos insistindo em contar.


          viii Ficção inspirada pela plataforma Contemporary dance and whiteness: http://danceandwhiteness.coventry.ac.uk/, núcleo de pesquisa situado em Londres, coordenado pelas investigadoras Royona Mitra, Arabella Stanger e Simon Ellis.


          xix No capítulo 3, America Makes Me Sick!’’: Nationalism, Race, Gender, and Hysteria, A. Hewitt debate sobre a relação entre a propositiva afirmação gestual de Duncan, produto da ideia de liberdade dos corpos em estado natural de movimento. O autor organiza a importância que a performatividade dos corpos teve para a produção de linguagem e identidade americana no começo do séc XX. “America is not only the medium for the realization of humanity: humanity is the medium for the realization of America.” Andrew Hewitt, Social Choreography: Ideology as Performance in Dance and Everyday Movement (Durham e Londres: Duke University Press, 2005), 124.


          x Ver Lourenço Cardoso, “Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista”, Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 8, n.º 1 (2010): 607-630.


          xi Vale lembrar como a noção de liberdade nos séculos XVII e XVIII, conceito elaborado e discutido pelo Iluminismo europeu, apresentava-se como eixo fundante daquilo que os filósofos da época organizavam por “humanidade”. Humanidade esta que exclui todas as relações escravocratas estabelecidas nas colônias. Ver David, Dabydeen, Hoggarth’s blacks: images of blacks in eighteenth‐century English art (Athens: University of Georgia Press, 1987 [1985]), 21‐23).


          xii “O capitalismo artista tem de característico o fato de que cria valor econômico por meio do valor estético e experiencial: ele se afirma como sistema conceptor, produtor e distribuidor de prazeres, de sensações, de encantamento.” Ver Jean Lipovetsky, A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista (São Paulo: Companhia das Letras, 2015), 43.


          xiii O trabalho hiperflexível e a precariedade têm invadido a dança dentro e fora dos palcos, onde cada um é empreendedor de si, um investidor de seu próprio capital simbólico. Ver Bojana Kunst, Artist at Work, Proximity of Art and Capitalism (Charlotte: Zero Books, 2015), 141.


          xiv Pedimos licença para a produção de uma relação simbólica entre Exu, orixá da comunicação, porta-voz entre nós e os deuses no candomblé, e a concepção de tempo que estamos desenvolvendo no texto. Ver Reginaldo Prandi, “Exu, de mensageiro a diabo. Sincretismo católico e demonização do orixá Exu”, Revista USP, 50 (junho/agosto de 2001): 46-63.

          Rita Natálio Vânia Doutel Vaz Diamante

          Quanto tempo há para falar e quem tem o lugar de fala? Ser ouvido é por si só um privilégio. Quando alguém sabe ter lugar para falar mas escolhe não o fazer por timidez, estará a tomar uma posição privilegiada? [Guião de Still Dance for Nothing de Eszter Salamon com Vânia Doutel Vaz, 2020]

           

          DIAMANTE

           

          Conversas gravadas por videoconferência entre Vânia Doutel Vaz e Eszter Salamon entre maio e outubro de 2020 foram insumos para processos produtivos nada aleatórios. Destas conversas foi feita a prospeção, a extração e o polimento de um texto original em inglês, que se transformou no fundamento da recriação do solo Dance for Nothing, de Salamon, originalmente estreado em 2010 e atualizado no ano pandémico de 2020 como Still Dance for Nothing, desta vez uma colaboração entre Vaz e Salamon.

           

          O texto contou com o apoio dramatúrgico da poeta, arte-educadora e investigadora de estudos pós-coloniais Raquel Lima e apresenta-se aqui em fragmentos traduzidos para a língua portuguesa por Vaz e revistos por Rita Natálio. Concebido como guião de uma performance oral e dançada, pode-se perguntar o que é um texto de uma performance sem o corpo que o chama. E de quem é esse texto? A utilização breve de pontuações como esta […] ou a presença de várias frases juntas no ajuntamento de um parágrafo contrastam com a experiência desejada da performance, onde nenhum fluxo de pensamento é atravessado pela fronteira gráfica do ponto final ou da vírgula, mas antes expandido pela respiração e o fluxo de movimento sempre aberto.

           

          O texto apresenta (ou representa) motivos importantes da biografia de Vânia Doutel Vaz, marcada por importantes trânsitos coloniais (os seus pais nasceram e viveram por muitos anos em Angola), geográficos (Vaz nasceu em Lisboa, e viveu oito anos em Nova Iorque e dois anos na Holanda) e emocionais (a influência da marcação racial sobre o seu contexto laboral na dança e na sociedade). O texto é a fala invocando e presentificando o corpo não-branco de Vânia, nutrindo o seu corpo em texto, marcando a história. O texto é sempre por tudo e para todes, porque é a vida a desdobrar-se como nexo do corpo que dança, e por isso gera uma interferência contínua no ato de mover-se. Nunca um pretexto.

           

          O solo Still Dance for Nothing estreou em novembro de 2020 no Alkantara Festival, em Lisboa, na Culturgest, e contou com três apresentações com cerca de 75 espectadores em cada dia. A peça consiste numa estrutura dançada e falada em simultâneo por Vânia Vaz a partir do enunciado original da peça Dance for Nothing, de Eszter Salamon. Em 2010, Salamon performava também uma partitura coreográfica e outra textual (no caso, a obra Lecture on Nothing [1949], de John Cage). Em Still Dance for Nothing, Vânia Vaz parte da sua biografia como partitura, ativando elementos da sua identidade e racialidade como “material textual”, enquanto improvisa a partir de um arquivo coreográfico que lhe é próprio, desenvolvido e polido ao longo dos ensaios mas não diretamente conectado ao texto. Embora se trate da mesma estrutura, não é simples a passagem entre a fortuidade e a não-coincidência entre texto e movimento de Dance for Nothing, e o gesto de marcar a coreografia pela performatividade do debate racial em Still Dance for Nothing.

           

          Talvez por se bater num limite nada consensual sobre quem pode ser sujeito ou objeto da representação, Still Dance for Nothing não será mais apresentada por decisão de Eszter Salamon. Considerando que a obra tratou de materializar aspetos da identidade racializada de Vaz como performance, ao mesmo tempo que rememora o trabalho coreográfico de Salamon, esta decisão abre um espaço de reflexão onde é importante desdobrar elementos que constituíram a performance apresentada em 2020, assim como o processo de criação e colaboração. Inicia-se aqui o desejo de expandir e problematizar esse movimento através de um debate amplo sobre a presença, representação e representatividade de vidas não-brancas nas artes performativas, atualizando as formas críticas de fazer e ver performance. (Continua…?)

           

          Nota:
          Escrevi este texto, ainda em processo, em diálogo com Vânia Doutel Vaz. Mais do que uma análise crítica e uma posição sobre o trabalho, a publicação deste texto e de excertos da tradução do texto original de Still Dance for Nothing propõe desenrolar um diálogo sobre processos artísticos e extravasa a colaboração pontual de Vaz e Salamon.

           

          OBRA DE ARTE

          […]

          Eu tenho pensado na minha posição enquanto negra de pele clara e os seus privilégios, assim como o direito à inclusão e a experiência de tokenização. Penso nos privilégios que tinha, e ainda tenho, na complexidade e nas tensões que criam na minha vida. Eu nunca saberei se fui convidada a ingressar numa companhia de dança na Holanda por ter talento ou pela minha aparência. Será que foi “ela tem pele escura e talento”, ou “ela tem talento e pele escura”? Será que a companhia desafiava o status quo do ballet através da inclusão?

           

          A culpa da branquitude. Ou a cumplicidade da branquitude? Numa companhia em que trabalhei em Nova Iorque, a diversidade era amplamente encorajada e respeitada e a pele escura era um motivo de orgulho. Eu senti-me fortalecida; pensei ser um passo avante. Ou tratava-se de uma jaula mais confortável? A questão da raça foi resolvida em troca da estabilidade financeira. A promessa de uma individualidade e aparente autonomia artística. Mas o que eu quero dizer é que o movimento gerado pelos bailarinos foi confortavelmente extraído sem qualquer crédito à sua autoria. Encheu-me o ego e os bolsos. Foi como vender a minha alma ao diabo.

           

          Não é tudo preto no branco; há também tons de castanho.

           

          Identificar onde está o privilégio é mais complicado do que parece. Na minha família há todas as variantes de cor de pele. Eu tenho várias memórias, mas não acredito que me tenham traumatizado. Fui sempre capaz de me distanciar. Como naquela vez, com a minha prima, em que estávamos na sala. Ela tinha a cabeça deitada no colo da irmã que lhe escovava o cabelo, em total agonia. Era tão doloroso. Éramos miúdas e eu devia estar a olhar chocada ao ver a dureza daquele tratamento. Via que estava em sofrimento e isso deixou-me triste. E ela olhou para mim e disse: “Estás a olhar para onde? Tu tens um cabelo bom e toda a gente gosta mais de ti por isso.” Eu fui o alvo perfeito da sua raiva: a prima de pele clara com um bom cabelo, a olhar para ela. Magoou-me, mas foi óbvio que a zanga dela era com o mundo, assim como quando qualquer criança se sente injustiçada. Depois de escovar ainda é preciso puxar o cabelo da raiz para trançar, mais uma longa jornada de dor.

           

          Histórias como esta da minha prima fazem parte da minha memória, e há mais a dizer sobre elas do que a forma como as conto ou as experienciei. São histórias duras, por isso não as quero recontar: são a dor da minha família. A minha família decidiu não passar a dor adiante para mim. E qual é a minha responsabilidade? Não a carregar? Toda a minha vida evitei ir mais fundo em relação ao que sou ou qual a minha responsabilidade nesta sociedade para não tender à vontade de julgar e culpar toda a gente e viver numa ira infinita.

           

          Mas então a voz é fragilizada. Ser bailarina nunca quis dizer ser silenciada. E eu sempre tentei conectar-me com o mundo exterior à dança, ao mesmo tempo que precisava de dominar este corpo sem voz. Decidi trabalhar com o corpo e viver com a minha consciência à parte.

           

          Há uns anos, conheci um grupo de franceses brancos anarcas. Eram piratas que estavam a trabalhar num barco atracado numa pequena cidade da margem sul que a maioria dos lisboetas nem sabe que existe: Sarilhos Pequenos. Enquanto passava dias com eles fui-me fascinando pelo modo de vida Robin dos Bosques que eles levavam. E dei-me conta de que partilhava da mesma revolta contra a sociedade. Mais tarde, quando eventualmente navegávamos rio afora, um deles disse: “Todos temos uma ligação nesta história colonial. A tua família teve de deixar o país onde nasceram e por isso tu nasceste aqui. Temos frentes diferentes na mesma batalha.”

           

          Eu tenho um fascínio por anarcas, ocupas, e entendo que vou construindo a minha subjetividade através das minhas relações com pessoas brancas. Estabelece-se um diálogo quando, na maioria das vezes, tenho de lidar com os problemas dos brancos. Como se os meus problemas fossem invisíveis. Mas é óbvio que eu sofro e me deparo com obstáculos diariamente. Devemos falar de todos os problemas. E esse diálogo é poderoso, informa o quanto essas relações me contaminam, influenciam a minha construção de sujeito e como a posso desconstruir.

           

          Quando vivi em Nova Iorque perguntavam-me “o que tens a dizer?”. E eu comecei a tomar consciência das vozes que escolhia ouvir, de onde recebia as notícias, quem lia, e comecei a questionar essas perspetivas.

           

          […]

          A minha mãe nasceu em Angola.

          Os seus pais nasceram em Angola.

          A mãe da sua mãe nasceu em Angola e a sua avó, a minha tetravó, nasceu em Portugal.

          O pai da minha bisavó nasceu em Angola e o seu pai em Portugal.

           

          O meu pai nasceu em Angola.

          A sua mãe nasceu em Angola.

          O seu pai nasceu em Portugal, os pais do seu pai, avós e bisavós nasceram em Portugal.

          O pai da avó do meu pai nasceu em Angola e a sua mãe na África do Sul. O pai da mãe do meu pai nasceu em Angola.

           

          Hoje em dia, há pessoas em movimentos migratórios pelas mais variadas razões. E nem sempre há um termo exato para cada um desses movimentos. Há várias definições para pessoas que são forçadas a sair das suas casas: imigrantes, exilados, refugiados, requerentes de asilo. E também há o caso dos retornados. Um retornado é uma pessoa que tinha ou recebeu nacionalidade portuguesa para voltar ou ir para Portugal quando os territórios colonizados reconquistaram a sua independência. Dos retornados faziam parte também negros e mestiços, mas só aqueles que conseguiam provar ancestralidade portuguesa.

           

          Quando penso naqueles que voltam para casa, para as suas famílias, propriedades e pertences, também penso naqueles que deixam tudo para trás e chegam a sítios onde nunca estiveram.

           

          Há a história de uma adolescente. Tinha uma mochila nova com um padrão tropa. Ela adorava aquela mochila e mal esperava poder usá-la. Esse dia nunca chegou. Uma vez os soldados entraram-lhe casa adentro e levaram-lhe a mochila assim como outros pertences da família. Ela convenceu-se de que os soldados levaram a sua mochila porque condizia com os seus uniformes. São histórias que contamos e estas formas de re-escrever as nossas memórias são atos de resiliência. Alguém disse: “Ao contrário do caracol, carregamos a casa dentro de nós.”

           

          As minhas memórias de infância têm maioritariamente lugar na casa da minha avó materna. Era um rés do chão. Mesmo em frente havia uma piscina pública de três patamares que no verão se enchia de água e nós brincávamos lá. Do outro lado havia um jardim, um parque, um campo de jogos e um parque de estacionamento.

           

          […] É na margem sul. Com o passar do tempo, o rio Tejo também se tornou uma barreira psicológica. Estes bairros foram criados para dar casa a pessoas que tiveram de fugir dos seus países para escapar das guerras. Estas comunidades ainda existem na periferia.

           

          A primeira vez que fui a África foi para fazer uma tour de gogo em Marrocos. Convidei uma amiga para ir comigo, formando um duo. Ao fazer gogo senti-me empoderada. Havia uma espécie de reconhecimento naquilo. Sentia clareza no que fazia e o foco era indubitavelmente em mim. Na dança comercial, na qual também trabalhei, os corpos são necessários para tornar o show mais interessante. Estão ali para decoração. Expõem-se corpos como se fossem coisas. Mais tarde, esta mesma amiga convidou-me para ir fazer um show e ser back-up dancer num concerto em Luanda. Ficámos hospedadas na ilha do Mussulo. Como tínhamos viajado de noite, só ao acordar é que nos demos conta de onde estávamos: um paraíso de vegetação tropical! Havia um buffet da mais variada comida e, para meu espanto, era exatamente como a da minha avó materna. Até o detalhe de como se cortavam as batatas. Lembro-me de pensar: “Agora entendo de onde tudo isto veio.” Revi-me na comida e pude conectar-me. […] A caminho do aeroporto, de regresso a Lisboa, o irmão da minha mãe estava lá à minha espera com muita comida para eu levar. Isto foi um marco; eu sabia o que era estar em Portugal e receber toda a comida que nos enviavam de Angola e agora era eu quem a levava! Incrível! Quando aterrei tinha os meus pais de olhos esbugalhados: “Conta-nos tudo!” A tentarem ver o que eu vi, ver o que eu senti – a devorarem a minha experiência. Foi aí que me dei conta de que, enquanto eu tentava encontrar qualquer coisa que me identificasse, eu transportava a minha experiência para eles. Depois desta viagem, eles foram de férias a Angola; foi a primeira vez que lá voltaram.

           

          […]

          Ser alguma coisa faz-me sentir que há uma expectativa ou uma necessidade de reivindicar uma identidade. Sinto-me desconfortável quanto tenho de definir permanentemente qualquer coisa por oposição a outra. Gosto da constante mudança, assim como de observar a evolução da minha mente onde tudo é temporário, algo oposto à ideia de monumento. A propósito, há uma música da Robyn e dos Röyksopp. A última parte é assim: “Faz um molde de gesso do meu corpo. Tira-o para fora para que eu possa ver. Abandona a ideia de como me conhecias. Abandona a ideia do que eu fui. Eu vou deixar este monumento representar um momento da minha vida.” E também esta parte: “Arranja um espaço para o meu corpo. Escava um buraco. Separa e cria espaço. Isto é o que posso controlar. É um molde. O interior que eu esculpo. Este vai ser o meu monumento.”

           

          […]

          Juntar objetos, decidir com que ferramentas trabalhar, questionar a linguagem usada, a forma como se põe tudo em perspetiva. Imaginar também o tempo de forma diferente, congelando-o ou expandindo-o, ver como os pensamentos são transferidos do estúdio para a vida e vice-versa; a prática torna-se uma plataforma de perspetivas e de oportunidades para fabricar o microfone e usá-lo.

           

          Eu sou ballet. Parece-me que tudo se resume a isso; o meu comportamento, as minhas reações, consciência e escolhas. Faço ballet desde os 5 anos. Estaria só a fazer o que me diziam? Ou talvez houvesse vontade própria. É como uma organização que prepara uma máquina e essa máquina é feita para durar eternamente. Poderei não ter de voltar a ir para a guerra, mas fui programada para atingir um fim.

           

          […]

          Eu gostava que soubessem que estão a olhar para a construção da vossa perceção. Sempre que me apresento, eu gostaria que esse fosse o lugar de partida da observação. E assim eu seria livre. Mas eu não me sinto livre. Porque das duas uma: ou sou confrontada a rejeitar alguma coisa ou a seguir a onda. Mas agora é um momento de empoderamento, e eu não o sinto como tal.

           

          A minha utopia tem sido não ter de falar do meu percurso profissional, da forma do meu corpo ou da cor da minha pele. Mas depois vou à manifestação por causa do assassinato de Bruno Candé, um ator negro vítima de um crime motivado por racismo. E fico profundamente triste. E quero aproximar-me das pessoas negras. Afinal, eu também sou negra. No entanto, não tenho construído alianças fortes dentro da comunidade. Será que tenho direito a levantar o meu punho ao seu lado?

           

          Até me ter mudado para Nova Iorque eu não estava a par das questões do racismo. Em Nova Iorque, os afro-americanos encorajaram-me a assumir o meu lado angolano dizendo: “Pelo menos, tu sabes de onde vens.” E nesta troca também ficou evidente quanta negação existe na forma como Portugal lida com o racismo e quanto disso eu carrego em mim.

           

          A minha avó sempre nos disse: “Não se foquem na vossa aparência mas em quem querem ser, porque isso depende de vocês. Foquem-se no que está ao vosso alcance porque nunca vão poder ter controlo sobre como as pessoas vos veem.” Este conselho, que foi um escudo protetor, guiou-me até aqui. E agora tenho de o desmantelar. Tenho a urgência de abandonar esse escudo, deixá-lo para trás, tornar-me uma carcaça, um momento de transição.

           

          Adorava usar o nome da minha avó, Odete. Como não planeio ter filhos, eu podia talvez usá-lo numa situação mais íntima, ocasionalmente, quando me apetecesse. Olá, Eu sou a Odete. Odete Odd.

          […]

           

          Vânia Doutel Vaz, para a peça Still Dance for Nothing.

           

          Carmen Pombo de Brito Páginas da Minha Vida

          Espanhola de nascimento (1880) e portuguesa de casamento, Carmen Pombo de Brito era conhecida em Lisboa como Madame Britton, pseudónimo adotado para não ser reconhecida enquanto esposa do seu marido, que em 1916 abandonou por ele não aceitar que dançasse em público. Já o pai a proibira de fazer teatro, razão pela qual estudara Música no Conservatório em Madrid, de onde por vezes escapava para frequentar a Academia de Dança. Após um episódio de violência doméstica, a sua mãe foge com Carmen para Portugal, onde se instalam. Em Lisboa, virá a casar com o comandante português António Júlio de Brito, depois destacado para Moçambique, para onde partem em 1903. Num dos seus raros testemunhos, o diário Páginas da Minha Vida, publicado em 1962, Britton descreve as várias expedições pelo interior da Zambézia na missão colonizadora de ocupação do território e limitação de fronteiras ao serviço da coroa portuguesa, relatando com horror a segregação racial quotidiana e a permanência de um regime de escravatura já entretanto abolido. É em 1911, quando regressa a Lisboa após longa doença e desencanto matrimonial, que Carmen decide viajar sozinha pela Europa e regressa à prática da dança. Passando por Espanha, França e Inglaterra, cruza-se em Itália com Anna Pavlova, que lhe apresenta o mestre de bailado Enrico Cecchetti, com quem estuda. Mantendo a sua atividade de dança em sigilo, sem mesmo que o seu marido soubesse, o episódio da rutura do casal na então Lourenço Marques evidencia o que Britton explica como paradigma cultural do país: “Em Inglaterra, ter um artista na família é uma honra, ao passo que em Portugal é todo o contrário” i . Obrigada a abandonar o lar, inicia então uma carreira como pedagoga de dança, primeiro em Joanesburgo, até 1921, depois em Londres, e finalmente em Lisboa, onde abre, em 1924, a sua Escola da Arte de Representar, à avenida António Augusto de Aguiar. Sustentada no bailado clássico e na ginástica rítmica como cultura física feminina, o seu projeto teria como objetivo a educação das raparigas: a dança “ensina-as a vencer a timidez, a enfrentar as pessoas, habitua-as a moverem-se com elegância, incutindo-lhes, ao mesmo tempo gosto pela música, proporcionando-lhes um entretenimento saudável e de nobres intenções” ii. É aqui, e nas aulas ao domicílio, que Britton se erigirá enquanto estimada professora de dança para a alta sociedade lisboeta e para os descendentes das casas reais europeias, exiladas, na Linha do Estoril, das ondas de republicanismo que assolam a Europa. O seu espírito aristocrata, que lhe fazia distinguir com obstinação a cultura popular do “teatro” da cultura nobre da “arte”, não a impedia ao mesmo tempo de denunciar e de se bater contra o preconceito que imperava nessa mesma classe: “Levei alguns anos até conseguir que os espíritos simpatizantes com o meu trabalho se tornassem convictos do valor educativo da Arte da Dança” iii. O seu trabalho “como professora de Dança educativa e não como escola de bailarinas” cultivou um gosto pela dança através de inúmeras récitas e festas de caridade, como era habitual nos teatros da cidade, com as suas alunas, sem com isso deixar de incomodar generais “cheio[s] de condecorações” que relatavam: “Eu não desgostei, mas isto de aparecerem as pequenas em camisas e sem meias…” iv. É nesta visão de dança livre que as suas alunas ficariam registadas no filme-ensaio experimental A Dança dos Paroxismos (1929), de Jorge Brum do Canto. Dividida para sempre entre uma moral católica e conservadora e um espírito de confronto emancipado, que Daniel Tércio ironicamente sintetiza no título do seu ensaio como “cisne em agoniav, Britton não esconde a sua admiração por António de Oliveira Salazar numa carta de 1949. É esse espírito ambíguo entre “submissão” e “coragem” que, tendo sido professora de Wanda Ribeiro da Silva ao longo de dez anos, a faz opor-se com relutância à sua ambição de se tornar bailarina: “Pobre criança, não sabe, não, o que isso significa. Que exausto trabalho. Que grandes desilusões. Quantas invejas horríveis, injustiças, ingratidões inconcebíveis, árduo trabalho e ansiedade para fazer compreender a maioria do público; […] enfim, o tempo encarregar-se-á de dar razão a quem a tiver” vi. Ribeiro da Silva seria não só bailarina como uma das figuras fundadoras do Centro Português de Bailado, da Escola de Dança do Conservatório Nacional e da Escola Superior de Dança.

          O texto que aqui damos a conhecer é um excerto do livro que a própria Madame Britton publicou pouco tempo antes da sua morte (em data incerta). Apesar dos esforços na busca por quem tenha mantido o seu espólio, até ao fecho desta edição não foi possível encontrar ninguém. Manteve-se a grafia do texto original, salvo revisão de acentuação e pontuação.

           

           

          PÁGINAS DA MINHA VIDA

           

          A minha Arte na Dança foi o drama da minha vida conjugal. 

          Um dia ou, por melhor dizer, uma noite, depois do jantar, passámos, como era de costume, para a sala de fumo, onde era sempre servido o café e cigarros aos nossos amigos. Entre eles, nesse dia, encontravam-se Mariano e João Machado e o Tenente Coronel Gomes da Costa (mais tarde Marechal) e entre várias coisas começaram a falar duma festa elegante que ia realizar-se no único Teatro existente, chamado “Varietá”. Era de caridade a tal festa e o grande atractivo dessa noite era o programa a ser executado por Senhoras da nossa primeira sociedade ali existentes. Madame Lomelino, grande pianista, Alda Ribeiro, violino, Sofia Cachi, versos, etc., e dirigindo-se a mim perguntaram-me que parte é que eu podia desempenhar. 

          O meu pobre Antônio, a quem eu tinha ocultado sempre os meus estudos de dança, na última viagem à Europa, desatou a rir-se, e disse “A minha minha mulher, coitada, caso não seja para puxar  a cortina, não pode contribuir com a Festa, pois não possui nenhuma dessas artes”. Podem calcular, os que tinham tido a paciência de me seguir até aqui, como eu fiquei ao ouvir esta frase do meu marido, quando eu, no dizer do meu Maestro Cecchetti, era um verdadeiro talento se pudesse cultivar essa Arte, impossível, é claro, devido à minha situação na sociedade e de mulher casada. Não posso explicar o que senti, somente sei dizer que, esquecendo que meu marido ignorava que todo o tempo que estive na Europa passei-o a estudar, em vez de levar a vida frívola, que outra mulher em minhas circunstâncias levaria, com prazer espiritual de poder mostrar aos outros o que é e o que valem quaisquer artes, respondi ironicamente, rindo da gracinha do meu marido: “Pois muito bem, eu vou executar uma Dança clássica e outra de fantasia”. Não posso explicar a cara de surpresa e contrariedade que o António fez ao ouvir a minha declaração, pedindo aos nossos amigos presentes para não me tomarem a sério, pois ele não me autorizava a fazer o ridículo. Poderia detalhadamente explicar as palavras que a isto se seguiram, mas quero concretizar este assunto no mais importante e, assim, direi que, usando uma correcção quase diplomática, nem o meu marido, nem eu, voltámos a clara no caso. Mas eu continuei na minha ideia e desta forma comecei diàriamante a treinar-me em ginástica e lembrar-me de algumas danças ensinadas pelo velho e querido Maestro, tudo, é claro, feito fora do olhar do António, pois eu tinha a esperança que, não dizendo coisa alguma até ao ultimo momento, tudo correria bem. Como estava enganada… 

          Finalmente, chegou a noite da célebre festa. Meu marido, já pronto com a farda de grande gala, esperava-me na casa de jantar; apareço toda sorridente e feliz e de repente, olhando para mim, me disse, muito carinhoso, como sempre: “O filha, tu tens toiletes tão lindas e foste escolher para hoje uma, que, falando com franqueza, não tem nada de interessante, até parece uma camisa de noite”. Efectivamente, era uma túnica branca, solta, estilo grego, atada na cintura com uma fita prateada, e, esclarecendo tudo, lhe confessei que era o vestido para dançar o Momento Musical de Schubert, não lhe tendo dito coisa alguma até essa ocasião para evitar contrariedades e desgostá-lo, pois estava segura que, sendo tão amigo como era, à última  hora certamente não me negaria aquele prazer inocente. 

          Que horror! Como ficou desfigurado ouvir isto! Eu nem o conhecia, nunca o tinha visto assim. Com ar cortante, quase ameaçador, perguntou. 

          – Com quem é que a senhora vai ao teatro? 

          – Pois com quem há-de ser? Contigo, respondi. 

          – Está completamente enganada; na minha companhia vai a minha mulher e não uma dançarina. 

          – E, virando-me as costas, saiu com o seu ar autoritário dos tempos em que comandava os pretos. Fico em pé, de pedra, sem saber o que fazer. Eu não queria desgostá-lo, mas Santo Deus, eu estava num compromisso horrível. Toda a gente esperava por mim. O programa não poderia ser realizado se eu não aparecesse e… nesta luta titânica, cheia de pena, mas num minuto de decisão, mandei chamar a minha dama de companhia e segui para o teatro cheia de angústia e de desespero. Não sei bem o que fiz. Julgo que os verdadeiros passos a adaptar nesse bailado fugiram-me da mente, com o meu desgosto, mas a música embriagava-me e, deixando-me arrastar pela inspiração do momento, fiz nova composição coreográfica, que, no dizer do público, foi maravilhosa, o que me valeu uma estrondosa ovação, tendo que trizar e, de cada vez, diferente, pois eu cheguei a um estado de excitação em que não sabia bem o que fazia. 

          Passaram-se dois meses. Meu marido, durante este tempo, não voltou a casa. Eu estava desolada com o sucedido e a única consolação era ler e reler os jornais do dia seguinte da festa, onde me faziam os melhores elogios, entre eles, lamentavam não poder ter a oportunidade de voltar a ver essa “Deusa da Dança” que os laços matrimoniais tinham roubado a essa divina Arte. 

          Não foi surpresa para mim quando, um dia, um criado veio anunciar que o Sr. Comandante tinha chegado e estava no escritório. Sim, porque algum dia teria de voltar. Aquela situação não se podia prolongar para toda a vida. Entrei, estava ou fingia ler um livro que tinha sobre a secretária e eu com todo o meu carinho (e convencida que era o melhor que tinha a fazer) pus diante dos seus olhos e por cima do mencionado livro, a página do jornal que tão grandes e rasgados elogios faziam a minha pessoa, julgando assim poder com o meu sucesso acalmar a sua cólera. Que inocente criança, que eu era nessa ocasião! Ergueu-se novamente, como da última vez que falámos, dizendo-se desonrado, e, tirando duma gaveta da secretária as condecorações Cruz da torre Espada, Aviz, etc., deitou-as aos meus pés num momento de fúria – nunca o tinha visto assim! Fiquei apavorada e confesso que tive medo. 

          Depois, com grande sarcasmo e olhando para mim com o máximo desprezo, disse: 

          – Estás cheia de toleima e de vaidade pelo que dizem de ti os jornais, mas és tão imbecil, que ainda não compreendeste que todas essas encantadoras frases são, embora encobertamente, dirigidas a mim, pela minha posição, pela minha fortuna; pois tu podes estar bem convencida que, como mulher ou como artista, não tens valor algum. 

          – Santo Deus, que injustiça! Senti, como se me tivesse batido com um chicote no rosto, e nessa altura chegou minha vez e esquecendo tudo quanto meu marido significava para mim e todo o nosso passado, num momento de desespero respondi-lhe: 

          – Pois muito bem, saio agora mesmo desta casa, pois não quero continuar a desonrar-te com minha presença, e saio, – repara bem – só, não levando comigo coisa alguma do que me deste, excepto o teu nome, e juro que nunca mais voltarei, até não poder provar-te que, como mulher e artista, tenho esse valor que os jornais falam e que tu não podes reconhecer!… Até hoje!… 

          Assim foi que deixei a minha casa, abandonando tudo quanto de bom possuía, fortuna, posição social, nome e aquela santa criatura que se chamava António Júlio de Brito. 

          Fugi para Johannesburg, com algum dinheiro que pedi emprestado a uma amiga minha e sem formar projectos, pois o meu único desejo era fugir de tudo e de todos; cheguei àquela cidade para mim desconhecida sem saber nem sequer compreender uma única palavra de inglês. O meu estado moral estava fora de toda a classificação, não dando conta do que me sucedia. E vagueava pelas ruas até à hora de recolher ao hotel, onde me era impossível conciliar o sono. Todas as ideias se barafustavam no meu cérebro, a minha vida de sacrifícios no mato durante cinco anos, a minha vida faustosa na Europa e em Lourenço Marques, as minhas filhas, o meu futuro e o maior de tudo, o meu António, que tinha perdido – sabia-o bem –, para sempre, além de que os dias passavam e o dinheiro se esgotaria irremediàvelmente. 

          Que fazer? Estava decidida a tudo, menos voltar para casa. Eram muitos os anos que tinha vivido ao lado desse homem bondoso ao máximo, mas resoluto e enérgico, o que fez que eu pela primeira vez formasse o meu carácter e a compreensão da vida com uma personalidade muito minha; assim pois, no mar de confusões em que me encontrava, prevalecia sempre uma decisão irrevogável – não voltar para minha casa. 

          Minha amiga, sem eu pedir, remeteu-me novamente sem libras, suplicando-me que regressasse a Lourenço Marques, pois o António estava como doido e tinha a certeza que ele já estava arrependido do que acontecera. Ele não suspeitava por um momento que eu tivesse tido a coragem de ir para Johannesburg, pois a minha amiga, apesar das apertadas perguntas, nunca o deixou perceber. 

          O criado do hotel onde eu estava, um dia, ao servir-me o almoço, perguntou-me de que nacionalidade era, e ao responder – portuguesa – ficou encantado, pois ele conhecia alguma palavras e compreendia quase tudo, pois era italiano. Falando eu essa língua, passei a poder entender-me pelo menos no hotel, o que já era qualquer coisa, e, por intermédio dele, cheguei a saber que ali a dança era muito apreciada em qualquer das suas modalidades, sendo muito consideradas e repetidas as pessoas que exerciam essa Arte. Fiquei estupefacta ao ouvir tal declaração, pois seria possível que a tão poucas horas de distância do território português, as pessoas pensassem que ser uma Artista era uma honra, o que em Lourenço Marques era desprezível. Santo Deus! Que mar de confusões, mas era preciso reagir, tomar uma decisão, e assim foi que, enchendo-me de corágem e audácia, apresentei-me no melhor teatro que existia em Johannesburg, dizendo-me consumada artista, que me encontrava ali de passagem e por este motivo o meu reportório, música e vestuário era resumido; mas poderia dar pelo menos dois a três espectáculos e depois do empresário do teatro, ter assistido a um ensaio, ficou assente que eu receberia noventa libras por semana. Como o meu ingles era muito pobre, de momento cheguei a pensar que não tinha percebido bem e tive que recorrer ao criado do hotel para me servir de intérprete e, perante sua afirmativa, fiquei atônita, pois seria possível que eu pudesse ganhar essa importância numa semana! Eu, quando ainda há pouco ouvi dizer ao António, que como mulher e artista, não tinha valor algum. Não, não era possível o António era doido, ou então o empresário, que estava disposto a pagar dessa forma! 

          Finalmente chega o dia da minha estreia. Nervos, lágrimas, medo. Sim, medo de tudo e de todos. Um mundo e um ambiente desconhecidos para mim. Foi um sucesso. O público, a luz, a música, tudo quanto me rodeava e, talvez mais do que nada, a minha ânsia de vencer, operou em mim tal transformação que, deixando-me levar por um golpe de entusiasmo, consegui arrastar a plateia inteira numa ovação delirante. O empresário, no dia seguinte, veio cumprimentar-me ao hotel e naquele momento fez-me assinar um contrato por três meses. 

          Pobre de mim… eu não estava preparada para mudar o reportório, pois pouco mais sabia do que os três bailados executados em Lourenço Marques, que foram a causa do meu desgosto na minha casa. Ao assinar o novo contrato, mal me lembrou semelhante coisa. Era natural, poi, com o que me sucedia, eu estava em tal estado, que não dava bem conta da situação. Sòmente uma coisa prevalecia em mim. Tinha triunfado. E eu que, no dizer do António, como mulher e com artista não tinha valor algum, ganhava noventa libras esterlinas por semana, tendo um contrato já de três meses e a seguir o empresário mandar-me-ia para Londres. 

          No entanto, que se passaria na minha casa? Esta era a pergunta constante que fazia. Não tardei muito em saber tudo, e de uma maneira que eu nunca poderia ter imaginado. 

          Os jornais de Johannesburg, que ainda estão em meu poder, faziam grande reclame da minha pessoa e minha fotografia em ponto grande à porta do teatro chamou a atenção do nosso Cônsul português, que nesse tempo era Salomão Seruya. Fui por ele reconhecida e, claro, deu-se o inevitável. Ficou admirado perante tudo aquilo, com cara de surpresa e de incredulidade. Pois seria possível? Ela no teatro? O Seruya, julgava-me no meu palacete em Lourenço Marques e de repente apareço num palco. 

          Não quero perder mais tempo em relatar detalhadamente as cenas a que isto deu lugar. 

          António veio imediatamente buscar-me, meio furioso, meio arrependido por tudo quanto se tinha passado e aqui começa o meu doloroso sofrimento, que foi luta entre a grande amizade, quase veneração, que sentia por meu marido, e o orgulho de mulher, que era bem a dignidade ofendida. 

          Muitas vezes, perante os pedidos dele e os conselhos do Seruya, me sentia fraquejar e quase a ceder, mas havia ainda uma outra força de grande alcance: o contrato por mim assinado com a empresa do teatro, o qual, caso não fosse cumprido, teria que pagar três mil libras de multa. A tudo o António estava disposto, pagaria o que fosse, contanto que voltasse para casa, mas eu, embora cheia de pena, compreendi que seria inútil recomeçar de novo a vida em comum, a nossa tranquilidade nunca mais poderia existir, pois tive o pressentimento que em qualquer ocasião e por qualquer motivo se reproduziriam as cenas de Lourenço Marques. 

          Não, já não poderia voltar à nossa vida antiga. Eu sabia muito bem que se tinha desmoronado completamente e para sempre a nossa felicidade de tantos anos; por isso entre essa luta titânica entre o dever e o querer, enchi-me de coragem e, uma e inúmeras vezes, recusei-me a acompanhá-lo, para voltar à nossa casa de Lourenço Marques. 

          A empresa do teatro não queria de forma alguma que eu prescindisse do contrato e assim, unindo-se aos meus desejos e a empresa dando-se conta da minha situação social, ficou assente que daria os meus vencimentos para beneficio das tropas aliadas (estavamos em 1916) e para os soldados portugueses e cegos da nossa marinha de guerra, ficando deste modo o meu marido na impossibilidade de reagir perante este procedimento. Foi um golpe de esperteza por partida empresa teatral a tal ideia, e , deste modo, e como o meu marido me estipulou a quantia de dez mil escudos mensais para viver em qualquer parte do mundo que eu quisesse, com a única condição de não mais voltar a dançar no teatro, podendo, se eu quisesse, dedicar-me ao ensino de crianças e mesmo assim mudando de nome, pois com a quantia estipulada de dez mil escudos mensais poderia viver mais as filhas, que ficariam sob a minha responsabilidade, ficando ele, perante os seus companheiros da Armada e mundo em geral, coma satisfação de que, se a sua mulher trabalhava, era por capricho e não por necessidade, e assim fica aqui bem esclarecido como e porquê passei a chamar-me Madame Britton. 

           

           

          A MINHA CARREIRA PROFISSIONAL 

           

          Fundei então a minha escola de dança clássica e rítmica em Johannesburg. Adorei o que trabalho desde o primeiro dia, embora o meu coração sangrasse pelo sucedido e pela minha casa. Enfim, o mal estava feito, não podia retroceder. A nossa felicidade estava destruída para sempre. 

          Havia um abismo entre as suas condecorações e a minha Arte, por isso, com essa luta diária entre a dor e o prazer, comecei a trabalhar com tanta sorte, que, em pouco tempo, consegui grande número de alunos entre as melhores famílias do mundo elegante de Johannesburg. O meu nome era desejado e falado em todos os jornais, com grandes e elogiosas referências (conservo-as ainda), mas eu, que tantas vezes afrontara no mato corajosamente a morte, tremia agora como uma criança ante a nova vida a seguir, completamente desconhecida e muito diferente daquela que estava habituada e que era um grande ponto de interrogação. Tinha momentos de verdadeiro desalento e a mim mesma perguntava onde é que estava a coragem e resolução que eu tinha demonstrado ao abandonar a minha casa. 

          Como já ficou dito anteriormente, recebi lições do grande Maestro Enrico Cecchetti e, aproveitando-me do seu ensinamento, a minha escola tinha e hoje ainda tem por base o método desse grande Maestro, o que me valeu entrar na vida profissional com grandes conhecimentos e bases sólidas de ensino. Por isso, antes de continuar esta narrativa, desejo patentear ao meu querido e inolvidável Maestro, nestas linhas, todo o meu agradecimento por todos os triunfos que desde o ano de 1916 venho obtendo no meu trabalho. 

          Continuei por alguns anos em Johannesburg, provando sempre ao meu marido que eu fazia “Arte” e não teatro, pois me dedicava sòmente a ensinar  gente de bem, recusando aqueles que queriam ou faziam vida profissional; mas como a glória tem as suas exigências e o seu preço, por causa da celebridade que eu ia obtendo, um dia recebi um convite da Duquesa de Connaught, convidando-me a tomar chá, assim como a meu marido. 

          O nosso bom e compreensivo Salomão Seruya, que, nessa data, continuava a ser o nosso Cônsul português, foi quem, com seu bom senso e grande diplomacia, salvou a situação, convencendo meu marido de que tinha obrigação de aceitar aquele convite oficialmente. As nossas desavenças conjugais eram uma questão que a sociedade devia ignorar. Assim foi que, depois de tanto tempo, tivemos que nos enfrentar novamente, encontrando-nos dez minutos antes aa hora marcada e saparando-nos uma hora depois, quase sem ter trocado uma palavra. Ele estava mais branco do que as luvas que levava na mão e eu feita pedaços pela minha dor e desespero pelo que se estava passando.  

          Fiquei novamente só, pois o António regressou a Lourenço Marques depois de ter internado no Park Town School, em Johannesburg, a nossa filha Angelita. A mais velha, a Sarinha, estava interna num colégio ingles em Lisboa e eu fiquei seguindo rumo de vida, que, afinal, me foi imposto pelas circunstâncias.  

          Durante os primeiros anos, ou seja até 1918, nada de extraordinário tenho a referir, a não ser que, tendo sido atingida pelo flagelo dessa época chamada “pneumónica”, na qual, conforme a estatística de alguns jornais, perecerem 18 milhões de pessoas, isto é, mais 6 milhões que vitimas fizera a Primeira Guerra Mundial. Tive, como tantas outras, que sofrer as suas duras consequências. Para começar, estive, entre a vida e a morte, dois meses de cama, até o ponto de deitar sangue pela boca, e cada vez que vinha o médico visitar-me, dizia-me sempre a mesma coisa: “Não sei se nos tornaremos a ver, pois a minha vez pode chegar e não sei qual será o meu fim, por isso que Deus a ajude”. Morriam às centenas diàriamante, chegando o pânico até ao ponto de abandonar a cidade, indo para os campos, onde sem conforto algum, mas pelo menos ao ar livre, pensava toda a gente que existiria menos contágio, e eu, como o Colégio onde uma das minhas filhas se encontrava interna ia fechar pelo mesmo motivo, fui, quase sem poder suster de pé, procurá-la e com ela fugi como tantos outros para o campo, onde, por um feliz acaso, encontrei num meio-estábulo meio-taberna um quarto com uma mísera cama e com únicos lençóis que ali existiam. 

          A minha Angelita já vinha também contagiada e lá ficámos uma e outra à espera de morrer. 

          Numa noite de chuva e trovoada, a febre da pequena chegou a 40 graus e, nesse próprio momento, as outras pessoas, que, como nós, estavam deitadas pelo chão ou como podiam, ouviram o carro dos bombeiros, que se aproximava agitando uma grande campainha, e foram colocar-se no alto dum monte, onde, por ordem do Governo, iam levar-nos víveres e um desinfectante. Eu não podia ter-me em pé para poder chegar até onde eles estavam situados e, por outro lado, não podia deixar só a minha filha, que estava desvairada e todo seu afã era atirar-se da cama e ir para a janela. Finalmente, num momento de desespero, que tanto nos dá morrer como viver, tirei os lençóis da sua cama e rasgando-os em tiras fiz uma espécie de ligaduras e com elas e com a ajuda do dono da taberna, amarrei-a aos ferros da cama. Feito isto, fui como pude até chegar ao posto dos bombeiros, para trazer alguns alimentos e principalmente o tal desinfectante. Desnecessário é descrever a luta que ali se travava entre tanta humanidade para obter em mínima quantidade o que nos era necessário, não respeitando mulheres ou crianças. Era a luta feroz pela existência. Eu não tinha forças, nem podia chegar até lá e menos ainda suportar empurrões por isso deixei-me cair no chão, disposta a voltar sem obter coisa alguma para nós, mas um pobre homem, que me viu naquele mísero estado, compadeceu-se de mim e repartiu comigo os seus escassos alimentos, ajudando-me a levantar e descer o monte, onde os bombeiros se tinham instalado, por ficar assim no alto a bandeira da Cruz Vermelha, para que todos pudesse ver. 

          Tinha eu andado uns escassos minutos ou por falta de forças ou por ter tropeçado em qualquer coisa, o facto é que me vi novamente no chão e pior ainda com a garrafinha quebrada que continha desinfectante que o pobre homem tão generosamente me tinha oferecido. 

          Cheguei finalmente junto de minha filha, encontrando-a num estado que não há descrição possível, tendo a cara roxa, e gritando como se tivesse perdido a razão. Sentei-me perto dela, esperando a todo momento que deixasse de existir. 

          Três meses de passaram, vivendo neste estado, e quando melhorou decidi voltar para a cidade, ou seja, para Johannesburg, onde ao menos existiam os víveres que eram necessários para a nossa existência mas, o que nos faltavam eram pessoas amigas, que tinham desaparecido sem saber como nem quando: uma verdadeira calamidade! 

           

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          i Carmen de Brito, Páginas da Minha Vida (Lisboa: Bertrand, 1962), 46.
          ii Ibid., 61.
          iii Ibid., 71.
          iv Ibid., 70.
          v Daniel Tércio, “Cisnes em agonia e saiotes de bananas nos anos de 1920”, em Dançar para a República (Lisboa: Caminho, 2010), 275-306.
          vi Carmen de Brito, Páginas da Minha Vida (Lisboa: Bertrand, 1962), 120.

          entrevista a Tânia Carvalho Tem de Existir Tudo

          Ao longo de mais de duas décadas, Tânia Carvalho tem procurado na dança uma linguagem de afirmação. A sua aparente aproximação aos movimentos de vanguarda expressionista e surrealista do início do século XX, que privilegiaram práticas de intuição, transfiguração e delírio, não deixa de evidenciar um ténue anacronismo que a própria acata: “Se calhar sou um bocado antiga.” Esse reconhecimento, em conflito com o próprio advento da geração da Nova Dança Portuguesa, da qual é contemporânea, confronta-se com a insistência no trabalho artesanal de transmissão física tão caro à prática coreográfica.

          A entrevista que aqui publicamos foi levada a cabo por Rita Natálio e João dos Santos Martins, a convite de Tânia Carvalho, no dia 13 de dezembro de 2019 na Fundação Calouste Gulbenkian, a propósito da sua nova criação, Onironauta, que entretanto estreava na Culturgest, em Lisboa. A ocasião foi aproveitada para falarmos do seu percurso, da Bomba Suicida, da sua obra vista de dentro e de fora, olhando para os processos de trabalho e a relação de intimidade com os bailarinos.

          Transcrição: Sara Ramos.

           

           

          BALLET PARA CORRIGIR OS PÉS

           

          R: Fala-nos do teu percurso desde pequenina…

          Eu vim de Viana de Castelo, de Perre, que é a aldeia onde cresci. As primeiras aulas que tive foram de ballet, com cinco anos. Foi o médico que mandou porque eu tinha os pés não sei quê… E aí começou a minha relação com a dança. Depois, na adolescência, o Balleteatro começou a fazer aulas em vários sítios – Viana do Castelo era um desses sítios. Comecei [na dança] contemporâneo para aí com 14 e adorei.

           

          J: As aulas de ballet eram uma coisa regular?

          Acho que era duas vezes por semana, e depois passou a três. Com a professora Maria José Araújo, de Braga, que ia lá dar aulas e fazíamos aqueles exames da Royal [Academy of Dance] — eram as aulas que havia nessa altura.

           

          J: Isso foi em que ano? Eram só raparigas?

          Por acaso até tive uma turma que tinha cinco rapazes. Sei que andava no ciclo. Devia ter dez, onze anos. 1986, 1987… Era eu e a minha irmã mais velha, Vanessa. Ela era muito boa, tirava 20 a todos os exames, e eu tirava 16. Já começava a inventar um bocado, que é a minha tendência, não fazer as coisas como deve ser.

           

          J: Tu nasceste em 1976, logo após a revolução. Qual era a relação dos teus pais com essa transição política? 

          Não sei, eles vieram de Angola. O meu pai nasceu lá, a minha irmã mais velha também, a minha mãe foi para lá com quatro anos e voltaram em 1975. Eu não sei bem essa parte política deles, eles não falam muito dessas coisas. 

           

          J: O que é que eles faziam? 

          A minha mãé médica. O meu pai é engenheiro, reformado. Quando eu era pequena eles ainda eram estudantes, trabalhadores-estudantes. A minha mãe dava aulas, o meu pai trabalhava nos estaleiros de desenho técnico. 

           

          J: Então o teu percurso nas artes veio por influência do teu pai? 

          Talvez, sim. Ele faz desenhos e toca e gosta muito das artes. Nós cantávamos com ele quando éramos pequenas. 

           

           

          SENTIR A COREOGRAFIA DA MÚSICA 

           

          O meu pai adora música e está sempre a tocar. Faz coleção de instrumentos, até faz construção de instrumentos agora. E eu adorava e estava sempre a experimentar de ouvido. Quis aprender piano, mas esse o meu pai não tinha, então lá me inscrevi numas aulas. 

           

          J: O teu pai era músico clássico? 

          Não, do que ele gosta mais é de jazz. Ele fez aulas no conservatório de Viana e depois estudou jazz. Toda a vida tocou. Fiz aulas de piano mas depois tive de desistir porque não tinha piano onde estudar. Chegava às aulas e sentia frustração. Mas a música sempre esteve presente. 

           

          J: Tocavas o quê? 

          Tocava flauta e harmónica, mas também experimentava cavaquinho, bandolim, coisas assim. 

           

          J: Era uma coisa que aprendias com o teu pai? 

          Não, era sozinha. Depois foi em Lisboa que voltei às aulas de música quando fiz o Uma lentidão que parece uma velocidade [2007]. Estive nove meses a aprender uma sonata de Mozart com um professor, o João Aleixo, porque queria experimentar sentir a coreografia da música.  

           

          R: É aquela peça que estás sempre sentada no piano, depois desces…  

          Depois saio do piano, uma espécie de fantasma… Eu ainda não tinha muita prática, mas a ideia era perceber quais são os movimentos que tens de fazer para aprender uma peça de piano. Ainda em Lisboa, tive aulas com o Diogo Alvim, aí já de composição, análise de música. Depois fui para Viana e comecei a ter aulas com o Yuri Popov. Depois, o erhu foi só agora para o concerto [Duploc Barulin, 2019]. Eu queria aprender um instrumento onde eu não visse as notas. Para fazeres a nota bem-feita é quase uma coisa psicológica. Nãé como o piano, onde carregas no dó e sai um dó. Ali não, para sair a nota ainda demora algum tempo. A minha relação com a música é esta. Fui sempre bastante autodidata. 

           

          R: E achas que isso também aconteceu na tua experiência com a dança?  

          De fazer, foi com o Balleteatro, que na altura era bastante alternativo para o que havia. 

           

          J: Quem é que dava aulas? 

          A Vera Santos e a Manuela Ferraz. As aulas da Vera eram de dança criativa ou clássica. As da Manuela eram de contemporâneo. Tinha de tudo, iam pegar coisas de várias técnicas. Mas para mim na altura era muito novidade. Depois também tinha um lado criativo, eram aulas de sequência e movimento, mas também fazíamos o nosso trabalho e mostrávamos no teatro.   

           

          J: Tu ias todos os dias da aldeia para a cidade? 

          Na primária não, só quando ia fazer as aulas de ballet. Depois no ciclo é que já estava lá e fazia lá. Houve uma altura em que a minha professora se mudou para Esposende, então tínhamos de ir para lá três vezes por semana. Éramos um grupo de raparigas e os pais revezavam-se. Depois fui para as Caldas [da Rainha] e arrependi-me. Não me arrependi, mas senti falta da dança. 

           

           

          TAMBÉM QUERIA SER ESCULTORA 

           

          J: Como é que decides ir fazer Artes Plásticas? 

          Na escola tens de escolher uma área, nãé? E eu escolhi Artes. Adorava pintar, desenhar… e eu queria fazer escultura, achava eu. Também queria ser escultora.  

           

          J: E era uma coisa normal ir para Artes nessa altura, em Viana do Castelo? 

          A maior parte das pessoas que estudava Artes ia para arquitetura. Para Artes Plásticas eram poucos os que queriam mesmo arriscar. Havia aquela coisa que ainda há — muitas pessoas acham que sãáreas difíceis, que não vão encontrar trabalho. 

           

          R: E nessa passagem houve algum tipo de choque cultural? 

          Eu fiquei feliz, primeiro porque estava farta de Viana. Eu gosto imenso de Viana, mas tinha necessidade de ver mais coisas, queria experimentar mais… Nas Caldas encontram-se pessoas de vários sítios, todas com experiências muito diferentes, que é o que as pessoas experimentam quando vão para a universidade. É uma escola de/para artistas, e isso é muito gratificante, porque aprendes muito. E tens essa autonomia, andas a pé ou de bicicleta, fazes as tuas coisas sozinha, tens tudo perto e vives perto das pessoas com quem estudas. A minha cabeça começou a abrir imenso. Eu em Viana já tinha tido um professor de Artes que nos mostrava muitas coisas que não iam à cidade, o Fernando José Pereira. Levava músicas para ouvirmos… foi ele que me mostrou o John Zorn. E essa professora Manuela Ferraz também me mostrava coisas tipo Meredith Monk. Tudo isso me fez começar a ver outras coisas. 

           

           

          NÃO ESTOU BEM AQUI 

           

          J: E nas Caldas começaste logo a fazer uma coisa específica?  

          Não, no primeiro ano experimentamos tudo. A minha intenção era chegar ao segundo ano e mudar para escultura. Nunca chegou a acontecer porque depois conheci pessoas de Lisboa e mostraram-me a Escola Superior de Dança [ESD]. E eu vi aqueles bailarinos todos a passar e fiquei com imensas saudades. Inscrevi-me numa escola de dança lá nas Caldas. No verão estive em Viana a praticar para as audições da ESD e entrei. Depois, fiz o primeiro ano. 

           

          J: Isso foi quando? 

          1994 [1996]? E eu chumbei no primeiro ano da ESD. Ainda por cima tive negativa às três nucleares. Houve uma série de pessoas que chumbaram, reuniram-nos numa sala e disseram-nos que íamos chumbar o ano. 

           

          R: Chumbaram o grupo? 

          Sim. Mas foi bom, porque assim mudei para o Forum Dança. Às vezes há coisas que acontecem que nos parecem más, mas indicam-nos o caminho a seguir. Eu ainda voltei no segundo ano, mas pensei “não, eu não estou bem aqui…”. E foi na altura em que abriu o primeiro Curso de Intérpretes de Dança Contemporânea [1997], estava meio deprimida e pensei “vou arriscar…”. E aí entrei e foi estranho: na ESD sentia-me mesmo má, que não sabia nada… no Forum Dança comecei a sentir-me integrada, como me sentia nas Caldas.  

           

          J: O que é que te fazia sentir mal na ESD?  

          A não aceitação do meu lado criativo, na verdade. Era o que eu queria fazer, eu queria ser coreógrafa. E perguntavam-me se queria seguir criação ou educação e eu respondia criação, e eles achavam “não, tu tens de seguir educação, tens de ser professora porque para criação não dás”… Mas eu já tinha a certeza de que não queria ser intérprete, queria fazer as minhas criações. Então fui para o curso do Forum — porque queria ser criativa embora quisesse aprender técnica. Não queria que me ensinassem a fazer as peças, isso nunca correu bem comigo. 

           

          R: Quem foram os professores com quem tiveste contacto? Estamos a falar dos anos 90, por isso já temos a Nova Dança Portuguesa em processo, nãé? 

          Lembro-me que tive o Wil Swanson, que foi bailarino da Trisha Brown. O Jeremy Nelson, a Ann Papoulis, de dança contemporânea… De ballet era a Cristina Santos, e também tivemos a Hiroko [Nishikawa], japonesa. Tivemos aulas com o André Lepecki, o António Pinto Ribeiro – essas mais teóricas –, o Ezequiel Santos, a Margarida Bettencourt, o Francisco Camacho, que fez a peça no final do curso, o Thierry Baë… Também tivemos aulas com o Rui Nunes, a Vera Mantero… A Cristina tinha esse interesse em formar bailarinos com técnicas fortes. E eu também queria aprender, não queria só ver, queria sentir como é que se faz. 

           

          J: E nesses dois anos houve alguma coisa que te marcou mais, de experiências, influências? 

          Pois, eu conheci o Filipe Viegas e a Clara Sena nesse curso. Foi aí que começou a Bomba Suicida, em 1997. Também a Maria Duarte, que fazia parte do Projecto Teatral e com quem colaborei.  

           

           

          BOMBA SUICIDA

           

          R: A formação da Bomba vem da conveniência de poder criar projetos artísticos ou da vontade de colaborar em coletivo? 

          A ideia partiu do Filipe, ele tinha projetos que queria fazer e não tinha estrutura. A ideia não era trabalharmos coletivamente enquanto artistas, era ajudarmo-nos uns aos outros a desenvolver as ideias de cada um. E também não foi logo uma via para obter apoios. Por exemplo, eu fazia produção na peça do Filipe, o Filipe fazia figurinos na minha peç— estou a dizer ao calhas… juntávamo-nos, discutíamos ideias. Só mais tarde pedimos o primeiro apoio, quando acabámos o Forum. Acho que foi em 1999, quando fiz o Inicialmente Previsto. 

           

          R: Os apoios à dança também são relativamente recentes, nãé 

          J: Exato, é em 1996 que é criado o IPAE [Instituto Português das Artes do Espetáculo].  

          Pois, foi no IPAE ainda.  

           

          J: Então a Bomba começou durante o curso do Forum. E vocês aí já estavam a fazer peças identificados como Bomba? 

          A ideia da Bomba já existia antes do Forum Dança, o Filipe já tinha a ideia e já tinha juntado pessoas, mas ainda não a tinha formado. O Pietro Romani, a Cate [Catarina Pereira], arquiteta, entre outros. Depois as pessoas foram mudando. Fazíamos eventos, também com outros colegas, como a exposição 18711, em prédios inabitados 

           

          J: E como é que funcionava esse sistema de cotas?  

          Não me lembro, mas não era para pagar a ninguém! Era só para termos materiais, folhas para escrever e coisas assim… Depois, com o primeiro apoio é que começámos a comprar mais. Lembro-me que a primeira coisa foi um telefone-fax. E foi sempre em casa do Filipe, ao início. Só mais tarde é que passou para a Interpress.  

           

          J: Disseste que trabalhavam nos projetos uns dos outros… mas não colaboravam artisticamente nos trabalhos? 

          Isso acontecia a nível de intérpretes. Eu entrei em peças do Filipe e da Mónica [Coteriano], a Mónica e o Filipe entraram em peças minhas, o Paulo Brás também trabalhou comigo. É que isto depois tem várias fases. Nessa altura já era uma estrutura, mas mais à frente passou a ser uma estrutura de produção mesmo. O primeiro produtor foi o Nuno Branco, depois o Luís Graça durante muito tempo. Depois ainda foi o Manuel Henriques durante pouquíssimo tempo, depois veio a Rita, e só depois a Sofia Matos, em 2006. 

           

          J: Quando entra essa figura do produtor, a ideia do coletivo dispersa-se? 

          Não, ainda havia um coletivo. Nós tínhamos um espaço, fazíamos programação, fazíamos o Sunday Show, fazíamos as festas, isso tudo era coletivo. O que não era coletivo, e nunca foi, era a criação individual de cada um. Nunca fomos um coletivo artístico, nunca fizemos peças juntos. 

           

          J: Então era uma espécie de cooperativa de artistas? 

          Era o que fosse preciso. Na verdade, estávamos ali para darmos apoio uns aos outros. Essa fase foi muito gira. Sentias “ok, tenho estas pessoas com quem posso contar, posso fazer as minhas coisas e estão aqui para me apoiar”é mesmo isso. 

           

          J: Quando é que achas que isso mudou? 

          T: Não sei, acho que mudou quando o Filipe saiu. Sempre houve pessoas a sair e a entrar, mas quando o Filipe saiu passou a ser outra coisa completamente diferente. Era mesmo uma estrutura de produção e pronto, não há mais nada. 

           

          J: E o Filipe saiu por razões pessoais ou houve alguma coisa? 

          Não, não houve nada. Acho que foi mais um “já chega, estou cansado disto, quero outras coisas”. Ele foi viver para Itália, parou de fazer peças… Aquilo era divertido, mas era cansativo.  

           

           

          SUNDAY SHOW 

           

          J: O Sunday Show, como apareceu? 

          Começou com um evento que fizemos na sede do PSR [Partido Socialista Revolucionário, atual sede do Bloco de Esquerda], um evento que o Filipe organizou. Ele tinha essa personagem que era a Madunna, que fazia playback… Aliás, fizemos primeiro uma festa em casa de um amigo, depois fomos ao PSR. Lembrou-se que aos domingos não havia nada para fazer em Lisboa e lembrou-se de fazer o Sunday Show. Cada pessoa podia trazer um número… E nós embarcávamos nas ideias uns dos outros, por isso essa foi mais uma, que teve imenso sucesso. Depois cada um ia dando ideias de pessoas para convidar… E aí havia uma organização que era já muito estruturada entre nós. Eu tratava do bar, outro tratava dos bilhetes. Tínhamos uma forma quase natural de trabalhar uns com os outros. 

           

          J: Nessa altura era ainda o grupo fundador? 

          Não, aquilo esteve sempre a mudar. Aí já não estava a Clara, estava a Mónica… Também esteve o Ivo Serra, também passou por lá a Sónia [Baptista], o Tiago Guedes… Mas nessa altura era eu, o Filipe, a Mónica, o Luís Graça também esteve, a Sofia [Matos] e a Rita ainda apanharam Sunday Shows, o Manuel… Aquilo era uma das coisas que se mantinham, todas as pessoas fizeram parte. O Luís Guerra também apanhou, já no final. Depois tínhamos os satélites da Bomba, aquelas pessoas que estavam sempre lá e que nos ajudavam a fazer os cenários, como o Stiga, o Jorge Bragada na maquilhagem, o Aleksandar Protic com figurinos, pessoas que iam ajudar no bar, etc. Era um evento social. 

           

          J: E olhando hoje para esse momento, em que havia essa comunidade que circulava à volta do vosso coletivo, sentes falta desse espaço? 

          Não. Quer dizer, não me importava de ter outra vez essa experiência, mas foi importante e agora acontecem outras coisas, as coisas estão sempre a mudar. Eu percebo o Filipe, aquilo acabou, é preciso também experimentar outras coisas.  

           

          J: Mas sentes que, por não haver esses contextos de agregação independentes e geridos por coletivos de artistas, a comunidade agora está mais dependente das instituições? 

          Eu agora estou menos vezes naquele ambiente de festa com as pessoas, é verdade. Mas também não sinto falta porque eu trabalho com muitos bailarinos, e estamos sempre a fazer residências. Então há espaço para a convivência. Eu sei que as pessoas deduzem e sentem que não há um sítio para estarmos juntos ou não há muita troca de ideias… 

           

          J: E olhando desde a partida do Filipe até à desagregação da Bomba, o que é que aconteceu durante esse período como atividade? 

          Ainda mantivemos o estúdio durante um tempo. E depois passou a ser mesmo uma estrutura de produção, não fazíamos já eventos, não programávamos outras pessoas… Cedíamos o estúdio, estávamos a produzir as nossas peças e mais nada. Depois eu e o Luís [Guerra] decidimos ir para Viana do Castelo, sair de Lisboa durante um tempo, e ficou ainda mais separado. 

           

          J: Isso foi quando? 

          Foi na altura em que fiz Icosahedron e Olhos Caídos, 2010, 2011 e 2012. E aí senti-me mesmo afastada das pessoas, porque a Viana ninguém vai. A Bomba, claro, ficou mais dispersa. Nós reuníamo-nos às vezes, mas não tantas vezes como antes. 

           

          J: Nessa altura eras tu, o Luís e a Marlene [Monteiro Freitas]? 

          Sim. Tínhamos duas produtoras, iam dividindo o trabalho, e eram três artistas. Era só isso, não havia mais nada. 

           

           

          NOVA TÂNIA E TÂNIA ANTIGA 

           

          J: O Inicialmente Previsto [1999] é uma peça que tu escolheste para ser a primeira. O que era essa peça?

          Essa foi a primeira que foi apresentada como uma peça, para encher uma noite. Era uma peça que começava várias vezes. Por exemplo, fazíamos uma parte de um filme de F. W. Murnau em duplo como se fosse para ver em 3D; fazíamos uma parte que eu fui buscar à Mesa Verde [Kurt Joss, 1932]; uma parte mais boneco japonês… Quando comecei a fazer estes trabalhos, tinha vontade de fazer coisas há tanto tempo que não sabia o que escolher. 

           

          J: E todas essas referências que aparecem aí são coisas que já estavam acumuladas? 

          Eram coisas que eu ia vendo. No Forum tínhamos acesso a algumas coisas que os professores mostravam, e eu também ia muito à Cinemateca. Não fui à procura durante a peça. Durante a peça parece que prefiro parar e deixar a coisa… 

           

          J: Mas essa referência à Mesa Verde era uma coisa que tinhas de memória ou que vocês apropriaram?

          Usei como referência, vê-se o que é, mas não está copiado. O filme foi copiado. Os movimentos, mesmo. Quem conhecia bem o filme percebia o que era. Mas havia uma voz off. Isso não existe no filme. 

           

          J: E depois desta peça que são vários inícios de peças, nas peças seguintes elas tornaram-se uma coisa só? 

          Não, ficaram por ali. Foi uma experiência.  

           

          R: E a New Tan[2001]…?

          É Nova Tânia, só que ninguém sabe. 

           

          R: Também tem que ver com inícios e trocas e encontros, mas com um elemento de coreografia mais social, digamos. Como se estivesses à volta de uma mesa… 

          Por acaso lembro-me de uma coisa dos [Peter] Fischli & [David] Weiss que é um contínuo de reações químicas, um vídeo que nunca para. Lembrei-me de fazer uma peça que já tivesse começado antes, em que as pessoas entram e está a acontecer, e não veem o fim, vão-se embora e a peça continua. E esta peça tinha isso. Tinha os bodybuilders que estavam na primeira fila. Quando ainda estava a decorrer a peça e começava uma música em crescendo, que dá vontade de ficar, eles levantavam-se e mandavam as pessoas sair. E algumas não queriam, então eles pegavam nelas ao colo e punham-nas fora da sala. Há muito este movimento “entra e sai”, porque as pessoas são obrigadas a sair – entre aspas, claro, porque a peça acaba ali, mas eu queria mesmo a sensação de que não acaba. Tanto que houve pessoas que vieram falar comigo a dizer “nãé justo, eu paguei o bilhete, queria ver a peça toda. 

           

          J: E porque é que era a Nova Tânia?

          Eu não sabia que nome pôr e o produtor dessa peça, o Nuno Branco, escrevia sempre “New Tan” e ficou assim. Essa peça tem que ver comigo nessa altura, já não tem.  

           

          J: O que era a Tânia nessa altura? 

          Não sei, era uma Tânia que saía muito à noite. Faz-me lembrar guarda-costas, seguranças de discoteca… Não que na altura o tenha feito a pensar nisso, mas vejo agora que tem muito desse mundo. A música tambéé mais batida, mais punk, não sei. 

           

          J: Isso tem alguma proximidade com a outra peça que era um dueto em que inicialmente vocês dançam a pares, a Direção Oposta[2004]?

          R: Chamou-me a atenção nesse trabalho uma certa ligação com o movimento conceptual da dança. E quando estavas a falar da peça com os , fez-me pensar numa certa linguagem desse período, que era pensar a dança com a pergunta “o que é que as pessoas esperam da dança?” ou“quais são as expectativas da dança?”. Havia muito a desconstrução de aceções, tipo “eu não vou dançar como vocês esperam”não vou fazer o seria de esperar”não vou começar como teria de ser”…E são coisas que depois não vejo tanto nas tuas outras peças de grupo, mais ligadas ao expressionismo e à intuição

          Essa peça tem muito movimento. E na altura sentia que se calhar fazia movimento a mais nas minhas peças. Ainda sinto um bocadinho. 

           

          R: Também em relaçãàs pessoas da tua geração? 

          Sentia isso, mas não havia nada de mal. Ainda estás a crescer, ainda és jovem e ficas a pensar “se calhar sou um bocado antiga”. Mas agora não sinto isso, sinto que sou as duas coisas. 

           

           

          VER E SER VISTA DE FORA 

           

          R: Gostaria de pensar esse “sentir-se ou não antiga”; as tuas ligações, afinidades ou repulsas com pessoas que partilharam contigo espaços de trabalho, pessoas com quem consegues ou não conversar 

          Eu acho que consigo falar com toda a gente. Porque se eu for a ver temos todos a mesma base… Agora, com quem me identifico mais não sei dizer. Eu tenho muita dificuldade em ver o agora de fora.  

           

          R: Mas em relação ao passado, nesses primeiros dez anos, consegues identificar artistas que tinham que ver com o que estavas a fazer ou que não tinham nada que ver…? Quando falas de te sentires “antiga”, isso é em relação a um contexto? 

          É em relação tambéà história geral, não só de Lisboa. Tem que ver com eu ainda usar movimentos que são da dança clássica, ou da dança moderna… E também tenho muitas em que coreografei tudo. Claro que depois o intérprete interpreta, mas para grande parte da peça eu levo a coreografia feita, e é por isso que digo que é a forma antiga. Senti que estava desenquadrada. Porque eu trabalhava com pessoas e éramos nó— intérpretes — que pesquisávamos, improvisávamos, íamos à procura das coisas… E eu não me sentia bem a fazer isso. Enquanto intérprete sim, mas enquanto coreógrafa tive dificuldade. Gosto de imaginar, experimentar e depois passar o movimento já mais ou menos feito… Agora faço as duas coisas. Já passou essa fase em que estava mesmo obcecada em marcar tudo. E por isso sentia-me antiga, mas ninguém mo disse. Até porque eu trabalhei com a Vera [Mantero] e gostei, com o Francisco [Camacho] também… com o Projeto Teatral. Eu acho que tem de existir de tudo.  

           

          J: Mas, no início dos anos 2000, quem eram as tuas pessoas mais próximas que estavam a produzir dança? 

          Eu sentia-me próxima das pessoas da Bomba, mas não quer dizer que artisticamente fossem as mais próximas. 

           

          J: E havia algumas pessoas ou linguagens que tu rejeitavas? 

          Não, há linguagens que não uso, mas não quer dizer que ache que as pessoas não o devam fazer. Eu não tenho essa tendência de dizer “isto não deve existir”. Se existe é porque tem de existir. Aquilo que te sentes confortável a fazer é uma coisa, agora ver… eu por mim vejo tudo. Então em dança, mesmo em peças que possa não gostar, gosto sempre de ver os bailarinos, de ver pessoas a dançar. 

           

          J: Voltando à necessidade de transmitir vocabulário que tu própria criavas, e à sensação de seres antiga… Isso coincide com o momento em que os teus trabalhos começam a ser apoiados por instituições? 

          Inicialmente Previsto foi o primeiro trabalho apoiado, e aí ainda estava com a dúvida sobre como proceder em relação a isso. Porque, na verdade, mesmo quando eu marco eu olho para os intérpretes e tiro imensa coisa deles. Eles dão-me coisas mesmo sem saberem. O meu problema era ir para o estúdio ainda sem as coisas resolvidas. Aí não sabia bem o que fazer. 

           

           

          MODOS DE PRODUÇÃO 

           

          R: Todas as tuas peças foram apoiadas? 

          Eu fui apoiada até a Bomba Suicida acabar [2014]. Às vezes alguns concursos ganhávamos, outros não… Quando a Bomba acabou não tive mais, até agora. 

           

          R: Entãé só com coproduções que estás a trabalhar agora? 

          Sim, desde 2014. E também alguns apoios da Gulbenkian, da GDA… Os da DGARTES não têm corrido bem. Eu acho que não sei fazer candidaturas com aquela fórmula. Também me sinto responsável, nãé só do lado deles. 

           

          J: Como é que sentes que o teu trabalho foi recebido no início? 

          Isto anda sempre assim às voltas. Acho que começou com algum furor, fui bem recebida. Quando comecei senti que as pessoas “aderiam”. E tinha imensas pessoas que iam ver, não era só meia dúzia de gatos-pingados. Acho que sempre houve interesse no meu trabalho; mesmo que possam não gostar. Quando comecei senti forças opostas, como toda a gente sente quando há gerações diferentes, mas que depois se diluíram.  

           

          J: Qual é que era essa oposição? 

          Por exemplo, quando recebi o primeiro apoio saiu no jornal uma crítica ao facto de sermos apoiados tã“jovens”… E aí senti “ah, que chato”. 

           

          J: Foi uma crítica de alguém? 

          Sim. Os apoios da DGARTES dão sempre barulho. Mas como era a primeira vez que estava a concorrer, ainda não sabia que existiam estas coisas. 

           

          J: É curioso porque nesta altura [anos 2000] também o Miguel Pereira, que estava a ter aclamação com o seu trabalho, concorreu e não teve apoio. E o Jorge Silva Melo escreveu um artigo no Público em que dizia algo como “Miguel, vai-te embora” porque havia um problema de reconhecimento do seu trabalho pelas instituições.  

          Pois, eu percebo que se pensem essas coisas. Isto é um concurso, só concorre quem quer e sabes como é que ele é feito. Sabes que podes ganhar ou podes não ganhar, sabes como é avaliado. Foi chato, mas, quer dizer, tive apoio nessa altura em que ninguém me conhecia e agora não tenho.

           

          J: E de onde é que sentes que houve interesse pelo teu trabalho? Quem foram as pessoas que tentaram puxar, nesse início? 

          O Gil Mendo e o Mark [Deputter]. Não posso deixar de falar do Espaço Experimental, da Sofia Neuparth. Foi muito importante para mim na altura. Hoje em dia tens imensos sítios, mas na altura as pessoas iam mesmo ver quem estava a aparecer. O Gil Mendo viu-me aí. Foi muito importante. A Madalena Victorino também me deu força, na altura, no Centro de Pedagogia do CCB. Claro que depois apareceram outros, como o Rui Horta… 

           

           

          VER DE DENTRO E VIRAR 

           

          R: Estava aqui a pensar no teu percurso. Tenho a sensação de que o Orquéstica [2006] marca um certo salto ou mudança para ti. Pelo menos em termos mediáticos começou a falar-se muito do teu trabalho… fala-se muito da “linguagem Tânia Carvalho”, como se tivesses um estilo muito próprio.

          Eu quando falo com amigos e pessoas com quem estou à vontade, a sensaçãé que não tenho um estilo. Para mim cada peçé muito diferente da outra. Depois olho para trás e consigo encontrar essa coisa… É complicado explicar, porque isto é como o pensamento, vamos pensando…Não tenho um objetivo de fazer uma coisa que só eu é que faço, até porque eu uso coisas muito cliché. O que eu tento é estar atenta àquilo que aparece. Gosto de ir buscar imensas coisas, mas depois no momento de criar tento esvaziar-me para as coisas aparecerem. Não sei explicar como é que as coisas aparecem. 

           

          J: O que é que aconteceu nessa peça que se tornou uma viragem? 

          Foi um bocado polémica, na verdade. Ainda hoje há quem me venha falar dessa peça. Dizem: “A Orquéstica é que foi.” E também há quem diga que foi a pior. 

           

          R: A memória que tenho é que “deu que falar”, e foi aí que começámos a ouvir falar da tua forma de construir peças, de estar muito presente uma linguagem “da dança”, de gerir grandes grupos, de ter um mergulho na “expressão, etc… e, portanto, de teres uma linguagem afirmativa. Nos dois sentidos: havia pessoas que não gostavam nada porque estavam mais na onda do conceptualismo, e pessoas que gostavam imenso porque diziam “ah, isto sim é dançar! 

          Pois, eu estou no meio dos dois lugares, não sei bem onde me pôr e não tenho de me pôr em nenhum. O Orquéstica era um bocado assim, tinha uma parte muito experimental, com imensas caretas e depois as caras iam-se alterando e transformando os movimentos. Mas tinha um lado muito formal de técnica de dança. Deu que falar porque estava no meio, não consegues “classificar”. Agora já consegues, provavelmente. 

           

          R: Lembro-me também da peça contigo e com o Luís [Guerra], onde os movimentos eram associados a uma coisa maquinal, quase como ser marionetado pela coreografia. Por um lado era orgânico, por outro lado era maquinal.

          De Mim Não Posso Fugir, Paciência foi muito marcante, porque tinha tudo: tinha movimento, tinha momentos de loucura, momentos de circo… O que me dizem muitas vezes é que não conseguem classificar o meu trabalho, e às vezes também sinto isso. Eu gosto tanto de trabalhar com bailarinos clássicos como com pessoas que nunca fizeram dança. Cada um traz coisas diferentes. Mas a Orquéstica também foi a primeira peça em que tive apoio financeiro para fazer uma peça com tempo, e acho que isso se sente, há ali mais maturidade do que nas peças anteriores.  

           

           

          RAZÃO E INTUIÇÃO 

           

          R: Estava a pensar que, em algumas entrevistas, e também num dos teus trabalhos mais recentes – Captado pela Intuiçã[2017] –, a palavra “intuição” parece estar muito presente. Mas como considerar a intuição nos teus trabalhos de maior dimensão, que são muito geométricos e matemáticos? Onde vive a intuição quando constróis o movimento e depois passas essas células de movimento a outros?

          É uma coisa muito abstrata. Formas que passam umas pelas outras… é intuitivo, porque tu imaginas as coisas e elas quase que se mexem sozinhas. Quando eu falo em intuição tem que ver com tentar assentar e ver o que é que aparece. Às vezes estás a escrever um texto e falta-te a palavra certa. Depois relaxas e aparece. É a mesma fórmula. E os esquemas matemáticos, eu adoro fazer. Porque, para mim, os números e as formas trazem muitas emoções, têm energias próprias. Um quadrado tem uma energia, um círculo tem outra, não dá para escapar. É uma comunicação direta de formas. Brincar com isso é como fazer música. [Os bailarinos] parece quase que deixam de ser pessoas, são peças.  

           

          J: E essa é a ideia da Orquéstica? Que os bailarinos deixam de ser pessoas e passem a ser essa composição de formas?

          Sim, a peça começa de uma forma muito musical. Nós estamos a fazer som com o corpo. O meu trabalho de dançé sempre muito pensado através da dança. A não ser em casos particulares em que me pedem que faça uma peça sobre algo, como foi o caso da Tecedura do Caos [2014]. O meu tema é sempre como é que eu falo com a dança, é como se fizesse uma música sem letra. A Orquéstica era um bocado assim: como é que esse som se vai transformando com as formas da cara a possuírem o resto do corpo. 

           

          J: Mas, por exemplo, em peças como De Mim Não Posso Fugir, Paciência ou Captado pela Intuição, eu sinto que há nestes títulos uma espécie de manifesto, que seria não apenas aquilo que tu acreditas que é o teu trabalho, aquilo que tu promoves como uma forma de fazer, mas por outro lado quase uma posição face a um trabalho mais conceptual na dança. Como é que tu te relacionas com isso?

          Quando falo da minha forma nunca estou a dizer que é mais eficaz ou melhor ou que é em oposição a alguma coisa. Eu adoro ver imensas coisas que não têm nada que ver com isto. Adoro ouvir pessoas a teorizar sobre arte e eu não gosto de o fazer. Mas não quer dizer que não leia coisas sobre isso, que não ouça pessoas a falar; mas eu falar, dar uma conferência, não me peças porque eu não vou. É a mesma coisa com o trabalho: é a minha forma de estar, mas nãé em oposição aos outros, porque eu preciso dos outros diferentes de mim, senão não consigo identificar-me. 

           

          R: Para mim é muito conciliável a intuição e a razão, ou a intuição e a teoria. E  tenho a sensação de que a forma como falas da coisa é como se já houvesse uma certa oposição, como se houvesse algo que é mais da ordem do movimento e que seria menos texto, menos temático, ou puro som, puro movimento; e depois algo que seria então mais temático, mais textual, mais teórico. 

          Isso é a forma como as pessoas interpretam as coisas que eu digo. Eu acho que a intuição e a razão vivem juntas… O que eu digo é: quando estou a fazer peças, eu falo sobre as coisas depois de elas aparecerem, e nunca antes. Vem-me uma ideia ou uma imagem e depois começo a pensar sobre ela. Agora, teorizar sobre as coisas, adoro que o façam, adoro ler o que escrevem sobre as minhas coisas, mas escrever não. Por isso é que eu digo: não sei mais do que a pessoa que está sentada a ver. E se for eu a dizer o que é que eu acho que esta peçé, a pessoa que está a ver vai achar que aquilo é 100% certo. Mas eu posso ser uma coisa hoje e outra amanhã, e aquela pessoa só viu a de ontem e vai ficar fechada naquele círculo. Enquanto se for outro teórico a falar sobre a peça, ela sabe: é outra pessoa que está a falar sobre aquilo, isto é uma interpretação.  

           

           

          AS COISAS VÊM DOS BAILARINOS 

           

          R: Tendo em conta que já tens mais de 20 peças, dá vontade de perguntar: de onde vêm as imagens; de onde vêm as coisas?  

          Eu acho que vou buscar muito às pessoas com quem estou a trabalhar. Eu olho para os bailarinos e vejo um possível movimento com aquela pessoa específica. Ou com aquele grupo. E aí há essa comunicação que é sensorial, e a peça vai para um lado qualquer através disso. Eu olho para as minhas peças e vejo, por exemplo, a S [2018] e a Olhos Caídos [2010] e não vejo ali a mesma coisa. A Olhos Caídos foi feita para mim e para o Luís, e a S foi feita para os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado, tem toda uma história do ballet ali… Mas foi por olhar para aqueles bailarinos e ver os espetáculos que eles fazem que as coisas me surgiram. E, por exemplo, com os Dançando com a Diferença [Doesdicon, 2017] chego lá e vejo outro grupo e traz-me uma coisa completamente diferente, e a peça vai para outro sítio. 

           

          J: Mas no teu trabalho recorrentemente convidas os mesmos bailarinos. Portanto, também há uma vontade de recuperar algo que conheces desses bailarinos e com o qual te identificas e que vai construindo uma certa linguagem, que nãé só tua, tambéé deles, e que resulta da interação contigo. Ou seja, eles também respondem aos teus impulsos de determinada forma porque eles já são, em certa medida, a tua companhia. 

          Sim, alguns são. Estás a ver porque é que eu gosto que haja teóricos, porque eles dizem as coisas que tu não consegues dizer. Mas o que é que eles [os bailarinos] têm de específico? Eu acho que são pessoas que conseguem ser muito eficazes, tanto no desenho como na expressão. Imagina, eu marco um movimento, e até pode não estar muito bom, mas eles melhoram sempre a coisa. Gosto tanto de os ver dançar que quando ponho os movimentos neles acho que os movimentos ficam sempre bem. Mas não sei exatamente porquê. Também nunca me debrucei muito sobre porque é que gosto de tudo o que fazem, não consigo perceber quais são as características. O Luís Guerra, a Marta Cerqueira, o Bruno Senune, o Cláudio Vieira e o André Santos, entre outros que me vão faltar aqui…  

          José Maria Vieira Mendes Coreografia da Frase

          No dia em que a frase começou foi vê-la espreguiçar-se e sem hesitação ou vestígio de dúvida expandir-se não parar mais de atuar nunca mais querer acabar não havia ponto final que a interrompesse vírgula ou fim de linha que a travasse e se é verdade que a frase era curta ao princípio não se pode dizer que tímida mas discreta e foge-se à psicologia ainda o dia não tinha nascido e já ela sabia ao que vinha a facilidade com que encadeava e organizava cortando o espaço e estabelecendo-se há quem hoje a acuse de ambição desmedida mas a autoria da medida para medir a desmedida é anónima e portanto vale o que vale é o que responde a frase à crítica e avança e descobre as suas possibilidades e impossibilidades que talvez sejam nenhumas a frase rapidamente encontra soluções para os obstáculos abranda por instantes e logo arranca quando encontra um desvio alternativa e retoma o percurso tem sido assim tudo se vai tornando mais fácil na vida da frase à medida que percebe do que trata o mundo e qual o assunto da vida entre aspas parece-lhe tudo tão compreensível e tão fácil de descrever é só uma questão de tempo ou seja uma questão de se alongar e por isso a frase segue e escorrega em direção ao horizonte infinita como uma serpente a rastejar a prolongar a única forma possível de existir quando se é frase e que é estender-se numa só direção não há volta a dar mesmo que encontre um ponto de interrogação e encontrou e escorraçou alguns quando um parêntese nela se encaixa e pede licença para especificar ou acrescentar um pedacinho de espaço para existir a frase continua e expande-se por todo o lado seja o espaço uma nuvem uma estrada uma aldeia um cano subterrâneo ou uma nota de rodapé nada escapa à capacidade de expansão da frase e rapidamente deixa de haver lugar onde a frase não esteja a atuar cumprimentam-na com o respetivo travessão bom dia como está cara frase tem passado bem conversas de circunstância umas vezes mais longas outras mais de passagem gente a reconhecer a existência da frase que nunca foi só um corpo de passagem mas sempre um que passa fica continua fica vai ali fica fica não abandona fica e ocupa e a frase deixa-se estar no sofá lá de casa no banco de jardim na paisagem e no museu e na gaveta das meias e no espírito das coisas lá está a comunicar a existir foi para isso que nasceu para ser entendida e lida e vista e ouvida e reconhecida quem não a reconhece basta perguntar na rua e a rua responde porque a rua é a frase que entretanto se estendeu rumo a tudo no auge da sua maturidade atuante confiante do seu lugar a frase não hesita um único dia já trata os planetas e galáxias por tu o mesmo com a ancestralidade mais ancestral a do início da vida as primeiras bactérias tudo isto a frase conhece e esta segurança permite-lhe acolher sem exceção e preencher sem falhas o que há para preencher como se todos os lugares estivessem à sua espera todos os corpos e não corpos a frase sente-se feliz embora nunca o afirme mas sabemos que ela está feliz porque nunca receia até ao dia nem ela própria sabe quando foi mas há um dia em que um ponto de interrogação pela primeira vez se consegue fazer notar no mesmo momento em que um ponto e vírgula se atravessa distraidamente pelo caminho e talvez tenha sido esta combinação ou apenas uma inevitabilidade do tempo porque pode fazer parte da idade da frase chegar o dia em que alguma coisa corre mal a frase sentiu-se incompreendida aquela sensação de se afirmar uma coisa repetidamente e o entendimento ser outro e não há maneira de bater certo não bate certo e a frase queria tanto que tudo batesse certo porque sempre bateu certo não há que enganar esta sou eu pensava a frase quando se via ao espelho mas naquele dia olhou-se ao espelho e afinal não abre aspas o que era aquilo que via fecha aspas perguntou-se sem acesso ao ponto de interrogação e a pergunta não vale fica a meio o reflexo no espelho tornou-se irrespirável a frase vacilou pela primeira vez na sua história e viu no seu reflexo uma busca obstinada para indagar a profundeza da escuridão noturna medir as intermitências da luz da escuridão sempre em busca de um sinal que atravesse a noite porquê esta obsessão perguntou-se a frase com todos os pontos de interrogação que entretanto se aproximaram e se plantaram em seu redor um canteiro de interrogações a olhar cada palavra daquela frase serpente milenar e o olhar iluminava toda a ignorância que a frase desconhecia ai de mim pensou ela entre aspas e pela primeira vez não o escreveu coisa estranha uma frase não escrita o que quer isto dizer perguntou mais uma vez ai de mim que gesto é este que agora faço o que é isto sou eu uma catadupa de perguntas a frase julgara-se eterna e pela primeira vez ao olhar o horizonte pensou em fim nunca antes essa palavra lhe ocorrera quanto mais a ideia mas agora tudo mudava e a frase estremeceu com estas três letras a frase perdia força a frase sentia-se a definhar que absurdo não faz sentido e por isso não se conformava e resistia mas o destino da frase está traçado a frase perdia a cada tentativa de a frase perdia perdia deixou de saber e deixou eu era só uma frase pensava procurando convencer-se da humildade da vida tornada natural depois de já ter sido sábia tentar agarrar-se ao que tem para que o mundo não lhe escape a frase sentia a fissura entre ela e o chão perdia perdia perdia o sentido no intervalo que se abria espaço entre linhas vazio convertido em nada foi a única ocupação que a frase encontrou para tanto branco que se interpunha pior que os parênteses de antigamente carregados de palavras que cuspiam quando abriam e se esquecia quando fechavam já esta ausência toda era de outra espécie trazia consigo um desligamento afastamento uma autonomia incógnita a frase perdia os filamentos ou nervuras perdia perdia perdia raiz ai de mim que me sinto a não pensar não parece razão não faz sentido não tem continuidade perdeu a aderência do mundo ao mesmo tempo que não havia leito por onde correr nem estrada para seguir perdi a direção ai de mim a orientação escorrego e a forma sobretudo a forma a ordem desequilíbrio permanente um chorrilho de queixas da boca da frase para fora e sem aspas a pontuação à solta e por conta própria vai bailando traquinices de liberdade a frase olha-se ao espelho e vê-se a envelhecer ela que sempre se achou livre é agora agora agora soluços afetam a frase descontinuidade perdi capacidade de atuação passeio pela desordem estou a frase não chega ao fim mas retoma para mostrar que está viva sopros de desespero esta opção talvez não seja a adequada não seria mau deixar-se ir e perceber o que encontrou mas a frase não nos ouve terá de fazer o seu luto para aceitar as fraturas e com o tempo irá reconhecer que o futuro está no que nos escapa e não nos pertence não em mim mas lá fora no que a frase não vê nem sabe descrever a vida não está só na vida há reticências e etcéteras e a frase sem se aperceber vai-se sentindo preparada e fica mais próxima de um relaxamento que lhe pode devolver os dias mesmo sabendo que não será para sempre nada é para sempre os livros também acabam e só nos resta recomeçar e podemos não ser nós a recomeçar é o mais provável tudo tem o seu fim querida frase ai de mim suspira mas sorri também com o suspiro porque afinal de contas não está para breve nunca irá estar para breve mesmo que esteja o final não se anuncia será sempre fabulosamente surpreendente fim.

          Jean Capeille Entre as Linhas das Colunas: James Waring, a colagem e a acreção

          PT

          Em dezembro de 1956, a revista estadoudinense Dance Magazine i abre o seu número com uma rubrica – News of Dance and Dancers – em que dá conta de acontecimentos de todo o género (notícias matrimoniais, anúncios institucionais, boletins de saúde) relacionados com intérpretes da época. Por ocasião do aniversário de Mary WigmanRudolf Laban escreve um texto que a redação resolve publicar nas “Cartas dos leitores”. To Mary partilha a página com um requerimento de Tina Miruzzi que pede à revista para informar os leitores sobre eventuais oportunidades profissionais que libertem “as aspirantes a bailarinas clássicas” da frequência dos palcos televisivos e da off-Broadway. Talvez por puro acaso editorial, as páginas que precedem este apelo dizem respeito à interação entre a dança, a televisão e o cinema. As seguintes, consagradas a “bailarinos que pintam”, parecem contradizer o seu desejo de autonomia. A publicação reproduz uma colagem de James Waring acompanhada de um breve comentário: “Este bailarino e coreógrafo, de uma qualidade pessoal única, há 15 anos que produz ‘imagens, muitas das vezes colagens, porque é disso que gosto’. [E conclui…] Tal como a maior parte dos bailarinos, acha isso relaxante”iii. No que a isto diz respeito, a prática não se dissocia nem do tempo nem da matéria do seu emprego: “O trabalho de Waring, no serviço de correspondência do Time & Life Building da Rockefeller Plaza – no turno da manhã, o que lhe deixava o resto do dia para coreografar, ensaiar e dar aulas –, fornecia algum do material para as suas obras”4. Por uma estranha coincidência, a Dance Magazine também se interessou por um filatelista que acumulava representações de dança em selos. Como poderia James Waring reler o título desse artigo, “A dança faz serviço postal”v, sem o relacionar com a sua própria situação?  

           

          A sua colagem, Sem Títulovi (1963), evidencia e contesta a linha que separa o pessoal do público. A colagem junta uma tipografia anónima ao traçado singular de uma escrita. Coloca lado a lado o tempo convencional (a que faz menção o carimbo postal) e o tempo subjetivo da composição. Deixa transparecer o nome do autor e corta-o com uma forma oblonga que atravessa o envelope. As descrições canónicas da história da colagem chamam a atenção para o encontro entre superfícies estranhas a si próprias. A unidade das composições parece assim ameaçada pelo “confronto” entre “materiais heterogéneos”; a sua planura ferida pela “mistura” de texturas; os fragmentos que se agregam são “empréstimos”, “recortes” ou “subtrações” de outras realidades. Essa incompletude do fragmento encontra o seu equivalente coreográfico numa outra coluna da Dance Magazine, na qual Doris Hering comenta as peças do autor de colagens: 

           

          James Waring desenvolveu um estilo coreográfico único. Tem a qualidade fragmentária delicada da colagem. E cada bailarino parece envolvido por uma aura invisível, apenas com uma voz longínqua como companhia. A música, os outros bailarinos, o público, estão todos no exterior dessa aura. Esta imagética é pouco comum e poderia ser emocionante se o projeto estético do Sr. Waring fosse mais claro. […] Enquanto duas silhuetas deslizavam silenciosamente para a frente e para trás no palco […] era como se presenciássemos um ritual misterioso que estava de certa forma ligado ao nascimento do movimento. Mas assim que a música começou, os bailarinos foram cada um para seu lado e instalou-se uma esterilidade emocional. […] Como se dançasse numa caixa insonorizada, uma rapariga girava intensamente enquanto um rapaz, a olhar para o público, enchia as bochechas de ar. […] Em Ornaments [1957] e na reposição de Intrada [1955], o Sr. Waring regressou aos seus queridos palhaços e ragamuffinsvii pintados, que tremem isolados antes de se juntarem para um pequeno brilhareteviii. 

           

          A voz distante do partenaire ausente, o silêncio que envolve a bailarina ou a solidão dos palhaços: tudo isto contribui para abstrair os intérpretes do palco e lamentar, no registo da “esterilidade”, um encontro que não acontece. Os seus movimentos são autossuficientes e ocorrem num espaço onde, tal como numa colagem, coabitam realidades heterogéneas. A recear uma realidade escondida. Para criticar a opacidade da peça (o “projeto estético” não é “claro”), será que o artigo não recorre, na sua descrição, ao próprio artista, que, num texto publicado dois anos antes no Village Voiceix, escreve: “Se as danças de [Merce] Cunningham têm ‘histórias’, elas acontecem provavelmente fora do palco, longe dos olhos do público”x? Uma outra colagem suaxi justapõe um palco e o seu inverso. No topo de uma composição em forma de fotograma, James Waring coloca duas bailarinas cujos movimentos parecem restringidos aos limites da moldura. A imagem deslavada torna as suas presenças fantasmagóricas. Por baixo, três secções (cujos círculos dentro de quadrados evocam o invólucro de um preservativo) repetem, com uma serialização aproximativa, sinais que indicam a saída: “EXIT; EXIT; EXIT.” Wayne Koestenbaum associa o espírito da colagem às subjetividades das “opera queens”, esses amadores de ópera fechados no corpo bidimensional das suas divas de papel: “Para fazer uma colagem: recorto as imagens que me excitam, que revelam o meu passado, que contam os meus segredos”xii. Na sua relação com a imagem, as opera queens contestam a narrativa das epopeias formalistas, na qual a materialidade da colagem (volume/superfície) abriga um dilema existencial (ilusão/realidade). Elas singularizam fragmentos que, desde logo, já não se resumem à sua falta. 

           

          Será esta a preocupação que resulta do encontro entre a dança e a colagem e que leva a que o crítico Clive Barnes se refira, no New York Times, a uma duplicidade intrínseca em James Waring? Escreve Barnes: “No interior deste coreógrafo de vanguarda estava, como eu já suspeitava, um clássico não arrependido a tentar sair [struggling to get out]”xiii. Se a expressão ”get out”, em lugar de ”come out”, deixa pouco espaço para a ambiguidade, já a perturbação, instituída pela vanguarda como facto público, que associa a dança clássica a uma pulsão dissimulada, dramatiza a oposição entre culturas coreográficas dentro do registo confissão/dissimulação. Uma outra “Carta dos leitores” na Dance Magazine aponta para a problemática destas metáforas. Eis a intervenção completa de David Vaughan: 

           

          Um crítico demasiado literal  

          A ideia de que comunicar é a função primeira da dança é certamente uma invenção da crítica de espírito literal, como a que é praticada pelo Sr. Sorell, que, na sua recensão de maio à peça de James Waring, Dances Before the Wall [1957-58], se refere a uma “linguagem do movimento” e a uma “partilha da experiência”. O movimento não é uma linguagem, é movimento. A experiência que o bailarino partilha com o público é a experiência da dança, e não de uma outra coisa qualquer produzida num outro lugar e num outro tempo… Há um tipo de dança para o qual o que conta é o que se vê e não o que é suposto significar. Em outras artes, na pintura ou na música, a abordagem não-eloquente é já bastante respeitada, mas na dança, apesar de Balanchine, o preconceito literário não morre. Suspeito que se trata de vestígios do Puritanismo: a dança por si só continua a ser considerada frívola, indecente, e portanto é preciso torná-la uma arte honesta atribuindo-lhe Sentido. Só que às vezes os artistas não estão a tentar comunicar, estão a criar um mundo… Dances Before the Wall é uma das composições de dança mais belas, mais excitantes, mais civilizadas e mais enriquecedoras que tive a oportunidade de ver…xiv 

           

          Contra o desvelamento dos significados escondidos, David Vaughan ridiculariza a ideia de comunicação que revela uma determinação para fazer falar a dança. Esta sua carta faz parte de um debate estético, é certo, mas ela também ataca o “Puritanismo” e o modo como se associa a abordagem “não-eloquente” ao imaginário da “frivolidade” e da “indecência”. Expõe-se assim uma divisão em que a “arte honesta” é colocada do lado da procura intempestiva (e maiuscular) do “Sentido”, cujas projeções colocam a visão dentro do armário. A entrada da pintura na polémica torna a ambivalência do formalismo problemática. No mesmo período, o fascínio de uma arte por aquilo que a constitui pode, por um lado, passar por uma procura do absoluto no expressionismo abstrato e, por outro, por servir uma amálgama na qual a autorreflexividade coreográfica alberga o narcisismo. Em Dance Observer, a própria Jill Johnston problematiza uma minúcia alienante, fazendo uso de termos psicofisiológicos: “Há, em tudo isto, vitalidade e esterilidade. A mão responsável é honesta, original e, por vezes, um pouco perversa na sua precisão”xv. Criticando uma circularidade inapta, Louis Horst traduzirá no corpo do texto a sua angústia com a repetição: “Peripateia [1960], com uma duração superior a uma hora, produz monotonia, monotonia e mais monotonia”xvi; isto antes de lamentar a ausência de uma “experiência comunicável”. No final dos anos 1950, o filão crítico que se ia formando em redor de James Waring aglomera significantes que giram em torno “do que não se vê”, “do que não é dito”, “do que se esconde por detrás” e/ou “do que não é partilhado”.   

           

          Não deixa de ser assinalável que algumas das clivagens que Eve Kosofsky Sedgwick recenseou em Epistemologia do Armárioxvii (nomeadamente privado/público; canónico/não-canónico; conhecimento/ignorância) se reencontrem no seio de outras polaridades, muitas vezes associadas à obra do coreógrafo (high/low; gesto/movimento; amador/profissional; abstrato/significante; vanguarda/tradição). Na relação entre biografia artística e pessoal (ao contrário do “armário imposto” aos artistas gay durante o episódio da paranoia homofóbica da “ameaça lavanda”xviii ), Jonathan Katz confere ao “silêncio queer de John Cage” uma ética da coexistência: “O silêncio era o agente que ‘unia as coisas que se pensavam contrárias’”xix. Neste silêncio emancipador, James Waring chama a atenção para a importância de um limite para a apreensão “em surdina”: “As pessoas julgam que as emoções advêm da violência. Olham para uma coisa e dizem ‘isto aqui não tem emoção’. Mas as emoções estão lá sempre, só que presentes num nível mais abaixo do que aquele a que estão habituadas […] Não é preciso nomear um sentimento ou uma emoção, porque é bem possível que não haja palavras para o fazer. É raro eu sentir uma coisa que possa nomear”xx.

           

          Sem se deixar iludir, o próprio artista reconhece as consequências de tal processo na economia da sua visibilidade: “Eu não tenho um estilo único. O problema de ter ou não ter um estilo não é um problema meu. O estilo resulta de um processo artístico, não interessa por si só. O estilo é o processo”xxi. Num período marcado por intensos debates sobre a noção de copyright em coreografiaxxii, esta recusa de uma paternidade estilística motiva apropriações livres de movimentos de repertórios gestuais muito variados (clássicos, modernos e vernaculares) aos quais James Waring se entrega, rejeitando que sejam colocados em concorrência. Se entendermos o estilo como a matriz de inteligência de uma obra, compreenderemos facilmente a capitulação de Clives Barnes, quando escreve, a propósito das combinações de Northern Lights (1966): “Trata-se de uma obra bizarramente difícil e eis-me a andar à volta dela sem nada a que me agarrar […]. Com as nossas belas distinções, afundamo-nos viscosamente num mar semântico”xxiii. Lúcido relativamente ao perigo das taxonomias, são precisamente as tais “belas distinções” que arrastam o crítico para as profundezas dos fundos semânticos (imerso numa viscosidade que não deixa de evocar a colagem). Num dos seus textos, o coreógrafo sublinha um problema imprevisível na receção das suas construções: “O facto de eu combinar tipos tão díspares de movimentos não era compreendido pela maior parte das pessoas. […] O que não era compreendido é que eu procurava combinar estes movimentos em frases”xxiv. Segundo James Waring, o problema (que D. Vaughan classifica como “método-colagem de fazer dança”xxv) reside não tanto na variedade dos materiais quanto na sua junção. O antagonismo habitualmente atribuído às justaposições da colagem (os “lado a lado” e “face a face”) tornava impossível a perceção de movimentos díspares na frase. Recorrendo a um vocabulário da astrofísica, James Waring refere-se em seguida a um “estilo de movimento por acreção”, evocando a formação de estrelas, planetas ou de um volume em construção composto por diferentes objetos. A acreção agrega mais do que separa. Usando as palavras de Sally Banes (que recorre à analogia da gravidade): “Esta mistura permite que as danças não caiam em nenhuma categoria”xxvi. 

           

          Se o artista, o coreógrafo, o autor de colagens, relacionava as primeiras receções da dança experimental com o problema das projeções literárias e/ou significantesxxvii, a clivagem assimetria/unidade, que é alvo de crítica nas suas coreografias (por certo uma crítica que se deve às expectativas dramatúrgicas falhadas), advém também da sua relação com a colagem. Antes da democratização do conceito intermedia (de Dick Higgins, que não esconde o seu ceticismo sobre a capacidade da imprensa de dar conta de tais fenómenosxxviii), os media adotam uma atitude de cruzamento de medium. Não se contentam, à maneira da Dance Magazine, em assinalar uma “tendência” do campo coreográfico (“os bailarinos que pintam”), mas participam ativamente na encenação de divisões que animam e ultrapassam a relação entre dança e colagem. Se, entre as linhas das suas colunas, este intermedia se deixa afetar pelas suas projeções e apanhar pela armadilha dos seus dualismos ninguém vê nisso a desrealização das relações cénicas. Já em 1958 Allen Ginsberg escrevia, a propósito de Dances Before the Wall: “Por vezes a impressão de uma tela de [Paul] Klee que ganha vida, acontecimentos idiossincráticos em miniatura que são justapostos e se movem independentes uns dos outros num mesmo tempo e espaço”xxix. Eis a importância de recusar a oposição entre singularidade e coletividade: “Coisas que se desenrolam em diferentes direções em simultâneo. Felizes”xxx. 

           

          Traduzido do original francês por J. M. Vieira Mendes. 

           

           

           

           

          i A Dance Magazine é uma revista mensal, publicada nos Estados Unidos desde 1927, que se ocupa da atualidade de uma variedade de práticas e debates relacionados com a coreografia.
          ii Pedi emprestada esta expressão a Alwin Nikolais, “No Man from Mars”, texto publicado em Selma Jeanne Cohen, ed., The Modern Dance: Seven Statements (Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1965), 63.
          iii James Waring citado em “Dancers Who Paint, a Holiday Season Exhibition”, Dance Magazine, 30, n.° 12 (dezembro de 1956): 25.
          iv Gerard Forde, “Poet’s Vaudeville: The Collages of James Waring”, publicado a propósito da exposição “James Waring”, patente de 11/09/2013 a 12/10/2013 na Galerie 1900-2000, em Paris. v “Dance Does Postal Service”, Dance Magazine, op. cit., 40, 41 e 62. vi James Waring, Sem Título, 1963, Colagem sobre cartão, 20x14cm, Galerie 1900-2000, Paris.
          vii Expressão inglesa que se refere a figuras andrajosas ou vagabundos [N. do T.].
          viii Doris Hering, “Choreography by James Waring, Master Institute April 23 and 24, 1957”, Dance Magazine, 31, n.° 6 (junho de 1957): 87.  
          ix Criado em 1955 por Norman Mailer, Dan Wolf e Ed Fancher, o Village Voice é um semanário norte-americano lançado no bairro de Village que comenta e participa na atualidade cultural e política.
          x James Waring, “Merce Cunningham: Maker of Dances in a Style Eloquentely his Own”, Village Voice, 2 de janeiro de 1957, 6.
          xi James Waring, Sem título, 1962, colagem sobre cartão, 27,8 x 7,7 cm, Galerie 1900-2000, Paris.
          xii Wayne Koestenbaum, The queen’s throat: opera, homosexuality, and the mystery of desire (Nova Iorque: Poseidon Press, 1993): 64.
          xiii Clive Barnes, “Dance: Classy Classicist”, New York Times, 13 de fevereiro de 1968.
          xiv David Vaughan, “Letters from our readers”, Dance Magazine, 32, n.° 6 (junho de 1958): 21.
          xv Jill Johnston, “James Waring and company. Henry St. Playhouse, December 7, 1958”, Dance Observer (janeiro de 1959): 10.
          xvi Louis Horst, “James Waring and company. Fashion Institute of Technology, December 17, 1960”, Dance Observer (março de 1961): 42.
          xvii Eve Kosofsky Sedgwick, Epistemology of the Closet (Berkeley: University of California Press, 1990).
          xxviii Ver David K. Johnson, The Lavender Scare: The Cold War Persecution of Gays and Lesbians (Chicago: University of Chicago Press, 2006).
          xix Jonathan D. Katz, “John Cage’s Queer Silence; or, How to Avoid Making Matters Worse”, GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 5, n.° 2 (1 de abril de 1999): 239.
          xx James Waring, citado a partir de uma transcrição retirada da lição “100 questões sobre dança”, gravada na Judson Church em fevereiro de 1968, Pacifica Radio Archives, Los Angeles, Califórnia.
          xxi James Waring, “The Paradoxes of James Waring”, Dance Magazine, 42, n.° 11 (novembro de 1968): 64.
          xxii Anthea Kraut, Choreographing Copyright: Race, Gender, and Intellectual Property Rights in American Dance (Nova Iorque: Oxford University Press, 2015).
          xxiii Clive Barnes, “’Northern Lights’ Manhattan Festival Ballet Performs Unusual New Work by James Waring”, New York Times, 10 de janeiro de 1967.
          xxiv James Waring, “My Work”, Ballet Review, 5, n.° 4 (1975-1976): 111.
          xxv David Vaughan, “James Waring: A Remembrance”, Performing Arts Journal, 5, n.° 2, American Theatre: Fission/Fusion (1981): 108.
          xxvi Sally Banes, “James Waring Festival Judson Memorial Church, April 21-30”, Dance Magazine, 52, n.° 8 (agosto de 1978): 31.
          xxvii James Waring, “100 questões sobre dança”, op.cit., “[Durante os anos 1950] os críticos começaram a olhar para a dança como se se tratasse de uma peça de teatro, de um texto literário, de uma história ou de um drama e criticavam-na com base nisso.”
          xxviii Dick Higgins, “Intermedia”, Something Else Newsletter, 1 (fevereiro de 1966).
          xxix Allen Ginsberg, “James Waring & Co”, Village Voice, 17 de dezembro de 1958, 7.
          xxx Ibid.

          FR

          En décembre 1956, la revue états-unienne Dance Magazine s’ouvre sur une rubrique – News of Dance and Dancers – qui chronique des évènements en tout genre (annonces matrimoniales, aléas institutionnels, bulletins de santé) liés aux interprètes de la période. À l’occasion de l’anniversaire de Mary Wigman, Rudolf Laban adresse un texte que la rédaction affecte au « Courrier des Lecteurs ». To Mary partage sa page avec une requête de Tina Miruzzi demandant au magazine de renseigner son lectorat sur d’éventuelles opportunités professionnelles qui émanciperaient les « danseuses de ballet en devenir » de la fréquentation des plateaux de télévision et de l’off-Broadway. Hasard éditorial, les pages qui précèdent sa demande concernent les interactions entre la danse, la télévision et le cinéma. Les suivantes, consacrées aux « danseurs qui peignent » semblent contredire ses vœux d’autonomie. La publication reproduit un collage de James Waring et l’accompagne d’un court commentaire : « Ce danseur et chorégraphe d’une qualité personnelle, unique, a, depuis 15 ans, ”réalisé des images, la plupart du temps des collages, parce que j’aime ça” [et le texte de conclure] Comme la plupart des danseurs, il trouve ça relaxanti ». Pourtant, le concernant, la pratique ne se dissocie ni du temps ni des matériaux de son travail : « le boulot de Waring aux services du courrier Time & Life Building de la Rockefeller Plaza – dans l’équipe du matin, ce qui lui laissait le reste de la journée pour chorégraphier, répéter et enseigner – fournissait certains matériaux de ses œuvresii ». Par une étrange coïncidence, Dance Magazine s’intéresse aussi à un philatéliste thésaurisant des représentations de danses sur timbre. Comment James Waring pouvait-il relire l’intitulé de cet article – « La danse au service postaliii » – en rapport à sa propre situation ?

          Son collage, Sans Titreiv (1963), anime et conteste la ligne de partage qui sépare le personnel du public. Il assemble une typographie anonyme au tracé singulier d’une écriture. Il met en présence le temps conventionnel (dont la marque postale fait mention) et subjectif de la composition. Il laisse apparaître le nom de l’auteur et le scinde d’une forme oblongue qui traverse l’enveloppe. Les descriptions canoniques de l’histoire du collage mettent en scène des surfaces étrangères à elles-mêmes. L’unité de leurs compositions semble menacée par la « confrontation » de « matériaux hétérogènes » ; leur planéité meurtrie par la « mixité » des textures ; les fragments qui s’y agrègent « empruntés », « découpés » ou « soustraits » à d’autres réalités. Cette incomplétude du fragment trouve son équivalent chorégraphique dans une autre colonne de Dance Magazine dans laquelle Doris Hering commente les pièces du collagiste :

          James Waring a élaboré un style chorégraphique unique. Celui-ci a la qualité délicatement fragmentée d’un collage. Et chaque danseur semble enveloppé dans une aura invisible avec une voix lointaine comme seule compagnie. La musique, les autres danseurs, le public : tout le reste est à l’extérieur. Cette imagerie est inhabituelle, elle pourrait être émouvante si le projet esthétique de M. Waring était apparent (…) Alors que deux silhouettes glissaient silencieusement d’avant en arrière sur la scène (…) nous semblions assister à un rite mystérieux lié, d’une certaine manière, à la naissance du mouvement. Mais lorsque la musique a commencé, les danseurs ont pris des chemins séparés et une stérilité émotionnelle s’est installée (…) Comme si elle dansait dans une chambre insonorisée, une fille tourne intensément en rond tandis qu’un garçon fixe le public et gonfle ses joues. (…) Dans Ornements [1957] et la reprise d’Intrada [1955], M. Waring revient à son ensemble préféré de clowns et autres ragamuffins peints tremblants dans l’isolement avant d’être enfin réunis pour un éblouissement instantanév.

           

          La voix distante du partenaire absent, le silence qui abrite la danseuse ou la solitude des clowns : tout concourt à abstraire les interprètes de la scène ; déplorer, dans le registre de la « stérilité », une rencontre qui n’advient pas. Leurs mouvements se déploient en autarcie dans un espace où, à l’instar d’un collage, cohabitent des réalités hétérogènes. Craintes d’une réalité soustraite à la vue. Pour critiquer l’opacité de la pièce (le « projet esthétique » n’est pas « apparent ») le texte n’emprunte-t-il pas sa description à l’artiste lui-même qui – dans un papier publié deux ans plus tôt dans le Village Voice – écrivait : « si les danses de [Merce] Cunningham ont des ”histoires”, celles-ci se déroulent peut-être au-delà de la scène, hors de la vue du publicvi » ? Un autre de ses collagesvii superpose une scène et son envers. Au sommet d’une composition en forme de photogramme, James Waring place deux danseuses dont les mouvements semblent restreints par les limites du cadre.  L’image délavée rend leurs présences fantomatiques. En dessous, trois autres sections (dont les ronds encadrés évoquent l’enveloppe de préservatifs) répètent les signes du départ avec une sérialité approximative : « EXIT ; EXIT ; EXIT ». Wayne Koestenbaum associe l’esprit du collage aux subjectivités des « folles lyriques » ; ces fans d’opéra enfermés avec le corps bidimensionnel de leurs divas de papier : « Pour créer un collage : je découpe des images qui m’excitent, qui réveillent mon passé, qui disent mes secretsviii ». Dans leur rapport à l’image, les folles lyriques contestent le récit des épopées formalistes où la matérialité du collage (volume/surface) abrite un dilemme existentiel (illusion/réalité). Elles singularisent des fragments qui, dès lors, ne se résument plus à leur manque.

          Est-ce seulement le trouble issu de la rencontre de la danse et du collage qui conduit le critique Clive Barnes à formuler, dans le Times, l’idée d’une duplicité intrinsèque à James Waring ? Il affirme ainsi : « [qu’] à l’intérieur du chorégraphe d’avant-garde se trouvait, comme je l’ai déjà suspecté, un classique non repenti luttant pour sortir [struggling to get out]ix ». Si l’emploi de ”get out” au lieu de ”come out” ne ménage qu’une mince ambiguïté, le renversement – qui institue l’avant-garde comme fait public et associe la danse classique à une pulsion dissimulée – dramatise l’opposition de cultures chorégraphiques dans le registre aveu/dissimulation. Un autre « courrier des lecteurs » de Dance Magazine situe l’enjeux de ces métaphores. Voici l’intégralité de la réponse de David Vaughan :

           

          Critique trop littéral

          L’idée que la fonction première de la danse est de communiquer est, certainement, l’invention d’un critique à l’esprit littéral comme celui de M. Sorell, qui, dans sa critique de mai, de la pièce de James Waring – Dances Before the Wall [1957-58], parle de “langage du mouvement” et de “partage d’expérience”. Le mouvement n’est pas un langage : c’est du mouvement. L’expérience que le danseur partage avec le public est l’expérience de la danse, et non de quelque chose d’autre qui se serait produit ailleurs et dans un autre temps… Il existe une sorte de danse dans laquelle ce qui compte, c’est ce que vous voyez, et non ce qu’elle est censée signifier. Dans d’autres arts, en peinture ou en musique, l’approche non-signifiante [non eloquent] est maintenant tout à fait respectée ; mais dans la danse, malgré Balanchine, le préjugé littéraire n’en finit pas de mourir. Il s’agit là, je l’imagine, d’un vestige du puritanisme : la danse pour elle-même est encore considérée comme frivole, voire indécente, et il faut donc en faire une forme d’art honnête en lui donnant du Sens. Parfois, les artistes ne veulent pas communiquer, ils veulent créer un monde… Dances Before the Wall est l’une des compositions de danse les plus belles, les plus excitantes, les plus civilisées et les plus enrichissantes que j’ai eu la chance de voir…x

           

          Contre le dévoilement du sens caché, David Vaughan tourne en dérision la communication qui relève ici d’une injonction à faire parler la danse. Sans doute, son courrier appartient à un débat esthétique ; mais il attaque aussi le « puritanisme » visant à instruire le procès de l’approche non eloquent dans l’imaginaire de la « frivolité » et de « l’indécence ». Émerge ici un partage dans lequel « l’art honnête » est renvoyé du côté de la recherche intempestive (et majusculaire) de « Sens » dont les projections mettent la vision au placard. L’irruption de la peinture dans la polémique rend problématique l’ambivalence du formalisme. Dans la même période, l’attrait d’un art pour ses constituants peut à la fois passer pour une recherche d’absolu dans l’expressionisme abstrait et servir un amalgame où l’autoréflexivité chorégraphique abrite un narcissisme. Dans le Dance Observer, Jill Johnston, elle-même, problématise une méticulosité aliénante en usant de termes psycho-physiologiques : « Il y a, dans tout cela, à la fois de la vitalité et de la stérilité.  La main responsable est honnête, originale, et, parfois, un peu perverse dans sa précisionxi ». Critiquant une circularité inepte, Louis Horst traduira dans le corps du texte son angoisse de la répétition : « Peripateia [1960] qui a duré plus d’une heure, produisant de la monotonie, de la monotonie et encore de la monotoniexii » ; avant de déplorer l’absence « d’expérience communicable ». À l’issue des années 1950, le filet critique qui se forme autour des pièces de James Waring contracte des signifiants liés à « ce que l’on ne voit pas » ; « ce qui n’est pas dit » ; « ce qui se cache derrière » et/ou « ce qui n’est pas partagé ».

           

          Il est frappant de lire que certains des clivages qu’Eve Kosofsky Sedgwick a recensés dans son Épistémologie du Placardxiii (notamment privé/public ; canonique/non canonique ; savoir/ignorance) se retrouvent au sein d’autres polarités constamment associées à ses chorégraphies (high/low ; geste/mouvement ; amateur/professionnel ; abstrait/signifiant ; avant-garde/tradition). Dans un rapport entre biographie artistique et personnelle (à rebours du motif du « placard imposé » aux artistes gays durant l’épisode de paranoïa homophobe de la peur violettexiv) Jonathan Katz confère au « silence queer de John Cage » une éthique de la coexistence : « l’agent de ‘réunion des choses que l’on pensait opposées’ c’était le silencexv ». À cet endroit d’un silence émancipateur, James Waring situe, lui aussi, l’importance d’un seuil de perception « en sourdine » : « Les gens pensent que les émotions relèvent de la violence. Ils regardent quelque chose et disent : ‘il n’y a pas d’émotion ici’. Mais les émotions sont toujours là ; seulement présentes à un degré plus bas auquel ils ne sont pas habitués (…) nul besoin de nommer un sentiment ou une émotion, aucun mot ne pourrait s’en charger. J’éprouve rarement un sentiment que je saurais nommerxvi ».

          Sans équivoque, l’artiste expose les conséquences du processus dans l’économie de sa propre visibilité : « Je n’ai pas un style unique. Ce n’est pas mon problème d’avoir ou non style. Le style résulte d’un processus artistique, il n’est pas intéressant en lui-même. Ce qui l’est : c’est le processusxvii ». Dans une période marquée par d’intenses débats autour de la notion de copyright en chorégraphiexviii, ce refus d’une paternité stylistique motive les libres appropriations de mouvements issus de répertoires gestuels bigarrés (classiques, modernes et vernaculaires) auxquelles s’adonne le collagiste ; contestant ainsi leur mise en concurrence. Si le style est pensé comme la matrice d’intelligibilité d’une œuvre, on comprend dès lors la déroute d’un Clives Barnes lorsqu’il commente les combinaisons de Northern Lights (1966) : « c’était un travail bizarrement difficile, et me voilà en train de roder autour sans trouver de prises pour m’y accrocher (…) Avec nos belles distinctions, nous coulons, collants, dans une mer sémantiquexix ». Lucide sur le péril des taxonomies, ce sont bien leurs « belles distinctions » qui entrainent le critique dans les profondeurs de ces fonds sémantiques (immergé dans une substance collante qui n’est pas sans évoquer le collage). Dans l’un de ses textes, James Waring soulève un problème inattendu dans la réception de ses constructions : « mes combinaisons de types de mouvements disparates n’étaient pas comprises par la plupart des personnes (…) Ce qui n’était pas compris, c’est que je cherchais à faire des phrases à partir de ces combinaisons de mouvementsxx ». Selon lui, le problème (de ce que D. Vaughan qualifie de « méthodes-collage de fabrication du mouvementxxi ») réside moins dans la variété des matériaux mobilisés que dans le geste visant à les unir. Un antagonisme attribué aux juxtapositions du collage (les « côte à côte » et « face à face ») rendrait impossible la perception de mouvements disparates en phrase. Dans le vocabulaire de l’astrophysique, il nomme ensuite un « style de mouvement par accrétion » ; évoquant la formation d’étoiles, de planètes ou d’un volume en devenir composé d’objets divers. L’accrétion réunit plus qu’elle ne disjoint. Pour le dire avec Sally Banes (qui filerait ici l’analogie spatiale de la gravitation) : « cette mixture empêche les danses de tomber dans une catégoriexxii ».

          Si l’artiste, le chorégraphe, le collagiste ont lié les premières réceptions de la danse expérimentale au problème des projections littéraires et/ou signifiantesxxiii : le clivage disparité/unité – critiqué dans ses chorégraphies (et certainement lié aux attentes dramaturgiques qu’elles déçoivent) – relèvent aussi de leur rapport au collage. Avant la popularisation du concept d’intermedia par Dick Higgins – qui s’affirme pourtant sceptique sur la capacité de la presse à rendre compte de tels phénomènesxxiv – les médias prennent acte d’une attitude à la croisée des médiums. Ils ne se contentent pas, comme Dance Magazine, de relever une « lubie » du champ chorégraphique (« ces danseurs qui peignent ») mais participent à mettre en scène des partages qui animent, et débordent, le rapport entre la danse et le collage. Si, entre les lignes de leurs colonnes, cet intermedia se laisse affecter par leurs projections, piéger dans leurs dualismes ; toutes n’y voient pas la déréalisation des relations scéniques. Dès 1958, Allen Ginsberg relate, à propos de Dances Before the Wall, : « l’impression qu’une toile de [Paul] Klee s’anime : des événements idiosyncrasiques en miniature juxtaposés et se déplaçant indépendamment les uns des autres et, en même temps, dans un seul espacexxv ». Il y va de l’importance à refuser l’opposition entre singularité et collectivité : « des choses se déroulent dans différentes directions simultanément. Heureux.xxvi».

           

          i James Waring cité dans « Dancers who Paint, A Holiday Season Exhibition », Dance Magazine, vol. 30, n°12, décembre 1956, p. 25. [« This concert dancer and choreographer with a personal, unique quality, has, for about 15 years, “made pictures, mostly collages, because I like to.” Like most dancers he finds it relaxing »]
          ii Gerard Forde, « Poet’s Vaudeville: The Collages of James Waring » (mis en ligne par G. Forde), publié à l’occasion de l’exposition « James Waring » du 11/09/2013 au 12/10/2013 à la Galerie 1900-2000, Paris [« Waring’s job in the mail room at the Time & Life Building at Rockefeller Plaza – an early morning shift that left him the remainder of the day to choreograph, rehearse and teach – supplied some of the materials for his artworks »]
          iii « Dance Does Postal Service », Dance Magazine, op. cit., p. 40, 41 et 62.
          iv James Waring, Sans Titre, 1963, Collage sur carton, 20 x 14 cm, Galerie 1900-2000, Paris.
          v Doris Hering, « Choreography by James Waring, Master Institute April 23 and 24, 1957 », Dance Magazine, vol. 31, n°6, juin 1957, p. 87. [« James Waring has evolved a unique choreographic style. It has the delicately fragmented quality of a collage. And each dancer seems enveloped in an invisible aura whose only other occupant is a far­away voice. The music, the other dancers, the audience, all are on the outside. This imagery is unusual, and it could be moving if Mr. Waring’s esthetic purpose were also apparent (…) As two silhouetted figures glided silently back and forth across the stage (…) we seemed to be witnessing a mysterious rite in some way connected with the birth of movement. But when the music began, the dancers went separate ways, and emotional sterility set in. (…) As though dancing in a soundproof chamber, a girl gyrated intensely while a boy stared out at the audience and puffed his cheeks (…) In Ornaments and in the repeat of Intrada, Mr. Waring reverted to his favorite set of clowns and painted ragamuffins trembling in isolation and finally brought together for a flashing instant »]
          vi James Waring, « Merce Cunningham: Maker of Dances in a Style Eloquentely his Own », Village Voice, 2 janvier 1957, p. 6. [« If Mr. Cunningham’s dances have “stories”, they perhaps take place beyond the scenery out of view of the audience »]
          vii James Waring, Sans Titre, 1962, Collage sur carton, 27,8 x 7,7 cm, Galerie 1900-2000, Paris.
          viii Wayne Koestenbaum, Anatomie de la folle lyrique, trad. de l’anglais (États-Unis) par Laurent Bury, Paris, La Rue Musicale, 2019, p. 106.
          ix Clive Barnes, « Dance: Classy Classicist », New York Times, 13 février 1968 [« inside this avant-garde choreographer, was, as I at times suspected, an unrepentant classicist struggling to get out»]
          x David Vaughan, « Letters from our readers », Dance Magazine, vol. 32, n°6, juin 1958, p. 21.  [Too Literal Critic. The idea that the primary function of dance is to communicate is an invention, surely, of literal-minded critics like Mr. Sorell, who, in his May review of James Waring’s Dances Before the Wall, discusses “movement language” and “sharing experience.” Movement isn’t a language, it is movement. The experience the dancer shares with the audience is the experience of dancing—not something else that happened somewhere else, some other time…There is a kind of dancing in which what matters is what you see, not what it is supposed to mean. In other arts, in painting, in music, the non-eloquent approach is quite respectable by now; but in dancing, in spite of Balanchine, the literary prejudice dies hard. I suspect this is something left over from Puritanism — dancing for its own sake is still considered frivolous, if not indecent, so you must make an honest art form of it by giving it Meaning. Sometimes artists do not try to communicate, they simply create a world . . . Dances Before the Wall was one of the most beautiful, exciting, civilized and life-enhancing dance compositions I have ever been lucky enough to see . . .]
          xi Jill Johnston, « James Waring and company. Henry St. Playhouse, December 7, 1958 », Dance Observer, janvier 1959, p. 10. [«There is vitality and sterility both in all this. And the hand behind it is honest and original, if occasionally a bit preciously perverse»]
          xii Louis Horst, « James Waring and company. Fashion Institute of Technology, December 17, 1960 », Dance Observer, mars 1961, p. 42. [« Peripateia, that went on for over an hour, producing monotony, monotony and more monotony »]
          xiii Eve Kosofsky Sedgwick, Épistémologie du placard (1990), trad. de l’anglais (États-Unis) par Maxime Cervulle, Paris, Éditions Amsterdam, 2008.
          xiv Voir David K. Johnson, The Lavender Scare: The Cold War Persecution of Gays and Lesbians, Chicago: University of Chicago Press, 2006.
          xv Jonathan D. Katz, « John Cage’s Queer Silence; or, How to Avoid Making Matters Worse », GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, vol. 5, n° 2), 1 avril 1999, p. 239. [« The agent of that “coming together of things which were opposed was silence. »]
          xvi James Waring, cité à partir d’une transcription tirée de la lecture « 100 Questions about Dance » enregistrée à la Judson Church en février 1968, Pacifica Radio Archives, Los Angeles, Californie. [« People think of emotion as being violent emotion they look at something and they say “well there’s no emotion in it” it’s because there is emotion but its feeling on a lower level than they are accustom to (…) There is no need to name a feeling or an emotion because they may very well be no name for it, I hardly ever have a feeling I could name »]
          xvii James Waring, « The Paradoxes of James Waring », Dance Magazine, vol. 42, n°11, novembre 1968, p. 64. [« I don’t have a single style. I don’t worry about having a style. Style is a result of the artistic process, and not interesting in itself. What is interesting is process. »]
          xviii Anthea Kraut, Choreographing Copyright: Race, Gender, and Intellectual Property Rights in American Dance, New York: Oxford University Press, 2015.
          xix Clive Barnes, « ‘Northern Lights’ Manhattan Festival Ballet Performs Unusual New Work by James Waring », New York Times, 10 janvier 1967 [« it was an oddly difficult work, and now I find myself prowling around it, trying to find a place to grasp (…) We sink stickily into a semantic sea with our fine distinctions »]
          xx James Waring, « My Work », Ballet Review, vol. 5, n°4, 1975-1976, p. 111. [« My combining in my choreography of such disparate kinds of movement was not understood by most people (…) What was not understood was that I was working to combine these movements in terms of phrases: my movement style of accretion seemed arbitrary to critics and audiences. »]
          xxi David Vaughan, « James Waring: A Rememberance », Performing Arts Journal, vol. 5, n°2, American Theatre: Fission/Fusion 1981, p. 108. [« His collage-like method of making dances »]
          xxii Sally Banes, « James Waring Festival Judson Memorial Church, April 21-30 », Dance Magazine, vol. 52, n°8, aout 1978, p. 31. [« The mixture prevents the dances from falling into anyone category »]
          xxiii James Waring, « 100 Questions about Dance », op.cit., [«critics began to look at every dance as if it was a play, or was literary, or was a story, or was a drama and criticized it on those grounds »]
          xxiv Dick Higgins, « Intermedia », Something Else Newsletter, n°1, février 1966.
          xxv Allen Ginsberg, « James Waring & Co », Village Voice, 17 décembre 1958, p. 7. [« At times impression of an animated Klee painting, miniature idiosyncratic events juxtaposed and moving independently of each other at the same time in one space »]
          xxvi Ibid. [« Things going in different directions simultaneously. Happy. »]

          Pedro Marum Insaciável Ressaca de Dançar

          24 DE OUTUBRO DE 2020

          Foi há 15 anos que organizei a minha primeira festa sem estar sob a alçada de adultos. Uma festa de Halloween com um monte de adolescentes de 16 e 17 anos com as hormonas aos saltos, do sul rural de Portugal, cuja noção de desobediência era fazer cosplay e comer cereais de pequeno-almoço com Malibu em vez de leite. Tinha na grande maioria amigas, e a minha melhor amiga/namorada faria o seu come-out como lésbica no ano seguinte. Para a festa, gravámos alguns CD com seleções ecléticas de eurodance, mellow-cheesy trance, UK trip hop, músicas de compilações que vinham com revistas de tuning que o meu pai comprava e algumas descobertas aleatórias no Soulseek. ATB, Faithless, Paul Oakenfold, Orbital. Independentemente do que se possa dizer do nosso gosto musical, havia sem dúvida uma batida. E nós estávamos sob o seu efeito. Longe de qualquer cultura club convidativa para pessoas queer, tínhamos de organizar as nossas próprias festas. Aqui não me refiro a queer como o gesto político de exploração da sexualidade e do género, mas sim à experiência de crescer com vergonha e a reprimir os próprios desejos sexuais e expressão de género. Nem sequer se falava sobre isso. A festa como pedra filosofal, a transformar a vergonha em comunhão e a pulsão de morte num desastre utópico, sedento de vida. Não me lembro de dançar, mas certamente que dançávamos. Era tímidx mas tinha sede de batidas. Mal sabia eu que festejar era um ensaio premonitório do que acabaria por se tornar um pilar fundamental na minha vida.  

           

          14 DE NOVEMBRO DE 2020

          Hey Steph, acabei de regressar de Portugal. Foi uma experiência agridoce mas importante. Desde a morte da minha amiga que sentia falta de estar com aquelas pessoas. Visitar as minhas origens lembra-me experiências infelizes, mas dá-me algum conforto. O sol e o ar seco do sul, sinto-os como revigorantes e melancólicos. No Algarve, fico com a sensação de estar a viajar no tempo, o que é libertador nos dias que correm. Lembro-me de que tudo se torna eventualmente parte do passado. Imagino que seja difícil estares longe de casa neste momento, mas, mesmo que estivesses aqui, terias de dançar sozinhx. As ruas estão desertas e o vírus causa um pânico que paira sobre nós. A previsão do futuro não me parece auspiciosa. Estamos cansadxs de navegar online num mar de desgraças, do trajeto rotineiro da cama para o trabalho, sem nunca sentirmos uma brisa. Como é que aqueles sem voz praticam atos de dissidência, se não nos é permitido dançar nas ruas?  

          Acordo, faço exercício, estudo alemão online, oiço e toco música, assisto a uma palestra, vejo vídeos no Youtube, porno, leio um livro. Hoje voltei a não sair de casa. O tempo a morder a sua própria cauda. Quero intoxicar-me até ao nirvana. 

           

           

          26 DE NOVEMBRO DE 2020

          A música tem-me acompanhado ao longo da vida. A melhor companhia que poderia imaginar. Durante a minha adolescência, queer e solitária, comecei a ouvir música vorazmente. No caminho para a escola, durante os intervalos, no carro com os meus pais, enquanto dormia. Não necessariamente consciente da sua história, dos géneros ou biografias, tinha acesso a downloads ilimitados sem o risco de ser punidx pela lei ou pela minha consciência ética. Este consumo obsessivo manteve-me a cabeça e os ouvidos ocupados, numa altura em que sentia as minhas relações com outras pessoas e o mundo como insatisfatórias ou hostis. Fim da analepse. Isoladx no meu quarto sob uma pandemia mortal, privadx da abundância de corpos – clubs suados, novelos de carícias ou outros encontros carnais –, os kicks de baixa frequência e as notas agudas das minhas colunas são os principais elementos que me fazem suar e ofegar. A minha própria cúpula bacteriana. Oiço música para viagens erógenas quase solitárias, na companhia de brinquedos sexuais.  

           

          15 DE DEZEMBRO DE 2020

          É difícil escrever sobre o ano que passou. Foi-nos recordado de forma violenta e repetida que a vida é precária e que as nossas condições materiais podem mudar numa fração de segundos. A ilusão de uma vida confortável e alinhada com os astros, de um futuro previsível, foi tomada de assalto. Para algumas pessoas, a complexidade caótica dos acontecimentos resultantes do aparecimento de um novo vírus mortal só pode ser explicada com teorias de complexidade equivalente. No entanto, eventos de igual magnitude acontecem a todo o momento, mas imiscuem-se no tecido da realidade sem que a maioria de nós dê por isso. Mutações genéticas, blocos de matéria a viajar a altas velocidades pelo espaço, uma curva mal dada, a colisão com a pessoa errada. A vida está constantemente a recalibrar-se de catástrofes transformadoras e de possíveis mortes.   

          Torna-se cada vez mais difícil escrever na sequência da morte de uma importante parte de mim. Sinto-me presx numa sucessão sem fim de luto mal ou não-remunerado. Palestras, palestras, grupos de leitura, ensaios, mixes. Nunca soube o que dizer quando me perguntam o que faço. Artista? DJ? Curadorx? Estudante? Entretanto, sinto que nos tornámos de repente historiadorxs. Recitando interminavelmente as nossas próprias mitologias.  

           

          2 DE JANEIRO DE 2021 

          Entre amigxs comentávamos como a pandemia provou de quão poucos bens precisamos realmente para viver. Precisamos de acesso a cuidados de saúde, Segurança Social, direito ao protesto e à reunião. Bens de luxo podem ser atirados pela janela, mas, tal como as personagens das ficções de Octavia Butler1 que atravessam calamidades apocalípticas, vital é estabelecer relações simbióticas de camaradagem, amizade e amor. O papel social das festas queer era, para muitxs, o de organizar encontros, convívio e ajuda mútua, dentro e para além da pista de dança. E agora, Octavia, o que nos resta? Temos de continuar a nossa dança, sem fim. 

           

          12 DE JANEIRO DE 2021

          No outro dia vi uma performance de rua em Kottbusser Tor, mesmo junto ao meu apartamento. Parecia uma personificação sinistra da barata humanoide kafkiana, umx  artista vestidx com sacos de lixo e antenas. Sob um céu cinzento, rastejava no topo da entrada do metro enquanto se ouvia o que soava ser Aphex Twin. Uma pequena multidão pasmava, incerta se entretida ou enojada com a figura. Depois de tantos meses sem ver qualquer performance no espaço público, a imagem permaneceu na minha mente como uma boa representação da atual hauntology de muitxs artistas queer. Criaturas pestilentas que habitam nas fendas desta cidade, fazendo raras aparições, lembrando a todxs que muitxs de nós que ainda aqui estamos, precariamente vivxs, resilientes que nem baratas, causando terror e inspiração. Somos evocações repulsivas de práticas asséticas, agora tidas como ainda mais perigosas, proibidas e desejadas. Em drag, pegajosxs, trashy, suadxs, mutantes anárquicxs, o terror das famílias, dxs piores inimigxs da polícia, sem saber onde começa ou acaba, manifestantes inventivxs, auto-organizadxs, fazendo raves das ruínas. Foi breve, mas aqueceu-me o coração. Não pretendo delirar com a nossa própria miséria poor-nográfica mas, ye, sinto falta das festividades imundas e de dissipar energia numa dança eterna. 

           

           

          Mariana, sinto a tua falta.  

          Bhenji Ra Fadiga da Imaginação

          Fadiga da imaginação, um ponto de partida. 

           

          House of Sle. Dezassete corpos na house, doze children, cinco grandchildren. Eu sou a mother. Sle significa Sisters Liberating Eachother (Manas a Libertarem-se Mutuamente). 

           

           

           

          1. O meu corpo está on. O meu corpo é mais um evento do que um lugar, não está pausado, está a ocorrer, ativo e em continuidade. Um acontecimento, apesar dos cancelamentos e adiamentos, reagendamentos que se repetem, este corpo está a acontecer, faça chuva ou sol ou pandemia, o corpo está on. O corpo comunica e responde, dirige e coleciona. O corpo está a fazer download e ao mesmo tempo está a chegar lá. Quando caí da minha prancha de surf esta manhã, o meu tornozelo levou com todo o meu peso e quando a dor tomou conta de mim, download feito: só são permitidas aterragens suaves. 

           

          1. Tenho estado a olhar para os dedos dos pés das minhas daughters a semana inteira, mas hoje, sábado, ela pede-me para não olhar para os seus pés como se eu não tivesse andado a fazê-lo. Verniz rosa nas unhas do pé, a agarrar-se à vida, a perguntar-se quanto tempo mais aguentará sem precisar de ser retocado. Na Austrália é verão e por isso os dedos dos pés andam à mostra. Setenta por cento das daughters na minha house pintam as unhas dos pés, todas, tirando a Taimania, pintam-nas de branco. Eu também pinto de branco. Branco é a escolha segura, a escolha quenga segura, bonita e que assenta ao género feminino. É a cor das gajas iguais a todas as outras. Que passam. Tenho uma flor dourada nos dedos dos pés, nos dedos grandes, os dedos-mãe. Eu sou a mother.
            Entre os dedos dos pés e os downloads que faço, ando a pensar sobre este conceito de fadiga da imaginação. Tenho vindo a experienciá-lo e agora, este ano, o ano em que se dá nomes às coisas, diagnostico-o. O meu corpo, em toda a sua glória de Virgem turbinada, bombeada para os deuses com experiência e hormonas, deve esperar que volta e meia lá rebente um fusível, o corpo em off, mas ainda assim, para mim, continua a haver um motivo enraizado que vai para lá da mecânica. A imaginação é espacial, é a ocorrência de matéria manifestada pelas ideias de uma outra pessoa. Adrienne Maree Brown fala sobre isto em Pleasure Activism1: “Sinto muitas vezes que estou presa dentro da imaginação de uma outra pessoa e que tenho de ativar a minha própria imaginação para me conseguir libertar.” Antes de se relacionar com a imaginação do corpo dominante, o perigo e os limites da imaginação branca.
            Quando oiço que as minhas sisters se estão a debater com o suicídio, ocorre-me frequentemente esta batalha da imaginação. Quando perco essas girls, penso muitas vezes que sofriam de fadiga da imaginação. Quando quis deixar este mundo, das duas vezes que o tentei fazer, tratou-se de uma incapacidade, de uma falta de visão, de ver o mundo, de imaginar um mundo onde pudesse continuar a existir apesar da visão dominante do meu corpo. E por isso, no que a isto diz respeito, a imaginação é uma corda de segurança, a criatividade é a prática e, apesar de ainda estar a tentar perceber o que se segue, a comunidade e a visão coletiva parecem ser o remédio. 

           

          1. Conheço bem todos os dedos dos pés das minhas 12 crias, até dos boys. Seria capaz de os identificar se fosse preciso. Não é que eu passe muito tempo a olhar para eles, mas reparo neles com mais frequência. Mais do que nas mãos, o que parece uma loucura porque as mãos são o instrumento da diáspora para mulheres como nós. Naaa, para mim são os dedos dos pés. Dizem-me mais, aliás dizem muito. Os dedos dos pés a contarem sempre a história que está por detrás, os dedos dos pés estão escondidos por trás de portas fechadas, mas quando os vemos sabemos exatamente o que está a acontecer. Os dedos da Kilia enrolam-se uns nos outros quando ela está a pensar. Os dedos da Jamaica batem no ar quando ela está contente e a Tashygna parece que os levanta quando se prepara para falar. A Devonne tem uns dedos suaves como as suas mãos e apesar de a Yovanna esconder os seus dedos dos pés, podemos todas imaginá-los como se os víssemos.


            Não é fácil imaginar, é preciso disciplina e prática. Consistência e energia. É fácil cair, desligar e desistir. Há o trabalho de parto e há o nascimento. A possibilidade de praticar a imaginação parece por vezes esmagadora. Quero uma performance feita em equipa, imaginar o mundo como house, visões coletivas que nos ajudem a atravessar períodos instáveis. Se o meu ciclo de vida pode ser imaginado, completado, tipo círculo completo, ser mother e envelhecer, por vocês, pelo outro corpo, então deixem-me entrar nessa visão. Se não consigo ver mais nada, deixem-me mergulhar nessa visão. Se não houver mais possibilidades, temos sempre a imaginação. O corpo está on, estendam o novo chão deste mundo, as girls têm de andar. Só são permitidas aterragens suaves. 

           

           

          Este texto foi escrito nas terras roubadas do povo Djiringanj da Nação Yuin. A autora agradece a todos os anciãos do passado e do presente, assim como à resiliência constante dos cuidadores originais desta terra. Nunca se abdicou da soberania e a Austrália foi e sempre será terra aborígene. 

           

          Traduzido do original inglês por J. M. Vieira Mendes.

           

          Miguel Oliva Teles Daniel Pizamiglio Elegia Porvir

          Em 2019 surge uma ameaça que põe em causa não só cada um de nós mas também aquilo que nos define e entremeia: a relação. Perante um vírus que se propaga usando como veículo os nossos afetos e o âmago do nosso viver em comunidade, controlá-lo – ou viver com ele – é refrear esses mesmos afetos, suprimir essa vivência comunitária, sanitizar a relação. Em tal estado de contingência, além dos entes queridos que partem, das desigualdades que se adensam e da maior precarização das vidas, há ainda uma outra perda: a forma como nos relacionávamos não é mais possível. A pandemia persiste. Mas já vai sendo feita a incómoda pergunta: mesmo que receda, não permanecerá algum deste pudor, algum deste recato, algum deste receio que assombra o nosso viver-junto? Há, por isso, uma perda. E um luto? 

           

          “Se a tristeza admite companhia, revejam as vossas dores contemplando as minhas”i. É Margaret, rainha anciã em Ricardo III, que, sentando-se com as outras rainhas, o diz. Nesta tragédia, Ricardo, cego pelo poder da coroa, distribui morte, dor e traição por todos à sua volta. As dores e as perdas são múltiplas, a violência ininterrupta e o luto – como o que estas rainhas partilham – converte a dor em ira, revolta e vingança. Às feridas abertas reagem com dor, repulsa e agressão. Sentam-se juntas, mas o olhar está virado para dentro de cada uma. Há, tantas vezes, nas tragédias e no mundo, uma tentativa ensimesmada de fechar a ferida, de resgatar uma existência íntegra, impermeável, sustentável apenas por si.  

            

          De facto, a dor e a perda realçam, de forma violenta e abrupta, a nossa vulnerabilidade. Talvez até seja por isso possível, como supõe Judith Butler, “apelar a um nós, porque todos temos alguma noção do que é ter perdido”ii. Mas, perante a perda – e não fazendo a dor útil –, não poderá a perceção desta vulnerabilidade aflorar afinal os laços que nos unem, a nossa interdependência fundamental, a nossa existência em relação? Perante a perda – e não fazendo a dor fútil – não poderá o luto ser uma resposta em que essa vulnerabilidade (diferentemente vivida e distribuída) seja protegida e cuidada? Fazer o luto seria assim ficar na ferida, “insistindo na linha que tem de ser caminhada entre cuidá-la e tentar diminuí-la”. “Procurando uma base para a comunidade nestas condições”ii. Talvez Creonte reconhecesse esta força política quando proibiu, às portas da sua cidade, certas cerimónias de luto. Talvez também por isso não o ouviu Antígona. 

           

          Entre abril e junho de 2020, logo após o primeiro confinamento em Portugal, Daniel Pizamiglio iniciou uma série de encontros. Chamando amigxs, colegxs e conhecidxs, encontrou-se com cada pessoa (no total, vinte e nove) em vários lugares de Lisboa: um estúdio de dança, os jardins arejados da cidade, as suas casas, a calçada de uma rua pouco movimentada e o interior de um carro estacionado. Como espectadores: o rio, os pássaros, o mofo de uma parede ao canto, as crianças num parque. Os intervenientes: Daniel e xs outrxs, cada um abrindo a sua ferida, abrindo-se um ao outro, abrindo o encontroiii. Precisamente quando este era tanto uma ameaça como aquilo que estava ameaçado, o que se pretendia era resgatar os afetos constrangidos pelas medidas sanitárias. Olhando para trás, parecia haver neste convite algo como no de Margaret: ​vem, senta-te comigo, que a tristeza admite, sim, companhia. Uma dissidência como a de Antígona: ​não deixemos esta perda calada, que ela reverbera demasiado grave. E ainda uma outra insistência: no comum, no encontro e no cuidar de uma vulnerabilidade que se entende conjunta.

           

          “Fazer o luto.” É assim que o dizemos, deixando explícito que é um processo. Mas há algo mais nesta formulação: o luto, como vivência de uma perda, não é só um ato, nem meramente um processo psíquico que acontece por si. É um fazimento, um acontecimento que se performa. Desde a Antiguidade até aos nossos dias, mostram-no as carpideiras, derramando todo o seu pathos em choro sobre o corpo do defunto. Pepe Espaliú, artista espanhol que viveu com VIH-SIDA – outra pandemia na qual as perdas são desiguais e na qual o preconceito e o nojo desumanizam tanto as vítimas como as dores dos que sobrevivem – realizou, em 1992, uma performance em que o próprio artista é levado pela rua, sentado nos braços unidos de amigos, conhecidos e demais pessoas. Pepe era assim carregado e cuidado – Car(ry)ing –, a sua perda ressignificada, politizada; os olhos postos na ferida, na sua vulnerabilidade e na de todos os que o carregavam. Um luto liberto do estigma, vivendo a dor de forma aberta e compartida. 

           

          Também para Jacques Derrida o luto é algo que se performa e que nos orienta para o futuro. Segundo o filósofo, fazer o luto não é “trazer o passado à memória”, não é isolar o que perdemos numa cripta fechada, cristalizando o perdido num retrato ao qual voltamos numa rememoração nostálgica, passiva e solipsa. Ao invés, o luto é abrigar em nós, numa cripta de portas e janelas abertas, os traços ou os vestígios do que se perde. É ficarmos num diálogo contínuo com o que remanesce. Numa rememoração afirmativa e para fora, criativa, como um rastro-lastro que nos engaja não com o que passou, mas com o porvir. Ativar esta memória instiga-nos a agir, a falar o que perdemos. Ou a deixar que o que perdemos fale por siiv. Era desta forma que Derrida enlutava a perda de cada amigo, colega e mentor que partia, relendo publicamente os seus textos, retendo os traços das suas vidas e dos seus pensamentos, fazendo deles um novo pensamento-texto-leitura: uma performance-elegiav. 

           

          Nessa série de encontros intitulada “POR FAVOR, OLHAR COMO SE FOSSE A PRIMEIRA E ÚLTIMA VEZ”, o Daniel propunha, como ponto de partida, pensar e ativar um olhar primeiro e último. Ficar nessa estranha contradição duma despedida que se espanta e duma curiosidade que já aceita um fim. O que é uma primeira vez? “Abrir espaço às (im)possibilidades de um outro”? Desconhecer? “Uma aproximação lenta e às escuras”? E a última? Um certo “sentido de agonia: a angústia de uma perda” […] [Apercebermo-nos] a cada momento do que não fica”?vi. A partir do pensamento e ativação deste olhar, seguia-se um exercício em que as mãos exploravam a insistência num toque que se tornara interdito. Em que as extremidades meditavam na tensão entre a distância necessária e uma proximidade que se busca. Em que a polpa dos dedos suportavam, juntas, um vazio.  

           

          No final de cada encontro, o Daniel voltava a casa, sentava-se e contava-me. Como se haviam encontrado aquelas mãos, que tensões as mantinham e as afastavam. Depois, outras vezes só mais tarde, abria o caderno em que anotara impressões, frases, materiais, imagens e hipóteses rascunhadas. Os traços de um encontro. Juntos, agora, encaramos este pensamento-ativação e este esforço das mãos e do olhar como o trabalho da ferida, a performance do luto. Vemos procura e ressignificação, uma insistência no encontro, um sentar juntos. Como se tivessem sido feitas as perguntas: “O que perdemos?” “E o que resta?”. Ativar, ler e sustentar estes restos é continuar o luto. Assim, da memória da experiência, das imagens captadas em vídeovii e dos apontamentos no pequeno caderno surgem estes traços que levantamos juntos. São estas as nossas elegias viradas para o futuro: 

           

           

          O OUTRO É GRAVIDADE A QUEM O CORPO ENTREGA O PESO 

          (com Julián Pacomio) 

           

          NÃO HÁ PROJETO SENÃO ESTE: SUPORTAR E DEIXAR ABERTO 

          (com Alina Ruiz Folini) 

           

          ATENÇÃO MELANCÓLICA: CONTEMPLAR SEM POSSUIR 

          (com Tiago Mansilha) 

           

          AS MÃOS COMO PEDRAS E ENTRE ELAS UM TORNADO 

          (com Ana Rita Teodoro) 

           

          TENTAR TRANSPORTAR O FOGO 

          (com Acauã El_Bandida Sereya) 

           

          NÃO VEJO DIFERENÇA ENTRE UM APERTO DE MÃO E UM POEMA 

          (com Gisela Casimiro) 

           

          RECUPERAR UM FIM É ABRIR O FUTURO 

          (com Paolo Gorgoni) 

           

          PALÍNDROMO: A POTÊNCIA INICIADORA DO FIM 

          (Sílvia Pinto Coelho) 

           

          O TOQUE NÃO DEPENDE DO TOQUE 

          (com Gabriela Giffoni) 

           

          O ESPANTO E O MEDO  

          (com Telma João Santos)  

           

          OS OLHOS DAS MÃOS VAGUEIAM ENTRE O DENTRO E O FORA  

          (com Sónia Baptista)  

           

          RECONHECER A ÚLTIMA VEZ LEVA À PRIMEIRA  

          (com Matheus Martins)  

           

          TATEANDO OS INTERVALOS DO NÃO-SABER  

          (com Liliana Coutinho)  

           

          NO ENCONTRO SURGE A TERCEIRA IMAGEM 

          (com Joana Levi) 

           

          A IDEIA DO FIM NUNCA É COMO NO FIM  

          (com Jessica Guez) 

           

          A ÚLTIMA VEZ NÃO COMO UM EVENTO, MAS COMO UM MISTÉRIO QUE DURA 

          (com Leonardo Mouramateus) 

           

          COMO SE DEIXA UMA LEVE AUSÊNCIA? 

          (com António Alvarenga) 

           

          COMO FABRICAR UM “JAMAIS VU”? 

          (com Isis Andreatta) 

            

          FAZER DA ÚLTIMA VEZ VERBO 

          (com Rafaela Cardeal) 

           

          RECONHECER A SOMBRA DA NOSSA PRESENÇA  

          (com Carlos Manuel Oliveira)   

           

          ACABAR COM A PRESSA E CONSTRUIR A ESCUTA 

          (com Carolina Campos) 

           

          ANSIAMOS QUE FIQUE ANSIAMOS QUE PASSE   

          (com Mauro Soares)  

           

          ENTRE O PRINCÍPIO E O FIM: A EXPERIÊNCIA DA FALÉSIA  

          (com João Fiadeiro) 

           

          NADA VENCE NADA  

          (com André e. Teodósio) 

           

          COMO DEMORAR NO QUE PASSA? 

          (com Felipe Ribeiro) 

           

          MEDITAR GASTANDO O GESTO 

          (com João dos Santos Martins) 

           

          COMO MATAR UM SISTEMA EM NÓS SEM QUE ISSO NOS MATE? 

          (com Fernanda Eugénio) 

           

          A TERNURA ÀS VEZES ULTRAPASSA O MEDO  

          (com Duarte Bénard da Costa) 

           

          ABRIR MÃO E ACOLHER 

          (com Alexandre Pereira) 

           

          i William Shakespeare, Richard III, ed. Rafael Buffel (New Haven: Yale University Press, 2008), tradução livre.
          ii Judith Butler, “Violence, Mourning, Politics”, em Precarious Life (Londres e Nova Iorque: Verso, 2004), tradução livre.
          iii Ver O encontro é uma ferida (excerto da conferência-performance Secalharidade de João Fiadeiro e Fernanda Eugénio), https://ladcor.files.wordpress.com/2013/06/o-encontro-c3a9-uma-ferida.pdf.
          iv Ver Joan Kirkby, “Remembrance of the Future: Derrida on Mourning”, Social Semiotics, 16 (2006): 461-472.
          v Ver Jacques Derrida. The Works of Mourning, ed. Pascale-Anne Brault e Michael Naas (Chicago: University of Chicago Press, 2003), livro que edita o conjunto destas elegias.
          vi Excertos do convite enviado pelo Daniel a cada participante.
          vii Estas imagens foram montadas num filme apresentado em live-streaming no evento Recolher Obrigatório, nos dias 18 e 19 de dezembro de 2020, organizado pelo Teatro do Bairro Alto (Lisboa).

          Micael Ferreira A Primeira Fonética

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          aaaaaaaaabemaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaaaamasaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaaaaaaoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaagestoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaproduçãoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaaadeaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaasentidoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaaaaparaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaaaçõesaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaaadoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaaqueaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaavejoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaalimentaraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaafomeaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaasocialaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaavenhamaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
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          aaaAlbertoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaPimentaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
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          aaaaaaaaaaLuizaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaPachecoaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaAllenaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
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          aaaaaaaaaaGinsbergaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
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          aaaaaaaaaaaaaaaaaaaquiaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
          aaaaaaaaaaaaaaaaaaaumaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
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          aaaaaaaaaaaaaaaaaaadançaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
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          João dos Santos Martins Editorial

          No justice
          no peace
          no future

           

          À Mariana Nobre Vieira

           

          Começo a escrever este editorial enquanto estou preso, em quarentena, num quarto de hotel há onze dias. No mesmo dia em que explodiu uma quantidade inimaginável de nitrato de sódio na Baixa de Beirute, provocando uma devastação sem precedentes. Não era por aqui que queria começar, mas é difícil saber por onde começar. A última edição do Coreia incluía dois artigos que testemunhavam a violência política e policial na revolução civil em curso no Líbano. O jornal foi para imprimir no dia 10 de março de 2020 para ser lançado a 13. Um dia depois, a 11, a Câmara Municipal do Porto cancela os eventos públicos locais e, em poucas horas, as mesmas medidas alastram a todo o país. Fecham os teatros, os museus, as escolas, as bibliotecas, as piscinas, cancela-se o lançamento e, em questão de dias, é declarado o Estado de Emergência. Ninguém sabia o que aí viria, além do imaginário longínquo do alvoroço causado pela pandemia na China e das notícias fatídicas que chegavam de Espanha e Itália.

          Não saber acarreta dois estados de espírito que se confundem. Por um lado, a ansiedade, a impossibilidade de prever, a incapacidade de planear e vislumbrar o futuro. Por outro a expectativa, o desejo, a potência que faz emanar do presente a possibilidade e a utopia. Quem pôde fechou-se em casa, na incógnita do dia depois de amanhã. Quem não pôde, continuou o rumo da sua vida. Xs trabalhadorxs mais reprimidos pelo sistema capitalista tornaram-se essenciais. Xs invisíveis e inviabilizadxs, empregadxs de limpeza, varredores de rua, ‘caixas’ de supermercado, cantoneirxs, trolhas, cuidadorxs formais e informais, quem se ocupa da cidade e dos vulneráveis para que a cidade continue a funcionar sem que se dê por isso, não puderam ficar em casa. A partir do filtro do “essencial”, descobrimos que todas as atividades que nos implicavam, consumíamos e consumiam, eram “não essenciais”.

          Quando, em 1969, a artista judia norte-americana Mierle Laderman Ukeles propõe como exposição uma ‘Arte de Manutenção’ trazia para o discurso artístico a necessidade de cuidar do pessoal, do social e do planeta. Para Laderman Ukeles, cujo manifesto “CUIDAR” aqui publicamos em português pela primeira vez, a proposta não é moralizar sobre esses cuidados. É, sobretudo, tornar visível o invisível. O trabalho tão indissociável da vida que deixa de o ser quando vitimado pela capitalização da organização da vida em torno da reprodutibilidade. Sobre o seu legado e o que dá que pensar hoje do ponto de vista do ecofeminismo e da luta de classes contemporânea escreve a historiadora de arte Elisabeth Lebovici, reconectando a obra inicial de Laderman Ukeles com o trabalho artístico e comunitário que desenvolve, desde os anos 1970, com as equipas sanitárias da cidade de Nova Iorque. Um trabalho igualmente invisível que acontece nos meandros que orbitam as instituições de arte e que se ocupa em cuidar do dia a dia de milhões de pessoas.

          O dia a dia nunca terá sido tão vivido como neste momento incerto em que cada dia é só mesmo um dia de cada vez. Do registo desse presente diarístico, publicamos uma série de posts poéticos da cantautora Lula Pena que coincidem com a série de eventos políticos e sociais que acompanharam a vida pública portuguesa, vista de dentro de casa. Em paralelo, o coreógrafo e bailarino Henrique Furtado escreve um diário de quarentena que agrega no seu todo questões sobre o estatuto do artista independente na cena da dança europeia, e de todas as contradições que os tempos auguram perante a inversão da economia e da ecologia social, quando o ganha-pão da performance não é uma certeza.

          Desde há décadas que uma das questões centrais na esfera dos processos coreográficos coletivos é a ideia de ‘como estar junto’. A sociabilidade da dança enquanto prática comunitária faz com que os artistas se procurem nessa ambição, criando modelos que replicam relações e que levam a imaginar outras formas de reunião e de colaboração. Desbloquear a distância entre os corpos e os espartilhos do dia a dia passa muitas vezes pela sua fusão, pela sua manipulação, pela quebra de barreiras, pela nudez, pela proximidade, pela sensibilidade, pela impertinência. É uma prática transversal à dança e que qualquer bailarinx ou espectadorx experiencia. Partindo da sua experiência de assistir à peça de Daniel Pizamiglio, PRESTE ATENÇÃO EM TUDO A PARTIR DE AGORA, e da sua atividade como médico que tem vivido na pele e nos hospitais a crise da Covid-19, Miguel Teles escreve sobre as relações marcadas pela ideia de imunidade. E retira dessas observações a contradição que o corpo de um bailarino encerra num momento em que o corpo é o agente da transmissão virulenta.

          Numa entrevista a Félix González-Torres, vítima da crise da SIDA nos EUA, o artista cubano dizia que queria “ser aquele que se parece com outra coisa para se infiltrar, a fim de funcionar como um vírus”. Continuava: “O vírus é o nosso pior inimigo, mas também deve ser o nosso modelo […] para que nos possamos colar às instituições que sempre existirão […]. Se estivermos anexados a elas como um vírus, replicaremos juntos com elas.”i

          O imponderável como única certeza fez com que um grupo de artistas das mais diversas áreas se organizasse num movimento solidário de apoio de emergência a agentes das artes vítimas da falta de proteção social. Essa comunhão na desgraça viu-se transformada num movimento político de relevância, com capacidade para agregar sindicatos e estruturas associativas, e estabelecer uma estratégia para denunciar a precariedade da classe artística e reivindicar os seus direitos laborais. Desse movimento, denominado Ação Cooperativista, publicamos um testemunho que denota a interseccionalidade das suas causas e ambições, prova de que, num momento em que é impossível estar-se junto, foi possível agregar uma comunidade e fortalecê-la, através de uma noção de inclusividade e justiça.

          Óbvio é que a metáfora do vírus tanto serve para o bem como para o mal. E que tanto os movimentos políticos progressistas que renovam a esperança por um mundo mais justo por vir, como os da violência, da marginalização, da discriminação, que anseiam o retrocesso (se não pelo menos o status quo), têm uma capacidade exponencial simétrica. O ator negro Bruno Candé foi brutalmente assassinado por um supremacista branco com uma arma da guerra colonial que guardava em casa há mais de quarenta e cinco anos. Este evento projetou, a partir do sentimento do intolerável, a concretização de um dos maiores movimentos antirracistas de sempre em Portugal, replicando a indignação de outros eventos e gatilhos locais e internacionais. Melissa Rodrigues, artista e investigadora, é ativista do movimento antirracista e foi recentemente ameaçada por um grupo extremista neonazi português por denunciar a violência sistémica que perpetua o racismo em Portugal. Meses antes, a artista desenvolvera uma performance cujo processo, em quarentena, fora testemunhando os movimentos de insurreição antirracista. Resultado disso chega-nos um texto-manifesto com a exigência de um futuro de emancipação coletiva no reconhecimento das chagas do colonialismo.

          É necessário mudar as instituições para que a sociedade as acompanhe. As duas coisas têm necessariamente de acontecer e na maioria das vezes não acontecem em simultâneo. É por isso que a reprodução do vírus é tão essencial. É preciso continuarmos a reproduzirmo-nos com as instituições, não só para as transformar. Mas para mudar com elas. É de uma experiência como esta, de reclusão e resistência institucional, que nos fala o curador Miguel Wandschneider em conversa com Christophe Wavelet a propósito do novo lugar que irá abrir em Lisboa em outubro, Parterre — uma livraria e um projeto expositivo independente, amadrinhado pela artista Ana Jotta. Nesta troca, discute-se sobre o condicionalismo das instituições e das tutelas, o domínio das tendências, sobre o fazer projetos porque se acredita neles e porque se creem necessários, sobre ética profissional e a forma como a insistência do desejo pode tornar a potência em realidade.

          Na sequência de textos-manifestos-testemunhos vários artistas escrevem-nos a partir dos posicionamentos do seu corpo de trabalho. Volmir Cordeiro rejeita por princípio a ideia de propriedade, apropriando-se do impróprio, da margem, para reclamar um ex-corpo que procura legitimidade para ir comer ao corpo dos outros. Diana Niepce fala de um processo de experiência do corpo através da sua própria escuta, em contraposição à adequação à imagem idealizada do corpo na dança. A artista sul-coreana Min Kyoung Lee guia-nos pela sua performance de longa duração em que durante dois anos da sua vida buscou a conquista de iluminação espiritual. São três olhares sobre o corpo e a sua imanência enquanto sujeitos políticos implicados pela agência no mundo. E é com essa consciência política que, num contexto em que a coexistência do corpo na sociedade está em risco, abrimos esta edição com um texto reivindicativo do reconhecimento pelo Estado português das práticas da dança contemporânea que se veem cada vez mais condenadas à efemeridade e ao desaparecimento. Numa iniciativa coletiva da qual fazem parte três dos principais agentes da denominada Nova Dança Portuguesa — Vera Mantero, João Fiadeiro e Francisco Camacho —, a investigadora Liliana Coutinho e eu próprio, aqui se lançam as premissas de uma reflexão que se quer abrir a todos os que celebram a dança e a performance como vitais ao questionamento do corpo na sociedade. É necessária uma iniciativa estatal de salvaguarda do património e de garantia da prosperidade das práticas coreográficas contemporâneas no nosso país. Só assim, congregando um movimento social de emancipação, de luta por direitos e pela inclusão, poderão os portugueses ter um corpo.


          i “Portraits of Artists”, Museum in Progress concebido por Peter Kogler, Viena, março de 1994, consultado em https://www.mip.at/attachments/169. Tradução livre.

          Vera Mantero João Fiadeiro Francisco Camacho João dos Santos Martins Liliana Coutinho Por um Centro Nacional para a Dança Contemporânea em Portugal

          Por um Centro Nacional para a Dança Contemporânea em Portugal i

           

          Introdução

          Este documento foi elaborado a partir de correspondência mantida com o Ministério da Cultura durante o ano de 2019, na preparação (e na sequência) de uma reunião com a ministra Graça Fonseca ocorrida a 11 de Julho de 2019. A intenção inicial foi defender as ideias-chave deste documento junto do Governo, advogando ainda a sua inscrição no programa do Partido Socialista para as eleições que então se aproximavam.

          Não só esse objectivo saiu gorado como a única menção que a dança contemporânea obteve no programa eleitoral se resumiu a uma curtíssima referência sobre “formas organizadas de experimentação de música e dança” nos Estúdios Victor Córdon da Companhia Nacional de Bailado. É uma frase que nos escapa (na formulação) e desconcerta (na associação entre dança e música), mas é sobretudo reveladora da forma como a dança contemporânea, aos olhos do poder, é ainda subsidiária e dependente do “bailado”.

          Não é razoável o Estado continuar a ter o ballet como único referente ao nível dos grandes investimentos, como se nada se tivesse passado entretanto na história desta forma de arte no nosso país. A dança contemporânea tem de ser tratada pelo Estado com o mesmo grau de atenção, cuidado, interesse e recursos que coloca nas outras áreas artísticas contemporâneas. O investimento que se faz na dança via Companhia Nacional de Bailado não resolve essa disparidade. Antes pelo contrário: a disparidade aumenta na proporção exacta do crescimento e projecção da dança contemporânea portuguesa.

          Isto é algo que muitos responsáveis pela pasta da Cultura ainda não perceberam, ao defenderem que o Estado já cumpre o seu papel de apoio à dança através do investimento que faz na Companhia Nacional de Bailado. É um facto que esta instituição é uma estrutura de iniciativa estatal que tem a dança como objecto. Mas por ser uma “companhia” (com elenco fixo) de “bailado” (associada sobretudo à dança clássica ou neo-clássica), não representa mais de três décadas de intensa produção artística da nova dança e da dança contemporânea portuguesas.

          Aliás, a ideia de que a utilização do corpo como instrumento de trabalho nos torna automaticamente parte de uma mesma “categoria” representa uma espécie de “equívoco original” que dificulta em muito a definição de políticas culturais que se adequem à nossa especificidade. Muitos dos protagonistas da dança contemporânea em Portugal estarão mais próximos — do ponto de vista da partilha de conceitos, questões e métodos — de práticas que vêm das artes visuais, da música contemporânea, do cinema ou da literatura do que da dança clássica ou neo-clássica. E não estamos com isto a renegar a herança de movimentos que nos precederam. Estamos a reivindicar que a dança contemporânea tem de ser reconhecida, através de um investimento inequívoco, por parte do Estado. Algo que não acontece neste momento.

          Para combater essa invisibilidade (e insensibilidade) crónica do Estado em relação à dança contemporânea, este posicionamento torna-se ainda mais urgente.

           

          Premissas

          Por considerarmos haver uma disparidade de investimento por parte do Estado em infra-estruturas ligadas à dança contemporânea, pensamos ter chegado o momento de o mesmo colmatar esta lacuna e dar início à construção de uma iniciativa de escala nacional, em articulação com todos os agentes directamente ligados a esta área (autarquias, ministérios, fundações, etc.), que tenha em consideração a linguagem e herança tão singular da dança contemporânea no panorama das artes, quer a nível nacional quer internacional.

          Esta falta é ainda mais gritante quando comparamos o investimento feito na dança contemporânea com aquele que é feito nas demais manifestações contemporâneas de outras áreas artísticas. Com efeito, ao contrário do teatro, que conta com dois Teatros Nacionais (que neste momento centram grande parte da sua programação na dramaturgia e encenação contemporâneas); da música, que tem a Casa da Música com um foco transversal quer em termos de épocas como de géneros; ou das artes visuais contemporâneas, que têm o Museu Nacional de Arte Contemporânea e diversos outros museus do Estado ou com a sua participação directa; a dança contemporânea não conta com qualquer estrutura, instituição ou espaço que se ocupe e preocupe com o seu legado, a sua memória futura e, sobretudo, a sua produção presente.

          Essa falta de investimento não reflecte a influência, a riqueza e a complexidade do movimento da dança que emergiu em Portugal no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990 e que teve a denominação inicial de Nova Dança Portuguesa (herdeira dos movimentos análogos Franceses e Belgas, da dança-teatro Alemã e do pós-modernismo Norte-Americano).

           

          Missão

          O “Centro Nacional para a Dança Contemporânea” deve ser um projecto de desígnio nacional, pensado de forma estruturada como um projecto de futuro. Deve ser construído com (muitos) pés e (muitas) cabeça(s) e por isso deve ser objecto de trabalho de uma comissão de estudo, ou similar, que apresente uma proposta ao Ministério da Cultura. Esta terá necessariamente de ter a contribuição da comunidade da dança contemporânea na sua construção e, como em iniciativas congéneres europeias, deve ser alvo de concurso para o projecto da sua direcção, devendo ter a sua missão desenhada tendo em conta objectivos fundamentais como:

          — reflectir a riqueza e a complexidade do movimento que emergiu em Portugal no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990, criando olhar e consciência sobre a dança contemporânea, tanto histórica como em torno da actualidade;
          — incentivar e promover o pensamento, o questionamento e a reflexão em torno da forma de arte que, no nosso país, mais intensamente questiona o corpo e o seu lugar na sociedade;
          — promover o estudo e a investigação da diversidade das práticas e métodos da dança contemporânea e a sua transmissão;
          — criar e proporcionar espaços de trabalho em condições condignas e compatíveis com as necessidades físicas da prática;
          — instigar uma dinâmica atenta à experimentação e às questões contemporâneas emergentes, privilegiando a transdisciplinaridade, modos de organização inclusivos e a transversalidade às várias gerações;
          — promover uma prática de edição permanente através da publicação de originais e de traduções em português de obras pré-existentes, ensaios académicos, livros de autor, documentários, registos de espectáculos, entrevistas, etc.;
          — construir e preservar um centro de documentação próprio com biblioteca actualizada, e acolher e preservar espólios de artistas que se dedicam às práticas coreográficas.

           

          Espaço

          É fundamental que o lugar onde se venha a alojar o “Centro Nacional para a Dança Contemporânea” tenha as condições necessárias (e condignas) para a criação e produção em dança contemporânea; para o arquivo e reactivação da memória em torno do património acumulado nesta área em Portugal desde há mais de 30 anos; para ciclos/colóquios/debates que criem ligações e sinergias entre profissionais, e entre profissionais e públicos; para o incentivo à dança na sociedade em geral (dança social, tão necessária e tão negligenciada); enfim, para a promoção teórica e prática de uma consciência em torno do corpo, do espaço e do tempo, e do que isso implica em termos de uma compreensão de si, de nós e do mundo. Em suma, um pólo que congregue, estimule, divulgue, crie sinergias e parcerias, valorize, faça ver e conhecer, inscreva a dança contemporânea no território nacional e na sua realidade artística e cultural.

          Não há um modelo concreto da forma que deveria tomar uma estrutura deste género, até porque — tal como o seu nome — deve resultar de um diálogo alargado à comunidade de artistas, especialistas, técnicos, etc. Mas modelos como o Centre National de la Danse, em Paris, ou as Fábricas de Creación, em Barcelona, são iniciativas que consideramos de referência para um projecto desta natureza, seja ele centralizado ou não.

          A ideia em Portugal não é nova: Rui Horta começou por chamar Centro Coreográfico ao Espaço do Tempo em Montemor-o-Novo e já teve um projecto para um centro coreográfico no Príncipe Real, em Lisboa; Paulo Ribeiro coordena o projecto de uma Casa da Dança em Almada; e o Teatro Rivoli, dirigido por Tiago Guedes no Porto, é um verdadeiro ‘Teatro para a Dança’ com o sucesso que se lhe conhece, para citar apenas alguns exemplos de maior amplitude.
          Mas, por muito mérito que tenham (e durante muito tempo foi via iniciativas individuais que se foi construindo o tecido artístico actual), a dança contemporânea atingiu uma maturidade que já não pode depender de projectos de autor que terminam quando esses mesmos autores se retiram dos seus cargos. É necessário um projecto de iniciativa estatal, robusto e de futuro, que seja sustentável, que se prolongue no tempo e dê frutos.

           

          Conclusão

          A disciplina da dança já sofre bastante com o carácter efémero da sua actividade. Se a sua existência e desenvolvimento depender exclusivamente dos apoios concursais circunscritos no tempo (também eles efémeros, erráticos e insuficientes) que visam responder a propostas e iniciativas pontuais, sem qualquer obrigação (ou possibilidade) de se pensar a médio e longo prazo (tanto na direcção do futuro como na direcção do passado), a dança contemporânea tenderá a fragilizar-se, a dispersar-se e a sua inscrição, como se tem verificado até aqui, ficará refém da volatilidade dos ciclos democráticos.

          Está na hora de a dança contemporânea ter um lugar à altura da sua história.


          i Percebemos que é uma contradição de termos falar-se, num texto como este, de “Centro” e de “Nacional” (e mesmo de “Dança” e até de “Contemporânea”). São palavras extremamente carregadas e que podem representar o contrário do que defendemos. Os centros são obsoletos, e a dança quer-se expandida e internacional. Mas é necessário colocarmo-nos, de forma inequívoca, lado a lado com outras instituições “nacionais” que pretendemos como congéneres. Ou seja, o nome, neste contexto, serve sobretudo para chamar a atenção do Estado (numa linguagem que eles entendem) para aquilo que está em jogo. Não obstante, a primeira missão de um qualquer grupo de trabalho que terá a seu cargo a implementação de um projeto desta natureza será pensar o seu nome.

          Ação Cooperativista Lutamos pela mudança e pela liberdade: esta é a luta da Cultura

          Lutamos pela mudança e pela liberdade: esta é a luta da cultura

           

          Penso que os movimentos, os movimentos feministas e outros, se tornam verdadeiramente poderosos quando começam a afetar a visão e a perspetiva das pessoas que não se identificam forçosamente com eles. [Angela Davis, A Liberdade é uma Luta Constante]

          Nada está conquistado. Antes mesmo da pandemia nada estava garantido – no que diz respeito a matérias elementares de justiça social, de liberdade e de direitos fundamentais de cada pessoa. A Cultura como direito essencial e dever do Estado, salvaguardado na Constituição da República Portuguesa, estava já em situação de calamidade. A crise de saúde pública que desencadeou uma crise económica só veio dar mais visibilidade à vergonhosa inação do Governo português nesta matéria. Foi neste contexto, e neste espírito, que a Ação Cooperativista nasceu em abril de 2020.
          Quando assistimos ao ressurgimento de políticas de ódio , torna-se evidente a presença da violência, física e psicológica, no quotidiano, como ameaça do retrocesso civilizacional que atualmente enfrentamos. Quando lutamos pela Cultura e pelas Artes estamos a lutar por uma ideia de sociedade mais solidária, justa, honesta, empática e humana.
          A Cultura e as Artes são um território de pertença de uma causa fundadora que urge defender, em nome do respeito por toda e cada pessoa e em nome de uma sociedade em que queiramos, e nos seja permitido, com dignidade, liberdade e respeito pela outra individualidade, viver. Que estes princípios fossem tomados como prioridade por qualquer Governo seria uma expetativa elementar. Infelizmente não é isso que constatamos. E temos consciência do perigo permanente de dissolução das linhas de fronteira entre a desconsideração da Cultura e das Artes e a sua instrumentalização enquanto armas de propaganda e entretenimento políticas.

          Angela Davis interroga o que podem, hoje em dia, os movimentos conquistar. É urgente despertar a consciência de que, tal como nas décadas de 1960 e 1970, os movimentos de massas podem, de facto, gerar uma mudança sistémica. Foi com essa convicção que lançámos a petição “Subsídio Vitalício para a família de Bruno Candé Marques”. Importa o facto de Bruno Candé ser ator. Importa a revolta perante o o horror de um assassinato gerado por uma mentalidade racista. “A petição, para além da reivindicação de uma elementar reparação de justiça social de salvaguarda dos recursos mínimos de subsistência da família de Bruno Candé, é também uma forma de manifestação de repúdio inequívoco a qualquer ato de discriminação.”
          Nos anos de que fala Angela Davis, as conquistas passaram pela aprovação de leis fundamentais, como a Lei dos Direitos Civis ou a Lei do Direito de Voto, que sublinha: “Nada disso aconteceu porque um presidente deu passos extraordinários. Aconteceu porque as pessoas se manifestaram e se organizaram.” É essa a nossa obrigação: não ficar passivamente à espera de atitudes de quem governa, que diz que nos representa, porque é provável que, em muitos casos, a defesa dos nossos direitos não seja prioritária.

          Estamos num momento-chave e muito delicado. O tempo é de ação cooperartivista [sic] para salvaguardar a conquista de liberdades e direitos das últimas décadas como a não discriminação — em razão do sexo, credo ou cor da pele —, o direito elementar e constitucional à habitação, a garantia da manutenção da justiça social, onde a distribuição dos bens essenciais por todas as pessoas seja assegurada, a par de uma diminuição das desigualdades sociais e de uma mudança de paradigma relativamente às alterações climáticas.
          A luta da Cultura e das Artes está profundamente ligada a todas estas esferas, que constituem a vida em sociedade e pensam o futuro a partir do presente. Por isso, o que nos mobiliza é uma mudança de mentalidades, na qual a solidariedade e o diálogo franco com lugar ao contraditório e à diferença coexistam. É no reconhecimento e valorização desse ser único que somos e no permanente exercício de nos tentarmos encontrar, em conjunto, na nossa singularidade e diferença, que a Ação Cooperativista tem vivido, consciente da permanente aprendizagem do desconhecido e da imensidão das questões de fundo que “ainda” não domina. E, semana após semana, experimenta o exercício da partilha e da luta não hierarquizada.
          Talvez a nossa maior sabedoria provenha precisamente do tecido orgânico frágil que nos compõe, que se coloca sempre num lugar de profunda vulnerabilidade e exposição ao erro, porque esse é o lugar da permanente interrogação. Também nesse sentido, afirmamos a fundamental importância da arte, no seu estado íntimo de prática experimental, de um humanismo irredutível.

          Quando nos mobilizamos pela Cultura, estamos a mobilizar-nos por um todo que a transcende.
          Quando resolvemos colocar as redes sociais a branco, queríamos defender esse direito à Cultura fundador da cidadania que a Constituição portuguesa, de modo extraordinário e possivelmente inédito no mundo, instituiu desde a sua primeira redação, em 1822.
          Quando nos propusemos intermediar o diálogo entre várias estruturas formais representativas do setor (sindicatos, associações, cooperativas, grupos informais), o que levou ao surgimento do manifesto #unidospelopresenteefuturodaculturaemportugal, guiou-nos o propósito de em “união” defendermos esta causa.
          Quando, mais tarde, viralizámos as redes com fotos de profissionais das artes, umas pessoas conhecidas e muitas mais anónimas, com o #unidospelopresenteefuturodaculturaemportugal, o princípio orientador foi o mesmo.
          Quando afirmámos o “Pacto de Compromisso para o Futuro, do Governo com a Sociedade Civil”, o repto foi no mesmo sentido. “Todas as pessoas têm o direito e o dever de serem agentes de mudança: mais solidárias e menos individualistas. É urgente lutarmos contra a desigualdade social. A Ação Cooperativista compromete-se com esses princípios e vem, a 25 de maio de 2020, propor um pacto ao Governo para com a Sociedade Civil. Consideramos que vivemos um momento inédito de fragilidade, precariedade agravada e incerteza a nível nacional, que muito afetou as pessoas menos contempladas pela proteção social: quem tem uma atividade profissional independente.”

          Neste verão quente em que, em cima da catástrofe de saúde pública e de crise económica, vivemos a calamidade de um país que arde, achámos de mau gosto um programa lançado pelo Ministério da Cultura com o nome “Não brinques com o fogo”. Ainda sorrimos a pensar que seria um ato de guerrilha criativa, com humor, que visava o gabinete de Graça Fonseca. Afinal revelou-se real. Já tínhamos alinhado contra o perfil de ministra da Cultura, que descobriu que gostava de programar e inventou um tal de TV-Fest. A recusa de comentar a calamidade em que vivem as pessoas que trabalham na Cultura e nas Artes e convidar jornalistas para um “drink de fim de tarde” no final de julho atinge um grau de distanciamento inadmissível. Não há sentido de humor que resista.
          Não aceitamos as comunicações públicas de valores disponibilizados para a Cultura e para as Artes, que se sucedem, numa prática vã e descuidada com que se aprovam muitas leis no Parlamento – sem a salvaguarda dos mecanismos que garantam, com transparência, a aplicação correta do que é propagado.
          Existimos já num tempo que é diferente. Surgimos com a pandemia, em confinamento e em vida quotidiana online, numa sujeição pela intermediação radical de um ecrã de computador ou de telemóvel. Mas esta condicionante também nos abriu um novo espaço de encontro. Sabemos que a missão a que nos propusemos não terminará tão cedo, que para além das questões imediatas que nos levaram a agir, há muitas outras em que queremos tomar posição.
          Na Ação Cooperativista somos de vários pontos do país, de várias áreas artísticas (escusado será dizer que repudiamos qualquer atividade fundada no sofrimento animal), das mais variadas sensibilidades políticas, (exceção clara para políticas de ódio e intolerância, que incitam à violência e discriminação contra a diversidade humana), sem filiações partidárias, somos de vários géneros (somos mais mulheres, curiosamente, e gostávamos de ter mais diversidade na representação das identidades de género), somos de várias etnias e origens geográficas. Em tudo isto que somos, gostávamos de ter ainda mais diversidade na presença dessa pluralidade. Há um longo caminho para percorrer, já somos bastantes a percorrê-lo em união, mas, como dizia Zeca Afonso, é sempre bem-vinda a pessoa que vier por bem.

           

          Texto elaborado por (ordem alfabética): Ainhoa Vidal, Ana Borralho, Ana Rocha, Bruno Alexandre, Bruno Rodrigues, Carlota Lagido, Catarina Requeijo, Claudia Galhós, Filipa Francisco, Filipe Baracho, Joana Castro, Léa Prisca Lopez, Marta Jardim, Marta Silva, Mónica Talina, Nuno Labau, Pedro Gonçalves, Renan Oliveira, Rita GT, Ruy Malheiro, Sílvia Real, Susana Domingos Gaspar, Teresa Coutinho.

           

          Nota: Este texto foi escrito ao abrigo da Linguagem Neutra de género.

          Melissa Rodrigues CORONAS IN THE SKY, Not a Manifesto! um ensaio sobre Afrofuturismo e Libertação

          Estar em residência artística no meio de uma pandemia é um delírio criativo e uma tentativa constante de (re)conexão com a realidade envolvente.
          Lá fora o mundo gira. A próxima grande crise aproxima-se silenciosa e cruel devastando vidas já antes marcadas pela desigualdade racial, de género, social e económica.
          Lá fora há silêncio e o som das sirenes molda o espaço outrora habitado por uma cidade.i

           

          Há algum tempo – talvez tenha sido ontem – alguém escreveu Vivemos Tempos Estranhos, outrxs vaticinaram Vivemos Tempos Perigosos, académicxs, curadorxs, programadorxs, artistas, pesquisadorxs de todas as áreas debruçavam-se sobre a singularidade dos nossos tempos, sobre o perigo de um retrocesso coletivo, profetizava-se uma ideia de futuro hipotecado, distópico, enquanto as praças se enchiam de corpos vibrantes em resistência, o lugar de fala era reclamado, as ruas eram nossas, a assembleia a casa, aquilombávamo-nos. Afinal era hoje.
          A inquietação feita grito preso na garganta liberta-se no mesmo instante que o ar é expirado… Quem tem medo de quem?

           

          Falemos de 2020… Cancelamentos em torrente, a incerteza viva e latente nos rostos familiares que nos observam atentamente do outro lado do ecrã, o não-futuro, o desamparo, a vida em suspenso, o vírus que afinal não é democrático — que nunca fora. Falemos dos corpos que tombam, da violência não filtrada no feed de notícias, do ódio aberrante que escorre das caixas de comentários das redes sociais, falemos de Cláudia Simões, Breonna Taylor, Luís Giovanni, Ahmaud Arbery, falemos de Miguel Otávio Santana da Silva, João Pedro, Guilherme Silva Guedes.
          George Floyd e Bruno Candé.
          Falemos da História. O silêncio cúmplice complacente mata.
          A negação do óbvio não o faz desaparecer, apenas o invisibiliza e legitima a violência simbólica, epistémica e estrutural sobre os corpos construídos e imaginados como ‘o outro’. O padrão é o mesmo, o ponto de partida mantém-se, o sujeito branco como norma, medida e referência de análise e pensamento do mundo. O Ocidente como o mundo.
          Falemos de racismo.
          A quem convém a falácia de um país não-racista? A quem ainda convém uma História seletiva? E a quem convém o discurso de um país multicultural?
          Falemos sobre branquitude.
          Olhemo-nos ao espelho. Analisemos as nossas redes de afinidades, amizade e trabalho.
          Blackout Tuesday. O quadrado negro. A comoção seletiva, enquanto as estruturas de poder se perpetuam.
          A diferença entre aliados e cúmplices é abismal. O lugar de escuta não é compreendido. A aliança torna-se num exercício performativo de poder e protagonismo. Cansaço e repetição.
          A violência continua, o racismo é negado ou espetacularizado até à exaustão. O delírio é coletivo, branqueia-se a História, glorifica-se o agressor, inventam-se polémicas, aponta-se o dedo à vítima, descredibiliza-se a luta dxs sujeitxs políticxs racializadxs pela inscrição da sua existência na História. Repetição e cansaço.
          Não é ignorância, é o privilégio de não ter de saber. É preciso saber a quem dar a mão.
          A resistência desenha-se a cada fôlego, a cada gesto, é coletiva de base, efetiva-se pelo ato primordial do cuidar, pelo (re)conhecimento da História, da ancestralidade. A resistência é antiga e vem de longe como os nossos passos.

           

          See you Yesterday. Coroas ao alto!

           

          Odôyá
          Iemanjá

          Sonhei que me afogava,
          mais uma vez
          Sonhei que me afogava
          num mar de chamas
          The Old Ship of Zion
          ainda ouço os cânticos
          Não consigo respirar
          A água alcança-me os pulmões
          Não consigo respirar
          Lembras-te do massacre de Zong?
          E de São José-Paquete de África?
          Os corpos que enchem comboios
          e autocarros
          em tempos de quarentena
          são os mesmos que enchiam os navios negreiros
          as plantações
          são os mesmos corpos que limpam a porcaria do mundo
          É o corpo da minha mãe
          do meu pai
          Não consigo respirar
          Contra o esquecimento
          A contra-memória
          Onde figuram na tua História
          as mulheres e os homens
          que combateram pela liberdade?
          pela independência?
          pela autoderminação
          dos seus territórios ocupados
          contra o teu colonialismo?
          a quem interessa um discurso único
          bacoco, datado
          de glorificação e branqueamento?
          Tenho a memória de uma imagem
          de um soldado
          que pontapeia uma cabeça decapitada
          de um homem negro
          ”Estamos a jogar futebol” disse
          enquanto se riam
          Não consigo respirar
          Desvanece-se a noção de tempo e espaço
          Não há nada
          Silêncio
          O eterno vazio
          Le fond d’air est rouge
          E a imensidão é bela e negra
          Como a tua pele
          Angst essen Seele Auf
          biopolítica, necropolítica
          Sistemas de controlo
          Vigilância
          Destruição
          E repete
          É tudo sobre Poder

          Tenho saudades do tempo em que era bicho
          Estou demasiado cansada de morrer
          não morro mais
          Não és de cá, pois não?
          Dark Matter Moving at the Speed of Light
          Oxalá

          Future and space are no longer a foreign concept, but a way of life
          alastra-se como bolor
          apropria-se
          invade e domina
          o teu nome é doença
          podridão, pestilência
          chaga
          violência
          é o teu nome
          eugenia
          fragilidade branca

          mais de 12 milhões
          e falta contar-nos
          corpos escravizados
          amordaçados
          marcados a ferro
          tens sangue nas tuas mãos
          repetição, repetição, repetição
          ainda sinto o fedor
          as larvas
          a apoderarem-se da carne
          podre.
          Queda e
          decadência
          desumanização
          é o teu nome
          são sempre os mesmos corpos a morrer
          o vírus
          o outro
          o estrangeiro
          a anormalidade
          o fruto estranho

           

          Ano passado eu morri
          este ano
          Eu não morro

          Não permitiremos que nos apaguem
          que nos eliminem
          Estamos aqui
          Os nossos caminhos são antigos
          Somos organismos vivos
          vibrantes
          Resistimos
          como ontem
          e desde o início dos tempos
          Nossos passos vêm de longe
          Repetição e Diferença
          O algoritmo foi alterado
          Eles combinaram de nos matar,
          nós combinamos de não morrer

           

          O algoritmo foi alterado
          Sou o amanhã
          O depois, o devir
          A potência e a semente selvagem
          A floresta nua
          A torrente de sangue
          A serpente
          Sou o teu medo
          morte e destruição
          sim, sou o futuro
          depois de ti
          a evolução da espécie
          o amanhã
          a matéria transcendental
          a máquina perfeita
          a criação divina
          here we are now
          e viemos para ficar
          seremos resistência
          a voz que não se silencia
          o rosto do amanhã
          a fome, o livro, a cantina
          a raiva a crescer nos dentes
          o grito de revolta
          seremos a alegria e a primavera solar
          orgulho e cosmos
          filhas do fogo, da terra
          dos ventos e das águas
          apontamos as nossas coroas ao céu
          celebramos a memória dos nossos corpos
          A nossa ancestralidade
          Celebramos a dança
          E resistimos
          Eles combinaram de nos matar,
          Nós combinamos de não morrer


          i Excerto da sinopse da vídeo-performance CORONAS IN THE SKY, Not a Manifesto! an essay on Afrofuturism and Liberation concebida durante uma residência artística no âmbito do programa Magic Carpets Creative Europe Platform entre março e maio de 2020 no ZK/U Berlim.

          Mierle Laderman Ukeles Manifesto para uma Arte de Manutenção, 1969! Proposta para uma exposição: “Cuidar”, 1969

          I. IDEIAS:

           

          A. O Instinto da Morte e o Instinto da Vida:

          O Instinto da Morte: separação, individualidade, vanguarda por excelência; seguir o seu próprio caminho até à morte – fazer as suas coisas, mudanças dinâmicas.

          O Instinto da Vida: unificação, o eterno retorno, a perpetuação e a MANUTENÇÃO da espécie, operações e sistemas de sobrevivência, equilíbrio.

           

          B. Dois sistemas básicos: Desenvolvimento e Manutenção. O amargo de boca de todas as revoluções: depois da revolução, quem vai apanhar o lixo na segunda-feira de manhã?
          Desenvolvimento: pura criação individual; o novo; mudança; progresso; avanço; excitação; voar ou fugir.
          Manutenção: manter o pó afastado da criação individual pura; preservar o novo; apoiar a mudança; proteger o progresso; defender e prolongar os avanços; renovar a excitação; repetir
          o voo.

           

          mostrar o trabalho — mostrá-lo de novo
          manter o museudeartecontemporânea fantástico
          manter a casa de pé

           

          Os sistemas de desenvolvimento são sistemas com um retorno parcial e com muito espaço para a mudança.
          Os sistemas de manutenção são sistemas com um retorno imediato e com pouco espaço para serem alterados.

           

          C. A manutenção é uma chatice, ocupa a merda do tempo todo (literalmente).
          Fica-se com a cabeça confusa e cansada pelo aborrecimento. Culturalmente os trabalhos de manutenção gozam de um péssimo estatuto social = salário mínimo, donas de casa =
          remuneração zero.

          limpar a secretária, lavar a loiça, limpar o chão, lavar a roupa, lavar os dedos do pé, mudar a fralda ao bebé, acabar o relatório, corrigir as gralhas, reparar a vedação, dizer ao cliente que tem razão, deitar fora o lixo pestilento, cuidado, não enfies coisas no nariz, o que é que eu visto, não tenho meias, pagar as contas, não mandar lixo para o chão, não gastar tudo, lavar o cabelo, mudar os lençóis, ir à mercearia, acabou-se-me o perfume, repete lá isso — ele não percebe, volta a fechar — ainda verte, ir trabalhar, esta arte está cheia de pó, levantar a mesa, telefonar-lhe outra vez, despejar o autoclismo, manter-se jovem.

           

          D. Arte:

          Tudo o que digo que é Arte é Arte. Tudo o que faço é Arte que é Arte. “Nós não temos Arte, tentamos fazer tudo bem.” – ditado balinês.

          A arte de vanguarda, que reclama pleno desenvolvimento, está contaminada por várias ideias de manutenção, atividades de manutenção e materiais de manutenção.
          — A arte processual sobretudo reclama um desenvolvimento e uma mudança puras e no entanto emprega quase em exclusivo processos e modos de manutenção.

           

          E. A exposição de Arte de Manutenção, “CUIDAR”, levará até às últimas consequências a pura manutenção, exibi-la-á como arte contemporânea e gerará, por oposição absoluta, uma clareza em relação a tais assuntos.

           

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          II. A EXPOSIÇÃO DE ARTE DE MANUTENÇÃO: Três partes: Pessoal, Geral e Manutenção da Terra.

           

          A. Parte Pessoal:

          Eu sou artista. Sou mulher. Sou esposa. Sou mãe (ordem aleatória).
          Passo demasiado tempo a lavar, limpar, cozinhar, renovar, apoiar, preservar, etc. Além disso (e até agora estes dois mundos estavam
          separados), “faço” Arte.
          Agora vou só fazer estas atividades quotidianas de manutenção, tornando-as conscientes, expondo-as como Arte. Eu vou viver no museu tal como costumo viver em casa, com o meu marido e o meu bebé (exato, mas se não me quiserem no museu à noite, regresso todos os dias) durante o tempo todo da exposição e farei tudo isto como atividades de arte pública: vou varrer e encerar o chão, limpar o pó a tudo, lavar as paredes (ou seja, “pinturas de chão, trabalhos com pó, esculturas de sabão e pinturas de parede”), cozinhar, convidar pessoas para comer, limpar, arrumar, mudar as lâmpadas. É possível que faça aglomerações e disposições com todo o material excedente funcional. A área da exposição poderá parecer “vazia” de arte, mas será mantida para que o público a possa ver.

           

          O meu trabalho será o trabalho.

           

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          B. Parte Geral: Toda a gente faz um rol de trabalhos de manutenção fastidiosos. A parte geral da exposição consistirá em entrevistas de dois tipos.

           

          1. Entrevistas previamente realizadas a umas 50 classes e tipos de ocupação diferentes que cobrem um largo espectro de “homens” da manutenção: empregado doméstico, técnico de higiene urbana, carteiro, sindicalista, trabalhador da construção civil, bibliotecário, merceeiro, enfermeiro, médico, professor, diretor de museu, vendedor, jogador de basebol, criança, criminoso, banqueiro, presidente de câmara, estrela de cinema, artista, etc., sobre o que acham que é a manutenção; como se sentem por passarem uma parte da sua vida em atividades de manutenção; qual é a relação entre manutenção e liberdade; qual é a relação entre manutenção e o que sonham para a vida.

           

          Estas entrevistas serão transcritas e exibidas.

           

          2. Sala das entrevistas — para os visitantes da Exposição:
          Uma sala com secretárias e cadeiras onde entrevistadores profissionais (?) entrevistarão os visitantes da exposição com uma lista de perguntas semelhante à das entrevistas em exposição (referidas no ponto 1.). As respostas devem ser pessoais.

           

          Estas entrevistas são gravadas e exibidas por toda a área da exposição.

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          C. Manutenção da Terra:

          Todos os dias serão entregues no Museu recipientes com diferentes tipos de excedente: 1) o conteúdo de um camião do lixo; 2) um recipiente com ar poluído; 3) um recipiente com água poluída do rio Hudson; 4) um recipiente com terra devastada. Ao chegar à exposição, cada recipiente será tratado: purificado, despoluído, reabilitado, reciclado e conservado, com recurso a procedimentos técnicos (e\ou pseudo-técnicos), por mim ou por cientistas.

           

          Estes procedimentos serão repetidos enquanto durar a exposição.

           

          Traduzido do original inglês sob o título MANIFESTO FOR MAINTENANCE ART, 1969! Proposal for an exhibition: “CARE”, 1969, com autorização da autora, por Patrícia da Silva e José Maria Vieira Mendes. Escrito em outubro de 1969 em Filadélfia, PA, EUA. © Mierle Laderman Ukeles, Cortesia da artista e da Ronald Feldman Gallery, Nova Iorque.

          Élisabeth Lebovici Às trabalhadoras e aos trabalhadores

          PT

          Este texto foi escrito durante os dias e noites de confinamento em Paris, entre 16 de março e 11 de maio de 2020. Decidi que os meus posts no blog (http://le-beau-vice.blogspot.com) deviam resultar da experiência coletiva que vivemos em tempo de Covid-19 e da ressonância emocional que encontrava em certas obras de arte ou exposições. Foi assim que Mierle Laderman Ukeles, cuja exposição retrospetiva visitei em 2016, no Queens Museum, foi convocada a 3 de abril de 2020.

           

          Em 1972 ocorreu a quinta edição da exposição Art in Process na ala contemporânea do Finch College Museum em Nova Iorque (East 75th St) — que fechou em 1975 – organizada sem grandes meios financeiros, como era hábito em muitas das manifestações dos anos 1970 que supostamente representavam a “desmaterialização da arte” ou, como demonstra Patricia Falguières i, “rematerializações”, porque precisavam de papéis, textos, registos, contratos, cartas, catálogos, fotocópias, fotografias, vídeos, etc. Neste caso, foi uma súbita falta de fundos que levou a curadora Elayne Varian a pedir aos artistas Allan D’Archangelo, Ken Dewey, Robert Indiana, Sol Lewitt, Dorothea Rockburne e Andy Warhol para criarem obras in situ. Estas seriam acompanhadas pela documentação fotográfica do seu processo de produção.

          Warhol aparece com uma caixa de cartão com um aspirador por estrear da marca Eureka, abre-a e coloca o eletrodoméstico a funcionar. De seguida, mete mãos à obra. Passa com o aspirador e limpa toda a carpete cinzenta da galeria. No final da performance, retira o saco do aspirador e assina-o. Tanto um como o outro, o saco num pedestal e o aspirador ao seu lado, ficam. Estes objetos são acompanhados por fotografias de Warhol a trabalhar, por vezes acompanhado por uma pessoa da equipa de limpeza do museu.

          Interessa-me nisto duas coisas. Primeiro, a exposição e a sua economia. Faz parte do legado pedagógico do museu Finch. De acordo com os Archives of American Artii, as exposições neste espaço propunham-se a desmontar um suporte (pintura, escultura, colagem, arte conceptual, instalação, projeção, etc.) e relatavam o processo de fabricação no interior do espaço e o tempo dedicado à demonstração. Por exemplo, na exposição intitulada Documentation [1968], toda a circulação de uma obra, incluindo a sua compra e conservação, era exibida na exposição.

          Nestes tempos de confinamento (estamos em abril de 2020), a “matéria” das instituições culturais foi desaguar à Internet. É esse o lugar onde se anunciam os cancelamentos tal como a curva ascendente de desemprego, em paralelo com um anúncio permanente e cada vez mais ameaçador de paralisação económica. É também aí que se esboçam as perguntas sobre o futuro pós-coronavírus — se é que esse futuro existe. A agulha disponibilizada pela pandemia fará explodir a bolha? Não é suficiente lamentarmo-nos pela quantidade de manifestações que contribuíram para a construção de um “porto franco” da arte contemporânea feito à medida do modelo circulatório do capitalismo masculinista financeiro. Nem denunciar a espiral infernal de uma desmultiplicação de investimentos, de deslocações, de comunicação e de resíduos no campo da cultura (incluindo quando as produções expostas questionam realidades geopolíticas e ambientais, essas mesmas em que tão bem encaixa a pandemia de Covid-19).

          De entre os “interruptores da globalização” (Bruno Latour iii) que gostaria que fizessem parte da conversa, penso no texto de Natasa Petresin Bachelez iv, publicado em 2017, em que apela a que se pense em instituições lentas, seguindo os termos de Fred Moten: “So we have to slow down, to remain, so we can get together and think about how to get together. What if it turns out that the way we get together is the way to get together? […] Come get some more of these differences we share. Are differences our way of sharing? Let’s share so we can differ, in undercommon misunderstanding” v. Nestes tempos em que a velocidade (de produção, de testes, de ventiladores, de máscaras, de tratamentos) conta o quádruplo, impõe-se esta lentidão para a nossa vida quotidiana.

          A segunda coisa que me interessa é a limpeza. Warhol a passar o aspirador acompanhado por outras pessoas (nas fotografias só se veem homens), gente invisível da instituição museológica. Funções há muito executadas em França por trabalhadores externos. A subcontratação equivale aos maus-tratos, como não nos deixam esquecer as numerosas greves de empregadas de limpeza, de auxiliares de limpeza, de empregadas de quarto dos hotéis Ibis vi. Quanto mais se afasta da esfera doméstica, mais a atividade de limpeza está sujeita a violências de género e raça, sem contar com os riscos, decorrentes dos produtos utilizados, para a saúde dos que a praticam e para o ambiente. As fotos de Warhol não tratam muito a realidade destas pessoas mas ajudam a lembrar que se trata de um trabalho que deve ser reconhecido pela sua utilidade social, que é necessário para todas as formas de trabalho, inclusivamente no seio da instituição cultural.

          É isso que afirma Mierle Laderman Ukeles, desde 1969. No seu projeto de exposição CARE, de que faz parte o seu Manifesto! Maintenance Art, propõe, por um lado, tratar a ocupação do espaço da exposição como uma exposição e, por outro, dar visibilidade aos empregados que executam as tarefas relacionadas com limpeza e tratamento de resíduos, tanto no espaço público como no espaço doméstico. O Wadsworth Atheneum vi foi o primeiro museu a aceitar esta proposta. Ocorrem então quatro performances no espaço de dois dias. A célebre série de fotografias-textos Washing/Tracks/Maintenance: Outside (1973) documenta uma dessas performances, durante a qual Laderman Ukeles limpa com uma esfregona, muita água e lixívia os degraus das escadas da entrada do museu, bem como o átrio interior em mármore. As outras três ações têm lugar no interior das instituições expondo a hierarquia entre as tarefas. Vemo-la nas salas, de gatas, no meio dos visitantes (Washing/Tracks/Maintenance: Inside, (1973)). A limpeza da vitrina de “A Múmia” é um grande momento: a artista constata a existência de uma hierarquia institucional nas tarefas e nas qualificações que nos tornam habilitados a limpar a vitrina ou a múmia. Assim que se torna “guardiã das chaves”, substituindo-se xs 19 seguranças do museu, vemo-la a correr de sala em sala para colocar avisos ao público, fechar portas, verificar se o alarme funciona e fazer os movimentos e o caminho inversos. É assim que a matéria “cinzenta” do museu, a sua ocupação do espaço e do tempo, o seu ecossistema, passa pelo crivo destas quatro ações

          Até 1976, ao longo de 13 performances, Laderman Ukeles esfrega as ruas do SoHo e das galerias que a convidam. Mas antes disso a artista começou por limpar a instituição da família nuclear. As Private Performances of Personal Maintenance (1970-73) documentam, com notações meticulosas, cada quarto de hora do trabalho de esposa, mãe, artista, sendo esta última função permanentemente perturbada pelas duas primeiras. Aqui não se pode “separar a obra do homem” viii, o espaço doméstico em que o patriarcado define o lugar das mulheres (e onde Warhol talvez também se situe, ele que era insultado pelos seus colegas artistas, como [Jasper] Johns ou [Robert] Rauschenberg, por ser “too swish” — sendo eles tão gay quanto ele ix). E quando não se separa “a obra do homem” nota-se bem que a atividade artística, como todas as outras, é um trabalho repetitivo…

          Não é insignificante o facto de que quando Mierle Laderman Ukeles propõe abrir o armário que guarda uma parte vital das nossas existências, ela está a cruzar as reivindicações feministas que exigem o reconhecimento social do trabalho doméstico com as das mulheres que fundam a teoria do cuidar (Carol Gilligan, 1982). Isto recorda-nos, claro está, os trabalhos revolucionários de Silvia Federici, que, desde 1974, reivindica a desnaturalização da ligação entre o trabalho doméstico e o género feminino. Essa ligação serve para transformar tarefas em atributos físicos e de carácter de todas as mulheres, no mesmo sentido em que as mulheres estavam convencidas de que ter um marido e ser mãe é natural e faz intrinsecamente parte da sua condição feminina e que tudo isso representa o que a vida tem de mais belo. “They say it is love. We say it is unwaged work” x.

          Em tempos de confinamento, celebrámos muito, nas redes sociais e nos media, a utilidade social de todos “os que, há não muito, se dizia não serem nada e que agora são tudo, os que continuam a esvaziar o lixo, a digitar os produtos nas caixas de supermercado, a entregar as pizzas, a garantir essa vida que é tão indispensável quanto a vida intelectual, a vida material” xi, como escreveu recentemente Annie Ernaux. Esta é também a altura de dar xs trabalhadorxs das artes um sentimento de dignidade e utilidade social.

          É esse o lugar de onde falava Mierle Laderman Ukeles. Ela exigiu que o “trabalho doméstico”, aquilo que a máquina institucional nunca torna público e que sempre renegou, fosse mostrado e considerado como arte. A crença na autonomia da arte ignora a importância dxs invisíveis que são empregadxs nessas tarefas desclassificadas, e que Fred Wilson tão bem mostrou formarem a quase totalidade do pessoal racializado da instituição museológica xii.

          Em 1974, para a sua exposição na galeria A.I.R.xiii, a primeira galeria feminista de Nova Iorque, Mierle Laderman Ukeles lava o passeio em redor e interpela xs transeuntes. Um acontecimento imprevisto impressiona-a: depois de ter gastado todos os panos, um operário de uma das fábricas de têxteis de SoHo oferece-lhe um aprovisionamento de pedaços de tecido. É com essas pessoas não reconhecidas pela arte que ela vai passar a trabalhar. Ei-la então, em 1976, no Whitney Downtown, uma sucursal do Whitney Museum instalada num edifício de escritórios de 53 andares no bairro financeiro de Manhattan. Laderman Ukeles pede xs 300 empregadxs de limpeza do edifício que uma de entre as suas oito horas de trabalho seja considerada “Maintenance Art”, arte da manutenção. Depois de documentar em fotografias Polaroïd todas as atividades de limpeza e os seus atores e atrizes, pergunta a cada umx delxs se a imagem representa a sua hora de arte ou as sete horas de trabalho. Uma tabela viria a dar visibilidade às escolhas dxs trabalhadorxs.

          Quando aparece um artigo do jornalista David Bourdon sugerindo ironicamente à administração dos serviços de manutenção municipal que pedissem um apoio financeiro artístico ao N.E.A. xiv para cobrir a sua dívida crónica, Mierle Laderman Ukeles convida o jornal a visitar o serviço de gestão dos dejetos da cidade. “Escolhi conscientemente estes funcionários de higiene urbana porque exerciam uma tarefa ‘feminina’ pela cidade, uma tarefa semelhante à das mulheres no foyer”, explica ela. “E estes homens diziam-me: ‘Sabe porque é que essas pessoas nos odeiam? Porque nos tomam como mães deles, somos a empregada.’” xv. Seguiram-se numerosas peças compostas por Mierle Laderman Ukeles “em residência”.

          Durante a exposição de Mierle Laderman Ukeles no Queens Museum (2016), criou-se uma ligação com o tesouro desse museu: o famoso Panorama da cidade de Nova Iorque concebido para a World Fair de 1964/65 e restaurado em 1992. Diferentes percursos de luzes de cor, acompanhados por uma banda sonora, representavam cada um dos itinerários de uma equipa de recolha de lixo na cidade; entre 1980 e 1981, a artista tinha acompanhado os seus turnos para concretizar o projeto de apertar a mão a cada um dxs 8500 trabalhadorxs responsáveis pela limpeza de Nova Iorque.

          A amplitude deste projeto transpõe-se hoje para o ecofeminismo de Mierle Laderman Ukeles. A sua tarefa consiste em transformar antigos aterros públicos em espaços de convivialidade, sem esconder aquilo que foi a sua utilidade anterior. Foi o que aconteceu com o imenso aterro municipal, que responde pelo nome de Fresh Kills (do neerlandês “kille” que quer dizer canal de água). Situado em Staten Island, foi local de depósito de dejetos desde 1948; depois do 11 de setembro, os escombros e poeira do World Trade Center, provenientes de restos “humanos e arquiteturais” (sic), foram encaminhados para o aterro. Está hoje em curso uma “reparação” que deverá estar concluída em 2036 e que transformará o maior aterro do mundo num jardim público duas vezes e meia maior do que o Central Park.

          Mierle Laderman Ukeles propõe um projeto: LANDING é um convite a aterrar a partir de três pontos de vista: o primeiro paira paralelo ao chão e trata-se da construção de uma plataforma elevada; o segundo estará fixo na terra; e o terceiro “colabora” com o terreno, tratando-o como um abrigo ou refúgio. Não será por acaso que o termo “aterragem” é o que o sociólogo francês Bruno Latour usa, quando pensa sobre a urgência criada por um mundo em escombros graças à sua exploração. “Onde aterrar?” – se é que ainda é possível fazê-lo, e é permitido duvidar.

           

          Traduzido do original em francês por José Maria Vieira Mendes.


          i Patricia Falguières, “Enquêtes sur l’autorité de l’art : le tournant conceptuel”, em Faire art comme on fait société (Dijon: Les Presses du Réel, 2013), pp.275-354.


          ii Exhibition records of the Contemporary Wing of the Finch College Museum of Art, 1943-1975; Archives of American Art, Smithsonian, https://www.aaa.si.edu/collections/exhibition-records-contemporary-wing-finch-college-museum-art-8114.


          iii Bruno Latour, “Imaginer les gestes-barrières contre le retour à la production d’avant-crise“, AOC, 30/03/20 https://aoc.media/opinion/2020/03/29/imaginer-les-gestes-barrieres-contre-le-retour-a-la-production-davant-crise/.


          iv Nataša Petrešin-Bachelez, “For Slow Institutions”, e-flux Journal 85 (outubro 2017) https://www.e-flux.com/journal/85/155520/for-slow-institutions/.


          v “Temos portanto de abrandar, para ficarmos, para nos juntarmos e pensar sobre como nos juntarmos. E se chegarmos à conclusão de que o modo como nos juntamos é o modo de nos juntarmos? […] Vamos à procura de mais algumas das diferenças que partilhamos. Serão as diferenças a nossa forma de partilhar? Vamos partilhar para sermos diferentes, numa incompreensão subcomum.” Fred Moten, “Remain,” em Thomas Hirschhorn: Gramsci Monument, eds. Stephen Hoban, Yasmil Raymond e Kelly Kivland (Nova Iorque/Londres: DIA Art Foundation/Koenig Books, 2015), 326-27


          vi As empregadas de quarto do hotel Ibis Clichy-Batignolles, em Paris, entraram em greve a 17 de julho de 2019 e assim se mantiveram durante o confinamento.


          vii Museu de arte público mais antigo dos E.U.A., aberto em 1844 em Hartford, Connecticut. [N. do E.]


          viii “Separar o homem do artista” ou “separar o homem da obra”: são estas as expressões utilizadas em França pelos admiradores de Roman Polanski ou Woody Allen para justificar o facto de irem “na mesma” ver os seus filmes e recompensá-los.


          ix Cf. Gavin Butt, Between You and Me: Queer Disclosures in the New York Art World, 1948–1963 (Durham : Duke University, 2005).


          x “Dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado”. Silvia Federici, “Wages Against Housework”, 1974 https://warwick.ac.uk/fac/arts/english/currentstudents/postgraduate/masters/modules/femlit/04-federici.pdf.


          xi Annie Ernaux, Lettre à Emmanuel Macron, lido na rádio France Inter a 30/3/2020. https://www.franceinter.fr/emissions/lettres-d-interieur/lettres-d-interieur-30-mars-2020.


          xii Fred Wilson, “Mining the Museum” (Baltimore, MD: The Contemporary & Maryland Historical Society, 1992).


          xiii Galeria cooperativa gerida por mulheres artistas, sem fins lucrativos, fundada em Brooklyn, Nova Iorque, em 1972. [N. do E.]


          xiv A National Endowment for the Arts é a agência cultural federal e foi criada em 1965.


          xv Entrevista de Mierle Laderman Ukeles a Tom Finkelpearl, Dialogues in Public Art (Cambridge, MA: The MIT Press, 2000).

          FR

          Ce texte a été écrit pendant mes jours et mes nuits de confinement à Paris, entre le 16 mars et le 11 mai 2020. J’avais décidé de laisser dériver le fil de mes posts de blog (http://le-beau-vice.blogspot.com) au gré de l’expérience collective que nous vivons au temps de la Covid-19, et de la résonnance émotionnelle qu’y trouvaient certaines œuvres d’art ou certaines expositions. Ainsi, Mierle Laderman Ukeles, dont j’avais vu l’exposition rétrospective au Queens Museum en 2016, s’est retrouvée convoquée le 3 avril 2020.

           

          En 1972, a lieu la cinquième édition de l’exposition Art In Process dans l’aile contemporaine du Finch College Museum à New York (East 75th St) — un établissement défunt depuis 1975. Sans grands moyens financiers : c’est le cas de nombreuses manifestations des années 1970, supposées présenter la “dématérialisation de l’art”. Comme l’a montré Patricia Falguières i, elles en sont au contraire les “rematérialisations “, nécessitant une quantité de papiers, textes, registres, contrats, lettres, catalogues, photocopies, photographies, vidéos, etc. Là, en l’occurrence, c’est un soudain défaut de fonds, qui pousse la curatrice Elayne Varian à demander aux artistes Allan D’Archangelo, Ken Dewey, Robert Indiana, Sol Lewitt, Dorothea Rockburne et Andy Warhol de produire des oeuvres in situ. Elles seront présentées avec la documentation photographique de leur production, à mesure que l’une et l’autre se fabriquent.

          Warhol arrive avec un carton contenant un aspirateur neuf de marque Eureka, l’ouvre, l’apprête pour que l’engin fonctionne. Warhol se met à l’ouvrage. Il passe l’aspirateur et nettoie l’intégralité de la moquette grise de la galerie d’exposition. À la fin de cette performance, il retire le sac de l’aspirateur et le signe. L’un et l’autre, le sac sur un socle et l’aspirateur à son côté, restent. Ces objets sont accompagnés, comme de bien entendu, par des photographies de Warhol au travail, parfois en tandem avec un·e membre de l’équipe de nettoyage du musée.

          Deux choses m’intéressent ici. D’abord, l’exposition et son économie. C’est la richesse pédagogique du musée Finch. D’après les Archives of American Artii, chacune des expositions se proposait de décortiquer un medium (dont la peinture, la sculpture, le collage, l’art conceptuel, l’installation, la projection, etc. ) et rapportait le processus de fabrication à l’intérieur de l’espace et du temps dévolu à la (dé)monstration. Par exemple, l’exposition intitulée Documentation : toute la circulation d’une œuvre, y compris sa vente et sa conservation, était destinée à y être montrée.

          En ce moment de confinement (nous sommes en avril 2020), la “matière“ des institutions culturelles s’est rabattue sur Internet. C’est le lieu où s’égrènent les annulations ainsi que la courbe ascendante des licenciements, en parallèle d’une annonce sans cesse plus menaçante de la paralysie économique. C’est là aussi que s’ébauchent les interrogations sur l’avenir après le Coronavirus—si cet après existe. L’aiguille offerte par la pandémie fera-t-elle exploser la bulle? Il ne suffit pas de vouer aux gémonies la tornade des manifestations qui ont contribué à construire un “port-franc” de l’art contemporain à la mesure du modèle circulatoire du capitalisme masculiniste financier. Ni de dénoncer la spirale infernale d’une démultiplication exponentielle des investissements, des déplacements, de la communication et des déchets dans le champ de la culture (y compris lorsque les productions exposées interrogent les réalités géopolitiques et environnementales, celles-là même dans lesquelles s’est enchâssée la pandémie de la Covid-19).

          Parmi les “interrupteurs de globalisation” (selon les termes de Bruno Latour iii) qu’on aimerait voir entrer dans la conversation, je pense au texte, publié en 2017, de Natasa Petresin Bachelez iv qui appelait à penser en commun des institutions lentes, selon les termes de Fred Moten (2015): “So we have to slow down, to remain, so we can get together and think about how to get together. What if it turns out that the way we get together is the way to get together? … Come get some more of these differences we share. Are differences our way of sharing? Let’s share so we can differ, in undercommon misunderstanding.” v En ces temps où la vitesse (de production des tests, des respirateurs, des masques, des soins) compte quadruple, cette lenteur s’impose dans notre vie quotidienne.

          La deuxième chose qui m’intéresse, c’est le nettoyage. C’est Warhol passant l’aspirateur en compagnie d’autres préposé·es (sur les photos, des hommes) au ménage. Soient quelques-unes parmi les personnes invisibles de l’institution muséale. Des métiers depuis longtemps externalisés en France. La sous-traitance égale la maltraitance, les nombreuses grèves des femmes de ménage, des aides-ménagères, des femmes de chambre de l’hotel Ibis vi, ne cessent de le rappeler. Plus elle sort de la sphère domestique, plus l’activité de nettoyage est sujette à des violences de genre et de race, sans compter les risques pour la santé dus aux produits utilisés et à l’environnement dans lequel elle se pratique. Les photos de Warhol ne sont sans doute pas grand chose en regard des réalités des personnes concernées mais elles rappellent qu’il s’agit d’un travail reproductif, qui doit être reconnu pour son utilité sociale, puisqu’il est nécessaire à toutes les formes de travaux, y compris dans l’institution culturelle.

          Ce n’est pas autre chose que dit Merle Laderman Ukeles, dès 1969. Tirant son projet d’exposition, CARE, de son Manifesto ! Maintenance Art, elle propose à la fois de traiter l’entretien de l’espace d’exposition comme une exposition, et de rendre visibles les emplois liés à la propreté et aux déchets, dans l’espace public comme dans l’espace domestique. Le Wadsworth Atheneum est le premier musée à accepter cette proposition. Quatre performances ont lieu concuremment durant deux journées. La célèbre série de photos-textes Washing/Tracks/Maintenance: Outside (1973) documente l’une d’entre ces performances, durant laquelle Laderman Ukeles nettoie, lessive et frotte à grande eau et à la serpillère les marches de l’escalier d’entrée au musée, ainsi que la cour intérieure en marbre de celui-ci. Les trois autres actions d’entretien ont lieu à l’intérieur de l’institution, exposant en même temps les hiérarchies entre les tâches. On la voit dans les salles, à quatre pattes au milieu des visiteurs (Washing/Tracks/Maintenance : Inside, (1973)). Le nettoyage de la vitrine de « la Momie » est un grand moment : l’artiste dresse le constat de la hiérarchie institutionnelle des tâches et des qualifications, selon qu’on est habilité à nettoyer la vitrine ou la momie. Lorsqu’elle devient “gardienne des clefs “, se substituant aux 19 gardien·ne·s, elle court d’une salle à l’autre, pour placer un avis au public, la fermer, vérifier que l’alarme fonctionne, et puis pour faire les mouvements et le chemin inverses. Ainsi, la matière “grise” du musée, son emploi de l’espace et du temps, son écosystème, est passée au crible des quatre actions.

          Jusqu’en 1976 au cours de 13 performances, Laderman Ukeles frotte les rues de SoHo et les galeries qui l’invitent. Mais auparavant, l’artiste a nettoyé l’institution de la famille nucléaire. Les Private Performances of Personal Maintenance (1970-73) documentent par notations méticuleuses chaque quart d’heure du travail d’épouse, de mère, d’artiste, cette dernière fonction étant constamment dérangée par les deux premières. Ici, on ne peut “séparer l’oeuvre de l’homme“ vii, de cet espace domestique où le patriarcat désigne la place des femmes (et où Warhol se place peut-être aussi, lui qui se faisait insulter pour sa façon d’être « too swish» par ses collègues artistes, comme Johns ou Rauschenberg, lesquels n’étaient pas moins gays que lui viii) . Et quand on ne sépare plus “l’œuvre de l’homme “, on voit bien que l’activité artistique, comme tou·te·s les autres, est un travail répétitif….

          Il n’est pas anodin que Mierle Laderman Ukeles, proposant d’ouvrir le placard dans lequel est maintenue une part vitale de nos existences, croise les revendications féministes exigeant la reconnaissance sociale du travail domestique, ainsi que celles qui fondent la théorie du care (Carol Gilligan, 1982). On pense aussi, bien sûr, aux travaux révolutionnaires de Silvia Federici, qui, dès 1974, revendiquent la dénaturalisation du lien entre le travail domestique et le genre féminin. Ce lien sert, en effet, à transformer des tâches en attributs du physique et du caractère de toute femme, de la même façon que toute femme a été convaincue qu’avoir un mari et être mère lui sont naturels et intrinsèques et que tout ça représente la plus belle part de sa vie. “They say it is love. We say it is unwaged work.“ ix

          Aux temps du confinement, on a beaucoup célébré, sur les media sociaux et les media tout court, l’utilité sociale de toustes “dont, naguère, vous avez dit qu’ils n’étaient rien, [qui] sont maintenant tout, eux qui continuent de vider les poubelles, de taper les produits aux caisses, de livrer des pizzas, de garantir cette vie aussi indispensable que l’intellectuelle, la vie matérielle” x, comme l’écrivait récemment Annie Ernaux. Il est temps, également de donner aux travailleur·euse·s de l’art, aussi, un sentiment de dignité et d’utilité sociale.

          C’est de là que parlait Mierle Laderman Ukeles. Elle a exigé, en effet, que soit montré et considéré comme art, ce “travail domestique” que la machine institutionnelle ne rend jamais public et qu’elle a toujours refoulé. La croyance en l’autonomie de l’art ignore tout aussi bien l’importance des invisibles qui sont employées à ces tâches déclassées, et dont Fred Wilson a bien montré qu’elles formaient à peu près l’intégralité du personnel racisé de l’institution muséale xi.

          En 1974, pour son exposition à la A.I.R. gallery, la première galerie féministe de New York. Mierle Laderman Ukeles nettoie le trottoir alentour et interroge les passant.e.s. Elle est frappée par un événement imprévu: alors qu’elle a épuisé tous ses chiffons, un homme, ouvrier dans l’une des fabriques textiles de SoHo, accourt l’approvisionner en morceaux de tissus. C’est avec ces personnes non reconnues par l’art qu’elle va désormais travailler. La voilà en 1976 au Whitney Downtown, une succursale du Whitney Museum installée dans un bâtiment de bureaux de 53 étages dans le quartier financier de Manhattan. Laderman Ukeles y demande aux 300 employé.e.s au nettoyage du bâtiment de bien vouloir considérer une heure de leur journée de huit heures comme “Maintenance Art”. Après avoir documenté par Polaroïd toutes les activités de ménage et leurs actrices.acteurs, elle demande à chacun·e de décider si leur image décrit leur heure d’art ou leurs sept heures de travail. Un tableau récapitulatif donnera visibilité aux choix des employé·es.

          Lorsque paraît un article du journaliste David Bourdon suggérant comme une boutade à l’administration des services d’entretien municipaux de demander une subvention artistique du NEA xii pour pallier sa dette chronique, Mierle Laderman Ukeles envoie le journal au service de gestion des déchets de la ville. “J’ai choisi consciemment ces éboueurs parce qu’ils effectuaient une tâche ‘féminine’ pour la ville, une tâche semblable à celle des femmes au foyer,” explique-t-elle. “Et ces hommes me disaient : « Vous savez pourquoi les gens nous détestent ? Parce qu’ils nous prennent pour leur mère, leur bonne » Il s’ensuit de nombreuses pièces composées par Mierle Laderman Ukeles « en résidence ».

          Pendant l’exposition de Mierle Laderman Ukeles au Queens museum (2016), un lien était créé avec le trésor de ce musée : le fameux Panorama de la ville de New York conçu pour la World’s Fair de 1964-65 et restauré en 1992. Différents parcours de lumières de couleur, illustrés d’une bande sonore, représentaient chacun l’itinéraire d’une équipe de ramassage d’ordures dans la ville ; entre 1980 et 1981, l’artiste avait suivi leurs tournées pour accomplir son projet de serrer la main de chacun des 8500 employé·es à la propreté de New York.

          L’ampleur de ce projet s’est aujourd’hui transposé à l’écoféminisme de Mierle Laderman Ukeles. Car sa tâche consiste désormais à aménager d’anciennes décharges publiques en espaces conviviaux, sans cacher leur précédent usage . Ainsi en est-il de la conversion de cette immense décharge municipale qui répond au nom de Fresh Kills (Kill veut dire courant en néerlandais). Sise sur Staten Island, elle fut un site d’enfouissement des déchets dès 1948 ; après 9-11, les gravats et poussières du World Trade Center, provenant de restes “humains et architecturaux“ (sic), furent acheminés vers la décharge. Il s’agit donc désormais de “réparation”, qui devrait transformer en 2036 la plus grande décharge du monde en un jardin public deux fois et demie plus grand que Central Park. Merle Laderman Ukeles y propose son projet : LANDING est une invitation à atterrir depuis trois points de vue: l’un flotte à vol d’oiseau, depuis une plate forme surélevée; le second est rivé à la terre. Le troisième “collabore“ avec le terrain, considéré comme abri, comme refuge. Il n’est pas anodin que le terme d’“atterrissage“ soit également celui qu’utilise le sociologue français Bruno Latour xiii, lorsqu’il s’agit de penser l’urgence criée par un monde en miettes à force d’avoir été exploité. « Où atterrir ?»- si cela est encore possible, et il est permis d’en douter.

          Min Kyoung Lee 이민경 que comunidade, que solidão

          PT

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          Comecei a escrever, um pouco por acaso, o esboço da minha performance Arte sempre que necessário numa conferência de investigação artística com Jeremiah Runnels i, em Bruxelas, em 2011. O conceito era: uma artista secular – eu – infiltra-se num grupo de investigação antissecular em busca de iluminação transcendental, submete-se aos seus ensinamentos, é iluminada e regressa ao mundo como artista. Ou talvez não.

          Tenho vindo a acumular um cansaço com o mundo ou sistema das artes em que trabalho, e um desencanto e desconfiança acerca da arte enquanto veículo para o desenvolvimento espiritual. Quando, em 2014, conheci em Seul um conceituado professor de meditação, concorri e consegui um lugar no Rains Retreat ii, um mosteiroiii na Austrália situado no meio de uma floresta, onde ele era o abade. Durante três meses iria meditar e não fazer mais nada.

           

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          A propriedade onde se situava o mosteiro era grande e tinha cabanas individuais espalhadas pela floresta. Não havia horários a respeitar exceto a obrigação semanal de uma reunião com toda a comunidade no salão de meditação e o almoço diário. Uma vez por dia, ia à cozinha ajudar na preparação da comida e na limpeza, e também para socializar. O local era bastante silencioso durante o dia, mas quando recebia o grupo grande de voluntários que traziam a comida, tornava-se vibrante e concorrido. O almoço festivo acabava e durante o resto do dia e da noite ficava sozinha, sem refeições, sem pessoas para encontrar nem trabalho para fazer. Meditava no meu quarto ou no salão de meditação escuro e silencioso. Quando não estava a meditar, lia ou passeava pela floresta.

          Apesar de ser uma floresta seca e parecida com um deserto, não deixava de ser uma floresta que partilhava com cangurus, papagaios, cucaburras, corvos ou lagartos que por ali andavam e não fugiam de nós. Também vagueava, solitária, à luz da Lua ou das estrelas ou do Sol, sem falar e contente. Dentro do próprio retiro havia retiros ainda mais silenciosos. Os meus colegas de meditação traziam-me o almoço à porta do quarto quando eu estava “em retiro”, para que não precisasse de trabalhar, nem de encontrar ou falar com alguém. Era solitário? Nem por sombras. Sentia-me tranquila e pacificada. Este retiro solitário produziu um estado de espírito único, ideal para uma absorção meditativa. Acordei uma manhã e entrei num estado estranho em que nada se movia. Nenhum pensamento, nenhum sentimento. E ainda assim estava consciente. Com certeza que não era uma iluminação mas uma experiência, em primeira mão, de um estado de consciência, sem objeto mental, que me pareceu ser uma pista, ou a informação empírica, para muitas das teorias de iluminação que eu estava a aprender – a não-dualidade, o não-eu, a reencarnação e outras coisas transcendentais.

          Passaram três meses e eu sentia-me bem, descansada, quer mental quer fisicamente. Sentia-me também elevada, como se conseguisse estar mais próxima dos segredos da minha existência. Era capaz de ficar assim por imenso tempo, quem sabe o resto da vida. Pena que era um mosteiro exclusivamente para homens!

           

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          Havia razões para o mosteiro ser como era. Foi pensado para dar apoio social e era espaçoso o suficiente para encorajar os seus membros a abandonarem a sociabilidade. Além disso, pretendia-se recusar deliberadamente algumas das armadilhas mais fáceis de muitas comunidades. Temo que tal se deva aos 40 anos de uma boa liderança – ou de uma ditadura, se preferirem.

          Passados alguns meses, estava a ser ordenada num mosteiro de freiras associado a este, onde fiquei como estagiária – na altura era o melhor que se conseguia dentro do género. Aquela ordem requeria uma ordenação elementar para poder ficar em permanência. Rapei o cabelo, usava uma túnica, respeitava certos preceitos e regras e não saía do perímetro do mosteiro. Era suposto trabalhar, sobretudo na cozinha e no exterior, o que não é permitido a freiras ordenadas. E iria passar mais de um ano neste lugar.

          Muitas coisas eram semelhantes ao outro mosteiro, como a floresta ou estruturas básicas de organização, mas havia muitas diferenças. Tinha muito mais tarefas para cumprir e menos tempo para o retiro. Havia muito menos gente a visitar. A nossa abadessa não queria partilhar o mosteiro com outras pessoas; não entravam pessoas desacompanhadas ou que não fossem convidadas. Apesar de ser apoiado por muita gente, era um lugar bastante privado e só se abria a porta a pessoas conhecidas. Eu tinha pouco que ver com ela, e ela deixava-me em paz; trabalhava afincadamente para o mosteiro e alguns membros importantes gostavam de mim. Muitos aspirantes monásticos de todo o mundo vinham bater à porta e eram mandados embora. Por causa da diminuta vida social, as relações estavam reduzidas a amizades próximas com poucas pessoas. Puras, platónicas e também intensas. Com o tempo cansei-me deste papel de “amiga privada”. É difícil de explicar mas, quando saí do mosteiro, fiquei contente por me livrar destas amizades comoventes, amorosas e bondosas. Do ponto de vista social era uma vida de uma renunciada numa comunidade pequena, controlada e fechada. Era pacífico, mas não me sentia em casa.

          A falta de exercício físico tornou-se cada vez mais um problema para mim. Fazia imenso trabalho manual: arrancava ervas daninhas, podava árvores e ramos, trabalhava com um cortador de relva ou com uma serra elétrica. De resto, a vida monástica era maioritariamente sedentária, com pouca locomoção, e não era permitido dançar e fazer desporto. Algumas partes do meu corpo estavam doridas do trabalho manual e outras da inatividade. Comecei a sentir a ameaça da iminência ou da aceleração do envelhecimento e da morte – alguns dos sofrimentos fundamentais da existência sobre os quais tinha aprendido – da forma mais realista que alguma vez sentira. A ideia de não precisar de viver como um ego, uma personalidade, um corpo era apelativa. A iluminação era sobre isto mesmo: ir para lá das limitações da mente e da matéria. No entanto, renunciar a um corpo enquanto este é saudável e capaz, renunciar à vida pública enquanto ainda há desejos, assemelhava-se mais a matar uma coisa viva. Parece que não fui totalmente convertida, é a vida.

          Quando chegou a altura de ir para uma ordem mais alta, hesitei e fui-me embora para fazer uma pausa. Mas a minha aventura monástica chegou ao fim de uma forma mais abrupta do que eu imaginara, quando a abadessa decidiu que eu não devia voltar. Também não queria, mas fiquei  indignada por ela ter tomado uma decisão que, na minha opinião, não lhe pertencia. Arrependo-me de não ter lutado. Não pela pertença, mas pelo direito. Senti-o como uma traição à minha consciência política, assim como à sociedade de que era membro. Há um aspeto no treino monástico, que eu respeito e desrespeito, que diz que se deve trabalhar a mente mesmo em situações aparentemente políticas. Quando me deram a escolher entre estilos de vida e identidades sociais, em vez de poder escolher entre a iluminação ou a não iluminação, a minha preferência era óbvia. Bem sei que é só uma identidade, mas sempre me senti mais à vontade com a de artista “livre” do que com a de qualquer pessoa religiosa.

           

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          Viver em Seul em tempos de Corona foi uma bênção! Tinham-se passado dois anos desde que deixara o mosteiro. Passei meio ano a deambular e a tentar perceber que direção tomar no futuro, acalmando aos poucos e acabando por me adaptar à vida de artista em Seul, a minha velha cidade natal. Desta vez, voltar fez-me sentir mais ansiedade do que nunca. Andava a lutar contra esta vida de artista dura, urbana, sujeita ao capitalismo selvagem quando, de repente, o confinamento atinge a cidade. Tempo para um retiro! Fui libertada inesperadamente da velocidade imparável, das pressões, das possibilidades. Era como se tivesse voltado ao retiro: tinha mais tempo para mim, trabalhava menos, encontrava-me com menos pessoas. Como só caminhava ou andava de bicicleta, Seul tornou-se mais pequena e calma. Com os seus passeios e animais de cimento esta floresta ainda transmitia paz e esperança.

           

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          O meu processo de iluminação terminou e cá estou eu no mundo sem grandes ideias ou planos sobre como viver ou fazer arte de uma maneira diferente.

          Em Arte sempre que necessário anunciava-se o volume 2 que era suposto sair se e quando eu completasse e abandonasse este processo – com sucesso. A verdade é que tenho tido que descobrir e decidir de raiz quais são os meus objetivos artísticos e para a vida.

          Disse que me sentia cética em relação às capacidades da arte de alcançar a verdade; aquela que nos “liberta”. Durante um tempo, cheguei a pensar em fazer coincidir a arte com a vida na esperança de que a arte se tornasse menos superficial ou redundante. Agora acho que deveria libertar a arte da vida e das suas questões. A arte poderá então voltar a reclamar o seu poder emancipatório.

           

          Seul, agosto, 2020

          Traduzido do original em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia da Silva.


          i Runnels, J. [Tweede Haagse School]. (2012). A Test of Composing : Enlightenment [Video]. https://vimeo.com/36323733.


          i Rains Retreat é um retiro anual de três meses, uma prática budista em que os monásticos interrompem a sua deambulação durante a época das chuvas e se instalam num lugar para praticar a meditação.


          i Mosteiro Budista Theravada [N. do E.]

          EN

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          Accidentally, I got to compose the outline of my performance piece called Art, as necessary at an artistic research conference with Jeremiah Runnelsi in Brussels, 2011. Its concept was that a secular artist agent – me – infiltrates an anti-secular, transcendental enlightenment seeking group, goes through their trainings, gets enlightened, and comes back out to the world as artist. Or not.

          Fatigue around working in the art world or system had been accumulating, and my disenchantment and suspicion grew about art as a medium for spiritual growth. When I met an highly revered meditation teacher in Seoul in 2014, I applied for and was granted a place in the next year’s Rains Retreatii at a forest monastery in Australia where he was the abbot. I was to meditate there and do nothing for three months.

           

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          The monastery property was big with individual huts spread throughout the forest. There were no schedules except for a weekly congregation of the whole community at the meditation hall, and the daily lunch. Once a day, I’d go to the kitchen for helping with food prep and clean-up, and also for socialising. Very quiet throughout the day, the place got bustling and hyped up by a large group of supporters gathering to offer food. When the festive lunch was over, the rest of the day and night was all to myself with no more meals, no people to meet, or work to do. I’d meditate in my room or in the dark and silent meditation hall. When not meditating, I read or walked in the forest.

          Though dry and desert-like, I was living in the middle of a forest, full of kangaroos, parrots, kookaburras, crows, lizards roaming about and not running away from us. I roamed, too, solitary under the moon or star or sun light, wordless and content. There were even more silent retreats within the retreat, too. I’d be brought lunch to my door when I was “on retreat” by my fellow meditators, so I need not work, meet or talk to anyone. Was it lonely? Not at all. I was quiet and peaceful. This solitary retreat produced a unique state of mind for me, conducive for meditative absorption. As I woke up one morning, my mind click-locked into a strange state, where nothing moved. No thought, no feeling. Yet, I was conscious. Only in retrospect, I could recall that I was aware, and how so empty this experience was of any mental, emotional, and, not to mention, physical contents. What was it, then, if it wasn’t any of those? Certainly not any enlightenment on its own, but a first-hand experience into a state of awareness, absent of mental object, which seemed like a clue or my own empirical data to many of the suppositions of the enlightenment theories that I was learning – non-duality, not-self, reincarnation, and other transcendental stuff.

          The three months went, and I was so well rested mentally and physically. I was high, too, feeling like I was tapping into the secrets of my existence. I would’ve really stayed there for a long time, if not the rest of my life. Too bad, it was a monastery only for men!

           

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          It wasn’t just by some chance that the monastery was the way it was. It was designed to provide the sociality supportive and spacious enough to encourage its members to let go of sociality. It was also by deliberate rejections of some of the easy traps of many communities. I am afraid that it came down to the forty years of a good leadership – a dictatorship, if you prefer.

          Fast forward some months, I was getting ordained at another associated nun’s monastery as a trainee – the best available of the kind for me at that time. It was an elementary ordination that was required of me in order to stay there on a permanent term. I shaved my head, wore a robe, kept certain precepts and rules, and didn’t go out of the bound of the monastery. I was mainly to work in the kitchen and outdoors, which fully ordained nuns weren’t allowed to do. I’d spend over a year there.

          Many things were similar to the earlier monastery, like the forest or basic organisational structures, but more things were different. I had a lot more chores and little retreat time. There were much less people coming into the place. Our abbess was uninterested in sharing the monastery with random people; no unaccompanied or uninvited crowd, no free-riders. While supported by many diverse people, the place ran quite privately and opened its door only to proven people. I had little to do with her, and she let me be; I was a hard worker for the monastery and loved by some of its important members. Many monastic aspirants from all around the world came, knocked on the door, only to get sent away. With little public life to be had, my relations were reduced to close friendships with few people. Pristine, platonic. Intense too. Over time, I got weary of this role of a ‘private friend’. Hard to explain, when I got out of the monastery, I was happy to be free of these very loving, kind, soulful friendships. In terms of the social point of view, it was a life of a renunciate in a small, controlled and closed community. Peaceful, but I didn’t feel home.

          Not being physical became increasingly a problem for me. I had much manual work such as weeding, cutting trees or branches, using electric grass cutter or saw. Otherwise, monastic life was largely sedentary with little locomotion, with no sports or dance allowed. Now in one part, my body got pain and soreness from the manual work, in another parts, sore from inactivities. I felt the threat of impending or accelerating ageing and death – some of the fundamental sufferings of existence that I learned about – more realistically than I’ve felt before. The idea that I didn’t need to live as an ego, a personality, a body certainly appealed to me. This was what enlightenment is about: to go beyond the limitations of this particular mind and matter. Yet renouncing body while it’s healthy and able, renouncing public life while there were desires, felt more like killing something alive. I guess I didn’t get completely converted to that that’s what this life is about.

          When it was the time for me to go for an higher ordination, I hesitated and went away for a break. My monastic adventure came to a more abrupt end than I anticipated, when the abbess decided that I do not come back. I wouldn’t have wanted it anyway, but did feel an indignation about her taking the decision that wasn’t hers – in my opinion. I regret my decision to not fight. Not for the membership but for the right. It feels like a betrayal to my politically conscientious self as well as to the society I was a member of albeit temporarily. There is a point in monastic training that one should work on one’s own mind in even seemingly political situations, which I respect and disrespect. When I was presented with the choice between life styles and social identities, rather than the choice between enlightenment or no enlightenment, my preference was obvious. Only an identity, but I was always more at ease with that of the supposedly a ‘free’ artist than any religious person.

           

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          Living in Seoul in time of Corona was a break! It had been over two years since I left the monastery. I spent another half year wandering and wondering for my future direction, winding down and eventually settling into an artist’s life in Seoul, my old hometown. Arriving back this time, I experienced anxieties like never before. I was scrambling through this hard and wild capitalist, urbanist, and artist life, when suddenly the lock-down hit the city. A retreat time! I was unexpectedly released from this relentless speed, pressures, possibilities. As if back at the retreat, I spent more time on my own, worked less, met people less. As I traveled only by walk or bicycle, Seoul became smaller and quieter. With its concrete paths and concrete animals, this forest felt still peaceful and hopeful.

           

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          My enlightenment operation had ended and I am out in the world but with no better ideas or plans for how to live and do my art differently.
          Art, as Necessary was comprised of an advertisement of the Volume 2, which was supposed to come out if and when I complete and come back out of the operation – successfully. Well, I am having to find out and decide from the scratch what my artistic and life goals are now.
          I said I was skeptical of arts’ capacity for realising the truth; the ones that set us ‘free’. For a time, I might have had the idea of merging art with life in the hope that that’d make my art less superficial or redundant. Now I think I rather should set art free from life and its concerns. Art, then, for me, might reclaim its emancipatory power.

           

          Seoul
          August, 2020

          Diana Niepce Experimentar o Corpo

          O corpo começa na memória. Existo na experiência de compreender o corpo. Compreendo-o a partir do lugar único da sua linguagem. Vejo-o revelar-se no lugar que habita, através do conhecimento da sua história e da sua apropriação. Corpo-casa, corpo que reivindica o seu lugar específico. Corpo-órgão, que não se cinge ao formato da sua utilidade. Corpo-passado, que se relaciona com o mundo através da sua biografia e não é a cópia imperfeita de um outro corpo.
          O meu corpo não é o mesmo da década passada, mas trabalha com a inteligência do antigamente. Mesmo depois ter sido obrigada a reinventar o andar. Acredito que o meu corpo mostra mais do que uma fatalidade. Quero queimar a arte vítima.
          Vivi demasiado tempo no corpo da norma, não podia compreender. Agora há um projecto consciente da memória do antigo corpo, esse que era virtuoso, que compactuava com a hierarquia do corpo performativo, resumia a dança à emoção e compactuava ingenuamente com a anulação da própria identidade. Castigava-me. Sem saber, infligia-lhe a sua insignificância. Escrava das circunstâncias,
          invejando o que eu não era, até me lembrar do suicídio. Quero matar o antigo sonho de sobreviver na aristocracia virtuosa do corpo para a alma ser premiada por uma metempsicose. Acidentalmente compreendi a importância de faltar ao sonho.
          Então e a medula? Mãe das células, essa que é a génese do movimento. O mundo diz-nos que o andar está nas pernas. E, assim, torna o essencial num segredo. Olhar o corpo de dentro. A norma dita um padrão para a construção e para o funcionamento dos corpos, ela fabrica o corpo à sua imagem.
          É necessária a revolução da norma, conceito gasto na simbiose das culturas identitárias. Reformular o conceito de normalidade num caminho para além da identidade, fazer ruir as preferências genéticas do mito do corpo e da hipernormalidade. Mito que olha o corpo apenas pela sua forma. Hipernormalidade
          que nos afasta do mundo real na falsidade de que o corpo apenas existe na sua produtividade. Sociedade vítima da sua herança cultural, que sempre escondeu a verdadeira identidade do corpo, permite o surgimento do corpo não norma com todas as suas imperfeições e assim mata o privilégio hierárquico. O desgosto de ter de falar do corpo fora da norma com os termos de moral, bondade, solidariedade, dever. Fingir empatia é o mesmo que tornar o corpo apenas um esqueleto. O único diálogo passível é o afecto, o resto não tem sentido.
          O ritmo miserável que obriga o corpo a crescer – andar, na prontidão do compasso das fotocópias, a acarinhar os virtuosos da genética – atletas da masturbação plástica. Sobram os outros, os desafortunados, os inúteis, os indesejados, desfigurados nos corpos doentes, os escondidos nas margens a quem chamamos inválidos. Somos sempre um caso perdido. Somos um catálogo de monstros impossibilitados de criar uma identidade verdadeira, que se constrói a partir daquilo que os outros chamam deformação. Tragédia de coexistir com os normais deste mundo.
          Para quê estandardizar o corpo para o expor numa prateleira na esperança da venda? Como se viver não fosse mais do que vender um corpo. Demasiado gordo, demasiado magro, demasiado grande, demasiado pequeno, demasiado claro, demasiado escuro, demasiado belo, demasiado desfigurado, o tudo para nada. Até o corpo se tornar novamente imperfeito e ser esquecido no pó da prateleira. Impossível de salvar da opressão que se vê no sofrimento das formas do corpo. Demasiado feliz, demasiado triste, demasiado bom, demasiado mau. Continuamos a comer veneno e nada será suficiente. Nunca seremos suficientes. Suficientemente normais. Suficientemente sujos. Não precisamos de um novo corpo. A dimensão do corpo é maior do que a mutilação que a norma lhe inflige. O corpo é mais do que a sua acção.
          Quero falar do que ninguém diz. Não existi quase toda a minha vida por culpa da crença de ter de existir num corpo que não era o meu. Quero parar de pedir desculpa ao policiamento da norma, que destrói tudo que difere dela própria. Não pertenço ao nada. Não sou incompleta. A doença da consciência inconsciente por ter acreditado que o corpo só existia na perfeição. Quero parar esta violação da minha intimidade e ninguém me dirá como ser.

          O corpo não pode ser desprezado. As suas ternuras, ansiedades, arrepios e dores enchem o estômago, fazem acordar deste sonambulismo na execução de mais uma inquietação – existir no invisível. Este ritmo igual para todos, que reclama eficiência e indiferença absoluta. É preciso resistir através da lucidez de estar repetidamente a surpreender o corpo. Eu sou cobarde por ter compactuado com esta opressão no drama de fugir das margens.
          Existo neste corpo, consciente da fragilidade que ele representa e ressurjo na neurose de tentar compreender o seu significado. Por vezes pergunto-me como cheguei aqui. Acordei num corpo que não me pertencia, um corpo muito diferente do que o que tive durante toda a vida e fui obrigada a reconstruir-me. Agora num estado de ininterrupta mutação, assumi a consequência acidental que o metamorfoseou e matei o trauma. Deixei de procurar o meu corpo no corpo do outro e encontrei-o com o outro. Existir no outro como esse ser o meu outro lado. O corpo encontra-se nos olhos do outro. Arriscam-se a expor a pele – cena nua, capazes de resistir, de encontrar equilíbrio no desequilíbrio mútuo. No trato secreto que faz do
          meu corpo um contador de histórias, encontrei o sentido do seu estado íntimo e real.
          Este lugar é um projecto que desembaraça o estado de consciência que vive no manifesto de experienciar o meu próprio corpo. Corpo testemunha do seu lugar, que me faz desapegar da obsessão pelo virtuosismo e procurar encontrar-me na sua linguagem única. Corpo que me torna um narrador cego a viver na repetição, até um dia não precisar de falar mais disto e assim destruir a história da identidade do meu
          corpo.
          Cansei-me da submissão. Nesta presença íntima de alguém que me lê, e no silêncio procuro o nada. O desaparecimento da palavra cria a linguagem. A linguagem silenciosa que reescreve e redefine o corpo, que destrói a irrelevância como invólucro. Um exercício que torna o invisível visível, que está longe do fanatismo de ver o mundo a preto-e-branco. Observo que a dança desfigura o corpo virtuoso há muito tempo e, se pensar apenas através da história do meu corpo, encontro na escrita deste texto algo que se aproxima da experiência coreográfica, como se de um guião se tratasse.
          Dispo-me de mim e visto o corpo num acto de desapego do meu antigo lado. Quero mais do que existir anestesiada na insignificância e na insatisfação de querer o que preciso. Quero abandonar a procrastinação da estagnação e do desgosto da sílfide nauseabunda que se apoderou do meu espírito com a academia. Quero que o meu corpo seja mais do que uma inspiração pornográfica que me apresenta apenas como mais uma história. i Quero existir longe da ilusão de que o meu corpo pertence ao museu do freak show. Quero confiar no gesto que reflecte a capacidade crítica e política do corpo. Quero estar no antagonismo que simboliza resistência. Quero extinguir a norma com a linguagem do corpo e viver numa nova ordem das coisas. Quero abrir a provocação, quero gerar desconforto: este é o único caminho possível para não acordar no Campo de Asfódelos. Quero insistir no saber dos outros e esquecer o passado de tudo aquilo que não consegui ser. Quero falar da beleza da estranheza do corpo, e da sua incompreensão misteriosa que prende o olhar. Quero viciar o meu corpo na possibilidade da sua presença absoluta. Quero todas estas coisas e sou todas estas coisas. Quero perder-me no prazer indiscutível do sentir, longe da tristeza de coexistir no fingimento. Quero compreender a minha existência e na alma rasgada dar razão às almas que me cercam. Quero existir numa alma aberta e não numa emprestada.
          Quero dar ao meu estado de alma uma alma. Quero fazer da minha alma a extensão do meu corpo e tornar o corpo extensão da alma.


          i Ver Stella Young, TEDxSydney 2014.

          Christophe Wavelet Miguel Wandschneider Aproximar o campo dos possíveis do campo dos desejos

          A conversa de que o Coreia publica aqui excertos decorreu em julho de 2020 no Parterre. Este novo lugar situa-se numa rua sossegada de Campo de Ourique, muito perto do Jardim da Parada. No momento em que o Ampersand i suspende a sua atividade, o Parterre abre as suas portas no rés do chão de um pequeno prédio. Uma sala acolherá uma livraria de arte contemporânea, outra será dedicada a um programa expositivo. Miguel Wandschneider é o responsável pelas atividades. Christophe Wavelet falou com ele a propósito do projeto pensado para este lugar.

           

          PARTERRE

          CW – L’herbe pousse par le milieu, como disse Deleuze. O milieu para nós hoje é aqui e agora o Parterre.
          MW – Ainda está na incubadora… Nos últimos sete anos, eu trabalhei assiduamente com a Ana Jotta, desempenhando o papel de curador tal como o vejo: o de ser uma espécie de compagnon de route da artista. Entendemo-nos muito bem nessas várias experiências de colaboração. Depois de ter deixado de trabalhar na Culturgest, em março de 2017, continuámos a encontrar-nos regularmente e eu falava-lhe muito de fantasias que tinha. Uma dessas fantasias era criar um espaço de exposições na sala de estar de um apartamento onde eu viveria – chamar-se-ia simplesmente «sala de estar». Essa fantasia pressupunha que algum mecenas generoso estivesse disposto a pagar a renda de um apartamento de cinco ou seis assoalhadas. Nessa altura não tinha dinheiro para pagar a renda de um apartamento em Lisboa, estava a viver em casa da minha mãe. Matava assim dois coelhos de uma cajadada: criava o meu próprio espaço e resolvia o meu problema habitacional. Agradava-me muito esse nome: «sala de estar», um espaço onde uma pessoa se demora, onde o tempo é usado sem pressas. E agradava-me muito a ideia de eu ser o anfitrião. Outro devaneio que eu tinha era criar uma livraria…
          CW – A «sala de estar» poderia ter uma biblioteca…
          MW – Uma biblioteca não creio, porque existe em Lisboa a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Tem várias lacunas, mas também tem muitas coisas preciosas. Quando trabalhei na Culturgest, propus e defendi a criação de uma livraria ii de arte junto às galerias de exposições. Demorei cerca de dois anos a convencer o Miguel Lobo Antunes iii. A livraria abriu em fevereiro de 2011. Até julho de 2016, fiz sempre todo o trabalho de pesquisa, seleção e encomenda das publicações.
          CW – Porque é que era tão importante para si fazer essa livraria?
          MW – Para responder a essa questão, preciso de fazer alguma contextualização. Fiz a minha formação universitária em sociologia. Quando estava a estudar sociologia, dava por adquirido que o meu destino profissional seria fazer investigação e ser professor universitário. Mas por vicissitudes de ordem biográfica, digamos assim, nunca me dediquei ao métier da sociologia.
          CW – De onde vem o seu interesse pelas artes?
          MW – Nesses tempos de estudante, interessei-me muito pela sociologia da arte. Gostava de arte de uma forma relativamente superficial, ia ver exposições com alguma regularidade. Nesses anos era um ávido consumidor de dança contemporânea, frequentava muito a Cinemateca Portuguesa, ia com alguma regularidade ao teatro. Por curiosidade, comecei a tomar a arte contemporânea, ou seja, os contextos e os agentes da arte, como objeto de estudo. Escolhi como tema da minha tese de licenciatura a génese, a organização e as dinâmicas da performance como mundo da arte em Portugal. A sociologia tem muita dificuldade em abordar as obras de arte. Aquilo que a sociologia sabe fazer é estudar os contextos, caracterizar os atores, analisar as suas estratégias e ações. Mas a sociologia não possui as ferramentas adequadas para analisar e compreender o objeto artístico. De resto, essa é uma das razões pelas quais é muito malvista no campo da arte. O modo de objetivação da sociologia é antagónico à ideologia dominante e constantemente reproduzida no campo da arte. Quando comecei a trabalhar como curador, a minha visão das coisas estava muito estruturada por essa formação académica. Alguns anos mais tarde, quando comecei a trabalhar na Culturgest, estava muito consciente da condição periférica do contexto artístico português. E tinha a convicção de que, sendo curador numa instituição como a Culturgest, era minha obrigação usar o poder que essa posição me conferia para tentar fazer existir no contexto português aquilo que dele estava ausente por força da sua condição periférica. Entre outras coisas, achei que tinha a obrigação de tentar criar uma excelente livraria de arte contemporânea, o que até então nunca tinha existido em Portugal, imagine-se! «Presunção e água benta, cada um toma a que quer», e eu não tenho qualquer pudor em afirmar que a livraria que há uns anos existiu na Culturgest não tinha paralelo, nem concorrência, em cidades como Viena, Bruxelas ou Paris, para dar alguns exemplos apenas.
          CW – Em Paris havia poucas livrarias de arte. Agora há a excelente After8Books. Em Bruxelas, durante alguns anos, a distribuidora Motto fez um trabalho modesto mas necessário no Wiels.
          MW – O facto de tantos museus e centros de arte contemporânea concessionarem a livraria é muito revelador… Demitem-se de uma responsabilidade que deveria ser exclusivamente sua. É verdade que quase todas as instituições estão subdimensionadas em termos de equipa. Mas às vezes é preciso arregaçar as mangas, respirar fundo e dizer para si próprio: «Que se lixe.» Paga-se um preço elevado: o trabalho que isso dá… Mas onde eu queria chegar é a esta pergunta muito simples: porque é que em Portugal não podia haver uma excelente livraria de arte?
          CW – Agora vai haver, aqui, no Parterre.
          MW – Espero bem que sim… E se calhar vai voltar a haver na Culturgest. Mas porque é que em Portugal não havia, nem tinha havido até então, uma excelente livraria de arte? A resposta mais óbvia é que não há mercado em Portugal para que uma tal livraria seja comercialmente viável. É verdade. Mas essa não é uma resposta satisfatória, na medida em que a escassez da procura não impede a existência de uma excelente livraria de arte.
          CW – Uma obra não tem de ter a priori uma situação já totalmente estabelecida. Tem de gerar, abrir, reconfigurar.
          MW – Pode criar o seu próprio público, o seu contexto de receção.
          CW – A história nas artes escreve-se assim, com iniciativas que no início não têm mercado.
          MW – Mas em Portugal não há, nem nunca há de haver mercado para que uma excelente livraria de arte seja comercialmente viável. Isso é uma impossibilidade. Só instituições como museus ou centros de arte é que podem fazer existir uma tal livraria. Portanto, o argumento da debilidade do mercado é falso. Em Portugal dá-se demasiadas vezes por adquirido que certas coisas não são possíveis. Essa castração tem muito que se lhe diga, e mais ainda num campo como o da arte, cuja ideologia dominante – essa falsa consciência – assenta na crença na liberdade e na autonomia como valores primordiais. Uma condição da liberdade é a consciência dos constrangimentos que condicionam o modo como pensamos e agimos. Ora, o campo da arte, e mais ainda em contextos periféricos, está muito dominado pelo conformismo. Sempre pensei que o desejo ou o wishful thinking é uma dimensão fundamental da minha atividade.
          CW – Essa é a história do pensamento em todos os campos. E também é a história da arte quando permanece fiel à vontade de emancipação. Aquilo que já estava estabelecido nunca era suficiente. Tem sempre de ser questionado de novo. E é assim quer nos campos teóricos de pensamento e especulação intelectual, quer nos campos de especulação artística. O que é que permite mudanças nos campos do pensamento ou da arte? Inteligência e coragem. Desejo próprio para entender como mudar.

           

          CONDIÇÕES (2006)
          MW – Voltamos à questão da condição periférica do contexto artístico português. Em teoria, a periferia é uma posição muito interessante para pôr em perspetiva e questionar as relações de força no contexto artístico internacional. A questão pode ser enunciada em termos prosaicos: porque é que o facto de estarmos numa periferia artística nos condena a chegar às coisas e a fazer as coisas depois de tantos outros? Quando comecei a trabalhar na Culturgest estava convencido de que não tinha condições mínimas para fazer um trabalho com relevância à escala internacional. A Culturgest tinha uma posição totalmente irrelevante no contexto internacional, não participava nem tinha qualquer influência sobre essas dinâmicas. E isso nem sequer era um problema para a instituição. Não havia na instituição a consciência da possibilidade, ou qualquer vontade, de mudar essa situação. Começa logo pelo convite que me foi feito. A Culturgest é um centro cultural multidisciplinar, e eu fui convidado para ser programador de arte contemporânea, do mesmo modo que havia um programador de dança, o Gil Mendo, e um programador de teatro, o Francisco Frazão. O modelo anterior de programação era muito diferente: havia um diretor artístico, o António Pinto Ribeiro, responsável pela programação das atividades em todas as áreas. Foi-me proposto que trabalhasse um dia por semana na Culturgest, dois dias quando houvesse mais trabalho para despachar… Isto não fazia qualquer sentido para mim.
          CW – Mas lembra-se que houve um tempo nas artes visuais em que quase não se falava de ‘curador’ ou ‘curadora’. Esse termo apareceu nos anos noventa – e mais recentemente ainda no campo das artes performativas. «As palavras da tribo» (les mots de la tribu), como dizia Mallarmé, mudam ao longo do tempo. Mais: assim que aparecem, são adotadas e naturalizadas, não são questionadas…
          MW – O meu batismo como curador foi em 1998. Nessa altura, o papel de curador já estava perfeitamente institucionalizado, quanto mais em 2004… De qualquer modo, estava enganado relativamente ao que conseguiria realizar na Culturgest. Alguns meses depois do início da programação concebida por mim, comecei a acreditar que era possível desenvolver um trabalho que estivesse sincronizado com o contexto internacional e que não fosse uma caixa de ressonância ou uma correia de transmissão do que era validado nos centros artísticos (aqui entendidos não apenas em termos geográficos, mas também e sobretudo em termos simbólicos). Na altura em que o Miguel Lobo Antunes me convidou para conceber o programa de exposições da Culturgest, ele decidiu aumentar substancialmente o orçamento para as exposições. Logo em 2006 pude contar com um orçamento de 510.000 euros para as despesas relacionadas com as exposições e as publicações, verba que se manteve estável durante vários anos. Pode-se fazer muita coisa com esse orçamento, apesar de a Culturgest ter uma vasta área expositiva, repartida por três galerias, duas em Lisboa e uma no Porto.
          CW – Que idade tinha em 2006?
          MW – Estava prestes a fazer 37 anos quando entrei na Culturgest. A minha consciência da condição periférica do país – e também do seu contexto artístico – já vinha de trás e estava associada a um sentimento de privação. Por exemplo, não me conformava com o facto de precisar de viajar para poder ter acesso a tantas coisas que não chegavam aqui. Esse sentimento era tanto maior quanto na altura não tinha dinheiro para viajar – viajei muito pouco até começar a trabalhar na Culturgest. Quando percebi que a curadoria seria a minha atividade profissional, disse a mim mesmo que não trabalharia com artistas estrangeiros até poder viajar o suficiente para ter um conhecimento mínimo da produção artística no contexto internacional. Portanto, até chegar à Culturgest tinha trabalhado com muitos artistas portugueses, mas não tinha trabalhado com um único artista estrangeiro. Na minha cabeça era muito claro: havia o campo dos desejos e havia o campo dos possíveis. O campo dos desejos parecia-me em grande medida irrealizável, mas o objetivo era aproximar gradualmente o campo dos possíveis do campo dos desejos. É isto que no fundo está por detrás da criação da livraria na Culturgest. Mas mais concretamente, o que despertou o desejo de criar a livraria foi a exposição dos Roma Publications na Culturgest em 2006. Na altura era prematuro propor tal coisa à administração. Seria imediatamente chumbada. Nos primeiros tempos, a minha principal prioridade era a melhoria dos espaços expositivos em Lisboa, que eram indecorosamente maus. Esses espaços foram transformados antes mesmo de ter início o programa com a minha assinatura. Não fazia sentido criar uma livraria antes de elevarmos significativamente a qualidade das publicações – as publicações da Culturgest eram, na sua maioria, de fraca qualidade. Quando cheguei à Culturgest pensei que deveria ficar oito anos, o tempo necessário para, se as coisas corressem bem, construir um corpo de trabalho sólido e que se enraizasse no contexto local e/ou internacional. Acabei por ficar doze anos!
          CW – Conversei com a Ana Jotta sobre a exposição do Álvaro Lapa na Culturgest iv. Fiquei na exposição sozinho durante três horas. Foi uma maravilha. Fez-me pensar: mas porque é que um artista como o Álvaro Lapa não é mais conhecido, à parte esta situação periférica?
          MW – Que explica quase tudo, se não tudo. Eu na altura pensei: «Não posso abrir a boca em relação à livraria.» Às vezes tenho a perfeita consciência de que aquilo que gostaria de fazer é uma fantasia, de que não estão reunidas as condições para isso, de que é preciso esperar por circunstâncias propícias. Demorei cerca de dois anos até falar com o Miguel Lobo Antunes acerca da livraria. E quando lhe falei, ele respondeu-me com um redondo não. Fiquei muito desmoralizado, muito frustrado. É claro que ele tinha toda a legitimidade para discordar dessa ideia ou para achar que não era uma prioridade. Mas isso não quer dizer que eu desistisse. Para mim, o respeito pela hierarquia manifesta-se em primeiro lugar pelo dever de dizer o que se pensa, contribuindo dessa maneira para os processos de tomada de decisão. A certa altura decidi enviar um e-mail ao Miguel Lobo Antunes explicando-lhe tintim por tintim porque é que nós tínhamos a obrigação de criar a livraria. E quando estava a escrever o e-mail ocorreu-me um argumento que me pareceu infalível: criar a livraria custar-nos-ia menos dinheiro do que o que gastámos com a produção de algumas publicações – por exemplo, o livro de Walid Raad (1967, Líbano), que tínhamos publicado no contexto da exposição retrospetiva do Atlas Group no outono de 2007, ou o livro de Willem Oorebeek (1953, Holanda), que tínhamos produzido por ocasião da sua retrospetiva no verão de 2008. E a livraria era incomparavelmente mais importante do que qualquer publicação que a Culturgest tivesse produzido ou viesse a produzir.

           

          CURADORES E FORMIGUINHAS
          CW – Falávamos de categorias que agora se usam no mundo das artes. Fiquei a pensar, em relação a essa categoria de ‘curador’, que é diferente da categoria de ‘programador’. Na verdade, essas categorias mudam com o tempo. Programador é uma categoria dos anos oitenta, quando surgiram novas possibilidades para financiar e apresentar mais e mais projetos dentro de um determinado campo. Agora, desapareceu. Curadores, hoje, são como formigas, há sempre mais que aparecem. O milieu das artes (e os milieux são sempre pequenos, todos se conhecem ou ouviram falar uns dos outros) pega nas palavras e nas categorias que se tornam dominantes, tal como acontece com os artistas.
          MW – Os curadores ganharam um poder simbólico desmesurado, o que é problemático, mas esse poder é-lhes constantemente outorgado também, e em grande medida, pelos artistas.
          CW – Hoje, curadores são como formiguinhas.
          MW – Costumo dizer que se deveria abolir a palavra ‘curador’. Há funções que os curadores desempenham que são importantes, mas não precisam de vir associadas a essa palavra, não precisam de estar revestidas do poder que a própria palavra consagra.
          CW – Mas quando é que apareceu a palavra ‘curador’ em português?
          MW – É um anglicismo. Etimologicamente vem do latim curare, mas na verdade é apropriada da palavra inglesa curator. Em França era corrente o uso da palavra comissário (commissaire). Commissaire général. Acho que essa designação ainda é usada na Bienal de Veneza.
          CW – Até a Documenta tinha um diretor ou uma diretora-geral.
          MW – Em Portugal, o termo ‘curador’ generalizou-se no final dos anos noventa. Onde houve mais problemas foi no uso do verbo. Não se dizia que o curador «curava», mas que o curador «comissariava». Eu próprio ainda o digo, porque embirro com o verbo ‘curar’ aplicado à atividade do curador, faz-me sempre pensar em queijo… Este verbo tem, no entanto, significados justos por associação às obras de arte: «tomar conta de», «cuidar de», «zelar por».
          CW – A palavra «comissário» desapareceu, agora são todos curadores.
          MW – Lembro-me de uma vez, durante um jantar de inauguração, ter dito a um certo escritor e curador que ele era muito melhor escritor do que curador. E perguntei-lhe porque é que ele não deixava de comissariar para se dedicar àquilo que sabia fazer melhor, que era escrever. Ele ficou muito incomodado, tomou isso como uma crítica. Na verdade, disse-o como um elogio: no mundo da arte há uma overdose de maus curadores e um défice de excelentes escritores. É uma questão de poder simbólico. E é uma questão de carreira. Não se consegue ganhar a vida a escrever textos acerca de arte, salvo se se for professor universitário.

           

          COULISSES
          MW – Miguel, falámos sobre o Parterre, porque é o seu presente enquanto projeto e vai acontecer em breve. O Parterre vai ter dois espaços: o da livraria e o das exposições.
          MW – E há um terceiro espaço que não é físico: a editora. Essa era outra fantasia de que falava à Ana: uma editora que se chamaria Editores Anónimos, porque o modo de financiamento dos livros seria coletivo e anónimo. A ideia era que cada publicação seria financiada com o dinheiro de diferentes pessoas, as quais contribuiriam com um valor superior ao do preço de venda ao público dessa publicação. E como todas as contribuições, mesmo as de valor mais elevado, seriam anónimas, o fator de prestígio social associado ao apoio mecenático deixaria de existir. O rico e o pobre estariam ao mesmo nível – ambos seriam anónimos.
          Voltando ao início da nossa conversa, a ideia do Parterre surgiu em julho do ano passado. Assim que a Ana Jotta tomou posse deste apartamento disse-me que eu o podia usar para a livraria. Durante décadas o apartamento tinha sido habitado por um senhor que convertera a sala de estar num cabeleireiro de bairro. O apartamento estava num estado lastimável. Eu fiquei radiante logo que o vi. E disse à Ana: «Vai ser livraria, sala de exposições e editora!»
          O Parterre vai abrir em outubro. A primeira situação expositiva consiste num conjunto de oito serigrafias que Jan Vercruysse (1948-2018, Bélgica) produziu em 1994 e que se intitula Labyrinth and Pleasure Garden. A ideia de assinalar a abertura do Parterre com essa série ocorreu-me justamente por causa de um dos significados historicamente enraizados da palavra parterre: um jardim ornamental composto por canteiros de flores ou plantas, que são demarcados por sebes ou muretes de pedra e ligados por caminhos. A partir de meados do século XVII, a palavra parterre passou a designar também a área da sala de teatro situada em frente ao palco, onde os espectadores se concentravam para assistir a um espetáculo, nos primeiros tempos de pé, mais tarde sentados Essa metáfora do teatro e do espectador implicada no nome Parterre também me interessa. Labyrinth and Pleasure Garden constitui uma série de representações gráficas de jardins clássicos que não são senão parterres. O problema que serve de horizonte a essa obra é o da arte no espaço público. A resposta de Vercruysse a esse problema é tão lapidar quanto desarmante: um jardim. Mas o artista entende esses jardins como esculturas, o que ele concebe são esculturas para o espaço público. Em 2001, ele produziu mais treze serigrafias que completam a série anterior. Duas destas propostas para jardins públicos foram realizadas, uma na Alemanha, a outra na Bélgica. Se tudo correr como previsto, em setembro de 2021 vamos mostrar a segunda parte da série. No site do Parterre não vamos usar a categoria exposições; as situações expositivas vão estar arrumadas em diferentes categorias. Por exemplo, a apresentação das primeiras oito serigrafias vai ser classificada como preâmbulo, enquanto que a apresentação das treze seguintes vamos chamar sequela. Para diferentes situações sugeridas ou suscitadas por uma determinada situação expositiva – por exemplo, uma conversa ou a projecção de um filme – vamos usar a categoria «entr’acte». Construi um sistema classificatório para dar sentido às diferentes actividades do Parterre que incorpora um número extravagante de categorias.
          CW – Trabalhei durante três anos sobre Relâche e Entr’acte iv. Essa brincadeira do Satie e do Picabia talvez tivesse que ver com isto: normalmente as pessoas esperam que algo aconteça dentro de um teatro, e relâche refere-se a quando o teatro não abre – il fait relâche. Dentro de Relâche aconteceu a primeira projeção do filme Entr’acte, de René Claire. RelâcheEntre-acte.
          MW – Uma das categorias mais importantes será «artista em residência». Essa categoria ocorreu-me por brincadeira, porque o Parterre ocupa um apartamento, mas também e sobretudo como comentário irónico à profissionalização dos artistas em residência e ao negócio das residências artísticas. Decidi espontaneamente chamar «artista em residência» a artistas cujo trabalho vai ser exposto no Parterre durante um período dilatado, digamos, oito ou dez meses, através de sucessivas apresentações, diferentes capítulos que se encadeiam no tempo. Gosto muito desta ideia de propor a um público local a possibilidade de conviver com o trabalho de um determinado artista durante um período prolongado. E em doses homeopáticas, porque a sala é pequena, o que cria condições propícias a uma intensificação da experiência.

           

          ECONOMIAS Ltd. — CONDIÇÕES 2020
          CW – O Miguel falou que vai ter livros esgotados na livraria. Os leitores que frequentam a livraria podem comprá-los?
          MW – Podem. Em princípio, não estou interessado em ter na livraria publicações esgotadas que sejam caras, nem pelas mesmas razões, livros de artistas com edições limitadas. Esses as pessoas podem ir comprá-los noutro lado ou consultá-los numa biblioteca como a da Fundação Calouste Gulbenkian.
          CW – Mas livros esgotados geralmente são muito caros.
          MW – Quase sempre. Em qualquer caso, os livros são bens caros para muitas pessoas que têm um verdadeiro interesse por arte contemporânea. Estou a pensar, por exemplo, em estudantes ou em muitos artistas que não conseguem ou se veem aflitos para pagar um espaço de atelier e que não podem comprar livros a não ser ocasionalmente. O modelo económico da livraria do Parterre é o mesmo que foi posto em prática na livraria da Culturgest: no início, compra-se uma determinada quantidade de publicações a fundo perdido, e a partir do momento em que a livraria abre as portas todo o dinheiro gerado pela venda das publicações é gasto na compra de mais publicações. A livraria funciona como um sistema que se alimenta a si próprio. Este modus operandi pressupõe que não há custos de aluguer do espaço nem custos com pessoal. Portanto, a livraria do Parterre é possível porque a Ana Jotta me cedeu este apartamento e porque eu vou estar no Parterre durante o horário de abertura ao público, sem ser pago por esse trabalho.
          No início, a Culturgest gastou 25 mil euros para abastecer a livraria com cerca de 150 títulos. Quando a livraria deixou de estar sob a minha alçada, em Julho de 2016, existiam cerca de 850 ou 900 títulos. Foi um crescimento exponencial em cinco anos e meio. Para que os livros fossem mais acessíveis, eles eram vendidos a preço reduzido, normalmente cerca de 20% abaixo do preço de venda ao público. Não estou a falar dos remainders, que também existiam na livraria, e cujos descontos variavam entre 50% e 80% do preço de venda ao público. No caso de livros mais caros, por exemplo um livro que tivesse 50 euros como preço de capa, era aplicado um desconto maior. O Parterre vai seguir a mesma política de preços.
          CW – Concretamente, como vai financiar os primeiros livros do Parterre?
          MW – Com o dinheiro que recebi de uma herança e com o dinheiro de um amigo muito chegado que fez questão de pôr no Parterre, também a fundo perdido, a mesma quantia. Esse dinheiro permite-nos abrir a livraria com 100 ou 150 títulos. Não deixa de ser irónico ou mesmo patético: estou a viver em casa da minha mãe, porque não tenho dinheiro para alugar um apartamento, e vou usar o pecúlio que recebi de herança para fazer existir uma livraria sem qualquer viabilidade como negócio e que, ainda por cima, vende os livros a preço reduzido! Esse dinheiro também não chegava para um ano se alugasse um apartamento onde viver… Como se costuma dizer, «perdido por cem, perdido por mil». Mais vale gastar o dinheiro para fazer coisas em que acredito e que acho que fazem falta.
          CW – Não aprendi isso no início da minha carreira, mas pouco a pouco entendi que as lógicas neoliberais não ficam de fora do campo da arte.
          MW – Dominam o campo da arte! Tornaram-se hegemónicas. Gostaria que o Parterre estivesse nos antípodas dessas lógicas. Não começa mal: um indigente como eu a quem caiu no colo uma pequena herança gasta esse dinheiro para fazer existir uma livraria como a do Parterre…
          CW – É com loucuras desse tipo que é possível acontecerem coisas paralelamente às lógicas de highway das instituições. Tem de haver respostas.
          MW – Sim. As respostas não podem passar pela ilusão de que se pode mudar o mundo, mas antes pela convicção de que podemos afetar o pequeno mundo que nos circunda. É como quando se atira uma pedra à água: os círculos concêntricos na água são tanto mais nítidos quanto mais próximos estão do ponto em que a pedra mergulha na água.
          CW – Olhe, por exemplo, a proposta modesta mas precisa do Institut de Carton vi! A minha ideia de abrir um espaço de intervenções artísticas em Bruxelas não tem só que ver com o facto de me ter mudado com o meu parceiro para um grande espaço, mas também com todas as experiências maravilhosas que tivemos com os amigos do Institut de Carton. Lembro-me, por exemplo, da exposição incrível de Jochen Lempert (1958, Alemanha).

           

          «OS ARTISTAS» > « A EDITORA»
          MW – É curioso mencionares Jochen Lempert… Ele vai ser o primeiro «artista em residência» no Parterre.
          CW – Como se cruzou com a obra dele?
          MW – O Jochen Lempert trabalhava com a galeria ProjecteSD, em Barcelona. Durante o jantar de inauguração de uma exposição na galeria, perguntei à Silvia Dauder se na manhã do dia seguinte ela me podia mostrar as obras dele que se encontravam no acervo da galeria – e eram muitas. Assim, passei três horas num sábado de manhã a ver muitas fotografias de Jochen e a falar com a Silvia acerca do trabalho dele. Fiquei de tal maneira enfeitiçado que decidi convidá-lo para fazer uma exposição retrospetiva na Culturgest, a qual veio a ter lugar em fevereiro de 2009. Nessa altura, o Jochen tinha uma carreira discreta, era pouco conhecido no contexto internacional. Voltamos à questão da periferia. Quando entrei na Culturgest queria trabalhar regularmente com artistas excecionais que estavam subvalorizados e que eram pouco conhecidos à escala internacional. Estava muito consciente do mimetismo que existe no mundo da arte: certas figuras fazem determinadas escolhas e depois vem uma fila imensa de agentes, a começar pelos curadores, que replicam essas escolhas. Mais uma vez, é a questão da possibilidade (e da necessidade) de construir na periferia uma posição de autonomia e relevância no contexto internacional, tirando partido da distância relativamente aos mecanismos dominantes de circulação e consagração. É curioso que em Portugal há uma frustração constante pela falta de atenção aos artistas portugueses no contexto internacional e depois somos muito desatentos ao que se passa em contextos periféricos ou semiperiféricos.
          CW – Na Culturgest fizeram uma publicação?
          MW – Fizemos uma publicação maravilhosa. Esgotou em pouco tempo. A exposição chamava-se Fieldwork e apresentava uma vasta seleção do trabalho do Jochen desde meados da década de noventa. A publicação chamava-se Recent Fieldwork e concentrava-se no trabalho que ele produzira nos dois ou três anos anteriores. Foi coeditada com a Walther König. Fez-se uma tiragem de setecentos exemplares. Apesar de a publicação ter distribuição internacional, a minha expectativa era a de que muitas cópias ficassem a acumular-se para sempre no armazém, porque o Jochen tinha uma carreira modesta. Mas passado um ano estava esgotada. A certa altura, propus ao Miguel Lobo Antunes fazer uma segunda edição, mas ele respondeu-me «nem pensar».
          CW — Há dois fenómenos muito familiares para qualquer pessoa que se interessa por livros acerca das artes, particularmente as visuais: os livros esgotados e a possibilidade de republicar. Por exemplo, a editora Primary Information, em Nova Iorque, especializou-se em republicar livros historicamente importantes como, recentemente, o Work 1961-73 da Yvonne Rainer. Uma reimpressão de alta qualidade.
          MW – Esse livro e outros com a chancela da Primary Information vão estar na livraria, é claro. Interessa-me imenso a coexistência entre a editora e a livraria. O primeiro livro que estou a prever editar é uma coletânea dos escritos dispersos da Ana Jotta. Quando a Ana ficou com este apartamento e o pôs à minha disposição, eu já estava a trabalhar na preparação desse livro e de um outro acerca do trabalho dela. O devaneio de criar uma editora chamada Editores Anónimos estava diretamente ligado à circunstância de estar a trabalhar nesses dois livros. As fantasias têm de estar ligadas a algum objeto, mesmo que apenas imaginado ou desejado, caso contrário não passam de uma coisa oca e inconsequente.


          i Estrutura cooperativa independente gerida pelo artista Martin Laborde e pela editora Alice Dusapin que teve a sua atividade intermitentemente em Lisboa desde 2017, recentemente na rua de Buenos Aires 19 à Estrela.


          ii A Culturgest teve entre 2000 e 2002 uma livraria junto ao bar concecionada à Ler Devagar. Este bar foi substituído em 2020 por uma agência bancária da Caixa Geral de Depósitos. [N. do E.]


          iii Miguel Lobo Antunes (1947, Lisboa) foi administrador da Culturgest, com os pelouros da programação cultural e da comunicação, entre 2004 e 2017. [N. do E.]


          iv “Lendo resolve-se: Álvaro Lapa e a literatura”, com curadoria de Óscar Faria, patente de janeiro a julho de 2020. [N. do E.]


          v Relâche é uma peça de Francis Picabia (1879-1953) com música de Erik Satie (1866-1925), comissariada por Rolf de Maré para os seus Ballets Suédois, que foi apresentada no Théâtre des Champs-Elysées em Paris, em 1924. Da performance fazia parte a projeção de Entr’Acte, filme experimental feito para a ocasião pelo jovem cineasta René Clair (1898-1981). [N. do E.]
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          vi Institut de Carton é uma iniciativa de um grupo de artistas que, desde 2011, organiza cerca de duas exposições por ano numa casa privada em Bruxelas, na Avenue de Jette 41. [N. do E.]

          Henrique Furtado Diário de uma Quarentena em ABC

          Diário de uma quarentena em ABC  i

           

          18 de março, esta epidemia tem que ver com tudo, e vale a pena falar de tudo, porque representa um ponto zero, literalmente um planalto, de onde tudo pode renascer.

           

          22 de março, uns colegas partilharam o quadro de Caspar D. Friedrich, Das Eismeer (O Mar de Gelo), 1823/24. Avistamos um navio naufragado, no meio de blocos de gelo pontiagudos, numa paisagem glaciar sem fim: uma espécie de antepassado do Titanic.
          Historicamente, o navio é palco duma controvérsia do abandonamento, surgindo ora como perigoso meio de transporte que somos obrigados a abandonar; ora como recinto ao serviço da saúde pública, que nos é interdito abandonar (o termo quarentena advém da prática medieval de manter em isolamento durante quarenta dias os navios procedentes de certas áreas, de forma a evitar a propagação de epidemias); ora ainda como espaço-veículo de vida, que nos permite abandonar a terra (ou a falta dela) em agonia, tal como na Arca de Noé. O navio está enigmática e mitologicamente ligado à nossa própria sobrevivência enquanto espécie. É simultaneamente um vetor de fuga e um espaço fechado aterrador; é espaço que nos abriga de ameaças – físicas e existenciais –, e é ele próprio ameaça.

           

          27 de março, recebi um spam com a seguinte mensagem:
          «Apelido no site: GostosaDelicia. Anos: 41. Sobre mim: Morena muito adorável. Tenho um corpo firme e lindo. Lindo rabo, seios lindos, uma cona a ferver e a precisar de macho para me foder. Tenho uma simpatia exuberante, e uma energia que me faz ser super gostosa. Sou bem carinhosa, mas muito safada.»
          A luta de classes continua. Uns mantêm-se em casa, em isolamento e segurança. Outros, os que lutam pela sobrevivência, percorrem a cidade para providenciar alegria e prazer.
          Os meus níveis libidinosos estagnaram, pensei que esta reclusão fizesse disparar a minha tesão, mas não, o isolamento é ótimo para tratar vícios. Se toda a gente se estiver a sentir como eu, os trabalhadores do sexo devem estar a lidar com um colossal défice de clientes… E quando há crise capitalista na procura, a oferta fode-se. Ou, neste caso, deixa de se foder.
          Ainda assim, esta crise não deixa de ter contornos eróticos, ninguém se pode tocar, só contactamos fisicamente via objetos que agem como intermediários do toque — pacotes de cereais, fruta, queijo mozarela, e outros produtos alimentares ou farmacêuticos, objetos a priori desprovidos de voluptuosidade — e que se revestem duma hipotética camada fina e invisível de coronavírus SARS-CoV-2, o que só alimenta mais te(n)são.

           

          30 de março, participei num treino de dança via Zoom.
          Desde sempre, a comunidade da dança soube adaptar as suas manutenções corpóreas em todas as circunstâncias. Durante a ocupação de Leningrado pelos nazis, em 1941-1944, bailarinas do Instituto Coreográfico do Estado de Leningrado treinavam no meio de campos de cultivo que iam atravessando: eram colocadas estacas de madeira no solo a fazer de chão de dança, e como barra usavam-se as cercaduras delimitadoras dos terrenos.
          As pessoas esquecem-se, mas para chegarmos onde chegámos, tiveram de morrer milhões de pessoas; tiveram de dançar outros milhões; às vezes os dois ao mesmo tempo: de tanto dançarem morreram.
          Em 1518, houve uma famosa epidemia de dança em Estrasburgo. Por razões nada consensuais, uma mulher pôs-se a executar movimentos frenéticos. Começaram a juntar-se outras pessoas e progressivamente o “surto” alastrou. Aparentemente, por volta daIdade Média, aconteceram muitas epidemias deste género. As pessoas dançavam de forma indominável e algo sinistra, uma horda de Valeskas Gert. Espumavam da boca e dançavam até desmaiar de cansaço, até à morte.
          Lembrei-me daquele filme documental de Jean Rouch, Les Maîtres Fous (1955), em que praticantes do movimento religioso Haouka, nos arredores de Acra, levam a cabo um ritual em que dançam, fazem trocas de papéis, imitando os colonos e espumando descontroladamente da boca. É uma forma de fazerem pouco dos colonos e de os “castigarem”; de expurgarem a opressão a que estão submetidos, e de extravasarem o sentimento de injustiça.
          Estas epidemias de dança medievais deviam assemelhar-se a este ritual, deviam ser reações de desespero antiautoritário em relação às condições míseras em que se vivia. Era uma forma de escapar ao impensável agindo impensavelmente; convocando o insólito como reação ao inconcebível.
          Se esta quarentena durar ou se a crise socioeconómica se alongar, vai haver por aí muita gente em coreomania. Salvo os bailarinos, claro, que estão imunizados: uma crise coreomaníaca dos bailarinos seria um fenómeno redundante.

           

          16 de abril, criei um grupo WhatsApp para trocar ideias, textos e imagens com colegas. É verdade que os grupos WhatsApp podem ser fonte de angústia, mas também podem ser um canal de passagem de matéria. Em última análise o grupo morrerá e será apenas mais um de entre milhões de grupos WhatsApp que morrem todos os dias.
          As redes sociais encontram na morte o seu conceito dialético: operam a partir da efemeridade – de contactos, de ideias e de projetos – e ao mesmo tempo dependem da conservação (dos dados), graças ao big data como memória à escala planetária. O que interessa nas redes sociais (e às redes sociais) é o que permanece após o desaparecimento.
          É o caso da página na rede social chinesa Weibo de Li Wenliang, o médico que alertou para o novo coronavírus e acabou morrendo da infeção. Um dos utilizadores interpela o defunto Dr. Li: «O meu pai partiu hoje de manhã para um sítio de onde nunca mais pode voltar. Vim conversar consigo para ver se me sinto um pouco melhor. Você está bem por aí?» ii. «Por aí?» A que espaço estará este utilizador a referir-se? Será que o céu se tornou e-céu? Será possível falar de e-alma? Li morreu, mas não e-morreu. Nunca esteve tão e-vivo. Morrer do vírus tornou-o viral na e-vida.
          Pessoalmente preocupo-me com o meu legado digital post-mortem

           

          24 de abril, mais um passeio de “curta duração”, a dada altura sentámo-nos num banco de jardim, a B. começou a brincar com o musgo depositado entre as frestas do banco. A extinção do homem não me preocupa, haverá sempre organismos e microrganismos a reproduzirem-se nos mais pequenos recantos.
          Mas talvez esteja enganado. Li há uns tempos um artigo sobre a hipótese de que o planeta Marte tenha sido outrora um planeta empanturrado de vida biológica, e de que pouco a pouco a vida se foi extinguindo. Mas ao contrário dos seres humanos, os astros não se decompõem rapidamente após morrerem, e, portanto, hoje assistimos a um cadáver em órbita à volta do Sol…
          Concluo com Bachelard: «Precisávamos de uma psicanálise cósmica, uma que abandonasse por um segundo as considerações humanas e se preocupasse com as contradições do Cosmos». iii

           

          7 de maio, a A. veio-me ao cu, que delicioso, é aproveitar, acontece algumas vezes, menos do que eu gostaria, mas pronto, não se pode obrigar uma mulher a nada, nem a ir ao cu a um homem. Há uns tempos li que a sodomização do homem pela sua mulher é uma prática aristocrática, as classes populares não têm tempo nem imaginação para tal coisa. Será que esta quarentena vai servir de ascensor social no que diz respeito à inversão de papéis na prática sodomita? O prazer anal devia ser moralmente acessível a todos, independentemente do rendimento das pessoas: sou pela universalidade da analidade!

           

          9 de maio, estive a enviar mails para vender os meus trabalhos. É um ritual de autopromoção ao qual me vou prestando. Em geral desligo o cérebro e faço um mecânico copy/paste do mesmo mail.
          O artista vive dependente dos programadores, diretores de teatros e festivais e agentes culturais, sem os quais se torna impossível a criação de projetos e a sua circulação. Insere-se num mercado sobrelotado, no qual há muitos fornecedores e poucos clientes – os programadores. Estes têm, portanto, um poder imenso no mercado. O programador tem muitas opções, e cada artista tem de dedicar um esforço maior a marketing, distribuição e produtos auxiliares de comunicação.
          Os programadores são hoje em dia uma espécie de ASAE da arte: certificam-se de que os produtos apresentados estão em conformidade com a procura – têm a noção de que trabalham para o “seu público” e tentam prever o que ele deseja (alguns não precisam de prever, já sabem). A ideia de que o programador “descobre” o talento dos artistas subentende também que o artista vive, e deve viver, na escuridão, só assim a sua arte é suficientemente bruta.
          Desta maneira, os artistas são obrigados a investir na prospeção de novos clientes. A isto chama-se a caça aos programadores – foi o meu dia de hoje. Tedioso, mas sem grandes riscos. Por vezes, há jogadas arriscadas que comportam custos maiores – como investir em alguém que faça este trabalho por nós –, mas pode ser recompensador a longo prazo.
          Creio que a questão de fundo tem que ver com o espaço: os artistas estão despossuídos do seu espaço primevo de trabalho. Bem sei que ainda há artistas que gerem os seus teatros. Mas a maior parte são nómadas, itinerantes. A única forma de dar vazão ao excesso de oferta é programar poucas apresentações por grupo artístico – no caso da dança, duas no máximo, muito raramente três. E assim assistimos a uma sucedânea frenética de obras, muitas das quais passam despercebidas.
          Para contrariar as salas vazias ou ocupadas somente pela “elite da elite” – da qual eu faço orgulhosamente parte –, os teatros investem na formação e na sensibilização de públicos: expressões politicamente corretas para dizer criação de procura. Constituem manobras de marketing para levar as pessoas a consumir arte, destinadas a contextualizar e a assegurar o público nos dois sentidos da palavra: dar-lhe segurança, e assegurar que ele volta.
          Desta maneira, o teatro tem-se assumido como fiador intelectual e moral do espectador – no fundo, um intermediário benevolente na experiência estética. A ideia de teatro como buraco negro carregado de insegurança, de risco, de incompreensão, de perda, e até de delírio, evaporou-se.
          Pergunto-me: onde está o vírus do teatro?


          i Editado em colaboração com o autor a partir do texto integral disponível em https://henriquefurtado.cargo.site/, produzido no contexto do projeto (RE=)Iniciação, do Ballet Contemporâneo do Norte. [N. do E.]


          ii “A última publicação do médico que alertou colegas para o vírus tornou-se num local de luto digital”, Público, 13 de abril de 2020, disponível em https://www.publico.pt/2020/04/13/mundo/noticia/ultima-publicacao-medico-alertou-mundo-virus-tornouse-local-luto-digital-1912102.


          iii Gaston Bachelard. The Poetics of Space. Londres: Penguin Books, 2014 [1958], p. 134. [Tradução livre do autor.]

          lula pena o passado é isto / um déjà vu nunca visto *

          March 3 ·

          ( . ) este período vai ficar para a histeria *

          é a ideia de homo sapienssapiens que nos faz engolir sapiens, que não sabem a nada.

           

          March 10 ·

          também me sinto um pouco cancelada.

           

          March 11 ·

          cara ou corona ?

           

          March 14 ·

          alguém sabe onde fica a ‘horta do vizinho’?

           

          March 15 ·

          não torrem já os neurónios, agora que são mais precisos do que crocantes *

           

          March 17 ·

          corona ‘sars’. como sua alteza irreal, em súbdito *

          estar num estado ou num Estado de emergência não é o é igual.

           

          March 18 ·

          pela natureza assim de recooperante, ainda veremos vida selvagem, das varandas *

           

          March 20 ·

          technocracy
          /tɛkˈnɒkrəsi/
          Learn to pronounce

           

          March 21 ·

          “halls, há tanta coisa que te faz respirar” (a publicidade antes do telejornal…)

          é oficial, panem et circensis voluntário.

           

          March 23 ·

          (se) as obras continuam / o povo vai prá rua

           

          March 23 ·

          “a democracia não será suspensa” será suspense *

          tantas imagens de ruas vazias, e o que se pode photoshopar nelas *

           

          March 31 ·

          1 de abril
          é quando um trabalhador a
          recibos verdes quiser *

          quais os sintomas válidos para a linha de emergência no apoio às artes?

           

          April 2 ·

          já ninguém envia cartas de antrax como dantes *

          penso numa questão filosófica nestes tempos de obsolescência…
          a quem darei o meu ventilador?

          uma coisa é ‘a minha opinião pessoal’, outra seria ‘a minha opinião, pessoal’ *

           

          April 3 ·

          apesar de tudo, ainda há pessoas que partilham o lado bélico das coisas simples *

           

          April 4 ·

          criei uma linha de emergência que visa apoiar os trabalhadores das áreas do jornalismo, da política e da economia e cuja actividade esteja a ser afectada pela pandemia.

           

          April 5 ·

          meridianos e paralelos, fiquem em casa!
          estamos confusos horários *

           

          April 7 ·

          a capa de gordura que o vírus tem, diz muito do azeitegeist em que vivemos *

          que (p)aciência, não faz (p)arte da solução faz (p)arte do problema *

           

          April 8 ·

          o live pode ser assintomático, um directo requer algum cuidado intensivo *

          o TV Fest Prada *

          caro governo, as devidas medidas excessopcionais estão a ser extra ordinárias *

           

          April 10 ·

          fiquem em casa. reduzam as escapadas aos paraísos fiscais, as fugas aos impostos e as liberdades de circulação de capital ao essencial *

           

          April 18 ·

          …estou com sintomas de desobediência civil e não há protestos disponíveis *

           

          April 23 ·

          as aulas de domesticação física estimulam o david attenborough que há em mim.

           

          April 26 ·

          o povo é quem mais quarentena!

           

          April 28 ·

          é que o ‘setor’ da cultura e ‘ação’ solidária, parecem ser só duas pessoas.

           

          May 1 ·

          1 desmaio
          é o cérebro que nos atira ao chão
          para não sentir a gravidade *

           

          May 2 ·

          para quando um enoji?

           

          May 5 ·

          “a morte do artista”
          é expressão popular e lugar comum
          da má língua portuguesa *

           

          May 6 ·

          – a cultura não é de graça.
          onde é que está a graça?

           

          May 6 ·

          a crença de estarmos todos no mesmo barco era já de si um naufrágio anunciado.

           

          May 6 ·

          olhai os lítios do campo
          que é uma forma de carregar baterias…

           

          May 6 ·

          agora é que estamos em Quaresma *

           

          May 8 ·

          o papel da Cultura é usado
          para fazer Pasta de papel
          com a Técnica machê *

           

          May 12 ·

          nossa senhora dos conflitos de interesses no governo, prorrogai por nós! *

           

          May 13 ·

          a cultura não está desaparecida
          está por localizar *

          #EstamosOn nível
          da extorsão primária
          da espectacularidade obrigatória *

           

          May 14 ·

          p’lo amor da santa ou de deus
          não é um comunismo a dois?

           

          May 15 ·

          para dar um censo à Cultura: somos 10 milhões de habitantes *

           

          May 17 ·

          quando a varanda
          do edifício político
          é uma Marquise.

          “vai haver bolas de berlim mas com semáforos” são os novos smarties?

           

          May 19 ·

          se “1984” estivesse vivo hoje era sábado *

           

          May 22 ·

          e a pide mia. também se assanha e ronrona *

           

          May 22 ·

          com o mesmo prefixo
          uma coisa é fonia
          outra é fobia *

           

          May 23 ·

          e uma crew de vôo nas salas de espectáculo, gerindo “regras de deambulação”, não?

           

          May 30 ·

          em anatomia de governo a “segurança social” é o joelho *

           

          June 1 ·

          christo ter morrido
          é a retoma e embrulha *

           

          June 2 ·

          escapou-me, quando é que estreia o espectáculo da urgência?

           

          June 2 ·

          inventar sem medo
          um novo desobedecedário *

           

          June 3 ·

          e não, não estamos em decência governativa para deixar o ‘pimba’ em paz *

           

          June 4 ·

          morreu de
          governoconstitucionaldeportugal-22
          leia-se nos epitáfios *

           

          June 6 ·

          é preciso criar um coito,
          neste jogo de design social imposto.
          como na apanhada.

           

          June 12 ·

          não são os fascistas a sair da toca.
          é a cidade que está vazia de noite.

           

          June 13 ·

          para assuntos históricos a branqueamento dirijam-se ao cauteleiro *

           

          June 14 ·

          “portugal deu tantos mundos ao mundo”
          que só ficou com um e muito pequeno,
          que nem lhe cabe na cabeça.

           

          June 15 ·

          e a especulação imobiliária, a gentrificação, o erário publico a servir interesses privados, também vandalizam as obras e as vidas da população. e a câmara não vem limpar nada disto?

           

          June 16 ·

          uma coisa é higiene pessoal
          outra é a asseptização colectiva *

           

          June 17 ·

          o facebook parece um hospital psiquiátrico,
          onde todos acreditam ser a visita *

           

          June 22 ·

          uma coisa é a circum-navegação
          outra é o circo da negação *

           

          June 23 ·

          o teste consiste numa zaragatoa
          isto é, estar à toa na zaragata *

           

          June 25 ·

          e em termos de território temos também abertura para que a cultura dê à costa.

           

          June 26 ·

          (…) agora uma versão mais realista do ca’poucochinho dinheiro e do lobby mau.

           

          June 27 ·

          avisar a câmara de lisboa que rebentou um cano na avenida da liberdade e que fede.

           

          June 30 ·

          não deixar de ler nas entrelinhas
          mesmo que não se escreva nelas.

           

          July 1 ·

          agora só falta nacionalizar o governo dos interesses particulares.

           

          July 1 ·

          podemos voltar a dizer TAPerware Portugal *

           

          July 1 ·

          amália rodrigues sem anos!
          porque proibiram.

           

          July 2 ·

          uma leve instintuição de cultura que se eleva a sério, é um sintoma *

           

          July 2 ·

          antes pagã que contribuinte *

           

          July 3 ·

          povo que se lava no rio para não chorar “

           

          July 5 ·

          o que será o destino de tudo o que foi feito neste país para inglês ver?

           

          July 6 ·

          e neste filme
          o ennio morricone
          ou morrisenza
          covid?

           

          July 7 ·

          bom, deixa lá ver se é desta que o Cloro quina *

           

          July 9 ·

          Tou_irada!
          tanto assento para lamentar…

           

          July 9 ·

          fala-se de uma segunda vaga em setembro. estará a concurso ou será por convite?

           

          July 10 ·

          descolonizem o natal e digam às crianças a verdade sobre o senhor dos presentes.

           

          July 10 ·

          não se vende álcool depois das oito e queriam cá os turistas a fazer o quê?

           

          July 12 ·

          quem é que se lembrou do cometa?
          a mim passou-me completamente ao lado. que pena*

           

          July 16 ·

          a que horas abrem as ‘portas da percepção’ ao público?

           

          July 20 ·

          é
          que a
          paz
          de ser
          e dar
          prejuíza
          a guerra *

           

          July 22 ·

          Namasquée 🙌
          (a máscara em mim
          reconhece a máscara em ti)

           

          July 26 ·

          quem matou Bruno Candé
          foi um país de 800 anos.

           

          July 30 ·

          uma tutela que soubesse beber logo pela manhã é que era, senão depois fica tarde *

           

          July 30 ·

          (…) por vezes
          era só aquele ‘drink de fim de tarde’ e tal
          e acabamos por apanhar uma grande tutela…

          Volmir Cordeiro Ex-Manifesto-Resenha-Síntese-Corpo

          EX-CORPO i é primeiro uma tese em dança e depois um livro em fragmentos poéticos. Pode ser uma ferramenta-impulso-alavanca-ancoragem para relacionar as artes performativas à criação de discursos críticos-reflexivos. 

          EX-CORPO é um monte de enunciados poéticos em prosa, postos à prova pela experiência de coreógrafo-espectador, de artista-pesquisador, de corpo-interno e corpo-de-fora. 

          EX-CORPO faz brotar pesquisa no olho enquanto ele olha para uma dança.

          EX-CORPO vacila a consciência que quer saber muito para dar margem de existência à inconsistência terrestre de um corpo provisório e parcial, orientado pela necessidade de agir com o olho. 

          EX-CORPO é um jeito de dar conta das externalidades e das externas-ações que se materializam pelas gambiarras de baixa e alta tecnologia, que passam pela cena-cadeira-de-teatro-sala-de-ensaio-vídeo-pele-sensação-movimento e pela espera e pelo susto e pelo sonho. 

          EX-CORPO é dar corpo gramatical aos afetos e aos cotidianos artísticos subjetivos aptos a jogar com a objetividade da frase escrita. 

          EX-CORPO não tem registro literário determinado. Funciona pela transição da análise à descrição à crítica a um teor jornalístico a um contexto histórico a um acampamento de emoções a uma limitação temporal a um delírio a um jornal de bordo a um projeto de manifesto a uma tese sem síntese nem antítese a um romance sem amor romântico. Entre os registros não há cesura límpida nem recorte nítido. Há montagem de afetos controversos e embaraços autoprovocados. 

          EX-CORPO é pesquisa e pesquisa quer dizer escavar para dentro e se descentralizar das próprias referências e necessidades fundadoras da própria prática e de toda forma de “próprio”, em benefício do movimento de buscar tudo aquilo que não é aparentemente permitido ou reconhecido como pertencente a si. 

          EX-CORPO é partir de si e deixar-se para trás.   

          EX-CORPO povoa a página de uma nova imaginação criadora a partir do que é visto em cena e pretende, com isso, oferecer retornos críticos-poéticos fundados na condição física-sensorial-semântica-material de quem vê-olha-absorve-pensa-escreve.

          EX-CORPO propõe um artista que toma e perde a distância, mergulha e situa, se mistura e se desfaz naquilo que diz.  

          EX-CORPO intriga noções, transformando-as em personagens de narrativas quase-conceituais-quase-literárias-quase-poesia.

          EX-CORPO interioriza a exterioridade do artista e depois a exterioriza como interioridade metabolizada em análise de obras coreográficas. 

          EX-CORPO é uma concentração de condições tornadas explícitas sobre como certas obras são recebidas-pensadas-articuladas-maturadas, suspendendo muitas vezes a arbitrariedade do tema-conteúdo-assunto-ou-forma para manusear forças subterrâneas-informes-inomináveis-ambíguas cheias de vida e de potencial de desenvolvimento.

          EX-CORPO começa com um manifesto chamado “Tese-Mantra”: proposições de existências e de atitudes de um artista-pesquisador inquieto com a tarefa de pensar a dança de si e de outros coreógrafos que mudaram-formaram-edificaram-sustentaram-alimentaram-marcaram-permitiram-lhe dançar. 

          EX-CORPO procura desfazer a vontade individualista do autor através de uma investigação das margens que dançam nas obras de alter-autores.

          EX-CORPO investe na suspensão do nome próprio. Como? Primeiro passando por ele, exaurindo-o em análise, crítica, descrição e poesia-teoria para, em seguida, orientá-lo na direção de outros nomes-peças-danças-vizinhas e ex-temporâneas. Exemplo: Antes de tudo, transformo meu desejo de artista-pesquisador e estudo meu primeiro solo, Céu, de 2012. Estabeleço nesse estudo filtros críticos de construção de um pensamento sobre a dança: a invenção e o endereçamento de um corpo, a ativação da memória como intensificação da sensação e esta como geradora de movimento e, por fim, a ficção de um rosto individual e de um rosto coletivo. Depois, intensifico esses filtros direcionando-os para certas obras que marcaram o meu olhar e que trabalham noções importantes para a minha singular abordagem gestual: a margem, a precariedade, a vulnerabilidade, o anonimato, a comunidade, o rosto, a roupa, o carnaval, a desordem. 

          EX-CORPO é O samba do crioulo doido, de Luiz de Abreu. ii

          EX-CORPO é Pequenas histórias sobre pessoas e lugares, de Micheline Torres. iii

          EX-CORPO é De repente fica tudo preto de gente e Batucada, de Marcelo Evelin. vi

          Coreógrafos e coreógrafa e bailarinos e bailarina brasileirxs, monstrxs da dança contemporânea mundial, problematizadorxs da consciência de um Brasil paradoxal, complexo, anticordial e festivo. 

          EX-CORPO pensa a margem como tema, motivo, padrão, figura polimorfa, heterogênea e performativa enquanto devir-dança. A margem é aqui um modo de conhecimento e efeito de uma consciência da opressão.

          EX-CORPO pergunta: Como a dança trabalha-transforma o deslocamento-reconfiguração dos corpos dotados de valor e destituídos de valor, embebidos pela atividade coreográfica que os expõe em rosto-movimento-singularidade-nome e os faz aparecer justamente onde são invisibilizados?

          EX-CORPO é o problema que surge quando nos deixamos ligar-conectar-aliar, abrindo-nos para a fábrica de um problema cujos limites desconhecemos. Feito de uma sociabilidade alargada e mobilizado pelo conhecimento de si, ele se traduz por uma disposição aos mundos-outros-de fora-externos-dos-ex. 

          EX-CORPO é cheio de casos de amor. Desejo, erotismo e alegria também participam. 

          EX-CORPO lembra que ainda não vivemos em um mundo onde é óbvio ser um corpo, ter uma existência, praticar cenas de reconhecimentos entre rostos, soltar a voz e sentir-se visto-percebido-amado. Vivemos em um mundo obcecado pela identidade-classificação-interpretação. Vivemos em um mundo onde margear é estar ausente de garantias sociais e políticas, assim como margear é denunciar estruturas patriarcoloniais-dominantes-normativas-racistas-xenófobas-machistas-homofóbicas———————-. 

          EX-CORPO olha para como certas obras coreográficas manifestam suas condições precárias contrastadas pelos contextos, olhares e encenações que elas criam para tonificar suas presenças como corpos dissidentes e revolucionários. 

          EX-CORPO LUIZ DE ABREU surge na sombra para se desfazer da violência do olhar do outro e da redução do seu corpo ao silêncio instituído pelo racismo-homofobia.

          EX-CORPO MICHELINE TORRES rearticula a sua entrada em cena pelo rosto que ali é posto antes de tudo. Rosto nítido, deformado, pouco visível, nebuloso; rosto que convida o espectador a ler ou a não ler o caráter humano, similar, estranho e estrangeiro ao rosto do outro. 

          EX-CORPO MARCELO EVELIN deixa ver a efervescência de conflitos corporais. Compartilhando espaços-distâncias-proximidades-tremores e instaurando formações sociais à base de suor-baba-barulho, duas intensidades se misturam e abundam: a fobia do contato do outro e o êxtase carnavalesco de se reunir e manifestar o direito de ser corpo. 

          ESSES EX-CORPOS renunciam o afastamento do real e interrogam as ligações entre vida e sobrevida, desafiando as leis do neoliberalismo, da necropolítica, do turismo, da permanência das desigualdades e da chatice do divertimento. Eles arrebatam os postulados de dançar para agradar-curtir-passar-vender. Eles negociam longe da autoridade monetária e preferem ficar em estreita conexão com os mundos disparatados. 

          EX-CORPO não se resolve e não responde a muitas outras perguntas: como dançar o gesto daqueles considerados sem gestos? Como dançar tais gestos sem roubá-los? Por quais meios restituir esteticamente obras coreográficas que propõem outras maneiras de dar visibilidade aos corpos marginais em cena? Como dançar expondo as margens com dignidade espetacular? Seriam esses EX-CORPOs feitos de um enorme poder de visão porque voltados para as formas de separação entre o corpo e o mundo, o indivíduo e a comunidade, a pele e o olho?

          EX-CORPO joga com tentáculos, pega e solta, apanha e é apanhado por aquilo que apanha.

          EX-CORPO é fundar uma poética local avançando com outros e mantendo a coragem e o atrapalhamento típicos de todo diálogo. 


          i EX-CORPO é o título do livro editado na colecção Éditions Carnets do Centre National de la Danse em 2019, a partir da tese Où le marginal danse : retours sur six pièces chorégraphique, defendida em novembro de 2018 na universidade Paris 8 sob a orientação de Isabelle Ginot. [N. do E.]


          ii O samba do crioulo doido de Luiz de Abreu (Araguari, Brasil, 1963) teve a sua estreia em 2004 no Projeto Rumos Itaú Cultural em São Paulo. Foi apresentado em Lisboa no Teatro Municipal São Luiz no contexto do Festival Alkantara nos dias 6 e 7 de junho de 2006. [N. do E.]


          iii Pequenas histórias sobre pessoas e lugares (2011) de Micheline Torres (Rio de Janeiro, Brasil, 1974) foi apresentado na Fábrica Asa em Guimarães no contexto da Capital Europeia da Cultura no dia 26 de setembro de 2012. [N. do E.]


          iv De repente fica tudo preto de gente (2012) de Marcelo Evelin (Teresina, Brasil, 1962) foi apresentado no Teatro Municipal do Porto, no Teatro Municipal Maria Matos em Lisboa e no Festival Materiais Diversos em setembro de 2014. Batucada, do mesmo autor, foi criado em 2014 para o Kunsten Festival des Arts em Bruxelas. [N. do E.]

          Miguel Oliva Teles Relações Pandémicas — Do nojo e da imunidade

          Em “PRESTE ATENÇÃO EM TUDO A PARTIR DE AGORA” i, Daniel Pizamiglio está nu numa sala e recebe o público que entra, distribuindo a cada pessoa um cartão. Dirigindo-se ao centro do espaço, desenha três setas de carvão circundando cada mamilo e assim se mantém por um tempo. Imóvel. Fazendo-se um corpo diante de corpos e olhando quem o olha de volta. Depois, sem aviso, serve-se de um apito. E, aproximando-se à vez de cada corpo que o observa, sopra – exigindo, de frente, reação. Pizamiglio abre, performa e vive connosco um espaço de encontro, de relação. Como seria hoje vivido esse jogo?

           

          O corpo, na relação com o “outro”, tem, desde cedo, ao seu dispor: a imunidade.
          Numa pandemia, quando a ameaça (real ou imaginada) é uma presença constante, insidiosa e persistente, é também a imunidade que impera. Hoje, a todo o momento, há uma “linha da frente”, “heróis” e “lutadores”. Há “essenciais” numa “batalha” ou numa “guerra”. Há um “inimigo” que se deve “combater” e “derrotar”. A insistência nesta metáfora – bélica, marcial ou militar –, desde sempre imiscuída na conceptualização da imunidade ii, reflete como ela é hoje um paradigma abrangente e pervasivo, parecendo algo que não podemos dispensar.

          Este conceito de imunidade – baseado numa dicotomia do próprio/não-próprio, do dentro/fora, da proteção estanque de um “eu” contra uma ameaça que o devora – associa-se rapidamente a uma outra linguagem que subsidia a repulsa e o nojo, imprimindo no outro um cunho de imagens, juízos e significados que auxiliam a imanência protetora deste sujeito. O outro, hoje, é o “positivo” ou o “sujo”. É o “portador” que deve ser isolado e expulso para longe dos corpos e dos espaços que são “limpos” e “puros”. Ambas estas linguagens – imunitárias – impregnam os espaços da relação e reforçam, mais do que nunca, as ideias de um corpo delimitado, o esforço de uma integridade e a demarcação de um singular – seja ele um corpo, um grupo, um estado-nação ou a metade rica de um globo.

          *

          Para além da metáfora e da linguagem, ao serviço desta imunidade temos, também, o nojo. O nojo, como emoção, faz parte de um “sistema imune comportamental” que terá evoluído como um mecanismo de evicção da infeção e da doença. Um corpo, perante sinais que perceciona como ameaçadores (alguém contorcendo-se em tosse, a rispidez de um espirro, um corpo macilento, emaciado ou sujo, matérias excrescentes ou em decomposição) sente essa emoção visceral e primária – o nojo – e é, por ele, motivado e afetado a certos movimentos, comportamentos e tomadas de decisão que vão tentar evitar essa ameaça. iii
          Mas mais do que uma defesa contra os germes, os maus humores ou o miasma, o nojo, sendo instrumento imunitário, é instrumento de relação. Ele permite ao sujeito criar, reclamar e manter a sua fronteira. Quando um corpo se aproxima, cativa e transgride o “eu”, este imprime nele o nojo pela corporalidade de uma repulsa, por palavras feitas atos e por hábitos e posturas que refutam. O nojo responde, por isso, ao que invade e infringe, ao que põe a descoberto uma vulnerabilidade. iv

           

          Como reagiram os corpos ao apelo (ou afronta?) de Pizamiglio? A maioria aproximou-se e manipulou-lhe de alguma forma o corpo: os dedos tateando as setas desenhados no peito, uma língua seguindo demoradamente a sua direção, uma lenta torcedura dos mamilos, ou todo o corpo girado no ar e de volta ao chão pousado. Mas e se, pela estridência do apito, ficasse um corpo recolhido? E se a resposta fosse um resguardo, um incómodo? Um encolher dos ombros e da cabeça e um desvio acabrunhado dos olhos? A corporalidade incisiva de um recuo que repele? Seria, certamente, uma resposta. Como as outras. Mas e se fossem todas assim? E hoje, quão generalizada seria esta reação? E se fosse esta a tónica, o padrão?

           

          Poderemos também hoje perceber em nós uma “pequena dança” do nojo, insidiosamente presente no nosso quotidiano? (Quantas vezes, cruzando-nos na rua, não há um olhar que se desvia, uma tensão que entesa os músculos, que prepara o corpo para um salto que o afaste?)
          Poderemos hoje antever uma nova linguagem dos gestos? Uma pudica moratória dos afetos (asfixiados por máscaras, viseiras, acrílicos – hiperdistanciados)? Ou uma sobreativação de um comportamento imunitário: por uma angústia que exige uma “máxima segurança”, um “risco nulo” que não existe nem se alcança; ou por um brio bem-comportado, a garantia performativa do beneplácito da sociedade, mostrando pelo exagero mais intenção do que necessidade?
          O nojo é também performatividade. E a resposta imune (que rechaça) pode ser só um “fingimento psíquico”, uma forma de autorreafirmação, uma garantia de que fizemos algo de significativo contra uma intimidação, mas que acaba sendo, tantas vezes, uma falsa tranquilidade, um mero encobrimento e negação dessa ameaça, uma repressão v.

           

          *

           

          No cartão entregue a cada espectador está, de um lado, o título da performance e, do outro, pode ler-se: “EU VOU EMBORA QUANDO ISTO ME ACABAR”. Desta forma, Daniel assevera: é o seu corpo que ele oferece e é ele que é manipulado. Há tanto de entrega como de interpelação, tanto ameaça quanto vulnerabilidade. Naquele espaço, os danos e as dádivas estão em ambos os lados e a relação mostra-se assim: porosa. Os seus limites: esfumados.

           

          A vida, hoje, mais do que nunca, é vivida segundo uma lógica em que a imunidade se coalesce com um panorama ético-político que envolve desde as relações próximas e o quotidiano até às maiores abrangências geopolíticas, económicas e sociais.

           

          Ele sopra, mais uma vez, o apito.

          Esta conceção bélica da imunidade reflete um paradigma fechado e linear que a própria ciência já ultrapassou. Ela aceita uma imunidade flexível e porosa, em que a vulnerabilidade e uma interpenetração promíscua dos limites do “eu” e do “outro” fazem não só parte do seu funcionamento orgânico como de várias tecnologias médicas que temos hoje ao nosso dispor vi.
          No espaço da relação, esta metáfora parece surgir inadequada perante um “eu” que não é singular, mas uma polissemia de diferenças dentro de “um” vii. E é uma linguagem que esquece e repele o “outro” e o comum, essa intrínseca e originária necessidade de viver-junto, em comunidade.
          Também no seio desta lógica, o nojo como sistema, ao depender da perceção, depende não de algo que reside no corpo ou objeto que nos afeta (o repelido) mas no sujeito que o executa (o que recua). Das suas ideias, crenças e memórias passadas. Dos seus limites, fronteiras e códigos que são pelo nojo reiterados. Por isso, o nojo é contingente e subjetivo. É fruto de um discurso ou de uma historicidade.
          Acentuando este campo subjetivo, temos a incerteza e a falta de rigor científico (inerentes à dimensão e novidade da pandemia), abrindo espaço a que cada um encontre, para si, a forma mais apaziguadora de se “defender”. Por esta abertura, entram também o preconceito e o estigma, enviesando esta imunidade com vícios e erros percetuais e suscitando repulsa em tudo o que é estranho e não familiar, fora de uma norma cristalina e pura viii.

           

          Um olhar fixo e assertivo. E, novamente, o apito.

          O “outro” continuará ininterruptamente a sua interpelação. Por isso, a hiper-imunidade não nos serve. Só com ingenuidade narcísica ou na esfera da angústia da sobrevida se acredita que a resposta passe exclusiva ou maioritariamente pelo seu controlo. Pela sua expulsão.

          A hiper-imunidade não nos serve. É ela, ironicamente, que derruba quando uma resposta imunitária se exacerba numa tempestade de moléculas defensivas e que, ao invés de debelar o vírus, é o corpo que fere ix. É ela que remove o sujeito de um espaço de comunidade de que depende, que o isola promovendo um efeito autoimunitário, destruindo a própria vida de que faz parte x.

          Por isso, hoje, quando a ciência é incerta, exige-se ainda mais uma coerência que procure acompanhar um conhecimento que caminha ao passo do momento; quando o medo impera e a ameaça reside no outro, exige-se ainda mais uma ética incansável por manter o comum, os afetos e a alteridade; quando as barreiras (que já singravam) se tornam mais necessárias, exige-se ainda mais que elas sejam sempre questionadas.
          É imperativo vivermos, desconfortavelmente, estes paradoxos. Desconstruir hábitos que se enquistam deslocados. E perceber que a vida é sempre uma vivência sensata e ponderada de um risco (nem nulo, nem extremado) e que exige de nós, sempre mais, atenção e cuidado.


          i Performance apresentada no dia 21 de julho de 2019 no evento ‘Des|ocupação’ promovido pelo Atelier Real em Lisboa.


          ii Nik Brown, Immunitary Life (Londres; Palgrave Macmillan UK, 2019).


          iii Mark Schaler et al, The Behavioral Immune System (and Why It Matters), Current Directions in Psychological Science 20, n.º 2 (2011): 99-103.


          iv Sara Ahmed, “The Performativity of Disgust”. Em The Cultural Politics of Emotion, dir. Sara Ahmed (Edimburgo: Edinburgh University Press/Routledge, 2004), 82-100.


          v Jacques Derrida, “Autoimmunity: Real and symbolic suicides”, em Philosophy in a time of terror, dir. Giovanna Borradori (Chicago: University of Chicago Press, 2003).


          vi Como exemplos: a autoimunidade, os microbiomas (bactérias que vivem dentro de nós, que toleramos e de que dependemos) e várias tecnologias médicas que implicam a entrada no corpo de “outridades” e vários níveis de alteração do sistema imune (estimulando ou suprimindo) – como a transplantação e a vacinação.


          vii Jean-Luc Nancy, El intruso (Buenos Aires: Amorrortu, 2006).


          viii É frequente, durante as pandemias, uma viragem ideológica para polos conservadores e a acentuação de pensamentos e atitudes de intolerância e preconceito (racismo, xenofobia, misoginia, homofobia, capacitismo, etc.).


          ix Francesca Coperchini et al., “The cytokine storm in COVID-19: An overview of the involvement of the chemokine/chemokine-receptor system”, Cytokine & Growth Factor Reviews 53 (Junho 2020): 25-32.


          x Vanessa Lemm, “Introduction: Biopolitics and Community in Roberto Esposito”, em Terms of the Political: Community, Immunity, Biopolitics, ed. Roberto Esposito (Nova Iorque: Fordham University Press, 2012).

      • 2

          João dos Santos Martins Editorial

          A censura é um lugar estranho

          Há tempos, alguém que escreveu para o Coreia acusou-me de fazer comentários relativos ao seu texto que o tentavam manipular para, alegadamente, o fazer coincidir com a minha opinião. Essa pessoa sentira-se numa posição de vulnerabilidade, sujeita ao poder intrínseco ao facto de eu ser o editor do jornal. Tentei justificar que estava a tentar que as ideias presentes no texto se tornassem mais claras e assim fortalecidas e que, para tal, sentia a necessidade de colocar questões, dúvidas, sugerir cortes e acrescentos, sem que com isso exigisse uma mudança ou inflexão de sentido. A última decisão é sempre do autor. Entendo que por vezes seja difícil medir e/ou controlar a forma como exercemos poder sobre o outro, e a possibilidade de condicionantes é inesgotável. É difícil manter presente o exercício de poder implícito, mais ainda admiti-lo, assumindo-o. E vice-versa. O reconhecimento (ou consciência) de sujeição ao poder só raramente acontece antes do momento intolerável. Por vezes, o medo prolonga e suspende a tolerância ao grau. Noutras, é um vício. As forças e nuances do poder estão permanentemente a ser testadas e raramente são resolvidas no momento certo. Mas existe um compromisso para que os tempos confluam e convivam, para bem da vida pública.

          As primeiras semanas de 2020 foram profícuas no desajuste temporal de acusações do género e justificações. Isto num país onde o #metoo praticamente não existiu, e onde dificilmente faltarão casos de abuso. É certo que muitas histórias há por contar e terão de o ser, mais cedo ou mais tarde. E seria melhor que fosse cedo.

          Um pouco por acaso, este Coreia #2 é feito de histórias. A primeira chega-nos do dramaturgista e editor da plataforma online Sarma, Tom Engels, que partilha a sua recente experiência de sujeição à violência policial aleatória que não distingue o justo da Justiça, nem da lei, indo constantemente além das suas próprias competências, na presunção da salvaguarda do espaço público. Nos interstícios, encontramos paralelo fácil nas imagens que se propagam pelo mundo de casos de mera violência castradora, por desobediência ou orgulho institucional, como nas recentes cenas de violência racial protagonizadas por membros da polícia portuguesa, nas verdadeiras contramanifestações aos protestos por direitos sociais, nas grandes orquestrações coreográficas das revoluções sociais em curso.

          Se por um lado falamos de sujeição, importa falar também de contraposição. Partindo da história recente do Líbano, e da revolução social em marcha, dependente da mobilização diária dos cidadãos, escreve a artista libanesa Zeina Hanna em reflexão sobre o seu devir-cidadã, em oposição ao próprio Estado. Das coisas. Da nação. Um direito de resistência por vezes dúbio e ambíguo no exercício da sujeição (também ele) a um confortável imperativo externo de consequência e permanência do resultado.

          Dos lugares de resistência fala-nos igualmente Ana Pi, que narra uma viagem ao futuro. Pi percorre o tempo através do arquivo acumulado no seu corpo, pela prática da dança, de danças de contextos urbanos periféricos que encontram as suas genealogias em danças religiosas afro-brasileiras, em danças populares e contemporâneas do Congo, de Moçambique, do Benim… Em NoireBlue, azul de tão negro, texto homónimo do filme de 2018, e da peça apresentada no Circular Festival de Artes Performativas em setembro de 2018, Pi narra a complexidade das viagens, abrindo caminho para uma nova ética relacional entre geografias, que revela a complexidade da diáspora negra no globo fundada numa história de violência.

          Num sentido de resistência análogo ao Estado, no caso à forma como o corpo das mulheres é domesticado pelo Serviço Nacional de Saúde, Vânia Rovisco partilha a sua recente experiência de gestação, criando um paralelo com os processos de incorporação que coloca em prática nos seus trabalhos. Nesta viagem, Rovisco relega o íntimo e pessoal ao político, numa denúncia clara da forma como o Estado, por razões financeiras ou logísticas, promove uma contínua desagregação entre o corpo físico-químico e o outro, o corpo-uno.

          Seguindo um outro arquivo do corpo, esse material, x artista brasileirx residente em Lisboa, Diego Bagagal, partilha a sua relação com a herança deixada pelo seu tio — figura basilar na construção da sua identidade —, que foi assolado pelo vírus da Sida nos anos 2000. Composto por uma série de correspondências com “sereios anónimos” dos quatro cantos do mundo, esse arquivo revela uma tensão entre intimidade e exposição. São dezenas de sereios que existem na imaginação através de um desejo abstrato que paira. E é chamando esses sereios que o arquivo de Bagagal vira uma performance de incorporação de corpos desconhecidos que presentificam a memória de um corpo ausente.

          Hélio Oiticica, um dos mais influentes artistas brasileiros, cujo trabalho continua ainda hoje em dia a ser redescoberto através da sua extensa obra escrita, refere-se à dança como lugar da desintelectualização e experiência da desmaterialização da obra de arte. A sua experiência de sambista na Escola de Samba da Mangueira, e a “deambulação na geografia dos morros cariocas” nos anos 1960, levou-o a reconceptualizar a sua prática, tornando-se fundamento para ultrapassar os regimes da representação e da espectatoriedade. Entre a invenção de conceitos como núcleos, bólides, penetráveis, cosmococas, metaesquamas, newyorkaises, talvez o que mais se tenha afirmado como “totalidade-obra” tenha sido o de parangolé, o objeto por defeito que materializa a ausência. Composto como uma capa de vestir com várias camadas de cor, e por vezes até frases, é um objeto que só o é em relação com a sua ativação através de um corpo e do movimento que fazem revelar as suas estruturas.

          Não deixa de ser irónico que a primeira vez que tive a oportunidade de conhecer a obra de Oiticica tenha sido através da observação de um parangolé morto, disposto numa parede, no Centre Pompidou, em Paris, em 2011, numa exposição sobre dança. O objeto despojado da sua função. O não-objeto transformado em arquivo pelo fetiche curatorial.

          Com o intuito de renovar a relação com a riqueza da produção textual de Oiticica e a sua medular relação com as artes performativas, publicamos pela primeira vez em Portugal um texto de 1965, A dança na minha experiência, acompanhado de várias fotografias que extrapolam essa relação corpo-objeto através da dança.

          Oiticica separa a “dança” da atividade de “dançar” como experiência social, constatando que “a imersão no ritmo é um puro ato criador”. É nesse sentido que produz um elogio ao “intérprete”, deslocando a sua condição de mero veículo para a de um artista “altamente expressivo”.

          Gesto contínuo, devolvendo-nos inédito na sua prática o que pertence ao corpo simétrico das ideias de outros, a bailarina Vânia Vaz Doutel, com um percurso que se estende do Nederlands Dans Theater ao Parque Mayer, da Broadway à cena independente europeia, junto de Eszter Salamon, Trajall Harral ou Tânia Carvalho, partilha neste número a sua experiência de intérprete ao longo dos últimos 20 anos

          Este dar corpo, comummente traduzível em arriscar-se, expor-se, dá também lugar a outros corpos, os corpos dos não-vivos, ou apenas aparentemente. No século XIX seria quase crível as plantas serem seres inertes/inanimadas. Seria a história da fotografia e do cinema a abrir os horizontes da percepção. A investigadora Teresa Castro, que muito se tem focado em estudar a relação entre o desenvolvimento do suporte cinematográfico e a sensibilidade para observar o movimento invisível ao tempo humano, escreve um ensaio que pensa a forma como olhamos para as plantas através da sua antropomorfização bailatória. Não deixando, por outro lado, de apelar a uma necessidade de desantropomorfização dos próprios humanos, talvez através de uma vegetalização das suas práticas.

          Apesar de muito humano, o artista da dança Filipe Pereira vem sendo conhecido por descentralizar a atenção no sujeito, distribuindo-a pelas restantes formas cénicas. É igualmente nas plantas que encontra uma relação de maior simetria com o seu meio. Com uma longa carreira, que manteve desconhecida, em design floral, Pereira desenha um paralelismo entre a composição das flores e a da dança, sob um princípio de efemeridade, daquilo que morre e desaparece, por um lado, e daquilo que se decompõe e transforma, por outro.

          Por oposição, Rita Natálio religa a performance à ideia de um livro e este à ideia de um fóssil, perene, mesmo que sofrendo alterações entre ser-vivo, ser-morto, ser-combustível, ser-plástico, pastilha-elástica, ser-lixo, ser-comida para pássaro, ser-cocó, ser areia.

          É também Miguel Castro Caldas que se refere aos textos como fósseis, únicos meios de mediação com seres “ausentes, mortos, sobrenatuairs ou inanimados”. Castro Caldas reanalisa a crítica de Artaud à utilização de texto no teatro, para o levar a defendê-lo, não como regresso ao texto, mas para reconsiderar o texto como agente geológico de relação com o passado

          E fugindo ao teatro físico e sobrevivendo à grafia da dança, terminamos com uma experiência de leitura proposta por Clara Amaral, artista que expande a coreografia a uma relação entre os olhos e a ponta dos dedos.

          E é tudo.

          Coreia é o movimento que estão a ver. Coreia existe graças à Circular Associação Cultural, e a partir de agora também à Associação Parasita que passa a coproduzir o jornal. Coreia é uma contribuição para uma partilha crítica dos modos de ver e fazer dança em Portugal, que se querem expandidos.

          Tom Engels Carta ao Coreia

          PT

          Querido Coreia,

          Pediste-me para contribuir para o teu terceiro volume, o teu terceiro corpo que será chamado número dois. Escrevo-te esta carta a caminho da Coreia do Sul – a semelhança entre Coreia e Coreia abençoa de algum modo esta escrita. E no caminho devo ter sobrevoado uma cidade onde passei duas semanas com o teu editor, uma em 2015 e a outra em 2019: Beirute. Como o espaço aéreo do Irão e do Iraque não foi completamente interditado, apesar de ser evitado pelo trânsito aéreo internacional, proponho que assumamos que sobrevoei o Líbano e, mais a leste, o Médio Oriente. Ambos sabemos que raras vezes viajamos em linha reta. Emprestas-me o teu corpo para registar umas palavras como lembrança de acontecimentos?

          Numa ocasião como esta, em que voo seguindo uma linha mental que, na verdade, é uma curva acidentada, gostava de contar uma história que aconteceu dez dias antes da minha visita a Beirute, em outubro passado. Como o eco de um protesto futuro, participei com os meus alunos num sit-in pelo clima. Na verdade, o plano para esse fim de semana era outro, era suposto discutirmos as suas propostas para a pesquisa que iriam fazer no ano seguinte. Mas eles insistiram em juntar-se aos protestos e assim foi: suspendemos a aula e abrimos um espaço para questões que iam muito para lá de preocupações estéticas. Abrimos, de facto, espaço para uma questão. Uma questão muito presente na maioria dos que hoje tentam pensar sobre os seus horizontes pessoais e coletivos na iminência sombria da catástrofe climática. Uma questão que está, no momento em que escrevo, literalmente no ar. A imagem: cerca de 450 pessoas reunidas numa praça de Bruxelas a discutir e a trocar ideias, a ocupar um espaço físico com o que lhes ocupa o espaço mental. Nunca fui muito de conversas em grupo, mas isto foi diferente, fez-me lembrar os poucos ajuntamentos em que participei na altura do movimento Occupy Frankfurt, em 2011. Dar espaço e, com isso, tomá-lo também. Reclamá-lo para depois o voltar a partilhar. Um avanço e recuo que tira e dá espaço. E, de repente, a polícia invadiu a praça. Como já referi, gostaria de pensar que nos movemos em linhas curvas, mas a polícia não, a polícia move-se em linhas retas. As linhas retas chegaram e invadiram a praça pelas três estradas principais. A linha reta dos esquadrões em movimento, a linha reta dos bastões e das latas de gás, as linhas retas de entidades em movimento a dividir-nos em três secções como três manadas, a linha reta do canhão de água apontado às três senhoras de idade que estavam no chão. O gás pimenta, as abraçadeiras de plástico nos nossos pulsos: fomos imobilizados durante seis horas, no frio do chão, para que ficasse claro que não se devem fazer perguntas, nem criar espaço para elas. Os meus alunos, eu e 450 outras pessoas fomos presos por meio de uma grande coreografia, bela e dolorosa, orquestrada pela polícia. Para o Estado, questionar significa ofender, atacar, subverter as regras da nossa sociedade. Mas enquanto era arrastado para o autocarro, encontrei dúvida ou até compaixão no polícia, que tinha um brilho húmido na retina – naquele momento, uma curva molhada a dar esperança ao espaço listrado.

          Fomos atingidos por um momento de coreo-polícia que nos fez perceber, ou melhor, que nos fez sentir os efeitos concretos e imediatos de se estar subordinado ao poder do Estado. Uma linha reta que liga questões e formações ideologicamente desafiantes e as suas consequências: nódoas negras nos pulsos e uma semana de noites mal dormidas. Mas, claro, como não sentir no corpo os efeitos da ação do Estado? Só que aqui a nódoa negra, o hematoma subdural, tornou-se uma visualização concreta do que significa hoje ser um cidadão, do que significa ter o Estado à flor da pele. Quando perguntamos ao Google quanto tempo leva um hematoma a desaparecer, a resposta é simples: é esperar. A grande máquina de vigilância do capitalismo diz-nos para esperar. Eu rio-me. O tempo a passar para apagar os efeitos visuais do trauma físico. Uma questão de exibição, de epiderme, de ecrã, um órgão que estabelece a fronteira entre o exterior e o interior. Mas o que de facto aconteceu foi um engolir forçado do comprimido azul e do comprimido vermelho ao mesmo tempo: a experiência, em simultâneo, da dormência e da insurgência do estímulo e da perplexidade. Corpo e mente conseguem ao mesmo tempo ver o Estado e ser marcados por ele, pela matriz pela qual foram tomados. Tornámo-nos o seu símbolo.

          E à medida que avançamos na viagem, eu recuo com a leitura de Beirut Mon Amour, um texto curto de Paul B. Preciado que revisita a sua viagem a Beirute e ao HomeWorks, um festival de artes organizado pela Ashkal Alwan, em 2015. Também lá estava: as bombas em Beirute, mesmo antes dos ataques em Paris, o fedor, a confusão. Um fio de memória delicado e vago, mas forte o suficiente para me enlear. Paul termina o seu texto com uma expressão servo-croata: “‘A esperança é a grande puta.’ Quero ir para a cama com essa puta. Quero sentar-me ao pé dela e lavar-lhe os pés. Porque ela é tudo o que resta de nós, e ela é a maior.” E não consigo deixar de pensar que também quero dormir com ela.

          E ali, em Beirute, em 2019, demonstrações de esperança. No segundo dia da nossa estadia, fomos dançar à festa de abertura do HomeWorks. Lembro-me dos longos corredores de veludo da discoteca, como se fossem caminhos lynchianos, mas não em linha reta, curvos. Estávamos animados, a Deena Abdelwahed tocava e fazia calor – na altura nada sabíamos dos seus poderes proféticos. Tínhamos saído de uma discoteca e as pessoas estavam preocupadas porque não passavam táxis. Já num carro, vimos pilhas de pneus a arder. As estradas tinham sido cortadas, o ar estava negro. O taxista disse divertido: “É parecido com os gillets jaunes!” No dia seguinte, a cidade estava toda bloqueada, os cruzamentos principais atravessados por vastas pilhas de plástico queimado. O ar era espesso. E como em Beirute nos deslocamos sobretudo de carro, e raramente a pé, este simples bloqueio fez com que as pessoas saíssem para a rua e andassem. Depois de ter falhado todos os encontros marcados para esse dia, consegui finalmente encontrar-me com uma amiga, a Madlen, para um delicioso jantar libanês. Mas algures entre o baba ganoush e o fattoush percebemos que alguma coisa tinha mudado, a atmosfera ficou sinistra e os barulhos e clamores da cidade empurraram-nos para a rua. A imagem: milhares de máscaras de Anonymous a conduzirem motas para trás e para a frente, aparentemente fora de controlo mas a moverem-se e a rodopiarem decididas e com clareza. Mergulhámos um pouco mais na multidão, o ar estava quente e efervescente, uma mistura de plástico queimado e de feromonas de revolta. Demos por nós num lugar onde sete ruas se encontravam, uma encruzilhada com uma árvore robusta e antiga no centro rodeada por um pequeno tufo de ervas secas. Uma enorme explosão, fogo ao fundo, as motas a virem na nossa direção, milhares de pessoas a correr, a gritar numa língua que não percebíamos. A Madlen sugeriu que trepássemos à árvore e, apesar de achar que era uma piada, rapidamente percebi que não era. A árvore, uma possibilidade de segurança, uma âncora firme. Disse-lhe que havíamos de arranjar uma melhor altura para trepar a árvores. Uns minutos depois fomos atingidos pela incredulidade do silêncio. Espreitei por trás da árvore e vi o exército a alinhar-se uns sessenta metros à nossa frente. Toda a gente tinha desaparecido, exceto um rapaz que, com a cara tapada por um lenço, nos disse para não nos mexermos. E logo de seguida um cheiro estranho. Rapidamente me apercebi de que não conseguia respirar. Puxei a Madlen e abandonámos o nosso abrigo fugindo do exército. O gás impedia-nos de respirar, o que nos obrigou a fugir para conseguirmos respirar. E quando finalmente respirávamos, as pessoas felicitavam-nos e gritavam: “Bem-vindos ao Líbano!” Os nossos pulmões tinham inalado as boas-vindas. E voltámos a juntar-nos à multidão. No dia seguinte, ouvimos dizer que o exército tinha disparado balas verdadeiras. O HomeWorks foi cancelado e a declaração que emitiram acabava com um incentivo bem claro: “Vemo-nos nas ruas.” A revolução tinha começado.

          O local e o global e as suas turbulências tinham entrado no meu corpo, tinham-se tornado explícitos, numa das vezes por meio das abraçadeiras de plástico, na outra por uma substância tóxica que penetrou os meus pulmões e deixou uma camada viscosa na pele. Para alguns, uma casa, ou a imagem de uma casa, traz conforto e reconcilia-os consigo próprios. Na literatura grega antiga, nostos é, ao mesmo tempo, o tema e o género em que se conta e se experiencia o regresso a casa após uma viagem tumultuosa, na qual se escapou à morte, ou o regresso da guerra. A casa é considerada tradicionalmente como o lugar onde se aterra em segurança – onde é suposto pormos tudo em ordem, a ordem que voltará a ser baralhada pela vida lá fora. Mas e se não conseguirmos vencer o turbilhão dessas viagens tumultuosas, e se ele se instalar dentro de nós e nos entrar pela casa adentro? Estava eu a debater-me com estas questões tentando perceber o meu lugar, ali ou noutro lugar, a reformular o oikos, quando, em frente ao elevador que me levaria ao meu apartamento, dois homens dirigem-se a mim e a um amigo meu, o Lars, atingindo-me no lugar mais íntimo, no âmago do amor e do desejo. Não conseguíamos perceber o que diziam, e esta confusão linguística acabou por ser uma alusão ao uso das nossas línguas. A língua, glossa, um dispositivo de linguagem e amor. A imagem: um deles começou a fazer a coreografia do YMCA, aquela música animada dos Village People, mas acrescentou um contraponto fazendo gestos obscenos com as mãos e boca – um broche no ar. Só mais tarde apanhei a referência à música disco gay porque estava demasiado embrenhado na melodia frívola do momento da agressão, ou não estava à espera de referências culturais no meio do fogo cruzado. Um deles tentou atingir-me na cabeça mas falhou e arranhou-me a bochecha direita. O outro achou que o primeiro tinha passado um pouco das marcas e empurrou-o para dentro do elevador. Mas antes que a porta fechasse, o mais entusiasta dos dois deslizou devagar o polegar horizontalmente pelo pescoço, gesticulando a possibilidade de homicídio e gritou: “Para a próxima!” A próxima vez, penso eu, que lindo pensamento, outra oportunidade para nos reinventarmos. A invenção de um novo eu, de uma nova casa.

          Coreia, vamos continuar a contar estas histórias. Vamos escrevê-las para não as esquecermos. Vemo-nos nas ruas. Até à próxima.

          Traduzido do original em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia Silva.

          EN

          Dear Coreia,

          You asked me to contribute to your third installment, your third body, which will cary the number two. I am writing this letter on my way to South Korea – a striking resemblance between Coreia and Korea somehow blesses this writing. And on the way, I might have flown over a city where I spent two weeks with your editor, one in 2015, one in 2019: Beirut. As airspace above Iran and Iraq didn’t entirely close, but is widely avoided by international air traffic, I would propose that we just assume that I flew over Lebanon, and then further East, above the Middle of the East. But we both know that one rarely travels in straight lines. Would you let me borrow your body so that I can put down some word as a memento of events to be recorded?

          On an occasion as this, flying along a mental line, which is actually a bumpy curve, I would like to recount a story which had just happened ten days before I visited Beirut last October. As if it were an echo from a future protest, I had attended a climate sit-in together with my students. Actually, we were supposed to do other things that weekend; to discuss their research proposals which they would execute throughout the coming year. But adamantly they insisted on joining the protests, and so we did: class suspended, and a space made for questions reaching far beyond aesthetic concerns. Indeed, we made space for a question. A question so present in most of us today, trying to rethink our personal and collective horizons in the gloom of climate catastrophe. A question, at this very moment, literally elevated mid-air. The image: about 450 people gathering on a square in Brussels, discussing and exchanging, occupying a physical space with the mental space they are occupied with. I have never been very fond of group conversations, but this was different, and reminded me somehow of the few gatherings I attended during Occupy Frankfurt in 2011. To give space, and by giving it also taking it. To claim space and to share it again. A forth and back of space-taking and space-giving. And then suddenly the police entered the square. As I said before, I’d like to think that we move in curved lines, but the police only moved in straights. The straight lines came and entered the square, entering it through the three main roads. The straight line of moving squads, the straight line of moving batons and canisters, the straight lines of moving entities dividing us into three sections, three bodies of cattle, the straight line of water gushing out of a canon targeting three old ladies on the floor. The pepper spray, the plastic strips around our wrists: we were immobilized for six hours, on the cold floor, just to let us understand clearly that one should not ask a question and make space for them. My students, myself and 450 other people got arrested, via a beautiful, but painful master choreography orchestrated by the police. For the State to question means to offend, to attack, to subvert the rules of our society. But while being dragged to the bus, I caught a glimpse of doubt, compassion maybe, present within the policeman who had a wet shine on his retina: at that moment a hopeful wetted curve in a striated space.

          An instance of choreo-police had hit us and led us to understand, or rather to sense, the concrete, immediate effects of what it means to be subordinated by the State. A direct line between ideologically challenging formations and questions, and their aftereffects taking the form of bruised wrists and a week of restless nights. Of course, how could we not always embody the effects of State? But here, the bruise, the subdermal hematoma, became a concrete visualization of what it means to be a citizen today, of what it means to have the State under your skin. When one asks Google how long it takes for a hematoma to go away, the answer is quite simple: one has to wait. The prime machine of surveillance capitalism tells us to wait. I laugh. A passing of time to visually erase the aftereffects of physical trauma. An issue of display, of epidermis, of screen, an organ which forms the boundary between outside and inside. But what really happened was a forced swallowing of the red and the blue pill at once: the simultaneous experience of both dormancy and insurgency, of arousal and perplexity. The body and mind both visualize and are marked by the State, the matrix they are caught by. We became its sign.

          And as we are traveling forwards, I am traveling backwards while reading Beirut Mon Amour, a short text by Paul B. Preciado revisiting his visit to Beirut and HomeWorks, the arts festival hosted and organized by Ashkal Alwan, in 2015. I was there as well: the bombs in Beirut right before the assaults in Paris, the stench, the confusion. A fine, sketchy line of memory, yet strong enough to keep me in its bind. Paul finishes his text with a Serbo-Croatian saying: “’Hope is the greatest whore.’ I want to get into bed with that whore. I want to sit down next to her and wash her feet. Because that whore is all that’s left of us, and she is the greatest.” I cannot think but wanting to sleep with her too.

          And there in Beirut, in 2019, embodiments of hope. On the second day of our stay, we dancingly attended the opening party of the HomeWorks festival. I remember the long velvet corridors of the club, as if they were Lynchian pathways, yet curved, not straight. We were feisty, Deena Abdelwahed was playing, it was hot – at the time we did not know its foreshadowing powers. We had left a club and people were wary about the fact that no taxis would show up. But once in a car, we saw the piles of tires burning. The roads were blocked, the air was black. “Something like les gillets jaunes!” the taxi driver laughed. The next day the whole city was blocked: its main crossings were temporarily crossed out by vast piles of burning plastic. The air was thick. As in Beirut one travels by car, and rarely by foot, a simple blockage caused people to take the streets, walking. After having missed my appointments during the day, I finally was able to meet up with a friend, Madlen, for a delicious Lebanese dinner. But over baba ganoush and fattoush something had changed, the atmosphere got grim and city noises and clamour pulled us onto the streets. The image: thousands of anonymous masks driving scooters, back and forth, seemingly uncontrolled, but clearly, decidedly moving and turning. We dug deeper into the mass, the air was hot and sizzling, a mix of exhaust, burning plastic and the pheromones of revolt. We found ourselves on a crossroad, a meeting point of seven roads, with an old, sturdy tree in the middle, surround by a small perch of dry grass. A huge bang, fire in the distance, scooters coming into our direction, thousands of people running, screaming in a language we did not understand. Madlen suggested to climb into the tree, and thinking it was a joke, I quickly realized she meant it. The tree, a possibility of a safety, a rooted anchor. I said there would be better occasions than this to climb trees. Some minutes later, the incredibility of silence hit us. I peeked from behind the tree, and saw the army lining up about sixty meters in front of us. Everyone was gone, except for a young boy, who, with his face covered by a shawl, told us to stay put. A second later, a strange smell. It took about a split-second to realize I couldn’t breathe. Pulling Madlen with me, we left our shelter and ran away in front of the army. A gas had made  us unable to breath, which forced us to run away in order to be able to breathe again. And when we did, people cheered at us and shouted: “Welcome to Lebanon!”. A welcome had filled our lungs. And together we entered the masses again. The next day we heard the army had been shooting with real bullets. HomeWorks got cancelled, their statement ending with a clear incentive: “See you on the streets.” The revolution had begun. 

          The local and the global and their turbulences had entered my body, they had been made explicit, once by means of plastic strips, once by a toxic substance entering the lungs, leaving a sticky layer on the skin. For some, home, or the image of a home, brings comfort and a reconciliation with the self. In ancient Greek literature, nostos is both the theme and the genre of both telling and experiencing the return home after a tumultuous journey, escaping death or coming back from war. Home is traditionally seen as the place where one lands safely – it is where one is supposedly to order things, the order which can be then stirred up again by the great outdoors. But what if we can’t shed the maelstrom of those tumultuous journeys, what if it keeps on residing within us, what if it enters our homes? In the midst of grappling with those questions and trying to formulate how I could place myself, there or elsewhere, to reformulate an oikos, it was in front of the elevator which would lead me to my apartment that two men addressed me and a friend, Lars, and that I was caught in the most intimate place, my kernel of love and desire. We couldn’t understand what they were saying, and eventually this glossal confusion turned out to hint at the use of our tongues. The tongue, glossa, an apparatus of language and love. The image: one of them started singing YMCA, that bouncy track by the Village People, but added counterpoint by making obscene gestures with this hands and mouth – an airy blowjob. I only got the reference afterwards, that piece of gay disco, as I was too caught up in the in the frivolous melody of the aggression of the moment, or not expecting cultural references while being caught in crossfire. One tried to hit my head but missed and instead scratched the surface of my right cheek. The other thought he was going a little too far and pushed him in the elevator. But before the door closed the most enthusiastic one of them moved his thumb, slowly, horizontally along his neck, gesturing the potential of murder and shouted “Next time!”. Next time, I think, what a beautiful thought, another chance to reinvent oneself. An invention of a new self, of a new home.

          Coreia, let’s keep on recount these stories. Let’s write them down to not forget. See you on the streets. See you next time.

          Zeina Hanna زينه حنا Confia/Não Confia

          PT

          No dia em que aterrei em Beirute soprava um vento muito quente. No dia seguinte, partes do país ardiam por culpa da má gestão dos bombeiros, no dia a seguir houve uma greve contra a imposição de novos impostos e no dia a seguir a isso, a 17 de outubro de 2019, começou a revolta.

          Dei por mim no meio desta revolução ainda em curso, a passar 10 horas por dia nas ruas, a tentar perceber o que fazer, o que posso eu fazer, como posso participar, o que estou eu a testemunhar?

          A história do Líbano é tão complexa e interligada com a história de outras forças da região que seria incapaz de a explicar. O Líbano não é bem um país independente, não é bem uma democracia, nem é bem uma república, nem sequer é bem uma ditadura. É uma oligarquia governada por senhores da guerra, por máfias e por bancos. O sistema, que perdurou nos 30 anos que se seguiram à guerra civil (1975-1990), nunca promoveu qualquer tipo de unidade no país e manteve as divisões com recurso ao sectarismo. Tudo isto embrulhado por uma paisagem mediterrânica charmosa e tranquilizante.

          No primeiro dia em que me dirigi à baixa de Beirute, onde as pessoas se reuniam para mostrar o seu descontentamento e a sua raiva, tive bastante cuidado. Sentei-me no passeio, debaixo do teatro abandonado, junto a um grupo de mulheres e certifiquei-me de que tinha uma parede atrás de mim. Desenhei mentalmente uma rota de fuga caso fosse necessário. Sentei-me e pus-me a observar a multidão durante três horas, mudando apenas a minha posição sentada. Acabei por me levantar e comecei a passear e a encontrar-me com amigos.

          Os primeiros três dias foram mágicos. Havia uma enorme quantidade de slogans criativos e cheios de sentido de humor que passavam pela multidão composta por gente de todos os cantos do país. Gozar e insultar a classe governante era como que um exorcismo coletivo. Combateram-se muitos medos e transcenderam-se muito tabus, mas não todos. Ativistas, mulheres e a comunidade LGBT desempenharam um papel importante na desconstrução pública de certos hábitos e abusos de linguagem. Para insultar os políticos usaram-se expressões que envolviam os termos “mãe”, “irmã” ou palavras como “لوطي”, que significa “bicha”. Os ativistas retorquiam, cantando, que o termo “bicha”, por exemplo, não é um insulto, e propunham alternativas. Jogava-se um ping-pong de linguagem para negociar os insultos mais adequados.

          As caras das pessoas brilhavam e as rugas desapareciam. Os corpos estavam firmes e empenhados, os olhares disponíveis. As pessoas juntavam-se espontaneamente, em círculos ou em linhas, a cantar e a dançar dabke (uma dança folclórica da região). Aos saltos, reconheciam-se umas às outras e criavam um espaço público que passavam a habitar. As ruas estéreis da baixa reconstruída de Beirute foram invadidas por uma enxurrada de opiniões e pensamentos partilhados. De um dia para o outro, as paredes ficaram cobertas de graffitis, imagens e frases. E quanto mais pessoas eu via a manifestar desconfiança em relação ao governo, gente muito diferente e de regiões distintas do país, com mais confiança eu ficava nas pessoas e na nossa capacidade de fazer a diferença coexistir. E, desde então, não é possível voltar atrás.

          Várias associações de diferentes profissões, bem como profissionais da cultura, comprometeram-se com a esfera pública e aproveitaram a oportunidade para partilhar o trabalho que andavam a fazer há anos, como se tivessem estado a preparar-se para aquele momento. Senti-me numa universidade ao ar livre. Não na universidade que frequentei, mas numa universidade da urgência, em que a universidade é a própria situação e onde se aprende sobre o que está a acontecer no momento em que acontece.

          Foi avassalador, enternecedor e lindo fazer parte de um acontecimento como este, sobretudo sabendo que as infraestruturas libanesas sufocam a capacidade de expressão dos seus habitantes privatizando o espaço público, o que reduz bastante as possibilidades de ajuntamentos e de manifestações.

          +++++

          Numa manhã dessa primeira semana, acordei, aproximei o telefone da cara e li uma mensagem de uma amiga que precisava de reforços num bloqueio de estrada. Fui e fiquei de pé, meio adormecida, no meio da estrada, entre o passeio e um contentor do lixo. Não precisei de fazer nada. A minha presença era o suficiente para indicar aos condutores que não podiam passar, enquanto outra pessoa os redirecionava para um caminho alternativo. A maior parte dos condutores era compreensiva e percebia que o objetivo do bloqueio era afirmar que as coisas não podiam voltar ao normal, não agora, ainda não, não antes de serem ouvidas as exigências das pessoas. O que até hoje ainda não aconteceu. Às duas da tarde desmontámos o bloqueio. Percebi, enquanto caminhávamos em direção ao centro da cidade, que ter estado durante uma hora a fazer de barreira humana teve um grande impacto em mim e na minha postura a caminhar. Por mais pequeno e insignificante que o meu papel tenha sido, foi muito gratificante sentir que influenciava o ambiente dos outros em vez de ser subjugada por ele. Pensei que talvez estivesse a vislumbrar o meu corpo de cidadã, uma presença que sentia como se sente um braço ou uma perna fantasmas. O que será preciso para usar esse poder com eficácia?

          Tenho hoje a sensação de que o primeiro mês foi um dia contínuo de 672 horas interrompido por sestas curtas. A presença constante dos ecrãs reduziu muito a capacidade de dormir. O “social” das redes sociais fez finalmente sentido para mim, o telefone era uma arma e uma extensão da rua.

          Os níveis de adrenalina produzidos pela multidão e a euforia generalizada eram de outro mundo. Ao fim de cinco dias, sentia-me tão excitada que estava capaz de pegar em armas para proteger as pessoas da ameaça que se aproximava: os infiltrados, os desordeiros, os políticos, as autoridades. Mas acordei no dia seguinte com um torcicolo e todas as minhas aspirações a soldado do exército vermelho caíram por terra. Durante sete dias não conseguia rodar a cabeça para a direita.

          Ainda assim, quando um grupo de desordeiros de um partido político atacou os manifestantes no “Ring” (duas estradas que ligam o lado oriental e ocidental de Beirute) poucas horas antes da demissão do primeiro ministro, Saad al Hariri, estive quase lá. Foi quando percebi que um mercenário enraivecido equivale a vinte manifestantes pacifistas. Afastei-me a tempo, observei, e quando chegou a altura certa, corri e saltei para a mota de um tipo com quem tinha estado a conversar. Agradeci ao meu torcicolo que me condenou à prudência. Tenho um vídeo do momento que precedeu o ataque, em que estou a filmar o nada, a rua vazia – uma rua que habitualmente estaria cheia de trânsito –, muito calma e pacífica. E depois do confronto, num outro vídeo, está tudo tremido, o pânico instalado, eu à pendura numa mota e as pessoas a correrem e a gritar.

          Noutra altura, dei por mim, por engano, no meio de um mar de desordeiros agressivos (provavelmente os mesmos). Arrancavam pedras do chão para as atirar. Se me mexesse, seria um alvo. Fiquei por isso completamente congelada na esperança de que assim não me conseguissem ver. Lembrei-me do modo como certos animais atingem um estado de tanatose fingindo estar mortos para enganar os predadores. Perguntei-me se este estado era resultado de um reflexo ou se seria uma decisão consciente.

          Em novembro/dezembro, as manifestações tornaram-se mais direcionadas para instituições específicas como ministérios e bancos. Organizaram-se diariamente muitas marchas e ações. As autoridades barricaram o centro da cidade e o acesso ao parlamento foi vedado aos manifestantes.

          Ficou claro, desde muito cedo, que esta revolução irá durar muito tempo e transformar-se ao longo dos anos até que alguma coisa mude. E terá também de sobreviver a uma crise económica que irá modificar profundamente o país.

           

          +++

          Durante este tempo recordava com frequência uma conversa que tive com uma amiga em Berlim, mesmo antes de ir para o Líbano. Não sei bem dizer porquê. Dizia-lhe que percebia melhor o romantismo alemão quando comparava o meu estado de espírito a caminhar nas ruas de Berlim com a experiência de caminhar nas ruas de Beirute.

          Em Berlim, os passeios funcionam como um suporte para a minha caminhada, são largos, têm árvores, olho para cima e caminho livre e independente dos meus pés. Começo a pensar na vida a um nível macro: a natureza, o amor, etc.

          Em Beirute, faço o passeio existir ao andar sobre ele porque tecnicamente não é bem um passeio. Os meus pensamentos estão vinculados aos meus pés e concentro-me em aplicar a imagem “passeio” à minha ação de andar. Construo a imagem à medida que caminho, colocando cada peça do puzzle à minha frente antes de a poder pisar. A rua não é um suporte para pedestres, é antes um conceito que produzimos. Dizia-lhe como sentia saudades disso porque às vezes a distração confunde-me, dispersa os meus pensamentos e perco-me.

          Sigo agora os acontecimentos à distância. Depois da escalada de violência em janeiro/fevereiro e de tantas violações dos direitos humanos, noto como essas imagens de violência são familiares e abstratas. Com tantos protestos a acontecerem por todo o mundo, a violência entre manifestantes e autoridade parece que é toda igual. O equipamento dos manifestantes revela quantos ou quão poucos recursos e organização eles possuem. E o comportamento das autoridades revela a quantidade de violência que estão autorizadas a exercer e quão eficazes ou aleatórios são os seus métodos.

          Traduzido do original em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia Silva.

          EN

          The day i landed in Beirut, there was this very strong hot wind. The day after, parts of the country were burning because of poor fire management, the following day there was a strike against new imposed taxes, and the day after that, on October 17th 2019, the uprising began.

          I found myself in the midst of this revolution that is still ongoing, spending 10hrs a day in the streets, figuring out what to do, what can i do, what do i take part in, what am i witnessing?

          The history of Lebanon is complex and so intertwined with other forces in the region that i wouldn’t know how to explain it. Lebanon is not really an independent country, it’s not really a democracy, not really a republic, it’s not really a dictatorship either.
          It’s an oligarchy run by war lords, mafias and banks. The system prevailing since 30 years after the civil war (1975-1990) never allowed any form of unity in the country and maintained separations by establishing a sectarian system. All this wrapped up in a very charming and soothing mediterranean landscape.

          The first day i went to downtown Beirut where people gathered to express their rage and discontent, i was very cautious. i sat on the side of the street under the abandoned theatre, next to a group of women and made sure there was a wall behind me. I had planned an escape route i could run away from, just in case. I sat and observed the crowds for 3hrs, only changing my sitting position. I eventually stood up and started walking around and meeting friends.
          The first 3 days were magical. There was an incredible amount of creative and humorous slogans traveling amongst the crowds from all over the country like flowers thrown into the air and diffusing their smell. Insulting and mocking the ruling class out loud was like a collective exorcism. It broke many fears and transcended many taboos but not all of them yet. Activists, women and lgbt community played a big role in deconstructing publicly certain habits and abuse of language. Expressions involving mothers, sisters or words such as لوطي meaning fagot were used with the intention of being hurtful towards politicians.They sang back at them that faggot, for example, was not an insult and proposed alternative versions. It was like a ping pong language match of negotiating what insults fit better and to whom.

          People’s faces were glowing, as if their wrinkles suddenly disappeared. The bodies were so grounded and engaged, their gazes were open. People were spontaneously coming together singing and dancing “dabke” (folk dance from the region) in circles or lines. They were bouncing off the floor encountering each other and creating public space by inhabiting it. The sterile streets of the rebuild downtown Beirut were transformed into an outpouring of shared thoughts and opinions. Overnight, graffitis, images and writings covered the walls. The more an expression of distrust toward the government was expressed out loud from all over the country and from all kinds of people, the more trust i gained in people and our ability to coexist differently. From now on there is no going back

          Various associations from different professions and cultural workers engaged into the public sphere, using this opportunity to share the work they had been doing for years as if preparing for this moment. It felt like i was in an open air university. Not the kind i have been to, but the urgent kind, where the university is the situation itself and where you learn something actual about what is happening in the present while being in that present.

          All this was very overwhelming, heart warming and beautiful to be part of, especially knowing that Lebanon’s infrastructure suffocates its inhabitants by illegally privatising public space and therefore considerably reducing public gatherings and public manifestations.

          +++++

          One morning during this first week, i wake up, bring my phone to my face and read a message from a friend where she says she needs backup on a road block. i go and stand there half awake in the middle of the road, between the side walk and a garbage container. i didn’t need to do anything. My mere presence was enough to indicate to the drivers that they can’t pass through and someone else was redirecting them to an alternate route. Most cars were very responsive and understood that the aim of the blockage was to state that things cannot go back to normal, not now, not yet, not until the demands of the people are heard. Which did not happen until today. At 2pm, we dismantled the road block. While walking to the city centre, i felt that having had the function of a human fence for an hour, really had an impact on me and the way i held myself. However little and insignificant that role was, it felt fulfilling to affect ones environment directly instead of being subjected by it. I thought maybe this was a glimpse of my citizen body, a presence that felt like a phantom limb. What will it take to use that power in an effective way?

          It seems to me now, like the first month was a 672 hour long day intercepted by short naps. The constant presence of screens reduced considerably the ability to sleep. The “social” in social media finally made sense to me, the phone was like a weapon and the extension of the street.
          The levels of adrenaline produced by the crowd and the general euphoria was off the charts. After five days, i was so pumped up, i was ready to take weapons to protect the people from the threat that we all knew was coming: the infiltrators, the thugs, the politicians, the authorities. But i woke up the next day with a very stiff neck, and all my red army aspirations disappeared fading away to the background. I couldn’t turn to the right for 7 days.

          When a group of thugs from a political party attacked protestors at the “Ring” ( 2 roads that connects east to west Beirut) some hours before the resignation of the prime minister – Saad el Hariri – i was very close. I could see how 1 enraged mercenary equals 20 peaceful protestors. I stepped back early enough, observed, and when the time came, i ran and jumped onto a motorcycle of a guy i had just had a conversation with. I was thankful for my stiff neck to keep me wise. i have one video preceding that moment where i am filming nothing, just the empty street, usually full of cars, and it’s very quiet and peaceful. And after the confrontation, in another video, everything is shaking, full panic, i’m on the back of a motorcycle, people are running and shouting.
          Another time i found myself by mistake in a sea of aggressive thugs (probably the same ones). They were taking stones from the floor and throwing them around. Whatever move i made, i was a target. So i completely froze as if i wouldn’t be noticed. At that moment i thought of how certain animals can go into a state of tonic immobility that allows them to seem dead to their predator. I wondered if this state was a reflex or a decision.

          In November/ December, the demonstrations became more targeted to specific places like ministries and banks. Many actions and marches were organised daily. Authorities barricaded the city centre and so the access to the parliament was never reached by the protestors.

          Very soon it became clear that this revolution is going to last very long and transform over the years before any change is made. And it will have to survive a terrible economical crisis that will deeply change the country.

          +++

          A talk i had with a friend in Berlin just before going to Lebanon, kept on coming to my mind during this time. I can’t really say why. I was telling her how i understood german romanticism by comparing my state of mind while walking in the streets of Berlin with what i know from walking in Beirut. In Berlin the sidewalks are like a support for my walking, they are wide, there are trees, I look up and wander freely and independently from my feet. I start to think about the bigger picture in life on a macro level: nature, love etc.
          In Beirut, i make the sidewalk exist by walking on it because technically it’s not really a sidewalk. my mind is very connected to my feet and my focus is on making the picture “sidewalk” apply to my action of walking. I build the picture as i am walking, putting each piece of the puzzle in front of me before i can step on it. The street is not a support for pedestrians, it’s a concept we produce. I was expressing how much i missed that, because sometimes, wandering off confuses me, it disperses my thoughts and i am lost.

          Now i am following the events from far. After the escalation of violence in January/February and so many violations of human rights, i start to see how familiar and generic the images of escalation of violence look like. In so many protests happening all over the world, violence between protestors and authority look disturbingly similar. The equipment of the protestors reveals how much or little resources and organisation they have. And the behaviour of authorities reveal the amount of violence they are allowed to exercise and how efficient or random their methods are.

          Vânia Rovisco Por onde Andei

          Os nove meses anteriores, e os posteriores, ao parto foram períodos de estreita conexão com a natureza e os seus ensinamentos. Foram também períodos extremamente sensíveis e como que alheados da realidade física da minha condição.

          Um corpo em gestação, a experiência da maternidade, revela a expansão literal de um conhecimento ancestral embutido, a florescer a todo o momento. Essa experiência transformou-me enquanto ser humano, transformação essa que ainda hoje estou por descobrir na sua totalidade.

          Associei à água que corre num rio a fisiologia desse processo gerador, a água em permanente mudança e movimento.
          No corpo materno as mudanças acontecem a muitos níveis, dos mais subtis aos mais profundos. Desde dar por mim a cobiçar frangos no espeto (depois de ser vegetariana há dez anos e vegan há um!) a não tomar um caminho habitual em Lisboa, por me parecer demasiado errático o movimento das gentes naquele local.
          Vim a descobrir e a experienciar que uma mulher, quando gera vida dentro dela, torna-se Sagrada, como a Natureza, e talvez por isso a minha ligação à natureza também se tenha intensificado nessa altura. A necessidade de estar próxima do mundo natural era tal que um dia dei por mim a lamber pedras duma encosta e, para sair de lá, tive de me valer de todas as minhas forças.
          Recordo-me da profunda conexão com as árvores e as suas raízes… de viajar pelo Alentejo e conectar-me com a sua rede subterrânea, de onde extraí forças, e de me sentir apoiada e acarinhada através dessa ligação. Recordo-me da masturbação cósmica que, após três dias a não conseguir manter comida no meu organismo, me revelou que podia e devia finalmente alimentar-me a mim e ao feto.

          Be strong my mind, myself. Protect me from my fear.

          No meu corpo cada célula revigorada e transformada, um órgão novo gerado cuja única função era a de acolher e nutrir. A completa desestruturação do meu ego. O estado iminente e simplesmente claro das coisas… Perceber o quão próximo estava a conviver com a vida e a morte, com a suprema beleza da existência, com o seu potencial doloroso. Com gratidão, recebi e dei vida.

          Recebi este convite para partilhar relações, ligações, entre o meu trabalho de incorporação em performance e a gestação.Aventuro-me a estruturar esta colisão de pensamentos (muito pessoais, fluidos e mutantes) em quatro pontos:

          O corpo fisiológico e a prática

          Não fiz nem quatro décimos do ioga ou dos alongamentos que pensava que iria fazer. Ao invés disso, imaginei-me como uma mulher Andina. Isto porque eu vivia, na altura, perto da Praça Paiva Couceiro, num 4º andar sem elevador, em obras, e com uma mudança eminente. Todos os dias subia e descia montanhas. A cada passo aplicava a prática de me enraizar numa nova condição em constante mudança, que não obedecia a nenhum entendimento anterior que tinha acerca da fisicalidade. Relembro-me de investigar a relação do corpo com o equilíbrio, que a cada instante se alterava. Se eu ficasse presa à informação da postura anterior, simplesmente não conseguiria equilibrar-me! A escuta das plantas dos pés a ressoar pelo esqueleto, enquanto caminhava como numa esfera mágica, que a toda a hora emanava informações de como me equilibrar numa atmosfera movível. A candura presente na prática e o entendimento de como pouco ou nada serve querer fazer mais, ou ir mais além de onde se está, e de como é importante aceitar essa condição e trabalhar assim, judiciosamente, com ela. Aceitar para ir ao encontro de uma sincera transmissão de fisicalidade. Dançar. Dancei para me libertar, para me limpar. Dancei descalça, em festivais de música de dança, na praia, sobre chãos de madeira, dancei loucamente durante muitas horas até ao dia do parto, deixando-me perder e ser embalada. Percebi que era preciso manter um corpo em trabalho para mais tarde poder fazer o trabalho de parto.

          A presença e o meio

          O ampliar do estado de presença intuitivo e instintivo fez-me querer, ou pelo menos tentar/desejar, ter um parto natural. Tive de lidar com todo um mecanismo pesado, revelado em pressões médicas, sociais e familiares que constantemente questionavam as minhas decisões internas. Num momento de exponente criatividade absoluta, intrinsecamente entrelaçada com a sexualidade como motor da energia criativa, as ferramentas adquiridas anteriormente, por tomar decisões sobre como desenvolver processos artísticos e objectos de apresentação, vieram fortalecer decisões que, noutra altura, poderiam ter sido facilmente derrocadas por factores exteriores. Como se eu soubesse que o processo era meu, para ser feito por mim e que, por isso mesmo, não permitiria que nada nem ninguém me tirasse o direito de o experienciar totalmente. Salvo se o meu bem-estar ou o da cria estivessem em questão – aí remodelaria, criativamente, o meu querer. Acredito ser de extrema importância seguir um processo artístico pessoal, como acredito que este processo alimenta a criatividade e o diálogo com os materiais que abordamos, bem como com as pessoas com quem nos relacionamos. Este processo é um manifesto da criatividade e o objecto apresentado é a reflexão e a escuta desse manifesto.

          Escutas internas e perda de medos

          Vieram-me sonhos, visões, informações oriundas tanto do meu interior como do exterior que me rodeava, numa constante reformulação elástica de conceitos. Para mais, tinha concordado em gerar uma família não convencional, não mono-nuclear e tinha padrões convencionais a expurgar e padrões emocionais a desafiar-me. Era o desmantelamento total. A fragilidade, ferida, à superfície da pele, com surtos de alegria e entendimento claros e sólidos.
          Actualmente continuo a caminhar na corda-bamba do acto criativo. Mas surgem aqueles momentos em que entendo perfeitamente o alinhamento do espaço, tempo, luz, som e corpo que emanam informação a ser apreendida por uma outra perspectiva. Aqueles momentos em que um novo entendimento se revela e substitui um entendimento anterior, para preencher um lugar estagnado ou a precisar de ser nutrido… similar ao lugar e papel da criação artística perante a sociedade. Uma inquietude e questionamento do conhecimento para saber mais acerca da condição humana e do seu potencial.

          O errático e a composição

          O estado de mudança a acontecer era constante. Houve momentos de extrema sensibilidade capaz de perfurar pneus … A riqueza da velocidade ou, por vezes, a penosa lentidão fizeram com que necessitasse de dar sentido, ou ordem, ao decorrer dos acontecimentos e não acontecimentos. Uma constante composição no fazer, desfazer e refazer… tudo em poucos minutos! Segurar o bote para me poder levantar e continuar com algum sentido. É que o errático passou-se no detalhe, não na forma. A composição era refractada por ser composta por detalhes subtis que não davam acesso ao entendimento sobre outras possibilidades. Como não havia distância, havia uma constante improvisação de detalhes, ora rápidos ora lentos, que brotavam de um interior presente, oriundo duma sabedoria ancestral para logo se misturarem com o anúncio da coca-cola, e quejandos, no presente contínuo. Claro e confuso ao mesmo tempo!

          Pari a minha cria num contentor-cabana na floresta. Nos meses que antecederam o parto vi várias vezes dois vídeos: Birth as We Know it e Naître Enchantés ” (ambos acessíveis no Youtube). Cantei para dilatar o colo uterino e mexi as ancas em círculos durante horas, porque, acredito, o acto de nascer acontece através das forças físicas que pulsam em espiral, espelhando a geometria sagrada do universo. Como se, no parto, nós mulheres usássemos o momentum da direcção e força energética do movimento. Movimento que começa no cosmos, é absorvido pelo crânio, atravessa o corpo a parir e o corpo a ser parido e continua, como energia vital, para além desses corpos. Algures nessa viagem de 12 horas perdi a conexão com o pé direito por ter comprimido demasiado os nervos do tornozelo.
          Estive rodeada pelas pessoas certas e cada uma delas levou-me e ofereceu-me algo no momento em que mais necessitava. Como quando fui chamada à atenção para o facto de que a vontade que estava a surgir em mim camuflava uma perda de controlo e que o caminho não podia ser aquele, por ser necessário dosear a energia para aguentar até ao fim, de forma natural.
          A cria dentro de mim, presa por ter uma mão junto à cabeça, com calma ia, íamos, trabalhando juntos no vortex da espiral dentro da bacia. Os ossos moviam-se, ouviam-se, os órgãos afastavam-se.
          No momento da saída completa da cabeça consegui conter-me e esperei para que a pele pudesse adaptar-se àquela repentina elasticidade e, com a contração seguinte (expansão), o corpinho fluiu totalmente para fora. Depois, inundada de amor e cansaço, voltei ainda ao trabalho, para parir a placenta, o segundo e último parto.
          O período que se seguiu, de recuperação intelectual, de adaptação física e emocional, para engrenar numa nova rotina, pouco linear mas a precisar de estrutura, foi no mínimo desafiante. Durante sete dias ingeri a placenta e a sua protecção benevolente.
          Durante 40 dias nunca saímos da floresta. Dias suspensos. Um pé adormecido, o leite a subir até ao peito, a cria a aninhar, o amor.

          Depois de ter parido fui bombardeada por perguntas constantes, muitas acerca das dores, se elas não eram insuportáveis… A meu ver, isso é sinónimo e resultado da distância a que se vive actualmente com o corpo (uma vivência virtual). Respondia e respondo: a natureza é sábia e, num parto normal, como foi o meu, as dores correspondem àquilo que o corpo consegue suportar, a mente tem de, e pode, lidar com elas e superar-se. O que se diz é verdade… é trabalho, trabalho de parto.

           

          Texto revisto por Sónia Baptista em diálogo com a autora.

          Diego Bagagal Geografia do amor

          Antes de te escrever, eu me perfumo todx.

          a descoberta

          Imagine como estou te escrevendo… saiba que ao invés de cortar aquelas frases soltas e pensamentos proibidos, eu vou deixar tudo no papel… Pode ser que lá para o meio esses pensamentos se molhem. Se assim acontecer, o que você ler estará borrado e, pela experiência vivida, o papel uma vez manchado ficará sempre manchado e não adianta tentar secar com o secador de cabelo.
          Se molhar, deixe molhar.
          E caso aconteça, se alguma fonte do seu corpo pingar ou jorrar, me conte com que tipo de água foi molhado. Com que parte do corpo ela falou. Se puder ser mais específico, me conte com qual corpo material ou imaterial você gozou.

          Quando descobri que meu tio tinha AIDS era noite.
          Ele entrou em casa gritando, ou chorando, de dor ou de raiva.
          Minha vó gritou e chamou a minha mãe: CRISTINA!
          Ele entrou na sala de jantar e a minha mãe correu desesperada pelo corredor, me trancando no quarto. Ela sabia que eu iria até ele.
          O chão da sala de jantar e do corredor era de mármore branco.
          Antes de ser trancado, coloquei a cabeça pra fora e consegui ver por baixo do braço da minha mãe. Vi no branco do chão gotas vermelhas.
          Passei a noite trancado (talvez só trinta minutos).
          A imagem do sangue no branco.
          Tentei, na ponta dos pés, olhar pelo buraco da fechadura.
          A imagem do sangue no branco.
          Meu tio gritava: YAYÁ! – era assim que ele me chamava.

          o bioma que dança

          Quando eu tinha um ano de idade, a minha mãe se divorciou do meu pai e convidou a minha avó Conceição e meu tio Ricardo pra viverem conosco. O meu tio se tornou a figura masculina de segunda a sexta-feira (e meu pai nos finais de semana) e era o único parente gay da família.
          Tio Ricardo era um apaixonado e conhecedor exímio da geografia mundial, sendo também um fanático disco clubber. Sua grande paixão por geografia era alimentada em seu trabalho – ele foi vendedor (e ladrão) de livros de livrarias importantes da cidade de Belo Horizonte.
          Na época do Natal e Ano Novo recebíamos seus amigos que não tinham família para comemorar. Graças ao meu tio (e à permissão da minha mãe e da minha avó), as festas na minha casa se transformavam em discotecas com a presença garantida de heterossexuais, transexuais, drag queens, travestis, prostitutas, pastores de igreja, policiais, ladrões, padres e ateus. A minha casa era um bioma da coexistência racial, religiosa e sexual.
          Ricardo transformava a sala em disco onde músicos e bandas das décadas de 1970 e 80 se presentificavam, tais como Donna Summer, Diana Ross, Queen, Cazuza, Marina, Rita Lee e Madonna. Também havia Xuxa, claro. Havia sempre o momento em que ele me homenageava cantando ilariê ôôô em coro com seus amigos.

          quase uma sinopse

          Em 2011, o homem mais amado e temido da minha infância, o meu tio Ricardo Wagner Braga (minha Bruxinha), morreu de AIDS, deixando verbalmente a sua herança pra mim, a sua Yayá.
          Era uma caixinha de plástico que ele guardou por três décadas no seu armário. Nela encontravam-se quase mil objetos, entre eles, 500 cartões-postais de cidades trocados com cerca de 160 pessoas. As mensagens contemplam três décadas e catorze países, entre eles Portugal.
          Ele conheceu grande parte desses “amantes” nas praias do Rio de Janeiro, hábitat oficial dos “Sereios” no Brasil, e no esplendor dos gay balls em plena ditadura militar.
          Em 2016, abri a caixa e vi aquele tesouro com olhos molhados.
          Duzentos e cinquenta e quatro cartões-postais de cidades, escritos e com selo;
          duzentos e cinquenta cartões-postais de cidades sem selo e assinatura;
          documentos de identidade;
          exames de saúde;
          cartas de Amor;
          cartas de saudade;
          cartas de ódio;
          documento da polícia relativo a um crime contra pessoa;
          rezas de cura;
          fotografias pessoais;
          fotografias de família;
          fotografias de Sereios, de Carnaval, de praias cariocas, de dança;
          uma bruxa;
          folhas de diários (em uma das páginas, da década de 1990, Ricardo descreve sua preocupação com a minha gripe – nasci e quase morri, ficando sem contato humano por um mês e, quando bebê, era constantemente levado às urgências dos hospitais pediátricos –
          e, em outra página, Ricardo escreve “Diego está impossível”, confesso, também era uma criança geniosa);
          dois desenhos de cidades, feitos por Ricardo: Belo Horizonte e Rio de Janeiro;
          um desenho de natureza-morta;
          um desenho de uma bicha “Miss Universe”;
          cartões-postais enviados por mim;
          cartões-postais não enviados;
          cartões de Natal;
          atestado de internação;
          santinhos de morte;
          choro;
          riso;
          vício em álcool;
          vício em sexo;
          vício em festa;
          gozo;
          volúpia;
          e a foto do meu irmão mais velho, Daniel Braga Portugal, entubado e em uma incubadora, enviada para uma bruxinha benzedeira, dias antes de sua morte;
          solidão;
          saudade;
          Magia e felicidade;
          Água abundante;
          160 paqueras, amantes, 160 Sereios;
          Risos, discoteca e nós.

          ode à geografia

          Para o tio Ricardo, a “geografia mundial” sempre foi sobre entrar num espaço de fascinação e mistério, pois a maioria daqueles lugares que me descreveu, ele nunca chegou a conhecer. Constantemente, através da sua magia e conhecimento teórico, ele forçava a minha imaginação ao desconhecido. Nas suas “aulas” me parecia que ele buscava oportunidades para me levar além. Às vezes ele se vestia de Bruxa.
          Como criança, eu interpretava tudo aquilo como um conto de fadas. E eu era a Princesa.
          Na década de 1990, no ápice da crise de descobrir-se com AIDS, o Ricardo chegou a tomar álcool etílico e vidros de perfume barato.
          Ele era um homem de líquidos inflamáveis.
          Através dessa herança conheci 160 Sereios que se encantaram por ele.

          O que você faria se recebesse a herança de uma Bruxa?

          invocação

          O arquipélago dos Sereios do Ricardo te chama.
          Vem dançar!
          Sortilégios de água e Amor.
          De morte e calor.
          (Aqui você pode rimar)Agora você se abandona descontroladamente e é arrasssssssssssssssssssssssssssssssssstado
          para o fundo do mar…
          Morrerá exausto nos braços dele?
          Não fala com a boca cheia de espuma.
          Esse jogo você vai perder.
          Senta!
          São cento e sessenta!
          Senta!
          Se deixa levar.
          Sente a força da maré.
          Nem tenta marcha a ré.
          CAI DE BOCA NO ESPERMA DE URANO

          deixa a gira girar

          Descobri que Yayá, como o meu tio me chamava, significa mãezinha em Yorubá.
          Antes de vir pra Lisboa, fui com mamãe a um terreiro de Umbanda. Fiquei tão loucx que no primeiro dia já queria dançar. Você ia morrer de rir. E o Pai de Santo, que era a reencarnação da Chica da Silva e que nunca tinha me visto antes, deu um jeito de me achar no outro dia. Ele tinha sonhado comigo…

          …em cima de um cavalo branco correndo rápido, rápido, rápido, gargalhando pura felicidade e alegria de viver com cabelos ao vento numa roupa vermelha…

          Pelo telefone ele disse que na próxima semana eu já podia entrar na “gira” sem ter que passar pelo rito de iniciação. E disse que na Umbanda minha mãe é Yemanjá, e ela me convoca para a DANÇA. Yemanjá é “A Sereia”, a mãezinha do Mar.

          Um ano depois, a Julie Beauvais, que não sabe de nada disso e vive nos Alpes Suiços, escolheu o Mar como a minha locação para a ópera “Orlando”, inspirada em Virginia Woolf. Por que o Mar e eu?
          Coincidentemente, um mês antes de ter aberto a caixa pela primeira vez, o artista Fernando Cardoso Ball me retratou nu vestido de Sereio, com o sexo ereto…
          Nunca me vi com o elemento água do Mar, estou em constante combustão. Sou frágil e inflamável como a Bruxinha. Em hebraico, água é a mãe, matriz, mar.
          Me afogo na mãe ou para ele eu sou a mãezinha?
          Voltei ao terreiro pela segunda e última vez e pedi permissão ao espaço pra entrar na
          Gira:
          Beijei o chão; Soltei meus cabelos; Fui posicionadx entre os homens e as mulheres; O Pai de Santo cantava com uma força tal que sua voz soltava um ar com som de
          relâmpago que saía entre o peito e a testa, arranhando as frestas entre o dia e a noite; Entrei na febre.

          AFRODITE ou a onda que volta ao corpo profundo do mar

          Melides, Portugal, maio de 2018

          Estou catatônico. Começo a escrever com o impulso de que vou morrer. Dilato as minhas pálpebras pra ver tudo aquilo que não tinha visto.
          Sei que devo escrever sobre aquilo que me tornei no mar, mas neste exato momento sou apenas alguém que está com as amígdalas inflamadas. Estas guardam a memória do que se tem de homem e de mulher, e a febre está queimando essa informação.
          E já não tenho mais nada.
          São cinco da manhã. Salto da cama. Caio em pé e quase me afogo.
          Estou no carro, no banco de trás, indo pra locação da filmagem de “Orlando”.
          Ainda é noite.
          O sol pode surgir em instantes,
          pode chover, trovejar,
          Vejo um arco-íris pelo vidro em lágrimas no carro.
          O carro pode pifar explodir.
          Posso morrer.
          Vai chegando o mar…
          Vai chegando o fim…
          Vai chegando a morte…
          Há uma música que vem do mar… A batida do eterno ir e vir.
          Vai brilhando a luz… vai trazendo o dia… vai voltando a noite.
          A roupa de seda branca exalta meu sexo e engulo uma água salgada. Como e abocanho
          os Sereios do Ricardo. Estendo o prazer. Lombeira do orgasmo.
          Caio numa posição vulgar, de gatas na areia e cantarolo…

          Eu quero botar a batida e mexer/
          Roçar meu pau no chão e gemer/
          Meter pra valer em você

          Mantenho-me lubrificado. As extremidades congelam com a ventania. O prazer faz-se por mim. Uma nova pausa para a morte.
          Vou sumir daqui e levantar toda a areia desta praia num galope de pônei de banda desenhada, correr, viver. Subindo uma parede de água afundamos.
          Saúdo aqueles que vieram antes de nós.
          Lembro de cenas do Ricardo tomando garrafas de perfume. Um dia antes de ir para o hospital ele estava tão infeliz que já estava morto. A tempestade despencava dos céus, o sol nascia e morria, os amantes escreviam e sumiam. O dia com ele foi curto, mas foi tudo. A casa nunca pareceu tão nobre e humana. Putas, padres, pobres, militares e nós.
          Eu vou uivar três vezes e depois vou dançar até voar.

          Três
          a onda que volta ao corpo profundo do mar

          Dois
          a onda que volta ao corpo profundo do mar

          a onda que volta ao corpo profundo do mar

          Ana Pi NoirBLUE – deslocamentos de uma dança

          É IMPORTANTE SABER
          QUE O QUE EU ESTOU VIVENDO AGORA
          É O FUTURO QUE
          ALGUÉM SONHOU PRA MIM
          HÁ MUITO TEMPO ATRÁS
          E É POR ISSO QUE
          EU PEÇO A BENÇÃO
          DESSAS PESSOAS MAIS VELHAS

          EU ESTOU NUM AVIÃO
          E AO MEU REDOR
          TODAS AS PESSOAS SÃO NEGRAS
          PELA PRIMEIRA VEZ
          O PILOTO
          SUA EQUIPE
          AS PESSOAS DA PRIMEIRA CLASSE
          E ISSO ME FAZ ENTENDER IMEDIATAMENTE
          QUE ESSA NÃO É UMA VIAGEM QUALQUER
          EU ESTOU INDO PARA A ÁFRICA
          SUBSAARIANA
          PELA PRIMEIRA VEZ

          QUANDO EU CHEGO
          NO CONTROLE DE PASSAPORTES
          UM SENHOR ME DIZ
          MADAME
          VOUS ÊTES D’OÙ?
          E EU RESPONDO
          JE SUIS BRÉSILIENNE
          E ELE DIZ
          MAS VOCÊ SABE QUE
          VOCÊ É DAQUI, NÉ?
          MEUS OLHOS SE ENCHEM DE LÁGRIMAS
          E AO MESMO TEMPO EU SORRIO
          E ELE ME DIZ
          SEJA BEM-VINDA DE VOLTA

          NESSE INSTANTE
          PERCEBO
          QUE MEU MAIOR COMPROMISSO
          É ESTAR
          COM OS DOIS PÉS
          BEM FIRMES
          EU PERCEBO QUE A COR DA TERRA
          ME LEVA DE VOLTA PRO
          PETROLÂNDIA
          PRO GRANJA VERDE
          E TANTOS OUTROS BAIRROS
          DA MINHA INFÂNCIA
          DA JANELA DO QUARTO
          DO HOTEL EU VEJO O RIO
          O RIO NÍGER
          RIO PRETO

          E EU TENHO QUE TOCAR NESSE RIO
          PRETO
          PRETO PEUL
          PRETO NOUAKCHOTT
          PRETO NIAMEY PRETO IGBO PRETO
          PRETO OUAGADOUGOU BAMAKO PRETO
          LUANDA HAUSSÁ MALABO YORUBÁ TUAREGUES PRETO
          ENUGU PRETO LAGOS PRETO PRETO PRETO
          SONINQUÊ PRETO
          PRETO

          UMA SÉRIE DE PALAVRAS
          QUE NÃO DEVERIAM SER NOVAS
          UMA SÉRIE DE LUGARES
          QUE DEVERIAM SER ÍNTIMOS
          UMA SÉRIE DE HISTÓRIAS
          QUE DEVERIAM SER CONTADAS
          UMA NUVEM
          UMA TEMPESTADE DE AREIA
          UMA CHUVA TROPICAL

          ( PALOMA CANTA: ESPERANDO POR TU AMOR )

          UMA PONTE
          E REALIDADE FANTÁSTICA
          ESSAS SIRENES
          SÃO DO CARRO DA POLÍCIA
          QUE ME ESCOLTA
          NESSA CIDADE DE MAIS
          DE 20 MILHÕES DE HABITANTES
          PARA QUE EU POSSA AQUI
          FAZER ESSA DANÇA
          QUE RESISTIU
          À INVASÃO
          O NOME DELA É ANO BOM
          DANÇA DE GUERRA
          DANÇA DE FERTILIDADE
          DANÇA DE CURA

          EU COLOCO O MEU TRIPÉ
          O TEMPO É DE REZA
          EU TAMBÉM LEVO O MEU VÉU
          AZUL
          E ME COLOCO NO ESPAÇO
          JUNTO
          ME INTEGRO
          ESSE VÉU ME REVELA
          O QUE EXISTE DE MAIS
          ESCONDIDO
          NA HISTÓRIA
          QUE ME CONTARAM

          EU SÓ ACREDITO VENDO
          COM OS MEUS PRÓPRIOS OLHOS
          EU SÓ ACREDITO SENTINDO
          COM OS MEUS PRÓPRIOS POROS

          DEBAIXO DA PONTE
          VÁRIOS TRABALHOS SENDO FEITOS
          INVISÍVEIS

          EM CIMA DA PONTE
          VÁRIAS CONEXÕES SENDO FEITAS
          TROCAS

          MUITO MOVIMENTO
          MUITA COMUNICAÇÃO
          A MEMÓRIA VIVA

          A HISTÓRIA SENDO TRABALHADA
          COM VÁRIAS LÍNGUAS
          NO MÍNIMO 4
          A DO SEU PRÓPRIO POVO
          A DO POVO VIZINHO
          A LÍNGUA COLONIAL
          QUE É ESSA QUE EU TAMBÉM FALO
          E A LÍNGUA DA MAIORIA

          É SÓ AQUI QUE EU FAÇO AS PAZES
          COM O PREFIXO AFRO
          PORQUE NELE
          CABE TUDO
          ESSE CONTINENTE INTEIRO
          E ESSE CONTINENTE INTEIRO
          CABE DENTRO DE MIM

          EU DESFAÇO AS VOLTAS
          QUE FORAM FEITAS DE FORÇA
          NA ÁRVORE DO ESQUECIMENTO

          EU MERGULHO
          NAS ÁGUAS ABISSAIS
          DO OCEANO ATLÂNTICO

          E VEJO TODO MUNDO
          CORPOS LUMINESCENTES
          SONS DE BALEIA
          SONS DE TAMBORES
          E O SOM DO MEU PRÓPRIO CORAÇÃO

          MEU PULMÃO SE ENCHE DE UM AR NOVO
          E EU MERGULHO
          OUTRA VEZ

          MERGULHO NESSES GESTOS
          E OS DANÇARINOS ME PERGUNTAM
          SE VOCÊ NUNCA VEIO AQUI
          COMO É QUE VOCÊ JÁ CONHECIA?
          E DANÇANDO EU RESPONDO
          É PORQUE A GENTE ESTÁ NO FUTURO

          E NO FUTURO
          NÓS FALAMOS
          COM NOSSAS PRÓPRIAS BOCAS
          E NO FUTURO
          A RODA É AINDA MAIOR
          E NO FUTURO
          HÁ ESPAÇO PRA COISAS QUE
          A GENTE NEM IMAGINOU
          QUE NEM ESSE MOMENTO

          ABIDJAN ABOBO
          EU VEJO GÊNIOS QUE VOAM

          ( PERFORMANCE DOS LES GÉNIES DE BABI )
          ( RISOS DE DANIEL E ANA )

          ELE ASSINOU, SIGNATURE
          LA SCÈNE EST VIDE
          O PALCO ESTÁ VAZIO
          PEUT-ÊTRE QUE TOUT LE MONDE EST FATIGUÉ
          ASSINATURA
          A ASSINATURA
          E AGORA, QUAL É ESSA DANÇA?
          A GENTE CHAMA DE ROUKASKASS
          ROUKASKASS?
          TUDO ISSO É COUPÉ-DÉCALÉ
          TUDO ISSO É COUPÉ-DÉCALÉ ?
          QUEBROU A CABEÇA

          EU CONSIGO ATÉ ESQUECER
          QUE A DIRETORA NÃO ME CUMPRIMENTOU
          ACHANDO QUE EU TAMBÉM TRABALHAVA NA CASA
          E QUE DEPOIS ELA FICOU TENTANDO PEDIR DESCULPAS

          EU CONSIGO ATÉ ESQUECER QUE MEU NOME
          NÃO APARECEU NO CARTAZ DO TRABALHO
          MAIS UMA VEZ

          UMAS COISAS EU VEJO
          OUTRAS VOCÊ TEM QUE IMAGINAR

          UM DIA ANDANDO DE CARRO
          EU VI UMA SENHORA
          COM UMA VENDINHA
          E EU NEM ACREDITEI
          QUANDO EU SENTI O CHEIRO DE DENDÊ
          ERA UM MONTE DE ACARAJÉ
          E EU GRITEI
          ACARAJÉ
          E ME PERGUNTARAM
          MAS VOCÊ FALA YORUBÁ?

          UMAS PESSOAS ME FALAVAM
          AH, VOCÊ VEM DA ÁFRICA DO SUL?
          OUTRAS
          DA ETIÓPIA?
          NÃO, VOCÊ VEM DO CONGO
          NÃO
          VOCÊ VEM DE MOÇAMBIQUE
          OUTRAS, VOCÊ VEM DO BENIM?
          E EU SÓ CONSEGUIA PENSAR

          SIM

          EU VENHO DE TODOS ESSES LUGARES

          QUANDO O INVISÍVEL
          SE TORNA VISÍVEL
          O OLHO DEMORA A ACOSTUMAR

          NUM PRIMEIRO MOMENTO
          PARECE INEXISTENTE
          PARECE INVENÇÃO
          DEPOIS SÃO VULTOS
          E POR FIM SE DESENHA
          COM PRECISÃO

          E É DESSA FORMA QUE A GENTE VAI ENXERGANDO
          O AZUL NO PRETO
          OU O PRETO NO AZUL

          E EU SEI QUE EU AGORA
          TAMBÉM ESTOU SONHANDO
          COM AS PESSOAS QUE VIRÃO
          DEPOIS DE MIM

          ALÉM DE AZUL E PRETO
          ESSAS PESSOAS VÃO VER TODAS AS CORES
          TODAS AS FORMAS
          VÃO SENTIR TODOS OS CHEIROS
          PROVAR TODOS OS SABORES

          EU ACHO QUE ISSO É LIBERDADE
          PODER
          IR PRA UM LADO
          OU PRO OUTRO DA PONTE

          E É POR ISSO QUE
          EU PEÇO A BENÇÃO TAMBÉM
          DESSAS PESSOAS MAIS NOVAS
          QUE VIRÃO DEPOIS DE MIM

          Meu querido Pai azul de tão preto
          NoirBLUE e seus ecos são a ti dedicados,
          com muito amor.
          Julio Cesar de Oliveira,
          desaparecido desde 4 de março de 2018,
          as buscas continuam.

          Este texto é a transcrição da fala do filme documentário NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (2018) de Ana Pi, pela autora.

          Hélio Oiticica A Dança na Minha Experiência (1965)

          12 de novembro de 1965

          Antes de mais nada é preciso esclarecer que o meu interesse pela dança, pelo ritmo, no meu caso particular o samba, me veio de uma necessidade vital de desintelectualização, de desinhibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão já que me sentia ameaçado na minha expressão de uma excessiva intelectualização. Seria o passo definitivo para a procura do mito, uma retomada desse mito e uma nova fundação dele na minha arte.

          É portanto, para mim, uma experiência de maior vitalidade, indispensável, principalmente como demolidora de preconceitos, estereotipações, etc.. Como veremos mais tarde houve uma convergência dessa experiência com a forma que tomou a minha arte no “Parangolé”i e tudo o que a isto se relaciona (já que o “Parangolé” influenciou e mudou o rumo de “Núcleos”ii,  “Penetráveis”iii e “Bólides”iv). Não só isso, como que foi o início de uma experiência social definitiva e que nem sei que rumo tomará.

          A dança é por excelência a busca do ato expressivo direto, da imanência desse ato; não a dança de “ballet”, que, sendo excessivamente intelectualizada pela inserção de uma “coreografia” e que busca a transcendência desse ato, mas a dança “dionisíaca” que nasce do ritmo interior do coletivo, que se externa como característica de grupos populares, nações, etc.. A improvisação reina aqui no lugar da coreografia organizada; em verdade quanto mais livre a improvisação melhor; há como uma imersão no ritmo, uma identificação vital completa do gesto, do ato com o ritmo, uma fluência onde o intelecto permanece como obscurecido por uma força mítica interna, individual e coletiva (em verdade não se pode aí estabelecer a separação). As imagens são móveis, rápidas, inapreensíveis — são o oposto do ícone, estático e característico das artes ditas plásticas — em verdade a dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crudeza essencial —> está aí apontada a direção da descoberta da imanência.
          Esse ato, a imersão no ritmo, é um puro ato criador, uma arte — é a criação do próprio ato, da continuidade; é também, como são todos os atos da expressão criadora, um criador de imagens – aliás, para mim, foi como que uma nova descoberta da imagem, uma recriação da imagem, abarcando, como não poderia deixar de ser a expressão plástica na minha obra.

          A derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de grupos, classes, etc., seria inevitável e essencial na realização dessa experiência vital. Descobri aí a conexão entre o coletivo e a expressão individual – o passo mais importante para tal – ou seja, o desconhecimento de níveis abstratos, de “camadas” sociais, para uma, compreensão de uma totalidade. O condicionamento burguês a que estava eu submetido desde que nasci desfez-se como por encanto – devo dizer, aliás, que o processo já se vinha formando antes sem que eu soubesse. O desequilíbrio que adveio desse deslocamento social, do contínuo descrédito das estruturas que regem nossa vida nessa sociedade, especificamente aqui a brasileira, foi inevitável e carregado de problemas, que longe de terem sido totalmente superados, se renovam a cada dia. Creio que a dinâmica das estruturas sociais revelaram-se aqui para mim na sua crudeza, na sua expressão mais imediata, advinda dêsse processo de descrèdito nas chamadas “camadas” sociais; não que considere eu a sua existência, mas sim que para mim se tornaram como que esquemáticas, artificiais, como se, de repente, visse eu de uma altura superior o seu mapa, o seu esquema, “fora” delas – a marginalização já que existe no artista naturalmente, tornou-se fundamental para mim – seria a total “falta de lugar social” ao mesmo tempo que a descoberta do meu “lugar individual” como homem total no mundo, com “ser social” no seu sentido total e não incluir do numa determinada camada ou “elite”, nem mesmo na elite artística marginal mas existente (dos verdadeiros artistas, digo eu, e não dos “habitués” de arte) – não, o processo aí é mais profundo: é um processo
          na sociedade como um todo, na vida prática, no modo objetivo de ser, na vivência subjetiva – seria a vontade de uma posição inteira, social no seu mais nobre sentido, livre e total.

          O que me interessa é o “ato total do ser” que experimento aqui em mim – não atos parciais totais, mas um “ato total de vida”, irreversível, o desequilíbrio para o equilíbrio do ser.
          A antiga posição frente à obra de arte já não procede mais – mesmo nas obras que hoje não exijam a participação do expectador, o que propôem não é uma contemplação transcendente mas um “estar” no mundo. A dança também não propõe uma “fuga” dêsse mundo imanente, mas o revela em toda a sua plenitude – o que seria para Nietzche a “embriaguez dionisíaca” é na verdade uma “lucidez expressiva da imanência do ato”, ato êsse que não se caracteriza por parcialidade alguma e sim por sua totalidade como tal – uma expressão total do eu. Não seria esta a pedra fundamental da arte? O “Parangolé” p. ex., quando exige a participação pela dança, é apenas uma adaptação da mesma na sua estrutura e vice-versa a da estrutura na dança — é isto apenas uma transformação desse “ato total do eu”. O gesto, o ritmo, tomam um nova forma determinada pela exigência da estrutura do “Parangolé”, sendo a dança pura um início dessa participação estrutural — não se trata de determinar níveis valorativos para uma e outra expressão, pois tanto uma (a dança pura) como a outra (a dança no “Parangolé”) são expressões totais.
          O que se convencionou chamar de “interpretação” sofre também uma transformação nos nossos dias — não se trata, em alguns casos é claro, de repetir uma criação (uma canção, por exemplo) aliás dando-lhe maior ou menor expressão segundo o interprete. Hoje o interprete pode assumir uma tal importância expressiva que sobrepuje a própria canção (ou outra coisa qualquer) que interprete. Não se trata de “vedetismo” individual, se bem que isso também exista, mas de uma real valorização expressiva do mesmo. Antigamente o “vedetismo” servia para imortalizar determinados interpretes segundo a sua criação calcada em obras famosas (ópera e teatro). Hoje o problema é diferente: mesmo que as interpretadas não sejam grandes criações, músicas geniais (no campo da música popular, p. ex.), o intérprete alcança um grau expressivo alto – um cantor, Nat King Cole, p. ex., cria uma “estrutura expressiva vocal”, independente da qualidade das músicas que interprete há uma criação sua, não mais como simples “intérprete”, mas como um “vocalista” altamente expressivo. Uma atriz, Marilyn Monroe, p. ex., pela sua presença comportando tudo o que há de “interpretação” possui antes de mais nada qualidade creativa, isto é, estrutural-expressiva. A sua presença em certos filmes mediocres, dá a êsses filmes um interesse incomum, criado peça sua ação como intérprete. O que interessa aqui é a vocalização de Nat e a ação interpretativa de Marilyn, independente da qualidade da música ou do texto interpretado, se bem que estes possuam é claro, um valor que é aqui relativo e não absoluto como antes.

          10 de abril de 1966 (continuação)

          A experiência da dança (o samba) deu-me portanto a exata ideia do que seja a criação pelo ato corporal, a contínua transformabilidade – De outro lado, porém, revelou-me o que chamo de “estar” das coisas, ou seja a expressão estéticas dos objetos, sua imanência expressiva, que é aqui o gosto da imanência do ato corporal expressivo, que se transforma sem cessar. O oposto, a não-transformabilidade, não está exatamente em “não-transformar-se no espaço e no tempo”, mas na imanência que revela na sua estrutura, fundando no mundo, no espaço objetivo que ocupa, o seu lugar único – é isso também uma estrutura – Parangolé – não posso considerar hoje o “parangolé” como uma estrutura transformável-cinética, pelo expectador, mas também o seu oposto, ou seja as coisas, ou melhor os objetos, que estão que fundem uma relação diferente no espaço objetivo, ou seja que “deslocam” o espaço ambiental das relações óbvias já conhecidas.
          Está aí a chave do que será o que chamo de “arte-ambiental”v: o eternamente móvel, transformável, que se estrutura pelo ato do expectador e o espaço que é também transformável a seu modo, dependendo do ambiente em que esteja participando como estrutura – será necessária a criação de “ambientes” para essas obras – o próprio conceito de “exposição” no seu sentido tradicional já muda pois de nada significa “expor” tais peças (seria aí um interesse parcial menor), mas sim a criação de espaços estruturados, livres ao mesmo tempo à participação e invenção criativa do espectador. Um pavilhão dos que se usam nos nossos dias para exposições industriais (como são bem mais interessantes do que as anêmicas exposiçõesinhas de arte!!) seria o ideal para tal fim — seria a oportunidade para uma verdadeira e eficaz experiência com o povo, jogando-o no sentido da participação criativa, longe das “mostras para elite” tão em moda hoje em dia. Essa experiência deverá ser desde o “dado” já pronto; os “estares” que estruturam como que arquitetônicamente os caminhos ou espaços a percorrer, aos “dados transformáveis” que exigiriam uma participação inventiva qualquer do espectador (ou vestir e desdobrar, ou dançar), até os “dados para fazer”, isto é, dar o material virgem para cada um construir ou fazer o que quizer, já que a motivação o estímulo, nasce do próprio fato de “estar ali para aquilo”.
          A execução de tal plano é complexo, exigindo uma organização prévia muito severa, de uma equipe, é claro. Inclusive as categorias a serem exploradas são variáveis e múltiplas (em outra parte farei uma explanação do que considero como categorias estruturais nessa minha nova concepção de uma “arte ambiental”), podendo e devendo mesmo ter a colaboração de vários artistas de ideias diferentes e concentrados apenas nessa idéia geral de uma “criação total da participação”, a que seriam acrescentadas as obras criadas pela participação anônima dos espectadores, aliás melhor dizendo “participadores”.

           

          O texto aqui publicado segue a ortografia do autor tal qual datilografada por si mesmo. Cortesia do projecto H.O.


          i Oiticica identifica o Parangolé como “anti-arte por excelência”. O nome surge de uma placa que identificava um abrigo improvisado construído por um mendigo na rua, na qual se lia ‘Aqui é o Parangolé’. O Parangolé é uma espécie de capa (ou bandeira, estandarte ou tenda) que só com o movimento de quem o veste revela plenamente suas cores, formas, texturas e também mensagens como “Incorporo a Revolta” e “Estou Possuído”. Em 1965, ao apresentar os Parangolés vestidos por passistas da Mangueira na mostra Opinião 65, foi expulso do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, evento que acentuou seu interesse em desenvolver uma arte inseparável de questões sociais. (N. do E.).


          ii
          Os Núcleos são compostos de placas de madeira geométricas, em diversos tamanhos, que são suspensas e expostas juntas, em três partes. Esta série propõe uma volta ao núcleo da cor. Para que se possa absorver o desdobramento da cor no Núcleo é preciso que o “participador” se coloque entre a estrutura de placas coloridas, cercando-se delas e vendo-as por todos os ângulos. (N. do E.)


          iii
          Penetrável é um espaço que o visitante entra e passa por experiências sensoriais extensíveis ao tato, olfato, audição e paladar, além da experiência visual. É um espaço para ser plenamente experienciado entre o corpo do espectador e o objecto. (N. do E.)


          iv
          Bólides é uma série que coloca o participador em contato com diferentes artefactos de vidro, plástico e cimento em que materiais como pigmento, terra e zarcão são oferecidos para serem manipulados, e que assim exploram a relação espectador-objeto de forma desinteressada e desvinculada de uma ação útil, estabelecendo uma relação intuitiva. (N. do E.)


          v
          Arte ambiental é um conceito geral da obra de Oiticica que defende “o participador-obra, que se desmembra em “participador” quando assiste e “obra quando assistida de fora nesse espaço-tempo ambiental. Os núcleos participador-obra, ao se relacionarem num ambiente determinado (numa exposição, por ex.) criam um “sistema ambiental”.

          Vânia Doutel Vaz Intérprete por Defeito

          – Ser intérprete é o mesmo que ser criadorx mas sem ser autorx do trabalho.

          Isso acontece, muito. Mas não propriamente.

          – Quem é criadorx fala e manda, quem é intérprete executa e cala.

          Não. Também não.

          – Haverá uma sólida e única diferença ou fácil definição do que une e separa estas duas posições na [construção de uma] dança?

          Acho que não.

          – Ser intérprete é diferente de ser criadorx.

          Sim. Mas também não exatamente.

           

          É importante que eu me apresente para estabelecer pontos de referência antes de me alongar em partilhas e suposições.

           

          Quando me defino, responsabilizo duas fontes: o protestantismo e o ballet. Para lá da minha vontade, são estas as grandes catalisadoras do que rege o meu compasso interno, sentido de observação e julgamento de tudo que vejo e experiencio. Ambos incutem o medo, a ideia de um olhar externo inquisitorial, a pressão de se ser bom, sendo que tudo isto impõe imensa pressão e frustração.

           

          O meu treino de ballet com a Royal Academy of Dance e, mais tarde, com o Conservatório Nacional em Lisboa incutiu-me um extremo conforto na execução de qualquer prática disciplinada e com a sua obsessão e dependência na forma. O nível de exigência dessa prática incutiu uma eventual relação de submissão para com a sua arte. Uma condição de aceitar tudo o que me chegasse mesmo (ou especialmente) excluindo o prazer ou até o direito de o ter. “Bailarinx sofre!”

          O ganho de consciência do que unia as principais fontes que até à data me definiam levou-me a revogá-las. Tinha 21 anos. Emancipação tardia mas a tempo de redirecionar uma carreira.

          Esta rutura possibilitou-me um percurso profissional longo e heterogéneo. Fui dançarina de revista no Parque Mayer, cocriadora de um pequeno grupo de dança de estilo hip-hop/pop e com este contribuí para o entretenimento da vida noturna gay de Lisboa. Fui membro de companhias com 50 anos de história como o Nederlands Dans Theatre, assim como a então feroz Cedar Lake Contemporary Ballet, em Nova Iorque, e fui personagem principal numa peça de considerável sucesso na Off-Broadway: Sleep No More.

          Parte deste percurso pressupõe uma exposição do corpo que a religião condena e uma falta de rigor técnico que o ballet não aprova. Eu sempre me senti à margem de tudo e todxs, mas felizmente tenho vindo a ter mais consciência do que me condiciona, interessa e motiva.

           

          Desde 2017 tenho colaborado com o coreógrafo Trajal Harrell, que introduziu uma nova forma de trabalhar na minha experiência. O Trajal tem como regra fazer com que cada indivíduo do grupo se sinta visível, valorizadx e expostx naquilo que possa ser o seu melhor e em acordo com a sua identidade. Ele interessa-se pela pessoa artista e é nesse patamar que ele se inspira e cria as suas peças que inevitavelmente se tornam políticas pelo simples facto de contar com um grupo eclético, das mais diversas aparências físicas e trajetos profissionais. O horário de trabalho é generoso e faz questão de incluir todxs xs artistxs com quem colabora no diálogo sobre a criação nos seus vários estágios, encorajando-xs a ter agência. Até a escolha do figurino passa pelx artistx, garantido que se sente confortável com o que veste em cena. Em suma: é um ambiente hedónico. O resultado é o público observar um desfile de identidades no qual as suas personalidades, ao invés de serem silenciadas, foram amplificadas.

           

          Este pensar uma identidade proactiva é uma recente aquisição que é difícil de dominar enquanto se é estudante ou jovem profissional.

           

          Sempre dancei porque era tudo o que sabia fazer. Ou pensar. Ou falar.

          O cliché existe e esse vivo-o eu: articulo-me tão melhor com o corpo! É tão mais fácil e preferível dançar a zanga e a insatisfação do que enfrentar verbalmente quem está num cargo de direção.

           

          Assim que fui progredindo na minha carreira fui exposta a conversas e a partilhas que me alteraram a perspetiva, influenciando a minha capacidade de análise crítica. Por exemplo, a ideia de que tenho direito irrevogável à escolha; de que não vou deixar de ser bailarina porque alguém não quis trabalhar comigo, ou porque decidi não trabalhar com um outro alguém ou com um certo grupo num certo lugar. Não deixarei de ser profissional – muito pelo contrário – se me recusar a trabalhar em condições inferiores às necessárias para a execução do meu trabalho. Ou o direito a terminar um acordo previamente estabelecido se deixei de me sentir respeitada, satisfeita, valorizada, estimulada.

          Construí a minha carreira exposta a uma combinação de pontos distantes, quase polos opostos sendo quanto à venue onde danço (o seu tamanho, local ou prestígio), ao número e à relação à arte dos espectadores que me assistem e aplaudem ou o quanto ao diferente percurso, idade e estágio de carreira com quem partilho o palco.

           

          Enquanto intérprete, conto com as mais variadas experiências que foram condicionadas tanto pelo espaço e contexto da instituição onde me encontrava como simplesmente pelo posicionamento dx criadorx para comigo.

          Se estava numa companhia de repertório havia uma relação com a direção (artística, executiva administrativa), com outros cargos diretivos (como produção, guarda-roupa, management), x ensaiadorx, xs colegas e a sua senioridade e, em tempo de criação: x criadorx.

          Sendo freelancer, a minha devoção é tripartida entre a execução da minha arte, tanto em estúdio como no eventual espaço de apresentação; a extensa troca de e-mails com a produção no que se refere a temas de viagens, budget e detalhes das condições que eu devo esperar encontrar quando em trabalho; e o tempo em que recupero — leia-se desespero / deprimo / definho — de volta a casa.

           

          Hoje em dia o que mais me interessa é sentir que a pessoa que entra no estúdio, que conversa presencial ou eletronicamente, que se entretém, que questiona, que, enfim, existe, seja a mesma. Eu mesma. E, se assim for, x criadorx com quem experiencio e partilho a minha arte terá inevitavelmente que lidar com essa plenitude. Tento lidar com e antever as condições estabelecidas e decidir se são compatíveis com as minhas expectativas ou as minhas condições. Este entendimento do respeito mútuo é crucial e já não me permito silenciar na sua ausência.

           

          Passo a desdramatizar e a explicar esta declaração.

          É muito comum xs criadorxs estarem numa posição hierarquicamente privilegiada quanto à tomada de qualquer decisão. Tão comum também é esse mesmo estatuto ser encorajado e até exigido pelxs próprixs intérpretes.

          Tem razão de ser.

          Xs bailarinxs desenvolvem-se em absoluta dependência de aprovação e afirmação externas. A formação na dança é uma tentativa de atingir a perfeição física independentemente de quem a pratica. Há um objetivo muito claro – o fim desejado – tanto na forma do corpo como nas posições e movimentos que este executa. A perfeição é desejada, ainda que inatingível. No local de trabalho há espelhos por todo o lado e há sempre alguém de costas a dirigir e a dizer como cada detalhe de cada passo pode ser melhorado. Como que a acrescentar vozes que criam e alimentam fantasmas. E visto que quando xs bailarinxs se tornam profissionais e independentes nada muda, esses fantasmas estarão presentes a acompanhá-los pelas suas carreiras. A aprovação virá sempre de fora.

           

          Eu poderia declarar ser exclusivo ao meio do ballet a apetência pelo abuso e negligência dx bailarinx (tendo em conta o nível de exigência intrínseca à prática do mesmo) mas tal encontra-se também no mundo da chamada “dança contemporânea” (onde é de esperar uma abordagem mais “orgânica” e “flexível”). A mesma falta de evidência acontece entre o mundo das companhias e grandes instituições versus os projetos mais reduzidos em equipa e apoios financeiros.

          Parece-me, então, ser tudo uma questão de escolha e de prioridades. Tanto x criadorx como x intérprete pode ser umx tiranx ou umx facilitadorx da extração do potencial máximo de quem x rodeia. Mas isso já vai para lá desta profissão e abrange o conceito de um bom líder.

           

          Ser intérprete é pois ser pessoa e, com isso, um mundo de possibilidades numa combinação de situações tanto inerentes como consequentes de escolhas conscientes.

           

          Quanto a mim, vou lidando com as minhas constatações especialmente quanto ao quão variadas são as minhas vontades e interesses. Há prazer na liberdade de simplesmente interpretar a visão de alguém, tanto quanto uma enorme satisfação de me apresentar em palco com a responsabilidade de fazer escolhas em cena, resultado de um processo colaborativo.

           

          Está nos meus planos criar um trabalho onde conto pôr em prática tudo o que aprendi e do qual participei. Pretendo aí usar este conhecimento de intérprete como ponto privilegiado para potencializar uma conjuntura do que melhor experienciei e do que sempre desejei e nunca encontrei.

          Filipe Pereira Arranjos

          Há algum tempo que flutua na minha cabeça o desejo de fazer um objeto que medite acerca da ideia de decomposição. Como designer floral, o mais óbvio e literal seria colocar umas flores acabadas de cortar numa jarra com água limpa e esperar. Poderei afirmar que são várias as diferenças detetáveis numa mesma flor de um dia para o outro.

          Acompanhar este processo, mais do que me resignar à velhice, é fazer a ponte entre o que era a flor na sua vitalidade e aquilo em que ela de novo se tornará – composto.

          A palavra ‘composto’, na sua génese, designa o resultado da reunião de várias coisas, que, neste caso, sendo composto orgânico, servirá, se se concluir o ciclo, para alimentar o solo e fazer crescer novas plantas, por exemplo. Se ecologicamente me satisfaz este fim, esteticamente agradar-me-ia a gradação de cores que de dia para dia dariam lugar a tons cinza de um processo de transmutação de um arranjo floral, num povoado de bactérias e fungos. Decompor não significa matar, flores cortadas já são natureza morta per se. É antes transformar um corpo pelo desmembramento.

          Fazer um arranjo floral é montar um corpo compondo-o. Primeiro colocas os ramos mais lenhosos para estruturar a forma. A seguir preenches a base com os verdes para criar um suporte. Continuas colocando as flores maiores e mais resistentes entre as folhagens e nos buracos. Por fim, aplicas as florações mais delicadas, dando-lhes um protagonismo etéreo.

          Mas não foi seguindo instruções que aprendi a fazer arranjos.

          Há algum tempo que flutua na minha cabeça o desejo de fazer uma peça na qual medite acerca da ideia de decomposição. Como coreógrafo e bailarino, o mais óbvio e literal seria pegar numa coreografia já feita e dançá-la. Posso afirmar que são várias as diferenças detetáveis na repetição de uma mesma dança.

          Viver este processo, mais do que renunciar à inventividade, é fazer a ponte entre a coreografia e aquilo que ela, pela repetição, se tornará: uma prática.

          Praticar uma dança é testá-la no corpo. E sendo o corpo a estrutura física de um organismo vivo, está em constante variabilidade. Se a coreografia está sujeita à interpretação do intérprete, um arranjo floral está dependente das flores que o compõem.

          Compor um arranjo é muito diferente de compor uma dança, na medida em que dançar não se distancia de mim próprio, e a materialidade vegetal é distinta da imaterialidade do movimento. Contudo, há uma estreita relação entre o tempo de vida de uma flor e a qualidade efémera de uma dança.

          A urgência de intervir perante uma flor cortada é íntima à forma como crio a minha própria dança: é sempre no limite, onde já não tenha tempo de questionar. Coloco a flor em água ou deixo-a prosseguir o seu ciclo natural de desidratação. Pensar primeiro e dançar depois é uma hipótese que muitas vezes se traduz na imobilidade. Mas sim, tenho de imaginar o arranjo antes de o fazer (nem que seja para encomendar as flores), ainda que quando chegam haja inevitavelmente surpresas. Expectável é a subjetividade do intérprete, surpreendente é a coreografia matar um corpo, compondo-o.

          Começas em posição fetal. Olhos fechados. A mão esquerda entre as pernas, e a outra sobre a coxa direita. Esta começa a tremer pela ponta dos dedos. Ganha espaço entre a parte do corpo onde se apoiara e expande-se gradualmente para cima. A cabeça também ela se manifesta agitando, e conduz lentamente o resto do corpo ao plano vertical. As mãos na sua trajetória em ogiva pousam sobre a cabeça, abafando delicadamente o tremor que se fizera crescer até aqui. A cabeça penetra entre as mãos que se sentem pesadas sobre o cabelo e rompe como se de um parto se tratasse, para o ápice da verticalidade. As mãos escorrem pela cara abaixo, sentindo cada pedaço de pele na passagem das têmporas às bochechas. Os pulsos tocam-se na maçã-de-adão e os dedos descolam as palmas da mão da face. Os dois cotovelos juntam-se e servem de alavanca. Enquanto isso o queixo eleva-se ao seu máximo, expondo a fronte do pescoço. Os olhos vão abrindo e o rosto alegra-se sem esbanjar o sorriso.
          Os dedos das mãos animam-se ondulando, enquanto os pés juntos nos calcanhares fazem rodar o corpo vertical no sentido anti-horário. Depois de uma rotação completa, os pés param e as mãos começam a fechar até se tocarem uma à outra pela parte posterior dos dedos que agora apontam em direção ao solo. Enquanto isto se passou a cabeça rodou pelo lado esquerdo ao compasso das mãos até ficar tombada de frente num semi-arco até à coluna dorsal. As costas das mãos tocam-se mutuamente e os polegares descem encarrilados pelo tronco numa submersão delicada. A ponta dos dedos beija o solo.

          Compor uma decomposição pode começar assim, comigo a “fazer” de flor. Coreografar é encadear movimentos numa ordem. Conciliar o design floral com a coreografia é algo à partida pouco natural, mas a natureza nas artes performativas é isso mesmo. A desmontagem do mundo acontece sempre que alguém se esforça por incorporar aquilo que não se é.

          Neste momento não sou flor, é certo, mas nos tempos que estão por vir, quando eu já for uma dispersão de átomos, poderei ter a sorte de vir a ser uma, em Antese.

          Teresa Castro Bailarinos Vegetais Interespécies, ou uma Pequena História de como as Plantas Dançaram

          Na Amazónia, os cães sonham e as florestas pensam. Na Europa, onde a invenção da natureza silenciou há muito a subjetividade das formas de vida não humanas, as plantas dançam. Ou, pelo menos, dançaram, arrebatando com elas, em coreografias inusitadas e hoje esquecidas, corpos não vegetais, feitos de sangue, nervos e músculos.

          Surpreendentemente, não foi no tempo imemorial em que os animais falavam que as plantas dançaram. As plantas dançaram no ápice da modernidade, quando a separação entre natureza e cultura fomentada pelo racionalismo filosófico se encontrava já perfeitamente instituída. Dirão os mais céticos que as plantas dançaram durante um curto instante vitalista, esboçando um desvio biocêntrico que foi rapidamente corrigido. Ainda assim, as plantas dançaram. Dançaram diante de câmaras de filmar e sobre telas de projeção. Dançaram em frente a doutos observadores humanos que reconheceram nos movimentos enfim visíveis dos seus corpos feitos de raízes, caules, folhas e flores gestos expressivos. As plantas dançaram e ao dançarem, fizeram dos que se encantaram com os seus meneios, e que por vezes dançaram com(o) elas, seres paradoxalmente modernos: modernos nas suas maneiras de olhar o mundo ou de pensar a criação, mas vitalistas na forma como conceberam e se relacionaram empaticamente com as formas de vida vegetais, contrariando assim a ortodoxia mecanicista sobre a qual se consolidou a modernidade.

          A história de como as plantas dançaram – e de como mulheres e homens dançaram como elas – pode ser contada de diferentes formas. Esta versão, delineada a traços largos, começa na segunda metade do século XIX, quando a fisiologia vegetal, e mais especificamente a questão dos movimentos dos vegetais, se tornou para muitos botânicos, profissionais e amadores, numa verdadeira obsessão. Na realidade, a história de como as plantas dançaram não é apenas uma crónica de como a tecnologia cinematográfica se revelou capaz de documentar os seus movimentos e de como bailarinos humanos tiveram a ideia de os reinterpretar. A história de como as plantas dançaram na Europa dos começos do século XX é, antes de mais, o relato dum problema considerado, nessa zona do globo, como sendo estritamente científico.

          Que, por trás da sua aparência imóvel e indiferente, os vegetais se movem não apenas graças ao sopro do vento ou aos ritmos do crescimento era já bem conhecido. No entanto, a amplitude e a mecânica dos seus movimentos (cuja sofisticação continua ainda hoje a ser estudada) eram ainda largamente ignoradas no século XIX. Um contributo fundamental foi o estudo que Charles Darwin publicou em 1880, The Power of Movement in Plants. Apoiando-se sobre um conjunto de gráficos obtidos graças a dispositivos complexos e especialmente criados para tal, Darwin documentou um sem-número de tropismos vegetais, alguns deles bastante complexos. Entusiasmado, Darwin concluiu o seu estudo sugerindo que a radícula das plantas (a raiz embriónica da semente) se comporta como o cérebro dum “animal inferior”. A sugestão de Darwin fez correr rios de tinta – e, de certa forma, ainda faz, já que nos últimos anos se desenvolveu uma especialidade polémica, detestada por grande parte do establishment científico e parcialmente inspirada pela velha hipótese do cientista britânico: a “neurobiologia vegetal”. Biólogos como František Baluška e Stefano Mancuso defendem hoje não só a existência duma inteligência vegetal, mas também a semelhança entre a sinalização e o comportamento vegetal e o sistema neuronal animal.

          Mas regressemos a Darwin que, para além de ter sido o arquiteto da teoria da evolução, lançou as bases da inteligência vegetal enquanto hipótese científica aceitável por mentes racionais. O naturalista faleceu pouco tempo depois da publicação do seu livro e não conheceu por isso a invenção que viria a mudar o curso da história de como as plantas dançaram: o cinema. Ou seja, Darwin não teve acesso aos diferentes aparelhos, entre os quais o célebre cinematógrafo dos irmãos Lumière, que vieram facilitar a decomposição dos movimentos numa série de instantes fotográficos e doravante possibilitar a sua reprodução.

          Sobretudo, Darwin não pôde, graças a esses mesmos aparelhos, manipular a velocidade das imagens e, logo, calibrar duas temporalidades que pareciam irreconciliáveis: o tempo dos seres vegetais e o tempo dos seres humanos. Na realidade, o contributo decisivo da câmara de filmar para a história de como as plantas dançaram residiu na sua capacidade de transformar o tempo numa matéria plástica, que podemos condensar (acelerar) ou dilatar (abrandar). Darwin, que instalou no jardim de Leith Hill Place uma pedra capaz de se afundar no solo destinada a avaliar a ação subterrânea das minhocas (e, logo, a tornar visíveis processos temporais impercetíveis a olho nu), teria sem dúvida apreciado a invenção do cinema.
          Foi graças ao time-lapse que os sucessores de Darwin (e com eles muitos outros espectadores) puderam ver, pela primeira vez, rebentos trespassar a terra em alguns segundos, as suas hastes erguerem-se furiosamente em direção à luz e flores eclodirem num piscar de olhos. Logo em 1898, o botânico alemão Wilhelm Pfeffer realizou quatro filmes sobre o movimento das flores e das raízes. Em Paris, o Institut Marey filmou, em 1905, a eclosão duma glória-da-manhã. Foi graças ao cinema que o vegetal se (re-)animou, gesticulando nas telas do cinema ao lado de uma multidão de relógios descontrolados e das suas agulhas rodopiantes, como no filme Croissance des végétaux (Crescimento dos vegetais, 1929) do médico francês Jean Comandon. Em soma, foi graças ao cinema que as plantas dançaram, como se os filmes científicos, pedagógicos ou de divulgação sobre o movimento das plantas viessem ressuscitar o que os herbários dos botânicos secavam meticulosamente entre os seus fólios, despertando uma há muito adormecida alma vegetal (Max Brinck, Die Seele der Pflanze / A Alma da planta, 1922). Aliás, o cinema parece então estar ao serviço duma surpreendente forma de animismo, do qual um dos comentadores mais inspirados foi o cineasta francês Jean Epstein. “O carácter sem dúvida mais aparente da inteligência cinematográfica é o seu animismo”, escreve Epstein em 1935. “Desde as primeiras projeções em câmara lenta ou em ultrarrápido, foram destruídas as barreiras que imaginámos entre o inerte e o vivo. Ao pôr-se em prática, o cinematógrafo demonstra que não há nada de imóvel, de morto”.i Ou ainda:

           

          Um animismo surpreendente renasceu no mundo. Sabemos agora, porque as vemos, que estamos rodeados de existências inumanas […] o cinematógrafo, ao desenvolver o alcance dos nossos sentidos e ao manipular a perspetiva temporal, torna percetíveis à vista e ao ouvido indivíduos que considerávamos invisíveis e inaudíveis, divulga a realidade de certas abstrações.ii

           

          Enfim, “a câmara lenta e o ultrarrápido revelam um mundo onde não existem fronteiras entre os reinos da natureza”.iii
          Falecido em 1882, Darwin não conheceu o cinema, nem as danças serpentinas da bailarina Loïe Fuller. Coberta por longos véus de seda que brandia graças a hastes de madeira e sobre os quais eram projetadas luzes multicolores, Fuller evoca, nas suas performances, a figura da borboleta esvoaçante e, principalmente, o motivo da mulher-flor: Violette (Violeta, 1892), La danse des fleurs (A dança das flores, 1893), La danse du lys (A dança do lis, 1895), ou ainda Une pluie de fleurs (Uma chuva de flores, 1898). Na realidade, a fantasia de que as flores dançam e de que as mesmas podem ser incarnadas por bailarinas do sexo feminino não era recente. Toda uma tradição – literária, visual, mas também coreográfica – se dedicou, pelo menos desde finais do século XVIII, a antropomorfizar e a feminizar as flores. As célebres Fleurs animées (Flores animadas, 1847) do caricaturista francês J. J. Grandville ilustram perfeitamente essa tendência iconográfica que reduziu as mulheres e meninas de boas famílias a uma botânica ornamental, associando-as à simplicidade das almas ditas vegetativas (por oposição às almas intelectivas, forçosamente viris). Do lado da dança, foi preciso esperar para que Nijisnky interpretasse, no bailado Le Spectre de la rose (O espectro da rosa, 1911), uma flor cujo corpo tinha, enfim, traços masculinos. Mas no campo clássico dos bailarinos-flor o destaque inevitável vai para a lendária Anna Pavlova e os seus solos Rose mourante (Rosa moribunda, 1910) e Californian Poppy (Papoila californiana, 1916). Como escreveria o crítico russo Akim Volynsky em 1925, num texto repleto de referências à vida das plantas e (como sempre em Volynsky) inspirado por Pavlova: “O movimento das mulheres é essencialmente vegetal, possuindo elas todas as características duma flor ou duma árvore que não foi separada da terra”.iv Volynsky reconhece inclusive no “vegetal” um dos elementos da dança clássica, juntamente com o “animal-humano” e o “espiritual”. O “vegetal” refere-se à dimensão plástica da dança, como se a vida das plantas remetesse para um processo meramente morfológico, generativo e transformativo. E, de facto, para a cultura visual de finais do século XIX e começos do século XX, a vida das plantas é, antes de mais, um avatar da vida das formas – como nas pranchas dos fabulosos atlas de Ernst Haeckel.

          Foi preciso esperar pela revolução modernista – e pelo impacto do cinema – para que outros bailados vegetais se tornassem possíveis. Na Alemanha, a Ausdrucktanz – o movimento da “dança de expressão”, que se desenvolveu a partir dos anos 1910 sob o impulso de Rudolf Laban – elevou os tropismos vegetais ao estatuto de gestos expressivos, rompendo com a estética do bailado clássico. Dançar como uma planta significou não só deixar de pensá-las como criaturas imóveis, passivas e mecânicas, mas também encará-las como os seres dinâmicos e sencientes que o time-lapse tão bem revelava. Dançar como uma planta tornou-se numa estratégia criativa finalmente emancipada do meramente plástico e ornamental, transformando-se numa forma de expor e defender a crença num movimento vital expressivo, comum a todos os seres, como no solo Orchidee (Orquídea, 1922) da bailarina e coreógrafa Dussia Bereska. Na realidade, e porque todas as histórias são quase sempre infinitamente complexas e até contraditórias, antes de se colocar ao serviço do fascismo alemão, o vitalismo, e mais propriamente a Lebensphilosophie característica da “dança de expressão”, promoveu o que já qualifiquei de “pequeno desvio biocêntrico”, um extravio à ortodoxia racionalista e mecanicista que encontrara em figuras como o biólogo austro-húngaro Raoul-Heinrich Francé – autor de vários livros importantes, como Das Sinnesleben der Pflanzen (A vida sensorial das plantas, 1907) – defensores influentes. Aliás, se o biocentrismo se distingue duma simples reatualização de ideias românticas sobre a “natureza”, essa distinção passa precisamente pelo recurso ao biologismo que Francé tão bem ilustra.

          Um filme levou alguns destes aspetos ao seu paroxismo: Das Blumenwunder (O Milagre das Flores, 1926). Realizado por Max Reichmann, esta longa-metragem singular, situada algures entre o Kulturfilm (um filme documental, de divulgação) e o Lehrfilm (filme educativo ou pedagógico), foi financiada pela BASF (acrónimo para a célebre fábrica de anilina e de soda de Baden) com o objetivo de promover adubos. O filme conta a história da ninfa Flora que, tendo surpreendido um grupo de crianças a colher despreocupadamente flores, lhes explica, recorrendo a sequências de time-lapse documentando várias espécies vegetais, os “desgostos” e os “combates das plantas”, “o ritmo dos seus movimentos” e até os “seus sentimentos”, semelhantes aos dos seres humanos. A originalidade do filme reside nas imagens que Reichmann intercala com as sequências em time-lapse: planos de bailarinos reproduzindo os “gestos da natureza”. Os artistas em questão pertenciam ao ballet da ópera nacional alemã de Berlim; dirigidos pelo coreógrafo Max Terpis (que também podemos ver no écran) traduzem, no filme, os princípios da Ausdrucktanz, cuja prática incluía como exercício corrente a imitação dos movimentos das plantas, finalmente visíveis graças à tecnologia do cinema. No filme de Reichmann, as plantas e os homens, bailarinos vegetais interespécies, formam uma comunidade gestual, transversal aos reinos da natureza. Alguns anos mais tarde, em 1931, a bailarina Jo Mihaly prolongaria o exercício conduzido por Terpis ao compor Blume im Hinterhof [Flor no quintal]. O solo em questão, interpretado pela própria Mihaly, evocava e recriava o fenecimento duma flor que “morre sem ter vivido”, radicalizando ainda mais o gesto ensaiado pela célebre Niddy Impekoven (um dos grandes nomes da dança expressionista alemã, juntamente com Mary Wigman e Valeska Gert) em Das Leben der Blume (A vida da flor, 1918). Demonstrando que a Ausdrucktanz e a Lebensphilosophie não são desnecessariamente uma forma de estetizar o político, os críticos da altura reconheceram na peça tanto a influência decisiva do time-lapse, como uma crítica das condições de vida da classe operária. Noutra perspetiva, Mihaly resgata finalmente a figura da flor para as classes populares.

          À imagem doutros filmes, O Milagre das Flores causou forte impressão na Alemanha, entusiasmando o público em geral, críticos de cinema e até filósofos, como Theodor Lessing ou Max Scheler. Numa carta pessoal, este último observa a propósito do filme: “Vi flores respirar, despontar e morrer. A ideia comum segundo a qual as plantas não têm alma desvaneceu-se totalmente”.v Também em França, onde a herança panteísta caraterística dum certo romantismo não teve a mesma importância que na Alemanha (sem dúvida mais recetiva a uma forma de “simpatia cósmica” para com o reino vegetal), encontramos relatos semelhantes, insistindo sobre a dimensão empática suscitada por filmes que recorrem ao time-lapse para documentar os movimentos vegetais e, logo, nos quais as plantas dançam. Em 1924, a escritora Colette assiste a uma projeção destinada a um público infantil e anota:

           

          […] a imagem acelerada regista a germinação de um feijão, o nascimento das suas radículas perfuradoras, o bocejar ávido dos seus cotilédones, de onde brota, arremessando a sua cabeça de serpente, a primeira haste… Quando se revelou o movimento intencional, inteligente da planta, vi crianças levantarem-se e imitarem a ascensão prodigiosa da planta que trepava em espiral, contornava um obstáculo ou roçava a sua estaca de apoio: ‘Está à procura! Está à procura!’, gritou um rapazinho entusiasmado. Ele sonhou com a planta nessa noite, e eu também.vi

           

          Dois anos mais tarde, é a vez da cineasta Germaine Dulac escrever, “Nós sentimos visualmente a dificuldade que tem uma haste para sair da terra e florir. O cinema deixa-nos assistir, ao capturar os seus movimentos inconscientes, instintivos e mecânicos, aos seus esforços em direção ao ar e à luz”.vii

          Face a O Milagre das flores, poderíamos pensar que o filme nada tem de biocêntrico e que ilustra, ao contrário, o pendor antropomórfico que carateriza várias produções sobre o movimento dos vegetais – bem como todo um campo da cultura botânica visual, seja ela científica ou popular. De facto, muitos desses filmes atribuem às plantas intuitos, caraterísticas ou comportamentos considerados como exclusivamente humanos. Um cartão de intertítulos doutro documentário alemão, A alma das plantas (1922), proclama, por exemplo: “Não somente as plantas têm uma alma que vibra e sente como a nossa, mas nessa alma jazem, por vezes, instintos homicidas”. Uma produção mais tardia da British Pathé intitula até um filme sobre as cuscuta (plantas parasitas desprovidas de folhas e de clorofila, que se enrolam em torno dos caules duma planta hospedeira) de The Strangler (O estrangulador, 1930), a voz-off anunciando, na abertura do documentário: “Algumas plantas são criminosas natas”… Todavia, e para regressar a O Milagre das flores, o filme introduz algumas fissuras no relato antropocêntrico convencional, em particular graças à sua montagem, que equipara bailarinos humanos e vegetais. Certo, o recurso ao time-lapse inscreve os movimentos dos bailarinos vegetais numa temporalidade humana e abre o caminho à sua antropomorfização. Mas há que distinguir entre antropocentrismo e antropomorfismo. Se o primeiro faz do homem o centro do mundo, o segundo é um esquema de inteligibilidade que nos pode servir, através do que o jargão da antropologia e da sociologia chamam de “imputação de intencionalidades”, a aceder à alteridade da vida. Por outras palavras, o antropomorfismo não está necessariamente ao serviço do antropocentrismo. Aliás, a própria forma como o antropomorfismo foi encarado desde o Iluminismo como um pecado mortal da Razão, um vício do raciocínio caraterístico das crianças e dos “primitivos”, deveria por si só convidar-nos a refletir sobre ele e a imaginar o que poderia ser um antropomorfismo crítico (por oposição a um antropomorfismo ingénuo, esse sim ao serviço do antropocentrismo). Tal como a desconfiança em relação ao animismo, as suspeitas em torno do antropomorfismo são indissociáveis dos imaginários coloniais sobre a natureza. Certo, a questão que nos colocamos atualmente já não é a de como inscrever os movimentos vegetais numa temporalidade humana, à maneira de O Milagre das Flores. Hoje vamos mais longe e desejamos descolonizar a nossa forma de ser “humanos”, imaginando uma humanidade outra, emancipada dum sem-número de pressupostos normativos, e recetiva a sensibilidades não-humanas. Ainda assim, e antes que os filmes do Walt Disney viessem corrigir o desvio biocêntrico ensaiado nalguns filmes “de plantas”, resgatando para os caminhos hegemónicos do antropocentrismo uma multidão de flores saltitantes e de árvores bailarinas (logo em 1929, com Springtime [Primavera] e em 1932, com Flowers and Trees [Flores e árvores], duas Silly Symphonies bastante sugestivas), as plantas dançaram na Europa. E porque dançaram, e sabemos que sabem dançar, o convite continua de pé: como podemos novamente dançar com elas?


          i Jean Epstein, “Intelligence d’une machine” (1935), in Écrits sur le cinéma, vol. 1, Paris, Seghers, 1974, p. 244.


          ii Jean Epstein, “Photogénie de l’impondérable” (1935), in op. cit., p. 251.


          iii Idem, p. 250.


          iv Akim Volynsky, “Principles of Classical Dance”, in Rabinowitz, S. J. (ed.), Ballet’s Magic Kingdom.Selected Writings on Dance in Russia, 1911–1925, New Haven/London: Yale UP, 2008, p. 141.


          v Max Scheler, Carta a Marit Furtwängler (3 março 1926), Nachlaß Max Scheler, Bayerische Staatsbibliothek München, Ana 385, E11, p. 267.


          vi Colette, “Cinéma [Magie des films d’enseignement]” [1924], in Colette et le cinéma, Paris, Fayard, 2004, p. 369.


          vii Germaine Dulac, “Films visuels et anti-visuels” [1928], in Écrits sur le cinéma (1919-1937), Paris, Éditions Paris Expérimental, 1994, p. 119.

          Rita Natálio Fóssil

          1.
          Fóssil é um livro que é uma performance que, por sua vez, é um ritual póstumo dirigido a um conjunto de folhas secas, adoecidas por químicos, sacrificadas pelo trabalho e instrumentalizadas, espacialmente, para a construção de uma instalação em formato de onda, língua ou cobra. Fóssil é um livro que é uma performance, que é um ritual que começa, há cerca de 2 anos atrás, por uma mancha nos meus olhos, provocada pela intermitência de uma luz numa superfície vítrea, produzida em Taiwan, também conhecida como “écran do meu computador”. Apesar de global, Fóssil não ignora a história nem a geografia de certos processos de extração de energia, É um livro digital, mesmo no seu formato impresso. É uma coisa na minha cabeça, mesmo quando cabeça é “outra coisa”.

           

          2.
          Fóssil começa numa quinta pedagógica com vacas a pastar e alguém a dizer: “Não percebo nada disto.” Na quinta, tabuletas sinalizam árvores de fruto: pereira, macieira, nespereira, ameixoeira, romãzeira, pereira, videira, nogueira. Uma criança passeia pela quinta. Ama as tabuletas, mas não consegue ler as árvores. Por isso, ao andar por este “supermercado da natureza”, Fóssil apercebe-se de que já não consegue andar a quatro patas. Não aguenta raízes nos pés, folhas na cabeça, um esqueleto vertebrado ou uma casca. Quer libertar-se da escala humana, mas sobretudo quer libertar-se da escala dos vivos. Porque a vegetalidade não é o fim de um livro. Muito menos a animalidade. Mesmo sonhando com plantas, com vértebras, com conchas. Mesmo desejando a justiça ambiental e a diplomacia cósmica interespécies, essa não é a finalidade dos livros. O aquecimento global agrava-se, a empresa Navigator avança, eucaliptos ardem. A não ser que este seja mesmo o FIM dos livros. Acabar com os livros seria bom. Enfim, se as florestas pensam, se as pedras pedram, os peixes peixam, as flores floram e as águas aguam, é para que o pensamento deixe de pensar como pensava. Livrarmo-nos dos livros seria tão bom.

           

           

          3.
          Fóssil gostaria de ser um livro. Mas é sobretudo uma performance da geologia. As más-línguas atribuem a origem de Fóssil à derrocada de uma pedreira em Borba, mais precisamente em 2018, em pleno Antropoceno, na época Quaternária do Eon Fanerozóico. Mas há quem tenha visto Fóssil nas minas de Potosí, em 1600 e troca o passo, ou em Cancer Alley, junto ao Rio Mississípi, em pleno século XXI. Porém, Fóssil não aguenta a narratividade a não ser sob a forma de uma repetição dramática e minimal. Minimal, minimal, minimal, minimal. Mini mal, mini mal, mini mini mal, mini mini mini mini mal, maxi mal, digi tal, abi ssal, animal animal animal animal. Fóssil é uma tecnologia que vai muito além da mera reprodução das origens. Perguntas como “de onde vimos?”, “para onde vamos?”, “para que serve?”, “o que faço aqui?” não servem! Pelos compridos pelo corpo todo, dentes caninos, unhas compridas e aquele pedacinho de osso que fica no final da coluna e que não serve para nada e só dificulta a sentar também não servem. Muito menos metáforas da beleza da língua ou a comparação com espaços naturais idílicos. Por exemplo “o pensamento contemporâneo precisa de parecer-se mais com uma floresta tropical!”. No entanto, Fóssil não abdica de algumas comparações. Por exemplo, vulvas como florestas e vaginas como pedreiras. Zonas extrativas como zonas erógenas. Porque essas comparações permitem ver além do mimetismo ou do naturalismo de outras. Por exemplo, denúncias da representação através da representação, denúncias da opressão através da opressão, denúncias da violência através da violência, denúncia da extração através da extração. Mini-mal mini-mal mini-mal mini-mal mini mini mal mini mini mini mini mal mal mal.

           

          4.
          Fóssil é um ritual. Foi produzido em 2050 para tecnomaníacxs e tecnofóbicxs. Mas, na verdade, trata-se de uma performance terrestre que começou, há milhares de anos, quando pessoas carregavam os seus úteros como mochilas, e as mochilas podiam ser trocadas até 5 vezes entre pessoas grávidas, independentemente do seu género. A mochila era a criação em trânsito, uma espécie de grande amplificadora das consciências. Talvez por ser demasiado volátil, demasiado opaco, este livro foi achado numa dessas mochilas na fronteira entre hoje, ontem e amanhã, entre camadas de combustíveis fósseis e astros que, como vocês sabem, são os dinossauros das pedras. Desenterraram este livro, e vinha coberto de sangue. Eram sedimentos de um rapaz. Um rapaz muito rapaz, com aquelas barbas e aquelas saias do século XIX, os calções muito curtos de 2018, desenhados a partir da matriz biométrica de um jovem situacionista a pintar o chão em Paris, em pleno Maio de 68. E a arrogância, que podia ser clássica ou pré-clássica, renascida depois nos séculos XV XVI, XVII e XVII, era acompanhada. ao longo de toda a Modernidade, pela contínua negação da violência histórica sobre todos os não-ele. Todxs os que não pensavam como ele, todxs os que não se vestiam como ele, todxs os que não alinhavam. Comunidades, associações, movimentos, correntes e aldeias de não-ele. Nações inteiras de não-ele. Primeira, segunda e terceira geração de não-ele. Enfim, o rapaz era incapaz de entender que o planeta era uma espécie de megaprojeção GPS da sua vista sobre o planeta, isto é, que o planeta era a sua própria vista. Que ele era um caixa de óculos, basicamente, com a presunção da neutralidade. Assim, repetia mil vezes: “Vai para a tua terra”, esquecendo que ele mesmo era um fóssil deslocado, sem território, que vivia às custas do território de outrem. Assim, mesmo que fosse muito clara e bem documentada a violência arqueológica e geológica em 1492 ou em 1791, em 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, em janeiro de 2020, em fevereiro de 2020, ou em 2045, com recíprocos sedimentos de sangue e mijo, toda a gente estava muito mais preocupada com um mísero arranhão no centro da testa deste rapaz, deste jovem, que tinha a seus pés os dinossauros e uma comunidade imensa de gente morta.

           

          5.
          Bom, não sabemos ao certo de que século veio Fóssil ou este rapaz, embora se presuma o intolerável. Ambxs são fósseis da colonização, da extração e da masculinidade, que estão hoje a ser estudados por geólogxs, por astrólogxs, e por mim. Dedico este livro a este rapaz. Quero esquecê-lo mas, para isso, preciso de voltar aos trânsitos de não-ele e aos fluxos vitais de ele-não. E este estudo admite o twist da linguagem, assim como formas geométricas produzidas por música num cerimonial de plantas de poder, rejeitando a forma como poder estático e assumindo o extático como força. Porém, faço um aviso. Este livro não vem acompanhado de um brinde ou de um par de asas para sobrevoar o real, independentemente do género, do tamanho dos pés, ou da classe social. Este livro é apenas o resultado do encontro inusitado da minha pequenez interseccional, com a escala inumana de fossilização de seres vivos, necessária para a criação de petróleo, que será a matéria-prima do saco de plástico que embalará este livro. Este livro gasta o tempo (da terra). E, por isso, esta minha performance é para a linguagem se gastar, porque justamente é contra a extração dos recursos naturais (da linguagem). E este livro que já começou começa assim:

           

          Atenção extraterrestres
          a linguagem
          está à solta

          operações subterrâneas
          de conexão
          estão a ser alvo
          da mais sensível
          tensão verbal
          e anal

          enroladas na medula
          anacondas psicadélicas
          replantam nos corpos
          nativas matas percetivas

          enquanto milhões de refugiados da
          religião ocidental
          correm para botes anecoicos
          onde se recusam  a falar
          onde se recusam a comer

          atenção à transição
          a revolução
          a transfiguração
          não está garantida
          o que equivale a dizer
          que estamos em guerra

          há quem produza eco
          e há quem se recuse a ouvi-lo
          há quem ainda se reproduza no esperma
          e há quem espere

          a igreja da neoecologia matrix
          desfez as suas arquiteturas mais conservadoras
          em biotecnologias linguísticas

          restam raras memórias dos géneros
          mas sobretudo dos exageros
          com que tratámos os géneros

          e como explicar às crianças de 2050
          que a linguagem já não será uma arma,
          já não será uma prótese?
          Que o próprio sonho será o real?

          Atenção pensamentos serpentinos
          atenção xoxotas molhadas
          por toda a parte
          milhões e milhões de
          parentes anfíbios e minerais
          libertam os territórios
          dos seus nomes
          sobe o nível das águas
          o continente já não contém
          o continente é incontinente

          Tífon a serpente arco-íris
          filha de Gaia
          deusa das forças terrestres
          escreve caudalosamente
          na superfície dos rios:

          L    
             U    
          X    
               O    
            F
          L    
               U  
           X
               O

          Excerto de livro-performance Fóssil, 2020.

          Miguel Castro Caldas Artaud e a Caluda dos Textos

          “A poesia escrita merece ser usada uma vez e devia destruir-se depois. Que os poetas mortos cedam o lugar aos outros.”* Com esta injunção, Artaud pede à poesia escrita que se comporte como uma performance. Que apareça num lugar a uma hora marcada, faça o que tem a fazer e se vá embora. Mas a escrita não pode fazer isso porque a sua performance termina no momento em que o poeta acaba de escrever o poema. Ou seja, no momento em que o poema começa a ser poesia escrita. Se a poesia andou de mãos dadas com a oralidade, a escrita foi inventada para durar mais tempo do que o tempo em que foi feita. Uma consequência disto é a coisa bizarra de já poder ter passado tanto tempo desde que o poema foi escrito, que ele é revisitado por pessoas que ainda não tinham nascido quando o poeta o escreveu. Se por um lado tal possibilita o acesso a coisas escritas (ou ditas) por pessoas que já não existem, por outro lado, seguindo o argumento de Artaud, podemos ficar petrificados perante a voz do morto. Petrificados porque podemos entender mal o que lemos, porque estamos desalinhados, quer do tempo, quer da língua. Mas porque não destruir a poesia escrita depois de a usarmos?, questiona Artaud, para em seguida concluir: “Talvez então pudéssemos chegar a compreender que é a nossa veneração pelo que já está feito, por mais belo e válido que seja, que nos petrifica, nos torna estáticos e nos impede de estabelecer contacto com esse poder subjacente, quer ele se chame energia pensante, força vital, determinismo das trocas, monstros lunares, ou o que quiserem.”i

          O problema que Artaud coloca resulta da sua crença de que os textos se constituem como obstáculos aos seus leitores. Ler textos “com veneração pelo que já está feito” impede-nos “de estabelecer contacto” com a vida. Não são só os textos que petrificam os leitores, mas toda a linguagem verbal. As palavras, “pela sua natureza e caráter de definição, fixada de uma vez para sempre, aprisionam e paralisam o pensamento, em vez de o tornarem possível e de estimularem o seu desenvolvimento”.* Ou seja, as palavras são fins de processos, da mesma forma que os cadáveres são fins de corpos, fins de vidas. Para Artaud, o teatro é, ou deverá ser, o contrário disto: se ele pode ser considerado como a manifestação da vida, é-o porquanto a vida é tão-só o que está a acontecer no momento em que acontece. Se o teatro é a vida, Artaud tem de o equiparar ao pensamento em processo e à criação de uma linguagem que não pode nunca cristalizar-se. A única maneira é ser destruída depois de ser criada, é arder e extinguir-se, como se de um fósforo se tratasse. E é por esta ordem de razões que os textos e a própria linguagem verbal têm de ser varridos, para Artaud, do teatro.

          Estas noções revelam duas convicções: uma, que a linguagem não tem correspondência direta com o real. Às palavras não correspondem coisas: “Distingo perfeitamente na raiz desta confusão uma rutura entre as coisas e as palavras, entre as coisas e as ideias e os signos que as representam.”* A segunda convicção pressupõe que para partilharmos a nossa experiência do real precisamos de renunciar à linguagem. Discordo desta noção, porque a linguagem, não sendo um espelho do real, constrói-o e constitui por isso mesmo o que chamamos a experiência do real.

          Artaud abre assim o seu O Teatro e o Seu Duplo: “Um curioso paralelo se verifica entre esta decadência generalizada da vida […] e o vivo interesse que testemunhamos por uma cultura que jamais coincidiu com a vida, uma cultura concebida antes para a tiranizar.” Ou seja, a civilização e a época padecem de um mal, de uma doença. Mas Artaud tem um remédio, um antídoto: se nos entregarmos à doença, como se sofrêssemos de Peste, com todas as sensações e delírios, então conseguimos alcançar a linguagem original, a tal que se refere diretamente às coisas sem separação, a tal que não pode ser escrita e que só pode ser vivida. Esta conceção de linguagem ideal é uma variação da crença romântica numa era anterior à História, numa época dourada, impoluta, anterior ao Dilúvio, quando não havia separação entre as palavras e as coisas – quando a linguagem não precisava ainda de nomear um Sujeito, pois o Sujeito era uno com a realidade que a linguagem nomeava.

          No entanto, gostaria de sublinhar que por detrás deste ataque à linguagem verbal e escrita, o modo como Artaud carateriza a escrita e a linguagem verbal possibilita uma nova maneira de encarar o texto como dispositivo. Graças a Artaud pode-se olhar para os textos, não como algo que fala, mas como algo que não fala. Poder-se-á então dizer que a figura de retórica por excelência dos textos é a prosopopeia, que consiste em dar voz a seres ausentes, mortos, sobrenaturais ou inanimados. Paul de Man, no seu ensaio Autobiography as Defacementii de 1979, escreve: “Uma voz pressupõe uma boca, olhos e, finalmente, uma cara, uma corrente que é manifestada na etimologia do nome do tropo, prosopon, poiein, dar uma máscara ou uma cara (prosopon).” Neste sentido retórico, como o texto adquire uma voz, o texto torna-se uma prosopopeia, pois é uma coisa que parece falar, mas na realidade não fala. Os leitores imaginam que fala, ou que falam por ela, enquanto leem. Prosseguindo na linha de de Man, posso presumir que quando cito alguém que está ausente também é por meio dessa mesma figura de retórica que o faço, e de repente a figura inverte-se, sou eu que me apago para que a voz do ausente se acenda. Seja como for, esta ideia é antagónica àquela que postula que a leitura é uma conversa com o texto. Com a prosopopeia não há possibilidade de manter conversas. Não se pode dialogar com uma máscara, pois esta só responde ao que já foi antecipado. Quando leio, o texto não me interrompe para confirmar ou corrigir a interpretação do que acho que ele me diz. Mas o surpreendente é que no teatro, os atores, apesar de estarem realmente na minha presença, também não conversam comigo. Estejam a falar ou calados, pretendam eles que me funda ou me separe do que estão a fazer, eles e eu não estamos nunca a conversar. Portanto, o que os atores dizem ou fazem em palco ou na minha presença é inteiramente distinto do que o que duas pessoas que estão a conversar num mesmo espaço fazem ou dizem.

          Mas como será ver o texto como algo radicalmente diferente? Algo que não fala na minha língua? Mas também não fala noutra. Serão os textos dispositivos selvagens, portanto imprevisíveis, como quando Heiner Müller estabeleceu que a diferença entre texto e espetáculo é como o coiote e o Joseph Beuys fechados numa galeria durante dias? José Maria Vieira Mendes, no seu Uma Coisa Não é Outra Coisa defende que antes de se dizer que a relação entre texto e espetáculo é como um coiote e uma pessoa é preciso dizer que o texto não é teatro e vice-versa, que não estão presos por uma relação. “Aquilo que proponho”, diz Vieira Mendes, “implica reconhecer o outro no encontro e identificar o óbvio: eu não sou tu. A diferença deixa de ser eterna e constante, passa a ser negociável, mutável e não dependente da semelhança”.iii Se tomarmos a relação entre texto e leitor, por mais que o leitor reconheça que o texto não é ele (nem outra pessoa), no momento em que ele começa a ler o texto, toma as palavras do texto, o texto fica contido nele, o próprio leitor torna-se numa prosopopeia. Neste ponto, Artaud está certo quando diz que o leitor se petrifica perante o texto. Eu diria apenas que não é perante o texto que se petrifica, mas dentro do texto, porque de facto ele para, literalmente, interrompe o seu curso, para poder entrar na leitura, e ler as palavras.

          Também perante o espetáculo posso começar por reconhecer que eu, o espectador, não sou o espetáculo. Mas Artaud não gosta de tal reconhecimento de distância, e prefere que a experiência do espetáculo seja mais parecida com um ritual, onde não há separação entre quem vê e quem é visto – a fusão é o desiderato. Mas o próprio ritual continua a ser uma experiência com mortos. Paradoxalmente, a maneira como Artaud propõe que nos relacionemos com o espetáculo é semelhante à maneira como lemos textos. E por isso, para “que os poetas mortos cedam o lugar aos outros” teríamos, não de os destruir, mas de os alimentar como se fossem deuses. Quanto a mim, em vez de os alimentar, prefiro ser alimentado por eles, os textos, e se o posso fazer é porque me sei vivo e os sei mortos. Se sei isto, a Artaud o devo.


          i Artaud, Antonin, O Teatro e o seu Duplo, [1938]. Fenda, Lisboa, 2006.


          ii Man, Paul de, “Autobiography as Defacement”, in MLN, Vol. 94, No. 5, Dec. 1979.


          iii Mendes, José Maria Vieira, Uma Coisa não é Outra Coisa. Cotovia, Lisboa, 2016.

          Clara Amaral Manual

          Se o teu dedo começa debaixo desta palavra – AQUI.

          Aqui como palavra e como sítio onde o teu dedo indicador encontra o seu lugar
          no início desta página.
          O teu dedo indicador imóvel
          debaixo da palavra Aqui e ao mesmo tempo
          que pressionas intensamente aquele Aqui que está lá atrás no texto,
          permites também que a frase avance só pelo avançar
          dos teus olhos nas palavras, não avances o dedo.
          Os olhos inevitavelmente seguem o texto,
          no claro desejo de que o texto termine ou que tu decidas terminar o texto,
          e assim que uma dessas duas acontecer a página será virada.

          Agora sim. Mal chegues ao final deste parágrafo permite então que o teu dedo indicador,
          que está lá atrás na primeira linha,
          percorra uma e cada palavra que já leste
          como se o tacto permitisse uma compreensão das palavras que os olhos tão somente não permitem e venha até AQUI.

          Agora deixa que o teu dedo deslize desse “aqui” para este AQUI

          E daquele “aqui” para este AQUI

          e aí vai o dedo indicador,
          deslizando verticalmente,
          tocando todas aquelas palavras que encontras pelo caminho.
          E quando este parágrafo terminar não leias mais, recusa o labor dos olhos, recusa a articulação das sílabas umas com as outras, recusa as palavras, as frases, recusa o próximo parágrafo e permite apenas que o dedo indicador deslize pela página abaixo até que encontra o ponto no canto da página. E os teus olhos depois de deixarem o teu dedo indicador à mercê desse ponto, os teus olhos relocalizam-se e vêm até

          AQUI os teus olhos articulam-se novamente para dar sentido ao texto. O texto que não leste mas que tocaste. E aqui estamos. O teu dedo indicador no final desta página espera o momento em que os teus olhos alcançam a última palavra deste texto para que o dedo se possa dirigir à boca, recolhendo uma quantidade exacta de saliva. Essa quantidade exacta de saliva auxiliará na tarefa de virar a página, de forma a que possas começar outra relação com o que está escrito na parte detrás desta página, e na parte detrás da página seguinte e da outra página e por aí em diante. Até ao momento em que não haverá mais páginas e deixas o jornal em cima da mesa, para que qualquer outra pessoa com as suas duas mãos o agarre e comece tudo de novo. E nesse recomeçar se perpetua a promessa da leitura. Permite agora que o teu punho ou o que dele resta, pois o indicador continua à mercê do tal ponto, se cerre, com força,
          mas não demasiada força pois isso pareceria o resultado de uma certa raiva, e raiva, por agora, não é o que queremos cultivar. A força necessária para que a mão se recolha em proximidade.
          E agora com o punho cerrado olha para a tua mão e em seguida devolve os olhos à página e verás que o resultado é o seguinte: 3 dedos apontam para ti, 1 toca ao de leve o ponto no final desta página e o polegar parece uma sombra mais pequena do indicador, um pouco como aquele amigo que não faz muito mais do que fazer companhia, poucos comentários e muita observação. Digamos que esse é, em princípio, o papel das mãos quando tratam com texto, meras ajudantes de um fazer que alguns de nós conhecem tão bem. E com o papel das mãos em mente e as mãos no papel, o momento pelo qual, talvez, esperasses chegou. O teu dedo indicador abandona o ponto e com os olhos neste texto e a tua visão periférica nesse dedo, muito lentamente, da forma mais demorada possível, como se nessa demora a página se acabasse de escrever, traz o teu dedo na direção da tua boca. E assim, à primeira vista, a boca e o dedo encontram-se próximos. Ainda antes que a língua se apresse a molhar tudo sente a tua respiração nesse dedo. E agora sim a língua intervém, humedece o dedo e do dedo molhado à página é só um baixar da mão.

      • 10

          João dos Santos Martins editorial

          Tadáskía de trégua, é dia

          Julián Pacomio Toda a luz do meio-dia

          Yvonne Rainer Declaração (1968), Street Action (1970), Trio A (2011)

          Alaa Abu Asad Na ausência da invasora

          Filipa César Sónia Vaz Borges Educação Militante e o Mangue

          Talles Lopes Engolindo o Velho Mundo

          Bibi Dória Ensaio sobre o Nome de um Filme

          João Pedro Soares Como num sonho acordado

          Marlene Monteiro Freitas Qual é o deslocamento da língua que vamos fazer para podermos construir uma nova língua juntos?

          Célio Dias Makongos: a Problemática da Mente e do Corpo

          Raquel André Querida Sophie

          Alina Ruiz Folini Aeromancia

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          João dos Santos Martins Editorial

          Curiosamente, no mesmo dia em que mandámos imprimir o Coreia #0, em cujo editorial se salientava a suspensão prolongada dos apoios à criação em dança da Fundação Calouste Gulbenkian, a reabertura dos mesmos foi anunciada. Não faremos uma errata, apesar dos muitos erros ortográficos encontrados, mas atestamos um voto de confiança à coincidência. Coincidência essa extensível a outros lados.

          Foi preciso esperar 20 anos para voltar a haver em Portugal uma grande exposição dedicada a um artista que pratica dança. Depois da exposição ‘sobre’ Merce Cunningham no ano inaugural do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, em 1999 — intercalada com uma exposição de vídeos dedicada a Trisha Brown em 2011 na mesma instituição —,  a Culturgest inaugurou em fevereiro uma exposição ‘sobre’ Steve Paxton. Além do seu carácter raro e da dimensão internacional — por ser a primeira retrospetiva sobre o artista—, esta marca a renovação de Mark Deputter à frente daquela instituição, assim como a de Delfim Sardo na programação de artes visuais. Reforçamos o determinante ‘sobre’ porque ambas as exposições não apresentam o trabalho dos respetivos coreógrafos. Antes exibem documentos anexos à sua obra.

          Se a exposição de Cunningham era frutífera em objetos de arte, composta por um vasto número de filmes, desenhos, figurinos e adereços, partituras e música, principalmente provenientes dos artistas com quem Cunningham colaborara, já a exposição de Paxton augura outro paradigma em que a maioria dos ‘objetos’ mostrados não são sequer assinados por artistas, mas arquivos e registos de peças — muitas delas improvisadas. Entre isto, e por iniciativa dos curadores, incluem-se dispositivos encenados para induzir experiências nos espectadores, publicações e áudio-guias que nos levam a perguntar: existirá um equívoco entre a experiência da dança e a experiência da obra? Será o trabalho de Paxton tão imaterial que o espectador tenha de tentar passar por algo análogo, mas distante, à prática do autor e ao seu corpo? Sobre esta e outras questões escreve a curadora Dasha Bikurova num texto dedicado à exposição.

          Hoje em dia parece haver uma preocupação crescente das instituições em procurar novos públicos e em mediar a relação entre a produção e a receção da arte. Não fosse Rancière ter escrito o Espectador Emancipado, as instituições parecem agora querer elas emancipar o espectador. Os objetos artísticos têm permanentemente de ser contextualizados, ‘aproximados’ do público, seja com conversas pré e pós-espetáculos, seja com ‘aquecimentos’ especiais, que acabam por originar um lado reverso, já que a audiência retroativamente exige também ser mediada — “gostei mas não percebi nada”. Será por isto que a dança se apresenta cada vez mais em festivais ou que só aí tem um contexto suficientemente justificável para chamar público a ver? Garantirá isto a sustentabilidade necessária para a sua permanência no espírito coletivo? Ou mais não serve que para garantir a permanência dos programas culturais nos destaques da imprensa nacional? Pensamos nisto no advento da silly season em que observamos o desaparecimento da dança dos teatros e, claro está, dos jornais.

          A falta de programação das instituições no verão parece ser suplantada em Lisboa com a sequência de mostras informais, entre Re.Al, Alkantara, Forum Dança, e outros, que garantem a permanência da fruição estética e nos levam a perguntar: para que servem as instituições afinal? Para manutenção dos grandes circuitos de dança europeus que acabarão sempre por ter melhores condições de trabalho e salários do que os artistas locais? Em julho despediu-se João Fiadeiro do Atelier Real, um evento marcante, paradigmático de mudança, sintomático da inadequação dos modos de vida e produção dos artistas que vivem na cidade. O que dirá isto sobre os nossos tempos especulam Carlos Manuel Oliveira e Sílvia Pinto Coelho em referência a Sísifo, o mais astuto dos mortais da mitologia grega, condenado eternamente a fazer rolar uma pedra montanha acima para esta voltar a rolar colina abaixo, numa atividade laboriosa e fútil. É essa a sensação com que se fica depois de 30 anos de atividade de Fiadeiro na Re.Al, ‘lugar’ onde se formaram as personalidades que ocuparam recentemente e ocupam hoje importantes posições institucionais: Miguel Honrado como secretário de Estado da Cultura e agora vogal no conselho de administração do Centro Cultural de Belém, Paula Varanda como Diretora-Geral das Artes, Sofia Campos como diretora da CNB e Tiago Guedes como diretor do Teatro Municipal do Porto. Será que o futuro de um artista terá de passar obrigatoriamente pela sua transformação em agente politico-cultural? Será que os artistas estão condenados a não ter poiso como condição de vida para se manterem artistas? Um artista só poderá ser reconhecido se o seu trabalho for continuamente apresentado internacionalmente? Que comunidades são essas que se constroem na internacionalização?

          Entre os megaeventos internacionais deste ano, destacamos a última edição do Tanzkongress que aconteceu em junho em Dresden, na Alemanha. O evento trienal fundado em 1927 foi, pela primeira vez, dirigido por uma coreógrafa, redirecionando o seu carácter teórico de “estudos da dança” para um evento híbrido que mistura prática com teoria, elitismo com o movimento neo-hippie, o espírito de comunidade com o tecno-futurismo. Na prática, foram quatro dias intensos de conversa, experimentação e partilha, numa gigante orquestração cénica encabeçada por Meg Stuart e muitos cúmplices. Deste evento que se queria internacionalista e de intercâmbio surgiram questões dos próprios convidados sobre a pertinência da sua estadia ali. Uma situação difícil que revela um conflito entre o lugar de fala e o lugar de escuta em momentos de tensão sobre inclusividade. A este propósito escreveu Poorna Swami um artigo que reflete sobre o seu sentimento de “colorar” eventos internacionais naquilo que identifica como uma assimetria de valores de amizade entre a comunidade global da dança.

          Entre uma tentativa de olhar com curiosidade para o que vai acontecendo por aí, este número #1 confirma uma vontade de divulgar escritos de artistas que pouca presença têm nas plataformas editoriais. É neste sentido que publicamos um texto inédito de Valeska Gert, do final dos anos 1940, quando estava exilada nos Estado Unidos, assim como uma série de excertos de artigos seus publicados em revistas e jornais alemães entre os anos 1920 e 1930 ou nas suas autobiografias — escreveu quatro entre os anos 1930 e 1970 —, que servem de bibliografia a conceitos-chave na sua obra. Apesar de nunca se ter apresentado em Portugal, a artista parece hoje mais próxima do que nunca do conhecimento comum, ganhando notoriedade com incontáveis reenactments. Em 2015 era Mathilde Monnier e a bailarina taiwanesa I-Fang Lin. Em 2016 foram Eszter Salamon e Boglárka Börcsök a dedicar-lhe uma série de monumentos e, mais recentemente, artistas como Jule Flierl e Julia Cima investem nestas apropriações. Os traços do seu trabalho são ainda notórios na obra de Marlene Monteiro Freitas e naquela dos seus discípulos, razão pela qual parece perentório o atual interesse na sua obra que Eisenstein descreve como o “ácido cítrico da ideologia burguesa”. Eisenstein e Gert ter-se-ão conhecido em 1929 em Moscovo, durante uma tournée da artista pela União Soviética, e viriam a tornar-se amigos e apreciadores mútuos de longa data. Aproveitamos, em jeito de introdução, não uma nota biográfica, mas notas soltas escritas pelo próprio realizador que refletem a dimensão dialética do trabalho coreográfico de Gert. Uma nota de agradecimento quero também deixar aos amigos que, espalhados pela Alemanha e Rússia, ajudaram a localizar e a pré-traduzir os textos antes da sua produção final.

          Em sintonia com Gert, encontramos em Sorour Darabi, artista do Irão a viver em Paris, nenhuma necessidade de citação, trespassando, no temperamento, a atitude antissistémica de Gert na maneira de lidar com o mundo, com a crítica e o contexto onde se insere. No seu trabalho, Darabi faz uma crítica à dialética em si mesma através de um gesticular inconcretizável pela errância do movimento. Contrariamente a Gert, não é na estereotipização dos géneros que se impõe, mas na ambiguidade do género e na sua não fixação. Sobre isto e a lua escreve Sorour, numa partilha exclusiva da sua prática.

          Ainda a ressoar, publicamos uma entrevista à “gata sem dono” — J — de Ana Jotta, feita por Christophe Wavelet ao longo de dois dias em Lisboa. Nela se compreende a força vital da obra e vida de Jotta, que escapa a qualquer tentativa de captura de género, formato ou suporte. É a figura errática por definição que, ao mesmo tempo que se inscreve nas mais importantes coleções e instituições, rejeita persistentemente qualquer afiliação com o mercado da arte. O seu trabalho resta marcado pela energia do desejo e da vontade que aqui se expõe a cru, como o pano.

          De J para Joana, Sá, pianista, que conheci um dia ao ver o filme Tabu, de Miguel Gomes, para o qual compôs as maravilhosas e viciantes Variações pindéricas sobre a insensatez. Essa é, no entanto, a peça ‘fora’ da obra de Sá, já que a artista trabalha na linha genealógica experimental do piano preparado de John Cage. Traçando linhas simbióticas entre a produção de som e a coreografia, escreve para esta edição um manifesto que é em simultâneo uma partitura.

          Numa investigação sobre a produção de dança, enquadram-se ainda Carlos Azeredo Mesquita e Luísa Saraiva que aqui partilham o processo da sua peça em estreia you know it when you see it, na qual investigam o imaginário coreográfico coletivo, estereotipado ou não, presente no inconsciente de coreógrafos e bailarinos. Sobrevalorizando esses mesmos estereótipos, Duarte Amado interessa-se pelo fenómeno da dança em programas de televisão assim como pela nomenclatura do falar sensacionalista sobre dança que se confunde e faz confundir com a prática artística da mesma.

          Por fim, mas não, Rita Natálio reflete, a partir de Assombro, de Ana Rita Teodoro, sobre os aspetos de compatibilidade e comparabilidade entre processos de reutilização de objetos culturais, nomeadamente de canções populares e/ou tradicionais portuguesas nas quais a representação da figura feminina surge como fantasma da história do Portugal recente.

          Coreia é o “movimento que estão a ver”. Coreia existe graças à Circular Associação Cultural, que faz 15 anos e está de parabéns, e à qual agradecemos por lhe permitir ser o que quer. Coreia é uma contribuição para uma partilha crítica dos modos de ver e fazer dança em Portugal, que se querem expandidos.

          João dos Santos Martins

          Sorour Darabi ســـرور دارابی O Meu Coração é uma Montanha de Mágoa

          PT

          O meu coração é uma montanha de mágoa 

          O meu coração é o labirinto das estradas que sonham com flores de hortelã à chuva. 

           قلب من دل من 

          دل من کوه غم 

          دل من پیج وخم جاده های بارون زده ی سراب پونه است.  

           

          Poema de Sorour por volta dos 8 anos. 

            

          Sou um-a bailarino-a autodidacta iraniano-a que nasceu e cresceu em Shiraz até aos 23 anos. 

           

          Shiraz é uma cidade no Sul do Irão. Uma cidade muito conhecida pelo cheiro das suas flores de laranjeira e pelos seus poemas. 

          A minha prática começa sem dúvida com a poesia, com 5-6 anos, quando disse o meu primeiro poema, oralmente, visto que ainda não sabia escrever. 

           

          O primeiro poema escrito data dos meus 8 anos ou de um pouco mais tarde.  

          É tão belo e misterioso que ainda o acho muito impressionante. Também escrevia contos. Essas práticas nunca me foram ensinadas. Revelaram-se-me e tornaram-se práticas através das quais construí a minha ligação emocional com o mundo. 

           

          Sou virgem e tenho a lua em caranguejo, ui. 

          A minha relação com o que me rodeia passa pelo corpo. Olho para o meu corpo para olhar para os outros, toco em mim para tocar nos outros, cheiro-me para cheirar os outros, ouço-me para ouvir os outros. Adoro olhar para a Lua. Desde pequeno-a que o faço durante muito tempo e com muita atenção. Desde a minha infância que peço sempre um desejo em noites de Lua cheia. 

           

          A minha prática de dança está muito ligada às minhas experiências emocionais e corporais de todos os dias. Imagino, e depois experimento as imagens. As imagens criam uma situação particular através das emoções que suscitam e que alteram o estado do meu corpo. Confio na intuição. Tem um papel fundamental, uma vez que cria e muda a cada vez os contextos como quer. Nunca aprendi a dançar, danço, sou a dança e acredito nisso profundamente. A minha dança é gratuita. Como o amor que cultivo em mim por pessoas que aprecio e por pessoas que ainda não conheço. 

           

          Detesto o ensino. Detesto as técnicas de dança que foram criadas e são ensinadas como a única maneira de transmitir os saberes do corpo. O seu sistema baseia-se na exploração como princípio de partilha. Transmitir a quem? Como? E porquê? A transmissão em dança tem sido muitas vezes feita por pessoas brancas burguesas, da Europa e dos Estados Unidos, a pessoas como elas. O objectivo é conservar uma herança cultural, mas o indivíduo é esquecido, as suas diferenças, as suas forças, as suas vulnerabilidades, tudo é posto de parte para moldar uma grande maioria de pessoas consideradas portadoras de uma cultura pura, que decorre do génio. É por isso que a dança é despolitizada, ainda que o corpo seja uma das coisas mais políticas do mundo. 

           

          Sempre que crio um projecto, crio a técnica, ou pelo menos tento. Sei que nem sempre sou eficaz no que faço, mas também não quero ser. “Sucesso” é também uma palavra que detesto. Quando me dizem “fazes imensas turnés, és um sucesso”, tenho vontade de morrer. Detesto as pessoas que falam do meu trabalho como se falassem com a Apple dos seus novos produtos. 

           

          Os formatos dos festivais exigem sempre uma duração e um desenvolvimento muito fixos, sem o menor risco, e numa lógica que obedece sempre à equação duração/preço/meios técnicos para programar tal ou tal projecto. Isso cria uma relação superconvencional no seio do trabalho artístico, e esses constrangimentos foram tão banalizados que já nem sequer é possível questioná-los. 

          Sinto há algum tempo uma pressão para criar uma peça de grupo. Para um-a artista começar a ser considerado-a enquanto coreógrafo-a, exige-se que a pessoa deixe de criar solos. De há uns tempos para cá, essa pressão passou a ser formulada como a questão política da partilha. Compreendo que a partilha seja importante, mas não consigo compreendê-la num sistema que gera essa pressão capitalista. Crio solos porque me é necessário criar uma partilha com os meus-inhas aliados-as num dado momento. É preciso abandonar a ideia de que estar sozinho-a num palco significa ter criado o projecto sozinho-a. Se não considerarmos o-a dramaturgo-a, o-a criador-a de luz, da cenografia, como iguais do-a “artista”, não será simplesmente porque as relações hierárquicas nos interessam? 

           

          Não foi assim há tanto tempo que me dei conta de que sou underground! As pessoas em França acham que não o sou, porque apresento em lugares públicos e tenho apoios institucionais. Creio que enquanto estiver a negociar os limites da minha visibilidade, da minha identidade, do meu corpo, da minha aparência física, das minhas perguntas incómodas, etc., continuarei a ser underground

          Em espaços que considero safe – muitas vezes bares queer ou pequenas comunidades não-mistas, seja sem homens cis heterossexuais, seja sem pessoas brancas – aquilo que partilho e a maneira como partilho nunca é igual. Por exemplo, não me sinto de modo nenhum seguro-a se estiver nu no palco de uma instituição pública. 

           

          Trabalho muito em torno da vulnerabilidade, como lugar de partilha na minha vida quotidiana e no meu trabalho. Muitas vezes, não consigo distinguir a minha vida, os meus pensamentos, as minhas emoções e as minhas experiências quotidianas do meu trabalho. Creio que o lugar onde a vulnerabilidade convoca a criação de formas de partilha nasce daí. E torna-se assim fundamental. 

          Parece-me que a vulnerabilidade, distinta da fragilidade, é um trabalho político muito importante. A vulnerabilidade é um posicionamento político dentro de uma construção capitalista e patriarcal em que é suposto estarmos todos-as à altura das ambições materiais da maioria das pessoas que decidem, que detêm capital e que o gastam. Ser vulnerável é uma maneira de viver a precariedade. Ter uma força e um poder constantes para agir de modo a desestabilizar o poder. Vulneráveis são aqueles-as que não definem as suas vidas através de uma relação banal de poder e submissão, mas que cultivam uma relação de “coexistência” com o que as rodeia. Dar lugar à vulnerabilidade em espaços públicos permitiria perceber como olhar, como receber, como ser testemunha da vulnerabilidade, própria e alheia. 

           

          Nas minhas práticas sou muito obcecado-a com o meu corpo, não consigo distinguir o que na minha transição hormonal resulta de uma decisão pessoal ou de uma pesquisa artística. Tive períodos muito intensivos de masturbação durante a criação de Farci.e e também de Savusun. Masturbações que duram muito tempo levam-me a lugares superdistantes. Distantes do que é a realidade do meu corpo material na sua construção social. 

          O meu corpo tornou-se muitas coisas diferentes. Uma cadela, uma árvore, uma rocha isolada numa floresta algures, cintilações ardentes e brilhantes perdidas no cosmos. Muitas vezes me perdi e muitas vezes me reencontrei longe do meu corpo. 

          Sou lunar. A Lua é o meu ídolo, e tudo aquilo que a reflecte é um-a aliado-a! 

           

          No futuro, quero apagar os limites entre o que partilho nos meios underground e em espaços institucionais. Será possível transformar as normas institucionais, como sejam os desafios ligados à acessibilidade de um trabalho? 

          Por que razão é aceitável criar peças destinadas a jovens adultos-as e não o é criar peças para públicos não-mistos (quanto a género ou raça)? As minhas peças são como manifestações, como debates políticos, portanto é importante ser capaz de pôr em prática esse tipo de política para deslocar os limites e desestabilizar as relações de poder. Diga-se o que se disser: quando começa o espectáculo, começa o jogo. É por isso que não sou depressivo-a em cena, porque posso dizer às pessoas racistas que as detesto sem que elas me dêem porrada. Posso falar da minha identidade trans não-binária, vestir-me como quiser sem medo que me agridam ou me chamem “paneleiro de merda”.  

          É também em consequência deste género de convenções que a maioria dos-as espectadores-as na Europa são pessoas brancas burguesas, e é por isso que os-as artistas negros-as e racializados-as não têm lugar neste tipo de espaços, uma vez que as questões que colocam não despertam interesse. Infelizmente, na melhor das hipóteses, o interesse constrói-se e limita-se ao “exotismo”. E, francamente, ser exótico-a é a coisa mais fácil de vender neste meio.  

           

          Sou virgem e tenho a lua em caranguejo, ui! Isso diz tudo! Sou uma pessoa superemocional e muito melancólica. Não queria usar a palavra queer para designar as minhas práticas de desconstrução e reconstrução. Porque essa palavra é despolitizada quando se inscreve numa esfera “fashion”, deixando-se reapropriar pelo fenómeno. Eu sou queer, mas não é por ser trans não-binário-a ou uma pessoa non conforming segundo a construção social, ou uma pessoa com uma certa masculinidade que usa batom e verniz nas unhas – ainda que essas atitudes acarretem muitas vezes o risco de agressões verbais, físicas e até mesmo a pena de morte. O meu-inha queerness não se manifesta em lantejoulas e cores vivas do arco-íris, ou unhas longas pintadas de sei-lá-o-quê. O-a queerness não é uma forma artística particular, é um estilo de vida e uma filosofia, um questionamento constante sobre as minhas relações e as minhas ligações com tudo que me rodeia. É o meu modo de partilha, económico, emocional, corporal, cósmico, sexual, material ou imaterial, através do meu corpo ou do meu coração. 

           

          FR

          Mon cœur est une montagne de chagrin 

          Mon cœur est le labyrinthe des routes qui rêvent des fleurs de menthe sous la pluie. 

          قلب من دل من 

          دل من کوه غم 

          دل من پیج وخم جاده های بارون زده ی سراب پونه است.  

           

          Poème de Sorour aux environs de 8 ans  

           

           

           

           

          Je suis un-e danseur-euse autodidacte iranien-ne qui est né-e et a grandi à Shiraz jusqu’à l’âge de 23 ans. 

           

          Shiraz est une ville du sud de l’Iran. Une ville très connue pour l’odeur de ses fleurs d’oranger et ses poèmes. 

          Ma pratique commence sans doute par la poésie, à l’âge de 5-6 ans quand j’ai dit mon premier poème, de manière verbale puisque je ne savais pas encore écrire. 

           

          Le premier poème écrit date de ma 8ème année ou un peu plus tard.  

          Il est tellement beau et mystérieux que je le trouve toujours très impressionnant. J’écrivais aussi des nouvelles. Ces pratiques ne font absolument pas partie d’un enseignement. Elles se sont révélées à moi et sont devenues des pratiques au travers desquelles j’ai construit mon rapport émotionnel au  monde. 

           

          Je suis vierge et ma lune est en cancer, oh là là.  

          Mon rapport avec mon environnement passe par mon corps. Je regarde mon corps pour regarder les autres, je me touche pour toucher les autres, je me sens pour sentir les autres, je m’entends pour entendre les autres. J’adore regarder la lune. Je fais cela longuement et avec beaucoup d’attention depuis que je suis petit-e. Depuis mon enfance je fais toujours des vœux les nuits de pleine lune. 

           

          Ma pratique de danse est très liée à mes expériences émotionnelles et corporelles de tous les jours. J’imagine, et puis j’expérimente les images. Les images créent une situation particulière via les émotions qu’elles soulèvent et qui modifient mon état de corps. J’ai confiance en l’intuition. Elle a un rôle principal pour chaque fois créer et changer les contextes dans le sens qu’elle veut. Je n’ai jamais appris à danser, je danse, je suis la danse et je le crois profondément. Ma danse est gratuite. Comme l’amour que je cultive en moi envers des personnes que j’apprécie et des personnes que je ne connais pas encore.  

           

          Je déteste l’enseignement. Je déteste les techniques de danse qui ont été créées et qui sont enseignées comme une manière unique de transmettre les savoirs du corps. Son système est basé sur l’exploitation comme principe de partage. Transmettre à qui ? Comment ? Et pourquoi ? La transmission en danse a souvent été faite par des personnes blanches bourgeoises, de l’Europe et des États Unis, à des personnes comme elleux. L’objectif est de garder un héritage culturel mais l’individu est oublié, ses différences, ses forces, ses vulnérabilités, tout est mis à part pour façonner une grande majorité de personnes qui sont considéré-es comme des porteu-r-ses d’une culture pure, relevant du génie. C’est pourquoi la danse est dépolitisée bien que le corps soit une des choses les plus politiques au monde. 

           

          À chaque fois que je crée un projet, je crée la technique, ou au moins j’essaye. Je sais que je ne suis pas toujours efficace dans ce que je fais, mais je ne veux pas l’être non plus. Réussir c’est aussi  un mot que je déteste. Quand on me dit “tu tournes bien, c’est bien réussi” je veux mourir. Je déteste les gens qui parlent de mon travail comme s’ils parlaient avec l’entreprise Apple de ses nouveaux produits. 

           

          Les formats des festivals exigent toujours une durée et un déroulement très fixes, sans le moindre risque, et dans une logique qui fait toujours l’équation durée/prix/moyens techniques pour programmer tel ou tel projet. Cela créer un rapport hyper conventionnel au sein du travail artistique et ces contraintes ont été tellement banalisées que ce n’est plus même possible de les questionner.  

          Depuis un certain temps je sens la pression de créer une pièce de groupe.  Pour qu’un-e artiste commence à être considéré-e en tant que chorégraphe on exige que la personne arrête de créer des solos. Depuis un moment la formulation de cette pression est devenue la question politique du partage. Je comprends que le partage est important mais je ne peux pas le comprendre dans un système qui génère cette pression capitaliste. Je crée des solos parce que c’est une nécessité pour moi de créer un partage dans un moment choisi avec mes allié-es. Il faut arrêter de penser qu’être seul-e sur un plateau signifie avoir créé le projet tout-e seul-e. Si nous ne considérons pas la dramaturge, la créat-eur-rice lumière, scénographique, son comme ég-aux-ales de “l’artiste”, n’est-ce pas simplement parce que nous nous intéressons aux rapports hiérarchiques ?   

           

          Ça ne fait pas longtemps que j’ai réalisé que je suis underground ! Les gens pense qu’en France je ne suis pas puisque je joue dans des lieux publics et que j’ai des soutiens institutionnels. Je pense que tant que je suis en train de négocier les limites vis-à-vis de ma visibilité, mon identité, mon corps, mon apparence physique, mes questions dérangeantes, etc., je resterai toujours underground.  

          Dans des espaces que je considère safe – qui sont souvent des bars queers ou au sein de petites communautés en non-mixité, soit sans mec cis hétérosexuels, soit en non-mixité sans personnes blanches – ce que je partage et la manière dont je partage ne sont jamais identiques.Par exemple, je ne me sens carrément pas sécurisé-e d’être nu-e sur la une scène d’une institution publique. 

           

           Je travaille beaucoup autour de la vulnérabilité, comme un endroit de partage au sein de ma vie quotidienne et de mon travail. Je n’arrive pas souvent à distinguer ma vie, mes pensées, mes émotions et mes expériences de tous les jours d’avec mon travail. Je pense que l’endroit où la vulnérabilité appelle à créer des formes de partage naît de cela. Ça devient primordial. 

          Je pense que la vulnérabilité, distincte de la fragilité, est un travail politique très important. La vulnérabilité est un positionnement politique dans une construction capitaliste et patriarcale dans laquelle nous sommes supposé-es devons tou-s-te être à la hauteur des ambitions matérielles de la majorité des personnes qui décident, qui ont du capital et qui le dépensent. Être vulnérable, c’est une manière de vivre la précarité. Avoir une force et un pouvoir d’agir constant pour faire basculer le pouvoir.  Vulnérables sont celleux qui ne définissent pas leurs vies par un rapport banal de pouvoir et de soumission mais qui cultivent un rapport de « coexistence » avec leur environnement.  Laisser place à la vulnérabilité dans des espaces publics permettrait de comprendre comment regarder, comment recevoir, comment être témoin de la vulnérabilité, de la sienne ou de celle des autres.  

           

          Dans mes pratiques je suis très obsédé-e par mon corps, je ne peux pas distinguer ce qui dans ma transition hormonale relève d’une décision personnelle ou d’une recherche artistique. J’ai eu des périodes de masturbation très intensives pendant la création de Farci.e et aussi  de Savusun. Les masturbations qui durent très longtemps me font partir hyper loin. Loin de ce qui est la réalité de mon corps matériel dans sa construction sociale. 

          Mon corps est devenu plein de choses différentes. Une chienne, un arbre, un rocher isolé dans une forêt n’importe où, les étincelles brûlant et brillant perdues dans le cosmos. Plein de fois je me suis perdu-e et retrouvé-e souvent loin de mon corps. 

          Je suis lunaire. La lune est mon idole, et tout ce qui a un reflet d’elle est un-e allié-e ! 

           

          Dans le futur je souhaite effacer les limites entre ce que je partage dans des milieux underground et dans des lieux institutionnels. Est-ce possible de transformer les normes reliées à l’institution comme les enjeux autour de l’accessibilité d’un travail?  

          Pourquoi est-ce acceptable de créer des pièces destinées à des jeunes adultes et ça ne l’est pas de créer de pièces pour des publics en non-mixité (de genre ou de race) ? Pour moi mes pièces sont comme des manifestations, comme des débats politiques, donc c’est important de pouvoir mettre en place ce genre de politique pour faire bouger les limites et basculer les rapports de pouvoir.. Quoi qu’on dise : quand le spectacle commence, le jeu commence. C’est pour ça que je ne suis pas dépressif-ve sur la scène puisque je peux dire aux personnes racistes que je les déteste sans qu’elles me tabassent. Je peux parler de mon identité trans non-binaire, m’habiller comme j’ai envie sans avoir peur qu’on m’agresse ou qu’on m’insulte de « sale pédé ».  

          C’est aussi suite à ce genre de conventions que la majorité des spectateur-rice-s en Europe sont des personnes blanches bourgeoises, et c’est pour cela que les artistes noir-es et racisé-es n’ont pas de place dans ce genre de lieux puisque leurs questionnements ne trouvent pas d’intérêt. Hélas, dans le meilleur des cas l’intérêt se construit et se limite à l’« exotisme ». Franchement, être exotique c’est la chose la plus facile que tu peux vendre dans ce milieu.  

           

          Je suis vierge et ma lune est en cancer, oh là là ! Ça dit tout ! Je suis une personne hyper émotionnelle et très mélancolique. Je ne voulais pas utiliser le mot queerpour désigner mes pratiques de déconstruction et de reconstruction. Puisque ce mot est dépolitisé quand il s’inscrit dans une sphère « fashion », en se laissant réapproprier par le phénomène.  Je suis queer mais cela n’est pas parce que je suis trans non binaire ou une personne non conforming selon la construction sociale, ou une personne avec une certaine masculinité qui met du rouge à lèvres et du vernis sur les ongles — même si ces activités entraînent très souvent le risque d’agressions verbales, physiques et même la peine de mort. Mon-ma queerness ne se manifeste pas dans les paillettes et les couleurs vives de l’arc en ciel, ou les longs ongles colorés en je ne sais pas quoi. a-le queerness n’est pas une forme artistique particulière, c’est un style de vie et une philosophie, un questionnement constant sur mes relations et mes rapports avec tout ce qui est mon environnement. C’est mon mode de partage, économique, émotionnel, corporel, cosmique, sexuel, matériel ou immatériel, à travers mon corps ou mon cœur. 

          Sergei Eisenstein Сергей Эйзенштейн Sobre a Envergadura Mundial de Valeska Gert

           Em épocas diferentes, o valor das propriedades formais da arte é avaliado a partir dos seus indícios.
          Por vezes, é o monismo idealista das criações de Fra Angelico.
          Por vezes, é o dualismo dos frescos, planos de perspectiva tridimensional de Michelangelo.
          Por vezes, é o monismo materialista da estática dos frescos e a dinâmica social das pinturas de Diego Rivera.
          Mas um indício é sempre característico do valor formal de uma obra.
          É a tensão dialéctica entre a inércia e a iniciativa no interior da obra.
          A inércia pura – é a natureza. A lógica da matéria orgânica intacta.
          A iniciativa pura – a indústria. A lógica levada ao extremo da orgânica superada.
          Entre os dois – a arte.
          Onde a lógica da matéria está em conflito com a lógica da apresentação da matéria – nasce a dialéctica da forma artística.
          Diferenciando-a do racional (da indústria) – superando o material, mas sem a levar ao extremo, por exigência da utilidade racional.
          Na ausência de utilidade completa.
          Diferenciando-a da forma orgânica ao admitir o arbítrio individual em discrepância com a inércia intrínseca ao material.
          Na luta pela primazia destas duas tendências, constrói-se a tensão da obra.
          O nosso tempo – a época mais recente da arte. É por este motivo que ele toma esse indício como o indício fundamental.
          O nosso tempo – um desnudamento dialéctico de contradições. É por este motivo que esse indício único é erigido numa questão de estilo.
          Eis por que o nosso tempo se encontra, na questão da forma, sob o signo da síncope. […]
          A obra de arte – [surge] na tensão dialéctica entre a inércia e a iniciativa.
          A pressuposta continuação do movimento não coincide com a realidade. Fisiologicamente ou intelectual[mente] – i.
          Nisso está a autenticidade. Atracção e tensão.
          Valeska Gert
          A sua arte é profundamente intelectual.

          A tensão nela – provém da discrepância entre as representações existentes e a representação que ela dança.
          Principalmente de género e de estilo. Mas o que foi capturado é tão profundo que já toca o que dá origem ao género e ao estilo – a sociabilidade.
          O aspecto mais vulgar – a exposição desse fenómeno – no teatro paródico. Na paródia.
          No método paródico, a mecânica da arte é particularmente aperfeiçoada e dominada.
          Eis onde reside o significado dos trabalhos paródicos nas origens da arte soviética, tão sublinhado, mas não explicado por [Viktor] Shklovsky.
          É por isto que se considera que Gert dança paródias.
          Mas será Valeska paródica? Não. Ela é arte.
          Ela encontra-se naquele limiar [em que] uma mesma mecânica da paródia e da arte nas suas “paródias” dá o salto dialéctico, tornando-se o objet d’artii exemplar.
          Ontogénese e filogénese. O caminho da paródia para a obra é um longo caminho de evolução (por exemplo – o cinema soviético). Ele pode mesmo estar na subitaneidade da transição sem sair do mesmo lugar. Esse é o grotesco de Valeska.
          Da paródia passa a grand artiii.
          Ela é intelectual dos pés à cabeça. O que significa que a sua qualidade revolucionária está no carácter massivo da sua intelectualidade.
          Com grande esforço, ela é – uma sátira social. E a 100% ela é – o ácido cítrico para a ideologia burguesa.
          Repito. Ela [toca] tão profundamente que a dança espanhola iv é mais uma paródia da dança, é uma espada no coração de toda a Spaniardium’a v. É a Polónia. É a Roménia. É a arrogância do reino que tem por rei Afonso.
          Articulação. Einzig ist sie in der Artikulations-Motorik: man sieht, dass ton-Intonation-Bewegung ist, was man na useren Coloraturen verguisst viQue a entonação é a acrobacia de membros sonoros.
           

          Texto originalmente publicado sob o título “В мировом масштабе о Валеске Герт”  na revista de cinema “Kinovedcheskie zapiski” número 11, de 1991, pp. 211-212, a partir de notas dos arquivos de Eisenstein, data desconhecida.
          Traduzido do original em russo por Ana Matoso e Larysa Shotropa.
          As tradutoras optaram por manter o estilo sincopado do original, sem sacrificar a necessária inteligibilidade do texto. Além dos termos que surgem entre parêntesis rectos do editor russo, as tradutoras assinalaram com a mesma marcação os termos que acrescentaram, quando tal se provou indispensável para a compreensão do texto.


          i Em francês, no original. [N. das T.]


          ii Em francês, no original. [N. das T.]


          iii Em francês, no original. [N. das T.]


          iv Valeska Gert criou uma peça intitulada “Spanischer Tanz / Espana / Espagna / España” em 1917, à qual Eisenstein eventualmente se refere e que terá visto em 1929 durante a tourné de Gert pela União Soviética. [N. do E.]


          v Termo que corresponde a ‘Espanhola’. [N. do E.] Eisenstein cria um neologismo a partir do gentílico inglês spaniard e do sufixo latim -ium. [N. das T.]


          vi Em alemão, no original: “Ela é única na mecanicidade da articulação: vê-se que o som – a entoação – é movimento, o que se esquece nas nossas coloraturas.” [N. das T.]

          Valeska Gert (sem título), entre outros

          Que lugar ocupa a dança moderna na história da arte dos nossos tempos? A dança moderna é a passagem do teatro antigo para o novo. O humano moderno, ator e bailarino, teve de se afastar e tornar-se independente do teatro porque o palco antigo já nada lhe dava. Deixou de se ocupar com o que era habitual, abandonou o lastro das velhas convenções teatrais. De um modo muito ingénuo, partindo das suas emoções, criou o figurativo. (Sobre a Dança, 1931)

           

          … do que pelo poder dinâmico da emoção; é este o campo de ação do artista. Mas o bailarino não encontrou, nem no teatro nem no ballet, uma atmosfera propícia para o explorar. E por isso isolou-se no palco para conseguir exprimir as suas ideias e emoções. Não precisou de decoração, de adereços, de cabeleiras nem de outros atores e bailarinos. Fez apenas uso do seu poder criativo. Com um fato simples inspirado na roupa moderna, cores garridas, a cara branca e sóbria, iluminado por um simples foco de luz branco, o bailarino encarou o público. Queria destruir e construir. Destruir o que julgava ser mórbido e construir o que lhe parecia fértil. O bailarino era o derradeiro elo de ligação ao teatro e simultaneamente o início de qualquer coisa nova, porque todo o fim contém um início. O bailarino sentiu, melhor do que o ator, que estamos todos a pisar um terreno instável. Tentámos encontrar um equilíbrio. Era como se estivéssemos a balançar num trapézio. A forma antiga ainda não desapareceu por completo e a nova já está a surgir. E isto, tal como todos os nascimentos e mortes, é grotesco. É o caos, desequilibrado mas vital. Como pode alguém dançar hoje sem o fazer de forma grotesca? Só após o nascimento de uma nova era será possível, com a harmonia da sua consolidação, surgir uma nova forma de arte, o novo clássico. Mas o grotesco é a expressão típica do nosso tempo.

           

          Em tempos mais tranquilos poderia bastar ao espectador a suave graciosidade do bailarino, mas nos dias de hoje, inconstantes e borbulhantes, em que as velhas florestas são deitadas abaixo de uma só vez, o espectador sensível quer, muitas vezes sem o saber, encontrar na dança alguma da vibração dos tempos. Já não lhe chegam poemas de dança, quer viver e ver fatalidades de dança.

          […] A sua origem é bem mais profunda do que a maioria das pessoas julga, e provavelmente começa com a sensação de que a vida é demasiado curta e de que estamos demasiado tempo mortos, de tal modo que não é possível viver de uma forma suficientemente intensa, o que significa que, no pouco tempo que nos é dado, temos que viver muitas vidas. No momento da criação, intensifica-se a vontade de viver, bem como o desejo de que nunca mais acabe, de eternidade. A emoção perde o chão e dói, independentemente de representarmos o sofrimento ou a alegria, o gesto torna-se cada vez mais longo, queremo-lo infinito, sem fronteiras, alcançar o céu – parece distorcido – e no momento seguinte sentimos que afinal nada disto é assim tão importante, seja a vida ou a arte, parece tudo uma anedota – é grotesco. (Dançar, 1920)

           

          O burguês é um fantasma; paira à nossa volta sem tocar no chão. E nem se dá conta. Que outra arte se pode então produzir que não seja fantasticamente  fantasmagórica? O bailarino sentiu tudo isto há muito tempo atrás. Mas estava isolado com as suas ideias porque são poucos os indivíduos que têm um entendimento do tempo e das suas possibilidades. Estes poucos são os pioneiros. São ridicularizados e combatidos no início pelas mesmas forças que mais tarde exploram e se apropriam das suas ideias originais e revolucionárias.

          A primeira bailarina que se apercebeu da necessidade de se afastar do ballet e de regressar à natureza foi Isadora Duncan. Provavelmente tinha um faro natural para o futuro novo classicismo tão entranhado nesta época grotesca. Só que, em lugar de procurar o novo classicismo, ela revitalizou o antigo estilo grego clássico.

           

          Creio que todo o artista só pode criar a partir do seu tempo, porque foi com ele que cresceu. Se não o fizer, irá cair em artifícios estéticos. Se o artista for capaz de, com a sua criação, mergulhar no seu tempo, irá descobrir por si só os antecedentes e concretizar o que é universal e eternamente humano, fora do tempo, para lá do tempo.

          As obras de gerações anteriores só parecem intemporais porque não são do nosso tempo. E as nossas obras parecerão intemporais aos nossos epígonos se forem suficientemente profundas. Transmitir-lhes-ão […] a mesma mensagem que todas as gerações trazem das que as antecedem e que transmitem às seguintes, a mensagem de que somos e seremos todos humanos regidos pelas mesmas leis, e que lutamos e que morremos. (Sobre a Dança, 1931)

           

          Mary Wigman fez o mesmo compromisso. Usou as formas gregas e do ballet  como material para as suas danças abstratas. Mas nós temos de dançar o nosso tempo. 

           

          Não gosto de dança abstrata, não me diz nada. Qualquer um pode entender nela o que quiser e o que não está sequer na dança. E o bailarino não precisa por isso de nela investir o que quer que seja porque a maioria dos espectadores não a consegue dominar. […] Mas estes movimentos não me dizem nada. Que têm eles que ver com o nosso tempo? Só os poderia caricaturar.

           

          Temos de descobrir os seus movimentos. Só a arte que seja expressão típica de uma época poderá sobreviver e mostrar às gerações seguintes o reflexo de uma época passada.

          A primeira bailarina a exprimir o nosso tempo fui eu. Tal como Duncan, renunciei a toda a artificialidade. Só mesmo quando a quis expor é que a citei. Estas citações chamavam-se sátiras. Foi assim que fiz a primeira sátira do ballet. Queria que  as minhas peças fossem tão breves e sóbrias quanto possível.

           

          Nunca caricaturei voluntariamente. Para mim, toda a dança é um caminho que tenho de percorrer do princípio ao fim, indo além do final até chegar involuntariamente a este reino do impossível, do fantástico ou do grotesco ou como lhe queiram chamar. (O Meu Caminho, 1931, p. 43)

           

          Muitas vezes os amantes da artificialidade censuravam-me por não ter técnica. Se técnica significa fazer ballet ou gestualidade grega, estavam certos, claro. Mas era precisamente essa técnica que eu queria destruir. O bailarino moderno deve evitar toda a ostentação superficial que não seja ditada por uma força interior. Deve manter-se frugal e renunciar a qualquer movimento que seja meramente decorativo. Apenas deve falar quando tem algo a  dizer.

           

          Em algumas danças, a minha emoção atingiu tal extremo que só com esforço fui capaz de reprimir gritos de prazer ou sofrimento. Um dia dei um passo em frente, deixei de reprimir estes gritos e tornei-me sonora. A Canção da dor [Kummerlied, 1930] é, por exemplo, uma explosão rítmica e elementar de sons. Começava por soluçar baixinho. O soluço tornava-se cada vez mais forte até se tornar um grito doloroso e baixar em seguida para terminar num soluço curto e intermitente. Um dia, o som deixou de ser suficiente e cheguei à palavra. Trabalhei a palavra tal como antes tinha trabalhado o movimento. Balbuciei umas palavras para mim a partir de uma tensão. Guardei as palavras que me libertavam e juntei-as. Foi assim que nasceu a minha Diseuse [1922]. (Sobre a Dança, 1931)

           

          Disse a muitos bailarinos, que vieram ter comigo em busca de conselhos, para se tornarem padeiros ou sapateiros em lugar de engrossarem a lista de falsos artistas. Quando se opta apenas pelos novos movimentos paradigmáticos, sem os decorar com sentimentos ou movimentos falsos, o resultado é primitivo e pode ter consequências brutais. Mas a brutalidade é também típica deste tempo em que assistimos à transição entre a morte de uma era e o nascimento de outra. A artificialidade será destruída e construir-se-á uma nova naturalidade.

           

          […] resumindo, sou demasiado bruta e inspiro pouca confiança no burguês que prefere ser adormecido ao som de harmónios e flautas. Já que tenho de abrir a boca para me queixar e autoelogiar, não quero deixar de dizer que fui eu que lancei a dança moderna sob apupos e protestos do público, apoiada pelo elogio quase sempre moderado e mal compreendido da crítica, e reconhecida pelo entusiasmo de um conjunto de europeus modernos. (Mary Wigman e Valeska Gert, 1926)

           

          A primeira tarefa do bailarino foi revelar a deformação do burguês. E assim se criaram as primeiras danças de crítica social, as primeiras sátiras dos burgueses e da sua cultura. A segunda tarefa consistiu em mostrar a nova vida quotidiana através de movimentos. Criei uma dança, Trânsito [Verkehr, 1926], na qual dançava os movimentos dos automóveis, dos polícias, o nervosismo e a azáfama dos transeuntes e acidentes de trânsito. Noutra peça, Variedades [Variété, 1920], juntei os gestos de um trapezista, de um malabarista, de um palhaço e de um atleta. Não existia um único movimento de inspiração grega ou do ballet. A dança era compacta e transparente como vidro. O ritmo era rápido. Era a essência do music-hall, o seu símbolo.

           

          A chamada música erudita não me diz nada. Quero uma música nova que seja composta por sons reais, como por exemplo uma “canção rural” composta pelo relinchar de cavalos, o mugir de vacas, grilos, cotovias, sapos, o uivo dos ventos e o ribombar das ondas e os cães. Ou uma “marcha urbana” composta pelo zumbir dos aeroplanos, bicicletas, pessoas a andar, mulheres ranzinzas e máquinas a trabalhar. Esta música só nos pode ser trazida pelo cinema sonoro ou pela rádio, não podem ser sons imitados, mas sim aqueles que provêm da vida real e que o artista se limita a montar.  (O Meu Caminho,1931)

           

          Utilizei muitas vezes nas minhas peças movimentos acelerados e em câmara lenta. A câmara lenta serve para realçar alguns gestos ou para potenciar uma tensão. Como no meu Minuete [Menuett, 1919], por exemplo. Mas em Nervosismo [Nervosität, 1927] recorri a movimentos rápidos. Tornei os movimentos tão rápidos que pareciam uma convulsão, como a essência louca do nervosismo. Na minha dança Escritor [Schriftsteller, 1931], o efeito final era eu a executar os gestos de escrever à máquina tão depressa que pareciam batidas telegráficas. Na dança Corrida de cavalos [Pferderennen, 1940], corria com tal velocidade pelo palco, para levar o meu cavalo o mais rápido possível até à meta, que o público se entusiasmou como se estivesse mesmo a assistir a uma corrida. Berraram do princípio ao fim, encorajando-me a acelerar cada vez mais. O cavaleiro e o cavalo eram em mim a mesma pessoa e cheguei à meta coberta de suor, chicoteada pela ambição, pela alegria do movimento e estimulada pelos uivos e gritaria daquele público fantástico. Numa outra peça, mostrei todos os movimentos do desporto – esgrima, futebol, ténis, golfe, natação, remo, ciclismo, esqui, boxe.

           

          Foi assim que criei uma série de danças desportivas, e isto antes do Ballet do Diaghilev, a quem aliás é atribuída erradamente a autoria deste tipo de dança. O meu Combate de boxe [Boxkampf, 1922] pertence a estas danças, em que dou ganchos, salto e danço como um pugilista que quer enganar o seu oponente, desacelero alguns movimentos que executo em câmara lenta, luto com energia até que levo um murro que me deixa aturdida, combato já sem forças durante mais uns segundos e tombo com uma tontura. […] Retiro estes movimentos da vida, não os misturo com formas abstratas de dança, coloco-os separados uns dos outros, em sequência, ligados entre si apenas por pertencerem a um determinado conceito, por exemplo ao conceito desporto. Foi assim que inventei a técnica de montagem na dança. (Sobre a Dança, 1931)

           

          Dancei Assembleia [Versammlung,1931] com oradores de todos os partidos e com brigas no final. As minhas peças influenciaram inúmeros bailarinos por toda a Europa e, mais tarde, nos Estados Unidos. Criei os movimentos do artista, do cantor, do ator. Criei estereótipos sociais. Mostrei que não há razão para odiar as prostitutas, elas sofrem e têm prazer como nós. Mostrei isso, tal como mostrei os gestos da sua profissão. Estas raparigas não existem apenas por razões económicas. Não seriam tão necessárias se a mulher burguesa soubesse mais de amor e erotismo. É verdade que a prostituta é quase tão ignorante quanto a sua prima burguesa, mas pelo menos tem a vantagem de separar a parte física daquele sentimentalismo a que erradamente se chama amor. 

           

          A minha dança preferida é a que mais se transforma. A estrutura básica dos passos e movimentos é a única coisa permanente e que nunca muda. […] O que porém muda todas as vezes é a emoção com a qual eu executo a dança. E isso resulta do facto de eu viver a dança sempre como uma coisa nova. Na minha Canalha [Kanaille, 1919], cada apresentação tinha um destino diferente, mas que era sempre o destino de uma prostituta. Num dia, esta mulher trabalha com gosto, num outro dia, com nojo, e numa outra vez trabalha em desespero ou com indiferença ou até à procura de consolo. De cada vez que a danço há uma emoção diferente por trás da dança, a natureza dos passos também muda. Isso faz com que pareçam improvisados, pois os passos que ainda ontem foram dançados com hesitação e desgosto serão dançados na próxima vez com rapidez e alegria. O ponto alto desta dança é a entrega. (Dançar, 1931)

           

          A humanidade precisa de grandes artistas que sejam professores de uma cultura física e psíquica. Depois desta guerra, o novo governo central do mundo deverá ser constituído não apenas por políticos mas também por grandes artistas e cientistas. Todos os países deveriam enviar para este governo alguém que representasse as áreas em que estes países mais se distinguem. Por exemplo, a Inglaterra poderia enviar um secretário da educação, os Estados Unidos, um secretário da produção em massa, a Alemanha, da organização, a França, da culinária, a Rússia, do cinema.

          Esta guerra acabará com o excesso de individualismo. Desta guerra terá de emergir um novo equilíbrio entre as massas e os indivíduos, o nacionalismo e o internacionalismo. O comunismo e o fascismo foram apenas eficazes na economia e na preparação para esta guerra, mas em certos campos estão tão desatualizados quanto as democracias que odeiam. O comunismo promove o intelecto e o fascismo as emoções. Ambos estão errados. O nosso objetivo deve ser um equilíbrio entre o intelecto e as emoções. A missão das democracias é encontrar a síntese entre essas duas filosofias diferentes, assim como entre a economia planificada e a liberdade individual na esfera social.

          Hitler é bastante feminino e, como uma mulher dissimulada, será sempre mais dissimulado do que o mais dissimulado dos homens. Por isso foi capaz de ludibriar todos os governos liderados por homens. Hitler é grotesco, logo, é uma expressão típica do seu tempo. E é por isso que é tão perigoso. É um grande palhaço que adotou a mesma forma de governo que antes condenava. Tornou-se o profeta de uma nova ideia de economia que agora propaga por toda a Europa. Não foi assim que o comunismo foi pensado originalmente mas as circunstâncias também transformam o caráter radical com que se começa. Se os modelos da Rússia, Alemanha e Itália, não tivessem encontrado resistência, teriam conquistado o mundo. Graças à resistência das democracias acrescentou-se um outro elemento… a exigência de liberdade. A democracia tem de encontrar a síntese entre liberdade e organização. Se esta guerra se encaminhar para a sua conclusão orgânica, vamos aperceber-nos de que a nova ordem é um compromisso algures entre o comunismo, o fascismo e a democracia. Restará de cada ideologia o que se provar ser justo e útil. Através do comunismo, que fez despertar o humanismo, alcançaremos uma democracia rejuvenescida, um verdadeiro equilíbrio, e, também aqui, um novo classicismo.

          Voltemos às minhas danças.   

          Quando a prostituta envelhece, mantém-se na profissão. Se já não é capaz de executar as tarefas da profissão, arranja quem seja. Este comportamento está profundamente enraizado no instinto feminino. Mostrei alguns movimentos característicos da proxeneta, como ela pratica o seu trabalho, a alegria de o ter alcançado e a embriaguez. Estas danças provocaram grande escândalo em Paris e Berlim. Quando dancei pela primeira vez na Comédie des Champs Elysées, em Paris, tiveram de chamar a polícia porque uma parte do público batia-se contra outra parte. A honestidade e a acuidade da minha dança despertaram raiva entre aqueles que eu queria atingir.

           

          Já não conseguia ouvir a orquestra com tanta gritaria. “Elle est épatante! Formidable!” (Ela é extraordinária! Formidável!) – E “A la porte, la vache allemande!” (Vai-te embora, sua vaca alemã!) e “La gueule!” (Cala a boca) […] Até os surrealistas discutiam por minha causa. Ivan Goll gritava: “Eis o verdadeiro surrealismo!” André Breton ripostava: “Não, isto não é surrealismo!” O público bradava em “coros falados” a favor e contra mim. Eu cheguei-me à boca de cena e gritei: “Vous êtes des idiots!” (Vocês são uns idiotas!) E eles começaram a deitar abaixo o teatro e Jouvet, o diretor, pediu-me para parar. Mas eu não queria. (Sou uma bruxa, 1989 (1968), pp. 51-52)

           

          O grande-plano habituou o olho do espectador a uma ampliação da expressão. O espectador observa as reações emocionais mais minuciosas como quando as vê num cartaz. O objetivo dos grande-planos no cinema é o mesmo das máscaras da Grécia Antiga. Na Grécia Antiga, os atores tinham de ampliar as suas caras para poderem ser vistos no grande anfiteatro. Caminhavam sobre coturnos para parecerem mais altos. Griffith inventou os grande-planos no cinema para melhor dar a ver a expressão de um ator. Mas também no palco há uma necessidade de dar ênfase. Sobretudo nos Estados Unidos, onde os teatros são tão grandes que os atores parecem minúsculos. Como conseguir essa ampliação?

           

          O espaço onde dançamos é muito importante. Quanto maior for a sala de espetáculos mais encolho o palco. Porque num palco pequeno a energia concentra-se, o palco pequeno aumenta o poder de irradiação. Quando a sala é pequena, gosto de ter palcos maiores. […] De entre os espectadores, só são mesmo difíceis aquelas pessoas com princípios e que não querem experienciar. No público dos nossos dias há muita gente que quer ver uma determinada sequência de movimentos e a quem nem sequer passa pela cabeça entregar-se de uma forma inocente às suas emoções. E mesmo quando são capazes de eliminar os teóricos empedernidos que trazem dentro de si, no dia seguinte arrependem-se e tentam aliviar a sua má consciência, por terem sido momentaneamente infiéis aos seus princípios, fazendo uma análise mais exigente daquilo a que assistiram. (Sobre a Dança, 1931)

           

          O bailarino encontrou soluções também  para este caso. Através do exagero das expressões corporais e faciais, ele amplia os seus efeitos. Quem exagera de um modo superficial não é artista; mas quem concentra as suas emoções, quem alcança os píncaros da emoção, esse ator cria uma equivalência para a máscara. O seu rosto adota o primitivismo e o poder de penetração de uma máscara. Não me refiro à máscara no sentido de disfarce mas antes de revelação. Este modo de expressão relaciona-se com a arte japonesa de representação e com os entalhes primitivos. Será o estilo do futuro. Não quero com isto dizer que o bailarino deva usar uma máscara artificial. Não, o bailarino, ou o ator, têm de criar, a partir do seu próprio rosto, uma sequência de expressões semelhantes às de uma máscara, excluindo delas qualquer reação pessoal, guardando apenas o que é característico. Só uma expressão deste tipo poderá simular o efeito do grande-plano. 

           

          Eis como fiz a Morte: Estou de pé, imóvel, com uma longa túnica negra, sobre um estrado iluminado. O meu corpo estende-se lentamente, começa o combate, cerram-se os punhos, cada vez mais firmes, os ombros curvam-se, a face deforma-se sob o efeito do sofrimento, da agonia. O sofrimento torna-se insuportável, a boca abre-se para um grito mudo. Inclino a cabeça para trás, os ombros, braços, mãos, todo o corpo petrificado. Tento contrariar. Inútil. Fico imóvel por uns segundos, um poste em sofrimento. Então a vida começa a abandonar o meu corpo lentamente, e muito lentamente o corpo descontrai. A dor afrouxa, a boca amolece, os ombros caem, os braços descaem, as mãos. Sinto a rigidez dos espectadores na sala, quero consolá-los, um reflexo de vida escorre pelo meu rosto e, de muito longe, começa a emergir um sorriso. E eis que se afunda bruscamente, as bochechas desistem, a cabeça tomba, uma cabeça de boneca. Fim. Fui. Morri. Silêncio mortal. Ninguém se atreve a respirar na sala. Estou morta. (Sou uma bruxa, 1989 (1968), p. 41).

           

          O mesmo se aplica aos movimentos. Devem ser ampliados e intensificados. O bailarino moderno deve estar na vanguarda da destruição da expressão obsoleta do ator e substituí-la por um estilo contemporâneo. A nossa vida, que superficialmente parece ser muito real, é, na verdade, bastante fantasiosa. O estilo das artes deve, pois, refletir esta fantasia.

           

          Quem partir do corpo e entender as suas leis como soberanas terá de desenvolver movimento a partir de movimento. Quem, no entanto, criar a partir do espírito e da alma não se deve preocupar em criar movimento a partir de movimento. Também não acredito que, criando uma sequência virtuosa de movimentos, se consiga dar a ver qualquer coisa da alma. A arte gosta de fugir do artístico. Acontece tantas vezes as danças serem criadas de acordo com receitas culinárias, apesar de, mesmo numa atividade tão funcional como cozinhar, os melhores pratos apenas se conseguirem graças a misturas e combinações que à partida se ignoram. Acredito que a arte é bruxaria; se a poção correr bem, então o corpo seguirá sem resistência o que a voz interior ditar. (Dançar, 1931)

           

          Os solos deram origem a danças de grupo. Mas o objetivo ético que o solo cumpria perdeu-se, tornando-se algo puramente estético. Mais ainda, o objetivo inicial inverteu-se. O bailarino de um solo atacava e criticava. Os bailarinos de grupo fizeram o contrário. Faltava-lhes a violência e a pimenta e minimizaram a importância  da sua subjetividade adocicando-a.

           

          De um ponto de vista superficial, as danças de grupo não andam muito longe do ideal das novas danças comunitárias (esta semelhança superficial é responsável pela impressão que causam junto do público). Mas os pré-requisitos: a vivência espontânea de naturezas fortes e autênticas, a posse de todas essas mesmas forças primordiais disciplinadas por leis que se apliquem a todos – estes pré-requisitos ainda não estão lá. As bailarinas descrevem as linhas que o seu entendimento achou serem as linhas corretas. A impotência dos que vivem num mundo burguês, mas que na sua atividade artística acreditam (aparentemente) ter de alcançar objetivos não burgueses, é desde logo evidente no nome que dão às danças: o “Signo”, o “Chamamento”, símbolos vagos que podem significar aleatoriamente tudo ou nada. No individualismo que hoje vivemos, qualquer um pode ser outra coisa, mas a maioria das pessoas irá imaginar algo ridiculamente impreciso ou então não imaginará nada. […] De entre os chavões que denominam esta falsa arte, o mais usado é “dança absoluta”. Talvez o termo se justifique por os símbolos dançados não conseguirem despertar em ninguém uma ideia real. […] Faria sentido considerar este movimento como um novo ramo da ginástica aplicada e assim reclamar a sua identidade. No entanto, é imoral usar um nome falso para a sua divulgação. (Dança de grupo, 1925)

           

          Lisonjearam a burguesia e não quiseram arriscar a reprovação. Tal como o bailarino a solo, o bailarino de grupo tem a função de assustar o hipócrita e de lhe mostrar a sua cara mais feia num espelho deformado e de encorajar quem quiser colaborar e de estimular a ação. Sem estes efeitos, a dança de grupo não passa de ballet modernizado. O mesmo se aplica a revistas políticas a que assisti. É assim que Alfinetes e agulhas [Pins and Needles, 1937i acaba por justificar o que pretende atacar. O efeito é tão superficial que…

          O texto de Valeska Gert que aqui publicamos, inédito até à data, encontra-se no depósito depósito Valeska-Gert-Archiv da Akademie der Kunste em Berlim.  É um documento dactilografado com vários apontamentos e emendas a lápis.  O seu biógrafo Frank-Manuel Peter, assume que terá certamente sido escrito entre 1939 e 1945 nos Estados Unidos, durante a II Guerra Mundial e enquanto o Hitler permanecia vivo. Não será certo que Gert o tenha escrito ela mesma, ou ditado a alguém, como era seu hábito. Da mesma forma não se saberá se foi escrito originalmente em inglês ou traduzido do alemão.

           

          Traduzido do original em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia da Silva.

           

          BIBLIOGRAFIA

          Valeska Gert. Dançar (Tanzen), Vossische Zeitung, n.º 205, 22 de abril de 1920

          Valeska Gert. Dança de grupo (Gruppentanz), Die Weltbuhne, 21.º ano, 1925, n.º 39, p. 501

          Valeska Gert. Mary Wigman e Valeska Gert (Mary Wigman und Valeska Gert), Der Querschnitt, 6.º Ano, 1926, n.º 5, p. 361-3

          Valeska Gert. Sobre a Dança (Über den Tanz), Kulturwille, Revista mensal para a cultura do operariado. Edição: Operariado e Teatro. Leipzig, Fevereiro de 1931, Caderno 2, pp. 27-28

          Valeska Gert. Dançar (Tanzen), Schrifttanz 4, n.º 1, Junho 1931, pp. 5-7

          Valeska Gert. O Meu Caminho (Mein Weg), Peipzig, 1931

          Valeska Gert. Sou uma bruxa, Caleidoscópio da minha vida (Ich bin eine Hexe, Kaleidoskop meines Lebens), Knaur, Berlim, 1989 (1968), pp. 51-52

          Traduzido do original em alemão por José Maria Vieira Mendes.

          i Peça de teatro de revista da Broadway com música de Harold Rome, estreada em 1937 e em cena até 1940. [N. do E.]

          Ana Jotta Christophe Wavelet Pousei o Pé, Molhei a Meia

          Entrevista de Christophe Wavelet a Ana Jotta feita nos dias 30 e 31 de julho na casa de Ana Jotta, em Campo de Ourique, Lisboa.

           

          AS FOLHINHAS, O ATÓMIO E A DESCONHECIDA

          J. Eu faço sempre para cada exposição uma folhinha. É variado, umas vezes é uma linha outras vezes é uma folha inteira. Queres mais café?

          W. Um pouco mais, por favor, Ana.

          J. Eu escrevo sempre a data, eu sou maníaca com as datas.

          W. Para Rua Ana Jotta, o catálogo da tua retrospetiva na Fundação Serralves (Porto) em 2003, escolheste uma fotografia anónima para a capa.

          J. Está praticamente em tamanho natural. Comprei-a em Bruxelas num ferro-velho, muitos anos depois de lá ter vivido. É uma fotografia de uma desconhecida com o Atómio por trás, como uma aura de santo.

          W. Fotografia anónima para a capa …

          J. Aliás, do outro lado, tens também uma graça, que é Missing…

          W. Que poderias ser tu…

          J. Isto sou eu sempre. Sou eu que me pus por cima de várias pessoas desaparecidas. Também foi em Bruxelas. Era um postal de pessoas desaparecidas que estava na parede e eu pus fotografias minhas de várias épocas, daquelas de B.I. Isto também tem que ver com o desconhecido e com o anónimo.

          W. Alguns desenhos do início do teu trabalho poderiam ser feitos hoje.  Lembras-te de fazê-los?

          J. Muito vagamente. Lembro-me de o fazer, lembro-me de a minha mão fazer isso, mas não me lembro onde estava, em que ano estava. Lembro-me do gesto.

          W. O primeiro tempo de realização.

           

          O QUE FICA

          W. E depois há o tempo da escolha que tu fizeste para este catálogo. É um tempo diferente que pode acontecer muitos anos depois.

          J. Sim. Tenho montes de desenhos numa gaveta. De vez em quando levo para a galeria. Mas tudo o que faço destas coisas chamadas ‘artísticas’ são coisas que não são de coleção nenhuma. Vou fazendo. E se as quiserem levar ou comprar, compram. Ou às vezes dou.

          W. E as pinturas?

          J. Eu pintei durante muitos anos. Considero-me uma pintora, apesar de já não pintar… a pintura fugiu de mim. Porque é muito mais fácil trabalhar com três dimensões do que trabalhar com uma superfície. É estar mais perto da vida, que é uma coisa mais estúpida e fácil.

          W. Durante quantos anos fizeste quadros?

          J. Ah, muitos… Praticamente desde que existo. Quando era pequena fazia aqueles desenhos que as crianças fazem. Para ir para Belas-Artes tive de entrar num curso com um mestre académico porque… como eu vinha do liceu e não de uma escola de arte, estive todo o verão a treinar com pincel e óleo para fazer o exame de admissão. Fazia retratos e ele punha-me com os modelos, para aprender aquelas técnicas. Divertia-me imenso. Mesmo fazer uma cor como a ‘cor de pele’ ficou-me desse mestre, que era açoriano, e já tinha oitenta e tal anos. E eu continuo a pôr azul, encarnado, branco, para fazer um tom de pele… verde, amarelo. São coisas atávicas que ficam.

           

          A ESTRELA E O TIJOLO NA CABEÇA

          Depois entrei nas Belas-Artes, onde não estive mais do que um ano. Chateei-me. E pronto. Mas pintei sempre. Lembro-me de quando fui para a Madeira depois do 25 de Abril. Estive lá três anos e devo dizer que passava calmamente dezasseis horas a pintar dentro de casa. Não fiz mais nada. Lembro-me de que ia para o museu e fazia aquilo que se faz desde sempre: pegar numa pintura e copiá-la. Ia para casa, copiava, mudava a cor. E eram geralmente pintores flamengos, que há uma grande coleção na Madeira, porque eles trocavam a cana de açúcar por pintura flamenga.

          W. E tinhas prazer em fazer isso?

          J. Imenso. Tudo o que eu faço é sempre manual e, portanto, não é mental sequer.

          W. Mas é mental ao mesmo tempo… Porque tem decisões.

          J. Mas são irracionais, em si. Mental é uma coisa mais ordenada. É como a minha sorte, que é irracional. Não se pode comparar a sorte da estrela ou do tijolo na cabeça. Mas tudo o que eu faço e não faço outros fizeram assim, dizia a Amália, e é uma coisa maravilhosa. Mas é irracional. Eu não tenho razão.

          W. Porque jogas muito…

          J. Eu não preciso de ter razão, há coisas mais divertidas. A razão its dull, é chato. Não me interessa. Eu uso tudo isto porque é um mundo sem fim. Mas só me serve para eu transformar. Não gosto de pegar numa imagem, seja qual for, e pô-la ali mesmo com outra cor ou cortada… tenho de pegar. É como o trabalho do padeiro. A minha transformação passa pelas mãos. E isso é muito excitante. É como um teatro, em que é arriscado ir para o palco. Mas é também porque para mim, apesar não ter tido uma educação católica, acho que a vida é dura, a vida é para sofrer. O sentido não é sofrer, é custar. Ça coûte. Et ça ne coûte pas seulement de l’argent [não custa só dinheiro]. Custa. E eu acho que o trabalho manual faz parte do custo da vida. E não acredito em coisas que são feitas sem custo.

          W. Prestas muita atenção ao contexto. Tem isso também que ver com sensações, objetos, memória?

          J. Não. Não tenho memória nenhuma. Quando digo irracional, isso pode conter a memória.

          W. Mas e a memória do corpo?

          J. Os olhos veem, misturam e sai qualquer coisa daquilo. Eu não guardo memória. Tenho é uma espécie de uma açorda. Uma mistura de coisas. Eu que sou especializada na vista, no ver, sou uma artista, vejo muito, mas não fixo. Eu recebo o que vejo e depois alguma coisa eu faço com aquilo, mas não é por memória.

           

          O CORPO-ARCA E O RIO DA MORTE

          W. Mas tens memória do corpo?

          J. Sim. O corpo guarda tudo. É uma arca.

          W. Parece-me que o teu trabalho tem uma lógica estrutural: a da associação livre.

          J. É a minha maneira de funcionar. É uma coisa que me salta sem eu querer: associações de palavras. E isso tem que ver com a minha maneira de pensar, de funcionar, ou de existir. É engraçado, porque há quase uma semana saltou-me uma frase. Tive de ir bordar para ver se me via livre, e não consegui. Não sei de onde veio. Acho que vem de uma cantiga popular do Norte de Portugal. E que é: ao passar o ribeirinho, pousei o pé, molhei a meia. É como atravessar o rio da morte – não sei o que é. Mas não me sai da cabeça. Ou é um sinal de que eu vou morrer. Ou então o trabalho não está bem feito. Portanto, something. É associação. Salta-me, vai, vem, e desaparece ou não.

          Agora, com as mãos, faço muito menos coisas. Faço mais printing ou plastificado ou coisas mais simples.

          W. Porquê?

          J. Possivelmente tem que ver com a idade. Já fiz muitas coisas, e não me apetece deitar tanto lixo para o mundo. Não preciso. Já fiz. Enough. Vou continuar a fazer mas cada vez mais coisas mais rarefeitas, de uma pessoa mais velha que já não gosta de se mexer tanto. Eu fazia com muito esforço e trabalho, agora não. Só uns acertos. Isto é um resumo, que eu guardo há muito tempo, é um resumo do que eu sou, de facto. O funil está reduzido, o foco está mais reduzido, até desaparecer.

           

          LIBERDADE, FAMA

          W. Hoje as fontes do trabalho quais são?

          J. ‘As fontes’ é remexer em coisas que eu já fiz, ou que ainda estão aqui, assim, em stand by. Remexer, fazer umas ligeiras modificações, quase nada.

          W. Então, por exemplo, para Malmö, a última exposição em que participaste, como é que trabalhaste?

          J. Não tive que trabalhar nada. Estas exposições para mim são muito chatas. Como ninguém me conhece eu tenho de fazer. O curador trata de mostrar uma espécie de… não é uma retrospetiva nem uma antológica, é uma apresentação. E isso não me interessa. Não quer dizer que eu não goste do que eu já fiz. Mas já é velho, já não me interessa, é maçador. Portanto, quando eu consigo lá pôr alguma coisa que eu fiz agora, nem que seja um quadrado, fico contente. Só gosto de fazer o que me dá gozo. Ser conhecida por um lado é simpático, e gosto, mas por outro pode ser chato, porque não me deixa aquela liberdade de que eu gosto. Deixa, porque eu basta dizer que não.

           

          OS CAVALOS E A DUPLA DE SISSI

          J. No final deste ano, entre setembro e novembro tenho quatro exposições solo, o que é uma coisa louca.

          W. Onde?

          J. Tenho a lista para não me esquecer. E isto já no ano passado foi a mesma coisa. E eu tenho de ter uma solução muito simples, que é dizer que não. Mas como isto me acaba por dar prazer…Olha, agora tenho uma em Viena.

          W. Onde?

          J. É numa cavalariça para três cavalos, num daqueles prédios muito bonitos burgueses. São três artistas que têm aquele sítio, onde mostram de vez em quando exposições. Nesse prédio vive ainda uma velhota que deve ter quase cem anos, que foi a dupla da Romy Schneider na Sissi, Jovem Imperatriz. Vou fazer tudo novo menos uma passadeira que eu bordei aqui e vou levar debaixo do braço. Vai-se chamar Parterre.

          Depois tenho a 19 de outubro, no Porto, a abertura de uma casa muito bonita do princípio do século passado. Chama-se São Roque, era de uma daqueles famílias ricas do Porto, Ramos Pinto. Estava abandonada e está a ser restaurada. É de um colecionador que se chama Peter Meeker, que tem muitas coisas minhas. Vai abrir com esta exposição que se vai chamar Inventória. Vou mobilar a casa, vai ficar vazia, não como uma exposição, mas como uma decoração de uma casa que está ainda… em trabalhos.

           

          O CIRCUITO E O BURACO

          W. Durante o almoço falaste-me da relação que tens com o Instagram. Muitos dos meus estudantes interessam-se por isso. Disseste-me que o Instagram seria como um diário. Qual a diferença entre o diário, o Instagram e a tua casa?

          J. O Instagram é como um diário de por onde eu passo e do que me chama a atenção… Há uma enorme diferença entre a minha casa, que é o meu buraco, a minha toca, e que é mais próxima do meu trabalho. Há o meu trabalho, que é para mostrar, que é para ir para fora, e que vai para fora, e que vá com Deus e não tenho nada contra. No Instagram não mostro o meu trabalho. É raro. É o sair de casa, é o meu contacto com o exterior. Não tenho mais nenhum.

          W. O Instagram é uma das tuas atividades. E aqui, em tua casa, todas as assemblages são também atividades tuas. Qual é o estatuto dessas assemblages que a Ana faz para si própria nesta casa em relação com o seu trabalho artístico?

          J. Acho que isto é muito mais próximo do trabalho e de mim do que do Insta, apesar de ser também uma atividade que se pode tornar obsessiva. Como atividade, estas assemblages na minha casa e o meu trabalho são coisas ferozmente da minha toca. O Instagram, eu não considero… É eu, se quiseres, mais parecida com uma pessoa.

           

          MUDANÇAS

          W. Qual é a tua relação no geral, com a Internet? Porque a Ana nasceu, cresceu e viveu fora disso…

          J. Entrou e mudou tudo. Por exemplo, é tão fácil quanto isto: eu vou à rua para ir ao supermercado cinco minutos e subo as escadas porque não tenho o telemóvel. Dantes tinhas um telefone com fio e quando chegavas a casa à noite e se tivesses um coiso para ouvir ouvias, quem telefonasse telefonava. Não estava obsessivo. Muda a tua vida completamente. É o tal perigo que eu não sei se é perigo ou não. Quando eu me meti no Instagram estava absolutamente do contra. Mas depois gostei imenso e pensei porque é que eu hei de estar com problemas e com sentimentos de culpa? Pensei: «Ana Maria, estás parva? Estás apanhada pela coisa?» Quero lá saber. Entrei a vinte e seis mil como se nada.

          W. Vês muitas coisas na Internet?

          J. Nunca. A única coisa que eu faço é ver e-mails, ver, receber e responder o mais rapidamente possível…

          W. Youtube?

          J. Nada: zero. Absolutamente nada. O resto é igual ao litro. Não substitui a minha falta de música ou de cinema.

          W. Sei que lês muitos livros. Recebes livros também, visitas museus…

          J. Eu de facto já li muito desde pequena. Ainda por cima, como era filha única estava ali isolada e habituei-me. Hoje em dia já compro muitos livros e encomendo, há outros que eu nem sequer li, há outros que eu abro e torno a fechar. Hoje em dia devo dizer que compro e é um objecto que eu adoro. Mas já quase compro mais livros pelo prazer das capas, de ter livros. Compro muito mais por títulos, aqueles que são de ficção, do que por outra razão.

           

          SUBSTITUIÇÃO

          W. Qual foi a ideia dessa placa Rua Ana Jotta ?

          J.  Isso foi uma graçola minha… para quando eu morresse. Para substituir a rua Correia Telles, onde fica a minha casa. Evidentemente, foi uma brincadeira. E serviu para o nome da exposição. E também o João Fernandes [ex-diretor do Museu Serralves e curador da exposição Rua Ana Jotta] queria pô-la na rua de Serralves mas como não pôde foi posta na entrada da minha casa.

           

          A XEROX E A FALSIFICADORA

          W. Gostas de copiar, Ana? 

          J. Copiei várias vezes, sim. Por exemplo, as marinhas do [Edward] Hopper foram feitas em cima deste parquet, aqui em casa. No chão — eu gosto muito de trabalhar no chão. Desenhei, copiei a olho as pinturas do Hopper que tinha de uma reprodução. Eu copio, sou uma Xerox. Copio absolutamente, só assim: puff! Tenho muito treino. Tenho uma coisa que pode ser boa e pode ser má: tenho imenso jeito. Gostava era de ser falsificadora. Quando era pequena copiava notas de vinte escudos. Na minha família, o meu pai tinha imenso jeito. É preciso contrariar. Eu não uso o meu jeito. Copio como se nada. Copio de uma coisinha pequenina, aumento como se nada, nunca faço projeções, é assim, a olho. Nem sempre dá jeito ter jeito.

           

          ‘J’ DE JOTTA

          W. E esse «J» de Jotta? Como é para si chamar-se «J»?

          J. Isso é uma coisa incompreensível para a maior parte dos estrangeiros. Não percebem que jota é como se eu me chamasse Ana B, ou Ana C.

          W. Existe outra Jotta em Portugal?

          J. De família? Há um Jota com um ‘t’ só. Acho que sou a última Jotta, porque o meu pai chamava-se Jotta. Há imensos que foram para os EUA, para o Brasil. É um nome judeu húngaro, e a minha família, os que vieram para Portugal, foi no tempo do Império Austro-Húngaro. Fugiram. Antes do nazismo. Acho que foram para a serra da Estrela, acho que eram tecelões. E ficaram lá e ali. E depois os outros, mais tarde, no tempo do Hitler, foram para Auschwitz e ficaram por lá.

           

          O OSSO E A ESPERA

          W. Enervas-te, alguma vez, no trabalho?

          J. Não. Ou sou muito precipitada e faço muito depressa, ou é a coisa que manda, ou outras vezes fico stuck. Aquilo não se resolve. Abandono e pego mais tarde e insisto. Sou muito teimosa. Abandono mas… várias vezes penso ‘vou deitar esta porcaria fora’, e ‘tinha mais que fazer’ e faço muitas coisas pelo meio. Mas não consigo desistir enquanto aquilo não se resolver. Deixo andar. Dá-me muito mal-estar a coisa não se resolver. Acordo à noite e penso ‘Que chatice, aquela porcaria não se resolve’. Não largo o osso.

          W. No seu trabalho, qual é a diferença entre grande e o pequeno formato? Qual a relação entre o corpo e o espaço dentro do trabalho?

          J. Por exemplo, o pano do Fala-Só tem trinta metros ou assim. Demorei para aí três anos a fazê-lo, quando podia ter demorado quinze dias… porque não tinha espaço. Enrolei e desenrolei dois metros. Estava num sítio mais pequeno do que esta cozinha. Mas nunca é o sítio físico em que estou que me impede de fazer. Não sei é porque é que faço grande ou pequeno. De repente… eu acho que isto tem de ser pequeno não sei porquê. Aquelas marinhas do Hopper não percebo porque é que haviam de ser grandes, mas apeteceu-me. É uma coisa de apetite. Era incapaz de ter um atelier grande. Dá-me uma angústia horrível. Como me dá angústia ter sítios brancos, vazios. Adoro o vazio, esta coisa monástica minha que eu digo é amor ao vazio. Gosto de fazer exposições em sítios parecidos com uma maneira de viver.

          W. Tamanho humano. E nunca trabalhaste com assistentes?

          J. Não me fascina. Não preciso. Sempre fiz tudo o que queria fazer sem precisar de ajuda. Pode ser grande ou pequeno, mas eu lá me arranjo. Assistente é género… não conseguia, não preciso. Só me incomodaria.

           

          AS TAPEÇARIAS, AS CERÂMICAS E O PARAÍSO

          J. Tapeçaria foi o que fui aprender para Bruxelas, mas nunca pratiquei. Depois daqueles seis meses de penúria total, e quando telefonei à minha avó e ela me passou a dar uma mesada, fui para a École des Arts Décoratifs de l’Abbaye de La Cambre. Era a única aluna de tapeçaria. Estava tudo noutras. Sempre gostei imenso de faiança, porcelanas, artes decorativas. Estava no sitio ideal das tapeçarias de haute-lisse. Maravilhosas. Fui aprender a fazê-las. É um trabalho absolutamente de artesão. Estava ali todo o santo dia, com um garfo a empilhar. É uma coisa muito minuciosa. Mas nunca fiz mais nada. Distraí-me com outras coisas. Trabalhar em vidro, nunca trabalhei mas era uma coisa que adoraria, aquela coisa de sopro.

          W. Agora que vais fazer a Turim? O que é essa nova fundação que te convidou?

          J. Foi a Lilou Vidal, que é casada com um artista belga. Eles têm uma casa em Turim. Acho que o avô, alguém da família deles, tinha um forno e uma casa no campo, e eles estão a refazer aquilo. E estão a convidar várias pessoas para irem lá passar uma semana, e depois imagino que vão fazer uma exposição.

          W. Será a primeira vez que vais trabalhar com cerâmica?

          J. Já fiz várias coisas, mas assim de fazer para a finalidade de ser uma arte chamada decorativa, sim. Aliás, vou fazer coisas de certeza muito informes. E pintar, depois, também. Será finalmente artes decorativas e barro. Cerâmica. Como ponto final da coisa. É muito divertido ir para o campo e fazer cerâmicas. É o paraíso.


          PEDRO, MIGUEL, RICARDO

          J. As minhas origens de teatro têm muito que ver com qualquer coisa de perceber como é que se pode encenar uma coisa.

          W. Sais da tua casa para ir ao atelier cada vez que tens uma ideia, ou às vezes vais lá sem saber?

          J. Só vou lá sem saber. Por exemplo, agora vou lá praticamente todos os dias porque bloqueei. Vou lá olhar para aquilo, faço mais um bocadinho e vou-me embora. É aquela coisa da teimosia. Pode ser que aquilo ande.

          W. Às vezes tens dúvidas dentro do trabalho?

          J. Dúvidas é isso – está a correr mal.

          W. Acontece que convidas uma amiga ou um amigo para falar do trabalho?

          J. Nunca na vida. É só um assunto meu.

          W. A instância de validação és tu?

          J. Absolutamente. A única pessoa com quem partilhei atelier foi com o Pedro Casqueiro e, aliás, as únicas conversas. Era uma coisa discretíssima. Não inundávamos o atelier.

          W. E com o teu amigo Miguel Wandschneider ?

          J. Trabalhamos muito bem. Ele era curador da Culturgest. Fizemos várias exposições. Um diz mata e o outro diz esfola. Somos os dois muito enérgicos e disparatados. E fazemos aquilo maravilhosamente. Ele convidava-me para fazer uma exposição e aquilo ia num flash, mas de resto nunca tínhamos conversa nenhuma.

          W. E quando apresentou recentemente essa exposição firmada nas duas personagens na Gulbenkian, Al Cartio e Constance Ruth Howes? Lá tem um diálogo com o Ricardo Valentim.

          J.  Lembras-te do livro, o Moer? Foi feito já estava moído. Era ele em Brooklyn e eu aqui. Tivemos sempre uma relação muito simples, muito próxima e disparatada. Eu percebo o que é que ele gosta. Temos muitas coisas parecidas. É como se a minha vida tivesse sido sempre fazer cartões de visita. E o trabalho dele tem muito que ver com catálogos… inventar um programa de um filme… é letras. Uma coisa que eu adoro.

           

          CONSTANCE E AL CARTIO

          J. Gralhas, erros, erratas, vírgulas mal postas, coisas mal escritas, isso é uma coisa fortíssima. Por exemplo, já pensámos, o Wanschneider e eu, em fazer um livro só com erratas. Eu sou muito maníaca nisso. Tenho isso em comum, tanto com o Wandschneider como com o Valentim. E, portanto, damo-nos bem. É uma coisa que é muito preciso e que cai na mouche. O Valentim ficou excitadíssimo quando descobriu que eu tinha um Al Cartio dentro do armário. Eu não ligava. Existiu o Al Cartio, lá o inventei numa exposição, depois ardeu. Fiquei muito contente, porque estava lá o curriculum dele, a prova de que tinha existido. Bastou-me. Evidentemente, o Valentim quando veio aqui percebeu e ficou absolutamente em êxtase. E pronto, começámos a conversar. E depois, enquanto ele estava fora algures no tempo, fui para o Algarve com um álbum fazer aguarelas, porque achei que a Constance Ruth Howes, como estava reformada, podia fazer aguarelas. E fui fazer aguarelas de pedras do Algarve para lhe fazer uma surpresa. E estive numa praia do Algarve com um vento horrível e com uma garrafa de água, a fazer aguarelas, coisa que eu nunca tinha feito na vida. É que eu odiava a ideia de aguarelas porque é muito líquido, tem pouco corpo. Quem gosta de óleo tem alguma dificuldade em fazer aguarelas. Lá estive a fazer aquilo e depois aquelas rochas são tão bonitas que é difícil aquilo não ficar bem. Quando chegou, no verão, disse-lhe: “Olha, a Constance esteve no Algarve” (é um divertimento assim, mais literário do que outra coisa) e fiz-lhe aquelas trinta aguarelas – que foram a exposição. E ele estava a fazer o alfabeto do Al Cartio, a partir de textos que ele tinha feito para um dossier. E foi assim: ele a fazer o alfabeto do Al Cartio e eu a fazer as pedras da Constance. É uma espécie de história inventada que sai muito bem aos dois.

           

          O ÁPICE E OS TEMPOS DO BONÉ

          W. Quando preparas uma exposição, imaginas a partir de quê? É diferente de fazer uma peça?

          J. Boa pergunta. Se eu soubesse!… Por exemplo, o Parterre, donde é que eu parti? Primeiro, gostei muito do sítio em Viena. E depois vi, que eu nunca tinha ido a Viena, que os cavalos lá têm uma touca nas orelhas. Foi o boné dos cavalos que provocou tudo. Faz-se num instante. Uma espécie de brinquedo de criança. Era um boné verdadeiro que os cavalos usam, para as moscas. Eu pensei que fosse para o som.

          W. Então, no início, tem o encontro com o objeto. Depois as ideias que surgem. Tempo um: o boné. Tempo dois: aparece o imaginário, com o boné Tempo três: o desenho.

          J. Sim, e o desenho é para eu me lembrar o que eu tenho de construir lá, porque tenho memória de galinha.

          W. Cada vez que aparece uma ideia, ou uma combinação de ideias, tens prazer nisso?

          J. Estou excitadíssima com a ideia de ir fazer isto. Isto é novo, e não é só por ser novo que me excita. É por ser uma coisa que eu nunca vi, e vou fazer num ápice.

           

          AS CORES E O NOME DAS CORES

          W. Qual é a tua relação com a cor?

          J. Sobre essa história da cor, chamou-me a atenção o que o Benoît disse, porque é completamente verdade, mas é uma novidade. Nunca pensei como uso a cor.  É verdade que nunca uso as cores primárias. Há um texto do século XVII ou XVIII que diz que as únicas cores que existem são o preto e o branco. As outras são feitas pela luz. As primárias, ou conhecidas como tal… uso-as porque… gosto de cores misturadas, atenuadas, que passaram por mais camadas de várias coisas. Não é que tenham passado pelo tempo, ou para fazer antigo. Não gosto de coisas muito gritantes. Divirto-me com o óleo porque podes ficar ali a misturar, a misturar. E, depois, quando compro as tintas procuro cores, por exemplo, tête morte… cores que eu acho engraçado o título e depois acabo por perceber que ao longo destes anos todos devo usar entre o rouge anglais, o gris chaud, o gris froid, vários tons de verdes, muita terra queimada, terre brulée et pas brulée. Azuis uso muito poucos. Uso possivelmente um que me lembra loiça. Tem que ver com a cor em si e com o título dela, que me lembra Sèvres. E faço essas misturas, que é uma mistura dos nomes das cores e das cores em si, como são e funcionam. Depois gosto de misturar. É como se fizesse não uma mayonnaise, mas como se estivesse a partir a loiça com a mayonnaise. Gosto de cores misturadas e pouco apanháveis à primeira, e à segunda e à terceira.

           

          VIAGEM A TÓQUIO

          J. Quando eu disse que levei num saco de plástico para Tóquio, eu estava com a minha mania e a minha obsessão com a economia: de todos os pontos de vista, de dinheiro, de meios, de tudo. Porque me faz muita impressão que as coisas custem muito. Não só dinheiro, mas uma complicação de transportes, etc. Para a tal exposição, eu fiz panos bordados, meti-os num saco e levei-os para Tóquio. Tirei-os do saco e fiz uma enormíssima exposição que era um verdadeiro estendal. Não estou a dizer que isto seja uma regra e que se possa fazer sempre, mas evito o mais possível que a coisa seja muito pesada. Não é por mim.

          W. Citação, apropriação e tradução são algumas das lógicas estruturais do teu trabalho. Como foi, por exemplo, com o trabalho que fizeste a partir do desenho do Paul Klee?

          J. Foi paixão. Adorei aquele desenho e imediatamente tive de fazer o resto daquelas maneiras. Não há qualquer exercício de pensamento. Tinha de ser aquilo. Foi até ao limite. Começa aqui e acaba ali. E passo para outra. Podia ter ficado. Há muitos artistas que durante toda a vida andaram sempre à volta disto. Até ao infinito. Eu não — eu já percebi. Chega. Enough is enough. Já fiz este panos e agora chega. Pronto. Aborrecia-me de morte se ficasse toda a vida à volta da mesma coisa. Preferia desaparecer.

          W. Seria a mesma lógica com o bordado que fizeste em relação a Sainte-Victoire, de Cézanne?

          J. Essa Montanha foi feita em noventa e qualquer coisa, numa altura em que eu fazia muitos bordados. Não foi a montanha que veio para mim, fui eu que fui para a montanha. Eu não – o fio. Porque foi assim: eu fiz, estava com um lençol à frente. Atirei uma linha preta e a linha desenhou a montanha, assim sozinha. E eu olhei para aquilo e pensei: É a montanha da Sainte-Victoire! Aí está. Copiei a linha que tinha caído, passei-a a lápis, bordei-a e depois terminei o resto.

          W. O primeiro fio qual foi?

          J. O primeiro é o perfil da montanha. Isto foi o que atirei para o lençol. Fui eu que acrescentei a paisagem. E assim ficou. Na verdade, a montanha de Sainte-Victoire é um pouco achatada naquele sítio. Isto era um pano branco, um pano de lençol branquíssimo. Com uma linha preta ali não havia dúvida que era a montanha. Depois fiz o resto.

           

          PÔR ORDEM NO PEDAÇO

          W. Qual é tua prática, Ana?

          J. A minha prática? É trabalhar com as mãos e o corpo.

          W. E praticas o quê?

          J. Tudo o que posso…

          W. …Fragmentos do visível do mundo e da história de arte?

          J. Sim, é muito importante a história de arte. O mundo, sim, é um dilúvio, um caos de imagens. É a tal transformação, tem de passar por um filtro. Neste caso, sou eu. Portanto, os fragmentos aparecem continuamente.

          W. Traduções, reconfigurações?

          J. É pôr ordem no pedaço, como se diz em brasileiro. Ponho ordem no meu pedaço. Não é no pedaço do mundo, porque não me interessa nada.

          W. Achas que tudo isso vem de uma necessidade?

          J. Sim. Se não fizesse isto, maçava-me muito. Não estou a dizer que me suicidasse, não tenho tendências suicidas. Acho muito boa aquela música do Stop Making Sense. Maravilhosa. Tudo é a favor do Stop Making Sense. Mas é uma coisa muito simples, só faço o que me apetece. Tenho de ter algum gozo a estar cá. É a única maneira que eu tenho. Pode-se estar cá, mas arrastar-me assim sem ter gozo acho que era impossível. Não é mais do que isso. Mas já é muitíssimo.

           

          J’AI BEAU ÊTRE UNE ARTISTE…

          J. É um dizer de que gosto muito: J’ai beau être une artiste, je suis quand même très triste? Essa é uma das máximas que se aplica muito bem à vida de uma pessoa. À minha, neste caso.

          W. Je suis quand même très triste?

          J. Não se pode dizer que eu seja neurasténica, mas que sou très triste… evidentemente.

          W. Triste de viver?

          J. Sim. É uma força. A tristeza é uma força. Como a alegria também deve ser. Mas a tristeza é uma força muito boa para trabalhar. Fica-se mais sharp, sensível. Várias coisas. A energia mexe melhor.

          W. Essa tristeza tem que ver com…

          J. Não é com o fado!

          W. Existe essa palavra tão forte em português, ‘saudade’. Saudade não é a mesma coisa do que sehnsucht, mas esta é também única. Essa tristeza que evocas agora, tem a ver com a saudade?

          J. Não. A saudade é uma coisa redonda. Nostálgica. Anda para trás e para a frente. A tristeza é uma coisa seca. A vida é quente e sujeita, e a arte é vital e fria, como a tristeza. Uma vez um artista, o Rui Chafes, disse-me uma coisa que eu jamais esquecerei: que não gosta de panos e de coisas moles. Como, por exemplo, eu não gosto nada de costureiras. Porque eu quando era pequena não havia pronto-a-vestir, e eu ia à costureira fazer o fato de banho. Lembro-me da costureira estar assim género… é uma coisa promíscua, mexer em roupa. Uso muitas vezes bordados. É promíscuo e é uma coisa que é próxima da vida, que é quente e sujeita – de se sujeitar. A arte não tem nada que ver com isso. A tristeza também tem que ver com uma coisa seca e vital, e que não brinca em serviço e não é promíscua. É clean e despachada.

           

          OS GATOS PINGADOS E A MORTE

          W. Ontem, falou-me desse grupo de que fez parte. Quando foi?

          J. Foi… sessenta e tal, antes do 25 de Abril. Tinha vinte e um anos. Tinha chegado de Bruxelas. Havia aquele pequeno grupinho de meia dúzia de pessoas.

          W. Onde se encontrou com elas?

          J. Ah, no Chiado. Era o centro. Nos cafés, na Brasileira… O Chiado era meia dúzia de gatos pingados, nesse caso eram rapazes. Era uma coisa que passavam só sessenta pessoas para cima e para baixo. Havia umas velhas decrépitas e aristocratas, e já absolutamente fora de tudo. Era uma coisa louca. Havia uns playboys que iam para a noite pôr em vez da gravata um peixe-espada. Era uma coisa completamente pequenina e reduzida, de uma gente que era ignorante, num sítio que era minúsculo. Era nada. Eu fiquei uma star nessa altura porque era bonita, nova e completamente fora dos carris. Fiquei e acompanhei. Porque quando a minha avó me deu um apartamento no Príncipe Real, que é ao pé do jardim botânico, alugou-me aquilo, eu vivia como uma princesa. Recebi todo o disparate em Lisboa, todo o bas-fond, passava-se ali. Telefonavam… Quero receber… Quero levar uma puta preta, branca, whatever. Era uma coisa absolutamente fora do penico. Para Portugal, sobretudo, era uma coisa fora. E eu tinha as possibilidades. Era nova, tinha dinheiro, tinha um apartamento… Até que eu fugi.

          A certa altura houve uma coisa muito complicada. Eu tinha o carro do meu pai. Quando cheguei, o meu pai tinha morrido. Vi uma quantidade de gente da minha família, que eu não sabia quem era. Pessoas da família do meu pai e que a minha mãe tinha impedido toda a vida que me conhecessem. Foi um pesadelo. Saí com um retrato que eu ainda tenho, um desenho do meu pai com três anos do Eduardo Malta, que era um artista do Estado Novo, e da nossa família. Peguei naquilo, na miniatura de um barco que eu gostava muito. E peguei no carro dele. Eu não tinha carta de condução. E fui-me embora, nunca mais me viram.

           

          O MARIDO, A PENSÃO E O LUX

          J. Ah, estava ali no Chiado. Eram aqueles que andavam na Bertrand, na Bénard, no Chiado. Eram vinte gatos pingados. Entre senhoras velhas excêntricas, outras menos, e pelo meio havia aqueles. Havia esse tal que foi o meu marido. E há por aí que é a resolução de porque é que eu vivo sem problemas de dinheiro – por causa da pensão de viuvez. E havia um conjunto… um que era o Manuel Reis, que era o dono do Lux. Uma pessoa extraordinária. E na altura era considerado como uma espécie de chulo, gigolo, que vinha do Sul e era um atrasado mental. O Manuel Reis foi o único de que eu gostei. Continuámos a nossa relação durante anos até ele ser… a pessoa mais importante para avançar Lisboa do ponto de vista artístico. Sem sombra de dúvida. Com o Frágil, o Lux. Era um gentleman e não brincava em serviço. Tudo aquilo era bem feito. Brilhou para mim de grande distância. Fiquei sempre amiga do Manuel Reis. Morreu para aí há dois anos. Fazia parte daquele grupo. Não digo que o meu marido, o Jorge Mota, fosse um reco. Não, estava ali, vinha da guerra de África sem saber o que fazer à vida. Tinha estudado arquitetura, mas não tinha acabado porque foi para os marines. Era gago e tinha tiques. Gostei dele porque era muito bonito. Era igual ao Buster Keaton. E pronto, disse ‘está bem’. Whatever. Daquele pequeno grupo fiquei com uma pensão de viuvez do Jorge Mota, do Buster Keaton, e continuei a apreciar imenso o Manuel Reis. Um rapaz bonito mas que era mil vezes melhor do que aqueles todos.

          W. E qual era o tipo de vida que tinhas com esse grupinho?

          J. Nenhum. Foi uma coisa de meses, se quiseres. Agora que me falaste disto, assim rapidamente… Eu era muito disparatada, sempre fui. Houve uma vez que era preciso levar uma pessoa que estava completamente sem passaporte, sem documentos, por causa de ser do Partido Comunista, ou assim. Uma coisa muito complicada. Era linda. Absolutamente uma princesa. Levei-a dentro do porta-bagagem a atravessar a fronteira de carro. De Elvas para o outro lado. Lembro-me de perguntarem: «O que é que está aqui? O que é que está aqui?» eu disse «Ah», lembro-me de que puseram gasolina. A nossa combinação era que, quando aquilo não tivesse sprint, eu faria sinal e pronto. Eu estava enervada, não fiz sinal nenhum, e ela começou a cantar – quando estava o outro em Espanha a pôr a gasolina. Eu pensei: “Ah, vamos dentro.” Consegui levá-la assim, sem ninguém dar por isso, até Paris. E só porque ela era bonita. Ou porque eu tenho defeito. Whatever, foi assim. Eu sempre vivi de uma maneira bizarra. Não é bizarra, é assim: sempre fiz o que quis. E o que quero depende das situações.

           

          TEATRAS

          W. Qual é a tua relação com o teatro?

          J. O teatro é talvez uma coisa tão importante como a minha vida ou o meu trabalho.

          W. E porque é que não faz teatro?

          J. Com quem?

          W. Poderia fazer sozinha. Aquilo que faz aqui em casa, poderia fazer o equivalente num outro espaço de exposição: o teatro, o palco.

          J. O teatro é tão diferente, tão longínquo… É tão diferente do resto.

          W. Não se repete, nem tem permanência.

          J. Mas não é uma performance.

          W. Qual é o poder do Teatro, do teu ponto de vista?

          J. O Teatro que eu em princípio detesto, do ponto de vista de como é feito ou praticado. Não agora, mas há muito tempo. Foi por isso que me dei bem com o Osório Mateus. O teatro é uma coisa que tem de ser muito bem estudada. E que não é um circo. É uma coisa que não se repete porque é feita em vida. Lembro-me quando o Osório me dizia que era a coisa mais perfeita. Eu ria-me e dizia puff. Mas é. O teatro é para mim o cúmulo da perfeição. Mas não sou adepta. É a coisa mais próxima de uma falha qualquer que pode existir.

          W. Onde e quando se encontrou com o Osório Mateus?

          J. Nem sei… Por acaso, como toda a gente. Lembro-me de que o Osório vinha de uma coisa completamente universitária, sem sombra de dúvida. Com ele veio uma série de gente — o Luís Miguel Cintra, o Jorge Silva Melo, a Helena Domingos. As pessoas todas que fizeram alguma coisa forte do ponto de vista artístico e teatral. Conheci-os por uma vida amorosa, por ter namorado a Helena. Por aí. O Osório foi talvez das coisas mais raras que me aconteceram na vida, e ele poderia dizer o mesmo se ainda estivesse vivo. Éramos completamente maníacos, loucos obsessivos. Não tendo eu estado nunca numa universidade, eu sabia mais do que eles todos juntos. E tivemos uma atenção ao que eu chamo as erratas, erros, ao escrever bem.

          W. Quantos anos tinha o Osório quando te encontraste com ele?

          J. Eu talvez tivesse menos dez ou quinze anos do que ele. O Mateus era um professor universitário que fez a sua cátedra e a sua coisa. Ele mandava-me por correio e eu revia sempre os textos dele. Havia imensos textos que ele me mandava dos docentes, que eu corrigia e mandava-lhe tirando os Cs todos. Eram os doentes. Tínhamos uma coisa muito simples.

          W. Trabalhaste com ele durante muito tempo?

          J. Tudo o que fiz das teatras foi com ele. Para mim, foi a única coisa que me excitou de trabalho. Foi a única pessoa com quem tive alguma afinidade. Tanto faz ser de artes ou género.

          W. E com o João César Monteiro?

          J. Não, foi uma coisa de ocasião. Fiz o que pude, correu bem. Mas não. O Mateus era como o meu irmão. Foi a única pessoa com quem eu me entendi como se tivéssemos nascido no mesmo buraco.

          W. E porque é que acabou?

          J. Ele morreu. Fiz bastantes coisas com ele. Eu deixei de trabalhar, porque era a única possibilidade. O teatro é uma coisa que eu verdadeiramente amo, mas não é possível. Com o Osório era, mas far gone. Como pessoa que organizava teatros era muito mal visto. Batia na mona. Trabalhei com ele a fazer cenários, ser atriz, tudo ao mesmo tempo. Era um mariquinhas. Gay, absolutamente. Do Norte de Portugal, complicado talvez… Era a única pessoa que eu de facto percebia, e vice-versa.

          W. Tinham dinheiro para a produção dos projetos?

          J. Tínhamos o mínimo possível, mas chegava. Há imensa gente que nem viu, nem sonhou, ou se calhar aquilo nem ficou gravado. Mas foi a melhor coisa que eu vi na minha vida. Eu acho engraçado que as pessoas não percebam nada disto.

          Por exemplo, em Veneza. Ele era leitor lá ao lado. Ele e a Helena. Eram os dois universitários e estavam os dois como leitores naquela região. Eu fui lá, para acompanhar, e passei aquele ano em Veneza. Eu era a que organizava. Andava por ali. Fizemos As três barcas de Gil Vicente. O Mateus, a maior coisa em que ele se focou foi sobre o teatro de Gil Vicente. O Gil Vicente era uma pessoa esquecida, perdida. Era um jornalista, entre mil coisas que ele fez. Estava no tempo da rainha D. Leonor, que foi um mistério, a inventora das misericórdias de Portugal. O Gil Vicente escreveu as três Barcas: Inferno, Purgatório e Glória. E fizemos as três em Veneza. Escolhemos três sítios diferentes e éramos só os três. Fizemos uma transcrição fonética e lá fomos vestidos de tudo: barbas de algodão… tudo o que te possa passar pela cabeça. E foi a coisa mais luxuosa que possivelmente alguém terá feito sobre o Gil Vicente. E pronto. Aquela transcrição fonética eu perdi. Mas, de qualquer maneira, foi uma coisa muito importante. Há coisas assim, que são absolutamente magníficas e que fazem sentido, e que depois se perdem.

          W. E isso é teatro.

          J. Sim. Maravilhoso. É a coisa que eu mais amo no mundo, mas é preciso ter lá o Mateus, e não estava lá.

          Joana Sá A Escuta como Corpo: Virtuosismo

           

           

          I.  

          Virtuosismo (ou rejeição de virtuosismo) 

          como imunização:  

          garantia do safe and sound (são e salvo) 

           

          II. 

          Paradigma de imunidade (1.) assente em: 

          – estabilidade e integridade do eu, dualidade eu/outro

          (suspensão: a alteridade é suprimida do eu

          – lógica de guerra: imunidade é a (auto)defesa do ataque perpetrado pelo outro. 

           

          III. 

          Ideais de performance musical, virtuosismo (e rejeição de virtuosismo) ao longo dos tempos:  

          – máquinas que operam diferentes processos de imunização, diferentes concepções/estratégias de construção sonora dos corpos (quase sempre) dentro de uma mesma lógica de dualidade eu/outro, ataque/defesa, dentro/fora, controlo/fora de controlo

           

          IIII. 

          – protect me from what i want  

           

          virtuosismo como paradigma ‘clássico’  

          de imunização  

          não é uma abstracção: 

          pressão mensurável para te manter 

          safe and sound 

           

          ressoando disciplina em uníssono: 

          coreografia 

           

          (ou a compressão da escuta com o teu consentimento 

          escrito) 

           

           

           

           

           

           

          IIII

          Outros paradigmas recentes, tais como (2.): 

          o sistema imunitário não responde 

          à invasão do outro 

          mas a uma série de diferenças internas 

          – reagindo à sua rede de conexões que incorporam o outro  

          em si 

           

          o sistema imunitário  

          incorporando alteridade, multiplicidade 

          num eu 

          encontra-se desde o início 

          reagindo a si mesmo: 

          um corpo 

          sendo inúmeros 

          corpos estranhos 

           

          imunidade 

          é (também) autoimunidade  

           

           

          IIIII. 

          (o pior medo é o que vem de dentro:  

          terror, ou o inalienável) 

           

           

          IIIIII. 

           

          Escuta  

          como capacidade de um corpo 

          ressoar 

          ele mesmo outrx(s) 

           

          feedback 

           

           

           

           

           

           

           

           

          IIIIIII. 

          um corpo à escuta 

          corpo que se esvai- 

          -indo dele mesmo  

          nele 

          encerrando-abrindo 

          terror: 

           

          ressonância 

          como a plasticidade  

          de um corpo  

          para 

           

           

          IIIIIIII. 

           

          Não falamos mais de virtuosismo: 

          Falemos de virtuosismo 

           

          IIIIIIII

           

          virtuosismo: a sua desmedida 

          implosão 

           

          (autoimunidade) 

           

           

          IIIIIIIII.  

           

          Virtuosismo será encetar, agir 

          tocando-se outrx(s) à distância:  

           

          ou: 

          uma falha sísmica 

          re | soando 

           

          (destemperante, indecidível) 

           

          ou ainda: 

          um corpo como escuta 

           

           

          IIIIIIIIII. 

           

          Escuta como disrupção 

           

          sentido sísmico 

             sem sujeito 

          sem objecto 

                            fora do sentido 

           

          espoletando-se, realimentando-se: 

          devorando-se, 

           

          Abrindo, abre 

          só 

           

          escuta sem sujeito, escuta como sujeito  

            escuta fora do sentido, escuta como sentido 

           

          (vibração por  

          empatia) 

           

           

          IIIIIIIIIII. 

           

          o fora de controlo, fora do sentido 

          como mecanismo interior 

          precioso, meticuloso 

          de um corpo 

           

          não é apenas um fora que vem colocar um dentro em 

          questão em regime de excepção 

          Fora como o mais intrínseco 

          perfume relojoeiro – 

          a intimidade particular de um corpo: 

          ou a impossibilidade 

          de prever ‘o que pode  

          esse corpo’ 

           

           (virtuosismo) 

           

           

          IIIIIIIIIIII. 

           

          virtuosismo não é um dado adquirido  

          não tem fórmulas, repetições 

          a sua possibilidade 

          reside na sua intrínseca impossibilidade 

          e, não obstante, 

           

          um corpo escapando de si mesmo 

          preso em si mesmo – 

          inúmeros corpos  

          re | soando 

           

          resiste 

           

           

          IIIIIIIIIIII

          um corpo é já ele violência  

          sobre si mesmo 

          ou: a impossibilidade de erradicação total da violência pelos/sobre os corpos 

           

          (não existe não agir: não agir é acção, decisão. a ausência de expressão torna-se nova expressão. a não-intenção surge inevitavelmente da própria intenção. não controlar é também controlar) 

           

           

          IIIIIIIIIIIII. 

          virtuosismo como diplomacia e relatividade (dos corpos): 

          acções, decisões,   

          vida e morte dos dois lados de cada decisão 

          vida e morte em cada gesto 

          produzido 

          ou não produzido 

           

          virtuosismos ‘clássicos’:  

          quando são sempre os mesmos corpos (ou níveis de corpo) 

          a ser tidos como estranhos num corpo (em si/fora de si) 

           

          (abatidos, abafados, descontinuados) 

           

           

           

           

           

          IIIIIIIIIIIIII. 

           

          disrupção é também reconstrução: 

          um corpo desfigurado é uma nova configuração,  

          transdução de corpo 

           

          reconfiguração: 

          resposta autónoma à disrupção 

          ou: 

          como um corpo re | soa (ou não re | soa) 

          sendo alteridade: 

           

           

          possibilidade de autofonia ~ 

           

           

           

          IIIIIIIIIIIIIII.  

           

          À escuta: 

           

          devagar o balanço  

          começa 

          e o corpo restaura o futuro 

           

          Dasha Birukova Даша Бирюкова O Jogo das Contas de Vidro ou Como Mostrar Dança

          PT

          “O jogo das contas de vidro” ou como mostrar dança, a partir da exposição
          “Steve Paxton: Esboços de técnicas interiores”
          com curadoria de Romain Bigé e João Fiadeiro na Culturgest, em Lisboa

           

          O que é dança? O que é coreografia? Qual a diferença entre dança e coreografia? Quando é que o ato de comer uma sandes passa a ser uma dança e o “não-fazer” é reconhecido como performance? São estas e outras perguntas que me surgem quando penso na obra de Steve Paxton – bailarino, performer, professor, filósofo do movimento que atravessou a história da dança, do modernismo ao pós-modernismo. Começou a sua carreira nos anos 1950, dançou com Merce Cunningham e, com o coletivo Judson Dance Theatre, redefiniu a dança enquanto prática expandida através do questionamento do próprio suporte.

          O trabalho de Paxton foi também sintomático da arte da década de 1960, que se desprendeu dos objetos e abraçou a efemeridade de performances e vídeos, deslocando a dança do palco para as galerias de arte.

          “Eu sou o meu próprio suporte”i.

          Ao longo do seu percurso, Paxton questionou-se sobre quais as condições mínimas para que a dança acontecesse, tentou perceber quando é que o “movimento quotidiano” se torna dança, analisou o corpo e a sua funcionalidade, as ideias de quietude e incorporou, na dança, o desporto, os gestos triviais, as conferências, o caminhar e o correr, criou duas práticas, o “Contacto improvisação” (C. I.), que se espalhou por todo o mundo e passou a ter vida própria, e “Material para a coluna”, uma prática mais meditativa.

          A este ícone e a seis décadas de história da dança foi dedicado o programa Steve Paxton: Esboços de técnicas interiores, com curadoria de Romain Bigé – filósofo francês e improvisador de dança – e João Fiadeiro – coreógrafo, performer, professor e uma das pessoas responsáveis pela divulgação do C. I. em Portugal, em finais dos anos 1980.
          Esboços de técnicas interiores consistia numa exposição, numa série de conferências, performances, oficinas de dança e num livro. Um trabalho notável, na medida em que se trata da primeira retrospetiva da obra e do legado de Paxton. Além disso, levantou questões fundamentais sobre o modo como se expõe a dança num museu, e como se podem representar os afetos sem a presença de bailarinos ou o que pode o arquivo da prática do movimento oferecer aos espectadores.

          Na apresentação do livro, Bigé e Fiadeiro afirmaram que o que sustentava a estrutura da exposição era a vontade de construir uma “forma de dança” para o espectador, um movimento que passasse de sala em sala e que pudesse introduzir-nos fisicamente no mundo de Paxton. Espero que os espectadores mais atentos tenham lido a folha de sala com esta indicação e que não tenham considerado uma projeção vídeo de duas horas e meia sem lugar para se sentarem como uma proposta desumana.

          A exposição era composta por oito salas que apresentavam cronologicamente a história da obra de Steve Paxton. A primeira sala era dedicada a um estudo do movimento pedestre. À entrada, uma instalação vídeo baseada em Satisfying Lover (1967), com quarenta e duas pessoas a atravessarem um espaço. O interesse por formas simples é paradigmático dos anos 1960, como na arte minimal ou no cinema estrutural. O próprio Paxton tinha uma relação de proximidade com Robert Rauschenberg – participou nas suas performances extravagantes e Rauschenberg nas de Paxton –, uma relação que a exposição ignorou. O vídeo era projetado numa parede que dividia o espaço. Não deixa de ser interessante que, pelo facto de estarmos a ver a performance em registo vídeo, o andar dos caminhantes parecia perder a sua qualidade de movimento quotidiano.

          A segunda sala focava-se na anarquia e mostrava arquivos vídeo de experiências de improvisação coletiva, nos anos 1970, pelo grupo Grand Union, nas quais os participantes seguiam uma ideia de movimento sem líder ou dramaturgia. A par disto, expunha-se Air/Beautiful Lecture (1973) — exploração de uma energia comum ao sexo e ao ballet, que combina imagens de um filme pornográfico com excertos do bailado Lago dos Cisnes e a emissão ao vivo do primeiro discurso de Nixon após o escândalo Watergate. A qualidade destes vídeos também poderia ser considerada anárquica e levantava a questão da necessidade de mostrar materiais que muito dificilmente têm leitura.

          A terceira sala permitia ao visitante entrar em contacto com um grande tapete onde todos os domingos se podia praticar C. I. ou, nos restantes dias, ver, deitados no chão, uma entrevista com Paxton, cuja voz meditativa se espalhava pelo espaço da exposição, ou ainda ler todas as edições da Contact Quarterly – a revista dedicada ao C. I.

          As quarta e quinta salas, destinadas à gravidade, tinham uma estrutura que permitia dormir a sesta — mais uma das “invenções” de não-movimento de Paxton – e escutar a sua voz a ler o seu livro Gravity. O outro lado da sala era dedicado à quietude, com uma homenagem à investigação de John Cage sobre o silêncio e às ideias de Paxton sobre estar de pé imóvel enquanto “pequena dança”. No meio da sala, havia vários leitores mp3 a distâncias diferentes do solo, onde se podia ouvir Paxton a guiar-nos pela experiência de gravidade na postura ereta, embora para as pessoas mais altas e que quisessem escutar a versão inglesa não fosse possível uma postura completamente ereta.

          A sexta sala era dedicada à desorientação com uma projeção, no teto, de Phantom Exhibition, uma instalação vídeo que retratava fisicamente o sentimento da gravidade, e de Material for the Spine, uma pesquisa sobre a relação entre a sensação interna do corpo e o desenho do corpo em movimento, lançada em DVD-Rom em 2008, e para cuja visualização completa seria preciso um dia inteiro.

          A sétima sala mostrava-nos trabalhos a solo de Paxton, entre os quais, numa das paredes, a peça improvisada Variações Goldberg, sobre a interpretação de Glenn Gould da obra de J. S. Bach, e outros solos que passavam em televisores numa outra parede. Uma boa forma de mostrar trabalhos de diferentes períodos em simultâneo e que permitia compreender o desenvolvimento do movimento de Paxton ao longo do tempo, mas, por outro lado, não era fácil olhar para cada vídeo como um trabalho único.

          A última sala era sobre a relação, com pessoas e com a natureza, e partia da ideia de composto – improvisação, para Paxton, é um composto cultural. Mostrava-se a instalação vídeo e áudio Conversations in Vermont, uma conversa editada a partir de entrevistas de Paxton e Lisa Nelson feitas por Tom Engels e Myriam Van Imschoot, e uma documentação da performance “PA RT” — um solo partilhado por dois, com Nelson, uma colaboradora próxima de Paxton-—, com música de Robert Ashley. Como culminar da partitura de movimento para o visitante, podíamos ver isto sentados em dois cadeirões confortáveis.

          Que amostra mais abrangente da obra de Paxton e que tarefa complicada esta de a expor. Quantas horas ou dias era suposto o visitante passar nesta exposição para poder experienciar e ver todos os materiais e trabalhos? Isto faz-nos pensar em questões éticas e, no que diz respeito à qualidade de algumas das obras, em questões estéticas que acompanham a organização de uma exposição destas.

          Claire Bishop escreveu na sua obra dedicada à Arte participativa e política do espectador que “é praticamente impossível compreender a arte participativa a partir de imagens: fotografias casuais de pessoas a falar, a comer, a frequentar um workshop […] dizem-nos muito pouco, quase nada, sobre o conceito e o contexto de um dado projeto. Estas imagens raramente conseguem fazer mais do que fornecer uma prova fragmentária e nada aportam da dinâmica afetiva que leva os artistas a realizar estes projetos e as pessoas a neles participarem”ii.

          Uma exposição, em geral, é uma forma de arte com uma narrativa própria criada para o público. Hoje em dia, a principal agenda das instituições culturais por todo o mundo é trabalhar com o público. Teria sido talvez mais fácil experienciar a exposição de Paxton com a ajuda de mediadores que fossem capazes de criar uma situação de diálogo. Ou incorporando performances reais durante todo o tempo da exposição – dado que as obras de Paxton se sustentam na corporalidade, na temporalidade, no suporte que é o corpo.

          A sensação com que se fica no final é que a prática anticonvencional de Paxton foi representada de uma forma muito formal e arquivística. As artes performativas são, sem dúvida, o suporte principal da arte contemporânea e representam uma prática de consumo não-objetual. Anne Imhof, Tino Sehgal, Alexandra Pirici, entre outros, mostram ações ao vivo como obras numa exposição, manifestam a temporalidade como uma forma de arte institucional. Mas como não desvalorizar obras de arte performativa reproduzidas mecanicamente em materiais de arquivo? Essa questão mantém-se ainda hoje. É como O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse, com regras tão complicadas que não se conseguem explicar por palavras. É o jogo do intelecto, que corresponde, no fundo, à prática de Paxton, e também ao jogo de expor dança num museu: o material é demasiado efémero e as regras demasiado irracionais. Mas, ainda assim, qualquer pessoa (bem-intencionada) teve a oportunidade de mergulhar no oceano de dança (sem dança) de Steve Paxton ou, pelo menos, de experienciar o facto de “[Steve estar sentado ali ao lado.]”

          A autora gostaria de agradecer a Sérgio Miguel pelo apoio “existencial” durante a escrita deste artigo.

          Texto traduzido do original em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia da Silva.

          i Vogel, C. “A Buddha of Modern Dance“, New York Times, 22/10/2017, Section AR, p. 7.

          ii Bishop, Claire. Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship. Verso, London/New York, 2012, p. 5.

          EN

          “The Glass Bead Game” or how to exhibit dance,
          based on the exhibition “Steve Paxton: Drafting Interior Techniques”
          curated by Romain Bigé and João Fiadeiro at Culturgest, Lisbon

          What is dance? What is choreography? What is the difference between dance and choreography? When does an act of eating a sandwich become a dance or ‘doing-nothing’ recognises as a performance?

          These and many other questions come to mind while thinking on the oeuvre of Steve Paxton – dancer, performer, teacher, movement philosopher, who walked through the history of dance from modern to post-modern. Starting his career at the late 1950s, he danced with Merce Cunningham and, together  with the collective Judson Dance Theatre shaped the transition of dance into an expanded practice by reconsidering the dance medium itself. It’s also symptomatic of art in the 1960s that moved from producing objects to ephemeral performances and videos, and entailed a transition of ’dance’ from stage to art spaces.

          “I am my own medium.”i

          Throughout all his art practice, Paxton inquired what are the minimum conditions for a dance to happen, when does “quotidian movement” become dance, he examined the body and its function, ideas of stillness, he incorporated sports, simple gestures, giving lectures, walking, running into dance, created two practices as “Contact Improvisation”(C.I.) that was spread around the world and started to live its own life and more meditative “Material for the Spine”.

          To this dance-icon and six decades of dance history was dedicated the program “Steve Paxton: Drafting Interior Techniques” curated by Romain Bigé – French philosopher and dance improvisor, and João Fiadeiro – choreographer, performer, teacher, and one of the main actors for sharing C.I. in Portugal in late 80s.

          “Drafting Interior Techniques” consisted of an exhibition, a series of lectures, performances, dance workshops and a book. It’s a notable show as it was the first retrospective look at Paxton’s work and legacy. In addition, it raised fundamental questions on how to exhibit “dance” in the museum, and how is it possible to represent bodily affects of dance without dancers or what could archive of movement practice provide to the audience.

          During the book presentation, Bigé and Fiadeiro answered on what was the primal idea behind the structure of the exhibition that they tried to construct a “dance mode” for the audience, a particular movement from one room to another that could physically introduce to Paxton’s practice. I hope that attentive viewers read the brochure with this instruction and didn’t conceive a two and a half hours video projection without a sit as a non-humanistic exhibition approach.

          The exhibition consisted of eight rooms that chronologically displayed the history of Steve Paxton’ oeuvre. The first room was dedicated to a study in pedestrian movement. At the entrance was presented a video installation based on Satisfying Lover (1967) in which 42 people crossed a space walking. Focusing on simple shapes  was paradigmatic in the 1960s as we see in minimal art or structural films. Paxton himself entertained a  close relationship with Robert Rauschenberg, being part of his zany performances, and having Rauschenberg appear on his too — relation which was somehow absent of the exhibition. The video was projected on a wall that architecturally cut two rooms and created a physical intervention in the space. The interesting thing was that as being recorded on the video this performance somehow lost the natural essence of the “walking” as quotidian movement.

          The second room focused on anarchy and showed video archives from 1970s experiments of The Grand Union collective improvisations, in which participants followed an idea of movement existence without a leader nor dramaturgy. In addition, there was a documentation of Air/Beautiful Lecture (1973) — an exploration of energy common to sex and ballet which superimposes a pornographic movie with a video from Swan Lake and the live broadcast of Nixon’s first Watergate speech. The quality of these videos could also mark as anarchic and it rises a question on the need for showing materials that could be barely read.

          The third room introduced the audience to contact with a big mat where every Sunday everybody had a chance to practice C. I. or during the other days to watch an interview with Paxton, laying on the floor, whose meditative voice spread around the whole exhibition, or to read all editions of Contact Quarterly – the magazine dedicated to C. I.

          The fourth and the fifth rooms dedicated to gravity with a construction allowing to have a nap — another Paxton’s ‘invention’ of non-movement and to listen to the recordings of readings of his latest book Gravity. The other side of the hall was dedicated to stillness with a homage to John Cage’s investigation on silence and Paxton’s ideas of standing as a small dance. In the middle of the room, several players were installed in a different distance from the floor where you could listen to Paxton guiding you through the experience of gravity in the erect posture, but if you are tall and need to listen to English your position is slightly not erect.
          The sixth room was dedicated to disorientation with an illusive video projection on the ceiling of the Phantom Exhibition, that physically depict the feeling of gravity; and to Material for the Spine – a research on the relationship between internal body sensation and the design of the moving body, that was released on DVD-Rom in 2008, and it would definitely take a day to watch it all.

          The seventh room introduced solo works by Paxton including his improvised piece Goldberg Variations on the performance of Glenn Gould of J.S. Bach’s composition on one wall, and several solo performances showing on TVs on the other. It was an apt approach to show performances from different periods simultaneously as it provided an understanding of Paxton’s movement development through time, but on the other hand, it was hard to experience each video as a complete hermetic work.

          And the last room was about relation, with people, nature, about an idea of compost — as the improvisation is a cultural composting for Paxton. There was the video/audio installation “Conversations in Vermont” edited over Paxton and Lisa Nelson’s interviews by Tom Engels and Myriam Van Imschoot and documentation of the performance “PA RT” — making solo in a duet with Nelson, who has been a very close collaborator of Paxton over the past decades — to music by Robert Ashley. As a final part of the dance score for the audience’s movement, it finished with two comfortable chairs to watch it.

          What a comprehensive world of Paxton’s oeuvre was shown, what a complicated task to exhibit it was made. How many hours or days should the audience spend in the exhibition to experience and to see all the materials and works? I think this question shifts us to ethical, and, in the sense of the quality of some works, to aesthetical questions on how to organize an exhibition.

          Claire Bishop wrote in her dedicated to Participatory Art and the Politics of Spectatorship that “o grasp participatory art from images alone is almost impossible: casual photographs of people talking, eating, attending a workshop… tell us very little, almost nothing, about the concept and context of a given project. They rarely provide more than fragmentary evidence and convey nothing of the affective dynamic that propels artists to make these projects and people to participate in them.”ii

          Exhibition, in general, is an art form of a particular narration created for the audience. Nowadays the main agenda of art institutions around the world is to work with the audience. Probably it would have been easier to experience Paxton’s show with the use of mediators who could create a situation of dialogue with the audience. Or to incorporate real performances during the whole time of the show – as Paxton’s works are based on corporality, temporality, on the medium that is the body.
          In the end, the sensation is that Paxton’s practice which is against all conventions was represented in a very formal archival way. Live art or performance is definitely the main form in contemporary art nowadays and it represents non-object-consuming practice. Anne Imhof, Tino Sehgal, Alexandra Pirici and etc. state live actions as an exhibition works, manifest temporality as an institutional art form. But what to do with live art works that were produced outside that frame without devaluing them by mechanical reproduction of all the archival materials that were exhibited. This is still the question. This is like Hesse’s “The Glass Bead Game”, which rules are so complicated that they can’t be articulated by words. It’s the game of intellect, which is basically what Paxton’s practice is about, and what the game of exhibiting dance in the museum is as well: the material is too ephemeral and the rules are too irrational. B, but anyway, during this exhibition everyone (who would have a purposeful intention) had a chance to dive into the dance (without-dance) ocean of Steve Paxton or at least experience that “[Steve is sitting on the side.]”

          The author wishes to thank Sérgio Miguel for the existential support while writing this article.

          Carlos M. Oliveira & Sílvia Pinto Coelho Retornos de Sísifo

          A exaustão da RE.AL e outras danças  

           

          Um mês de actividades primorosamente concretizadas em comunidade, o evento Des/Ocupaçãoi correspondeu ao luto alargado pelo fim de um espaço que João Fiadeiro, fundador e director artístico da RE.AL, promete ser o último da estrutura. Em Julho passado, o contrato de arrendamento do edifício onde a RE.AL funcionou entre 2004 e 2019, no n.º 55 da Rua do Poço dos Negros, em Lisboa, terminou sem possibilidade de renovação, muito devido à epidemia de especulação imobiliária que tomou conta da cidade. Na sequência de quase trinta anos de actividade ininterrupta, durante os quais a RE.AL saltou de instalações em instalações na área metropolitana de Lisboa, a decisão de não procurar um novo espaço vem na senda da perda, em 2015, dos apoios sustentados da actual Direcção-Geral da Artes, com que a RE.AL contou desde cedo na sua trajectória. Estrutura de produção, criação e investigação em dança, coreografia e artes contemporâneas, produtora de comunidade, formadora de artistas, abrigo e lugar de culto fundamental na cena actual, a RE.AL viu-se obrigada a fechar um ciclo de vida, por insustentabilidade económica. E é precisamente porque o ciclo da RE.AL que agora finda diz respeito ao fim de uma certa vida comunitária que podemos olhar para a sua história e recente exaustão como um caso paradigmático do desfasamento entre o percurso dos artistas e das artes contemporâneas em Portugal, por um lado, e o percurso das políticas culturais do Estado, por outro. 

          Num texto de 2010, “Caixa de Ar, ou Carta Aberta à Minha Geração”ii, Fiadeiro percorre a trajectória da RE.AL através dos espaços por onde esta passou e desenvolveu actividades, percorrendo também a história das políticas culturais do Estado português nas últimas décadas, não sem desvelar uma crítica sustentada à sistemática falta de apoio, cooperação e visão estratégica por parte dos sucessivos governos. Antecipando um novo diagnóstico, a carta termina com o repto: “Voltamos a falar em 2020.” O facto de a RE.AL ter perdido a sua sustentabilidade antes sequer de chegarmos a 2020 indica que as críticas de Fiadeiro não só tinham fundamento, como as condições que visavam se deterioram ainda mais. É deste ponto, do ponto em que o fim de muita coisa veio mais cedo do que o esperado, que podemos então responder ao repto do coreógrafo, e falar sobre a força política da coreografia na sua relação com os poderes de Estado. 

          Uma das reivindicações habituais de Fiadeiro para a prática das artes, mas mais alargadamente para a vida cultural e política de um país, recai sobre a capacidade de inscrição dos cidadãos no desenvolvimento das instituições do Estado democrático a que pertencem. A inscrição é dupla: é simultaneamente uma inscrição na história, pela produção de regimes simbólicos paradigmáticos de uma época, e uma inscrição nas instituições formadas com e a partir dessa história. Na carta citada, o coreógrafo reconhece que dar aulas e colaborar com pessoas que não conhecem a história recente começou a preocupá-lo, mas assume também que a ideia de desaparecer da história é simultaneamente libertadora e assustadora. “‘Libertadora’ porque me permite olhar para o mundo sem o peso morto da memória e ‘assustadora’ porque não é fácil navegar à vista, sem as coordenadas que os restos e os rastos que vamos deixando pelo caminho nos fornecem”, escreve. Intencionalmente ou não, Fiadeiro faz aqui ressoar uma das problemáticas dos estudos de dança: por um lado, a definição de performance enquanto algo que acontece simultaneamente ao evento da sua própria desaparição; por outro, a definição de performance enquanto algo que existe como um sistema de enunciados, dos quais todos os registos fazem parte, e com os quais o passado informa o presente. A primeira definição implica necessariamente um sentido melancólico do efémero, precisamente porque neste sentido nada se fixa nem se inscreve. Uma arte do presente, com um peso de perda mas sem o peso de um nexo histórico. A segunda definição implica este mesmo nexo, enquanto sistema de enunciados que perdura para além do evento performativo. Um presente feito de histórias, não sem a singularidade do evento que, num determinado momento e de uma determinada maneira, as entretece. 

          O fabrico da memória enquanto constituição do evento performativo passa, então, pela dimensão de inscrição que permite ao presente permanecer como passado e ao passado informar o presente. Dir-se-ia que, mesmo que muito do que se dança escape a qualquer captura, é da responsabilidade da comunidade da dança assegurar a produção de memória, e é da responsabilidade do Estado cumprir com o apoio devido a esta produção, caso a comunidade da dança participe nos processos de formação das instituições pelas quais se possa vir a inscrever. A responsabilidade é recíproca e é com a reciprocidade entre partes que o direito (de Estado) se forma. A participação da comunidade da dança nos processos de formação da sua memória e das instituições que a veiculam é, por isso, condição necessária para que as suas performances (i.e. os seus enunciados e discursos) não desapareçam com o tempo e para que a comunidade, enquanto tal, possa existir num presente histórico.  

          Se considerarmos Para a Mónicaiii (2002) o evento que assinala simbolicamente o fim de um paradigma da Nova Dança Portuguesa (na qual se inclui Fiadeiro) – enquanto produção afectiva que se concretiza a partir da própria comunidade –, activamos a memória de um começo marcado pela Maratona para a Dança (1993). Isto é discutível, uma vez que a possibilidade de um movimento de dança como o dos anos 90 está intimamente ligada a um conjunto de vontades do Estado em vender “cultura portuguesa” na Europa comunitária, como se pode depreender da sequência de eventos: Europália91Lisboa94 Capital Europeia da Cultura, EXPO’98Porto 2001, etc. Mas este período coincidiu com uma série de reivindicações de modos de vida que tornassem a regularidade e a estruturação do campo artístico possível, para além da lógica dos eventos festivos. A alegria e urgência com que, por exemplo, em 1993, se formou a Associação Portuguesa para a Dança (APPD) – numa espécie de frenesim de reuniões que aproveitaram o balanço dos acontecimentos recentes e a proximidade com o sujeito politizado que vivia o pós-25 de Abril – pode ter contribuído para a formação de alguns artistas “políticos na sua arte”, em lugar de artistas que respondem a programas de financiamento, o que parece ser hoje inevitável. A APPD, sendo activada pela urgência criativa dos artistas que consolidaram uma ideia de Nova Dança Portuguesa, era um corpo artístico-político que se foi atenuando. 

          Não será fácil nem justo assinalar onde começou a despolitização da força artística deste movimento, mas poderá ter que ver com uma certa paz de financiamento por concurso, sempre desejado e reivindicado, que foi sendo acompanhado por subtis directivas europeias (temas), subtis burocratizações e lógicas de satisfação do público-alvo (“consumidor satisfeito”), subtis lógicas de programação e de curadoria, subtis polarizações do fosso entre jovens sempre jovens, novos cada vez mais novos, e consagrados cada vez mais consagrados. Subtilezas que complicaram a vida a quem não se revê em nenhum dos grupos, ou a quem sente a impossibilidade de propor trabalho sem “segundas intenções” – i.e. sem projecto pedagógico, sem público-alvo, sem residência artística, sem relação com dramaturgistas reconhecidos, sem relação com temas do ano, etc. – como perda de capacidade, autonomia e liberdade artísticas. Para além dos concursos, as lógicas de financiamento locais e as lógicas curatoriais vigentes pela Europa fora alteraram o modo operativo do sector, sendo cada vez mais difícil escapar àquilo que pode ser visto como uma “infantilização do artista”, que quer trabalhar mas que continua sujeito a circuitos e modos de fazer pré-definidos e controlados por grandes estruturas de produção e programação. 

          A inscrição reivindicada deve então ser entendida em termos estritamente artísticos e não em termos de uma economia de produção, criação, difusão e recepção das artes, susceptível de ser controlada por poderes exteriores à prática artística ela mesma. Estes poderes vieram com o tempo a concentrar-se nas figuras do produtor e do programador, já não representando estritamente os interesses dos artistas face ao Estado, mas sim os interesses das próprias actividades de produção e de programação. De tal modo que a justificação do exercício estético de partilha do sensível diante daqueles que se colocam no papel de autoridade no assunto se tornou um mecanismo de poder difícil de quebrar e politizar. Por contraste, enredado num sistema que pede à partida aquilo de que não se necessita ainda – i.e. residência artística, workshop, tema, práticas de inclusão e acessibilidade, número de espectadores, parcerias institucionais, etc. –, o produto tende a ter em conta o mercado (o público, os programadores e as modas) e o artista tende a ceder à lógica que lhe permite sobreviver dentro do estatuto de “artista minimamente visível”. 

          As bolsas concedidas à geração de jovens bailarinos e coreógrafos da Nova Dança Portuguesa, que durante as décadas de 1980 e 1990 foram estudar para Nova Iorque e outras cidades, ajudaram a propulsionar uma pequena revolução no panorama, por um lado provinciano – de corpos saídos das técnicas clássicas e modernas ensinadas no Ballet Gulbenkian, na Companhia de Dança de Lisboa ou nos estúdios de ballet e dança jazz – e, por outro, herdeiro da alegria e dos ideais de liberdade veiculados no pós-25 de Abril. No final dos anos 90, no ministério de Manuel Maria Carrilho, havia dinheiro europeu. E para a geração imediatamente a seguir houve prémios jovens (Jovens Criadores, Clube Português das Artes e Ideias, Centro Nacional de Cultura), prémios revelação (prémio José Ribeiro da Fonte, IPAE) e prémios consagração (prémio Almada Negreiros). Forma-se o IPAE e abrem os concursos: em 1999 e 2000, por exemplo, os concursos contemplaram pessoas muito jovens, sem lhes chamar “jovens” e sem controlar quem fazia o quê com o dinheiro. Em 2001, as mudanças bruscas introduzidas por José Sasportes foram alvo de grandes polémicas e as suas consequências foram tornando-se cada vez mais irreparáveis. A constante reformulação dos regulamentos dos concursos acompanhou várias equipas, que foram exigindo cada vez mais especificações e contas, até chegarem ao ponto em que estão hoje. 

          Na exigência de uma produção mais profissional, começaram a proliferar pequenas estruturas: EIRA, ACCCA, Vo’Arte, Ninho de Víboras, Devir, Jangada de Pedra, Bomba Suicida, Máquina Agradável, Real Pelágio, AADK, Mezzanine, etc. Algumas crescem logo, como O Rumo do Fumo, que nasce já grande, pois o trabalho de Vera Mantero é reconhecido internacionalmente, ou a Bomba Suicida, que teve um investimento inicial e interacção colectiva muito dinâmicos. Há estruturas que crescem quando abraçam a relevância e a proliferação de centros de pedagogia e animação nos teatros e autarquias. Há outras que fecham e entram em latência assim que os concursos perdem o ritmo. Há estruturas que já nem sequer concorrem pois concorrer implica ter um produtor que se ocupe dos concursos, relatórios e restantes provas e formulários, i.e. “precisam de dinheiro para pagar uma pessoa que trabalhe na justificação desse dinheiro”. E há muitas pessoas que um dia se consideraram artistas mas que não se sujeitaram ao sistema: perde-se uma certa “espontaneidade do fazer poético”, de investigar, de pensar uma “arte”, um “ofício”, um “campo”, o pensamento singular de um meio. Neste contexto, cresceu a REDE (2004), uma associação de estruturas de dança, que contrasta com os princípios da APPD, uma associação de pessoas (artistas, estudantes, etc.). A diferença pode parecer subtil, mas a representatividade e a capacidade de implicar politicamente a comunidade em reunião de pares artistas-produtores é relevante. 

          É possível perceber que o projecto político da dança contemporânea portuguesa esboçado nos anos 1990 se foi fracturando com a crescente sujeição das políticas de Estado à formação (ou reforma) de um mercado para a mesma. Fracturação que também se verificou nas próprias políticas, não só porque são escassos os bons exemplos de governação, mas também porque a instabilidade governamental se normalizou, com frequentes mudanças nas agendas de gestão (para não falar da mísera parcela do Orçamento do Estado para a Cultura, face a mercados cada vez mais ferozes). A reciprocidade entre as instituições de Estado e a comunidade artística necessária à inscrição da memória e legado da segunda serve, em rigor, tanto para a criação como para a não criação de paradigmas culturais. A responsabilidade é de parte a parte, e porventura a fraca capacidade que a comunidade da dança contemporânea tem actualmente de se fazer representar na governação do Estado merece uma revisão dos seus modos de organização. Afinal, as associações culturais sem fins lucrativos são associações de facto, ou são apenas a solução possível para evitar que as despesas e receitas de produção não entrem na declaração às Finanças de quem se dá ao trabalho de criar mundos e comunidades? Há dissenso entre os artistas na criação emancipatória da sua realidade colectiva, ou apenas a resolução de questões práticas que colocam em marcha mais um evento, mais uma peça, mais um “produto”? Há desejo colectivo de inscrição, ou apenas individualismo de produção e consumo? 

          Talvez a colecção de recentes encerramentos – do CENTA, da Bomba Suicida, do Núcleo de Experimentação Coreográfica, do Teatro Maria Matos, da Mezzanine, entre outras – pudesse ter desfechos performativos, tal como aconteceu na Des|Ocupação da RE.AL, de modo a que os fins se inscrevam na nossa memória, para que não esqueçamos de onde vimos, para que não repitamos os mesmos erros, para que possamos reactivar forças estético-políticas. Talvez performar os fins que por aí vão (os portugueses, os brasileiros, os globais) seja um modo de não olharmos para o lado e de convivermos através dos tempos com os fins que sempre virão. Talvez possamos performar fins como modo de viver e criar coletivamente o presente contínuo, continuamente engendrando encontros, com o tempo próprio do encontro, de baixo para cima, das pessoas para as comunidades, das comunidades para o Estado, não respondendo apenas a directivas de entretenimento, de programadores, ou de necessidades políticas europeias.  

          Em relação à RE.AL, o que nos dá alento é a noção de que o fim de um projecto não corresponde ao fim da soma de todos os afectos investidos na sua construção; há um excedente de potências de relação geradas ao longo de anos e consolidadas na cerimónia performativa da sua finalização. Des|Ocupação pode bem ser o começo de um outro activismo. 


          i Des|Ocupação, precedido de Arqui(vi)vo, foi o evento que a RE.AL organizou em Julho de 2019 para se despedir do edifício que lhe servia de sede em Lisboa, e de todo um ciclo de trabalhos alicerçados na presença da estrutura na cidade ao longo de três décadas. 


          ii Fiadeiro, J. (2010). Caixa de Ar, ou Carta Aberta à Minha Geração, folheto publicado para a comemoração dos 20 anos da RE.AL. 


          iii Para a Mónica (7 de Abril de 2002, Teatro Maria Matos), evento de homenagem à coreógrafa e curadora Mónica Lapa, então recentemente falecida, proposto por Cristina Santos e Aldara Bizarro. Integrou um programa de 12 horas com 45 propostas artísticas. Foi um acontecimento com características semelhantes às da Maratona para a Dança (Abril de 1993, Teatro Maria Matos), organizado por Mónica Lapa e Cristina Santos. 

          Carlos Azeredo Mesquita Luísa Saraiva Aconselhamento para Danças Futuras

          Aconselhamento para danças futurasi

          Há algo em dançar danças que não nos pertencem que elimina o problema da identificação num plano individual e transporta a questão da criação para uma dimensão coletiva. O foco passa a estar na memória daqueles que dançam e na riqueza em dançar algo que nos é estranho (estranho porque é estrangeiro, tem origem na subjetividade do outro). Na impossibilidade de transmitir aquilo que não nos pertence, o convite é observar os processos que nos permitem ser múltiplos. A propriedade do movimento é dissolvida em todos os possíveis corpos que explicitam o trabalho coreográfico e reconhece as danças-fantasma que habitam os corpos dos bailarinos, pela educação, pela aprendizagem, pela repetição.

          A

          Este é um exercício de imaginação guiada. Vou pedir-te que imagines uma performance em que tenhas dançado ontem à noite. Pensa durante uns momentos, e projeta-te nesse passado fictício, visualizando os detalhes que compõem a peça em que dançaste.

          Esta visão de uma peça imaginada deve refletir elementos da tua identidade artística. Deve considerar desejos, ambições e interesses, incluindo detalhes sobre espaço cénico, som, tempo, fisicalidade e a perspetiva do público. Tenta pintar na tua cabeça uma imagem que seja o mais clara possível.

          Vou fazer-te uma série de perguntas desenhadas para te ajudar a compor uma visão de uma dança que valida e ecoa as tuas preocupações artísticas. Trata-se de uma dança com a qual te identificas artisticamente.

          Gostaria que respondesses às perguntas de forma fluida e livre. Responde com as primeiras imagens ou ideias que te venham à cabeça. A descrição pode ter o nível de detalhe que quiseres. Este exercício refere-se a uma memória fictícia e fantasiosa. A dança de que vamos falar é uma dança com a qual te identificas e que ecoa com as tuas preocupações e interesses artísticos.

          1. Por favor, começa por observar o espaço. A peça decorre num espaço interior ou ao ar livre?

          2. Podes descrever o espaço?

          3. Como estava organizado o público?

          4. Quantas pessoas estavam no público?

          5. Considerando a tua proximidade com o público, conseguias ver as caras das pessoas?

          6. Como “entraste” no espaço de apresentação?

          7. Podes descrever a luz? Que tons, cores e intensidade é que a luz tinha?

          8. Havia um cenário ou cenografia?

          9. Havia adereços?

          10. Havia música ou som?

          11. Estavas sozinhx no espaço de apresentação?

          12. Quantos performers faziam parte da peça? Que género(s) representavam?

          13. O que tinhas vestido?

          14. Como estava o teu cabelo?

          15. Como descreverias a coreografia?

          16. Como era o movimento?

          17. Sobre o que era movimento?

          18. Foram usadas ferramentas coreográficas para criar o movimento? Quais?

          19. A peça tinha uma base teórica/filosófica?

          20. O movimento está associado a um estilo ou vocabulário específico, ou há alguma terminologia que possa ser usada para o descrever?

          21. Havia interação entre ti e os outros performers?

          22. Transpiraste?

          23. Quanto tempo durou o processo de criação da peça?

          24. Havia interação entre ti e os espectadores?

          25. Como descreverias o olhar?

          26. Como era a tua expressão facial?

          27. Usaste a voz?

          28. Gostaria que me mostrasses um excerto desta performance, incluindo movimento (e voz, se for caso disso), com a duração que quiseres.

          29. Quem é o autor desta peça?

          30. Qual é a duração da peça?

          B

          Vamos agora repetir o exercício. Trata-se de, novamente, imaginar uma performance fictícia, mas desta vez o enunciado será um pouco diferente.

          Este é um exercício de imaginação guiada. Vou pedir-te, mais uma vez, que imagines uma performance em que tenhas dançado ontem à noite. Pensa durante uns momentos, e projeta-te nesse passado fictício, visualizando os detalhes que compõem a peça em que dançaste.

          Esta visão deve refletir uma dança que, na generalidade, não está em sintonia com as tuas preocupações artísticas e que talvez não tenha sido o tipo de trabalho que tivesses preferido.

          Este exercício refere-se a uma memória fictícia e fantasiosa. A dança de que vamos falar é uma dança com a qual, na generalidade, não te identificas e que não valida ou ecoa as tuas preocupações artísticas. Trata-se de uma peça em que participaste, mas talvez preferisses não ter participado.

          1. Por favor, começa por observar o espaço. A peça decorre num espaço interior ou ao ar livre?

          2. Podes descrever o espaço?

          3. Como estava organizado o público?

          4. Quantas pessoas estavam no público?

          5. Considerando a tua proximidade com o público, conseguias ver as caras das pessoas?

          6. Como “entraste” no espaço de apresentação?

          7. Podes descrever a luz? Que tons, cores e intensidade é que a luz tinha?

          8. Havia um cenário ou cenografia?

          9. Havia adereços?

          10. Havia música ou som?

          11. Estavas sozinhx no espaço de apresentação?

          12. Quantos performers faziam parte da peça? Que género(s) representavam?

          13. O que tinhas vestido?

          14. Como estava o teu cabelo?

          15. Como descreverias a coreografia?

          16. Como era o movimento?

          17. Sobre o que era movimento?

          18. Foram usadas ferramentas coreográficas para criar o movimento? Quais?

          19. A peça tinha uma base teórica/filosófica?

          20. O movimento está associado a um estilo ou vocabulário específico, ou há alguma terminologia que possa ser usada para o descrever?

          21. Havia interação entre ti e os outros performers?

          22. Transpiraste?

          23. Quanto tempo durou o processo de criação da peça?

          24. Havia interação entre ti e os espectadores?

          25. Como descreverias o olhar?

          26. Como era a tua expressão facial?

          27. Usaste a voz?

          28. Gostaria que me mostrasses um excerto desta performance, incluindo movimento (e voz, se for caso disso), com a duração que quiseres.

          29. Quem é o autor desta peça?

          30. Qual é a duração da peça?


          i Este exercício foi desenvolvido como parte do processo de criação da peça I know it when I see it (2019) em colaboração com Frances Chiaverini, e que envolveu entrevistar profissionais da dança com o objectivo de explorar desejos e interesses associados a peças em que dançaram ou poderiam ter dançado. Com esta premissa criámos um guião de entrevista para evocar descrições de danças imaginadas. Entrevistámos 45 bailarinos profissionais de 17 nacionalidades entre os 20 e os 40 anos que trabalham em diversos contextos denominados como “dança contemporânea”. Este exercício é repetido duas vezes com indicações contrárias. De um ponto de vista psicológico, a dicotomia entre as duas versões da entrevista permite aceder a um leque diversificado de associações, estereótipos, preconceitos, julgamentos e afiliações.

          Duarte Amado Destiny’s Child

          Em quase todas as divisões há uma televisão que está ligada 24 horas por dia. Simplesmente tenho necessidade delas. Se todas se avariassem, seria a morte. Ficaria isolado de tudo. Então, já só me restaria a arte.
          Robert Rauschenbergi

          Pode delimitar-se pela negativa “programa de televisão”, todo o conteúdo não essencialmente informativo, desportivo ou de ficção. Nesta aceção residual, um filme, um jogo de futebol ou um noticiário não seriam um “programa” em sentido próprio. Atravessando-seii entre a “realidade real” e a “realidade fictícia”, o termo relegaria as restantes linhas de conteúdos para o domínio genérico do “entretenimento” ou “variedades”.

          Inicialmente sem autonomia de “formato” (se descontarmos as cardio-coreografias de Jane Fonda nos anos 70), a dança foi integrada como modo de suspensão-desapercebida da continuidade lúdica televisiva. Separadores-humanos ou screensavers em concursos, talent-shows, magazines, formatos musicais ou acompanhante de cantantes reféns do peso inanimado de instrumentos, este corpus em espasmo intermitente permitia aos programas acederem a uma sucessão formal ficcionada a partir do imperativo de fluidez televisiva, confrontada com os limites espácio-temporais e de alternância entre blocos que compunham um mesmo programa (agravado pela adrenalina escatológica do dispositivo “em direto”).

          Degenerescência da “economia da atençãoiii”, equivalente ao estribilho de rádio, “momento musical” ou publicitário, a dança paradoxalmente protagoniza e inscreve-se na não-inscrição do programa a haver por direito próprio: prolongamento do que antecede, retardamento do que antecipa, disruptiva do que seguirá – amortecendo variações comprometedoras da realidade ficcional vs. real (sorteios “lá para casa” que sucedem rubricas policiais, estórias de superação, entrevistas “de vida”; cancros, culinária, homicídios, 760 100 500, obstipação, prémio em cartão) –, especulando alegria no espectador confinado por natureza do meio ao sedentarismo.

          Se já assumia a condição de prótese, o ocaso e a fadiga do reality show apropriaram-se de outras disciplinas para ultrapassar a contingência do formato depender da direção pessoal dos seus participantes e da relevância (eventual) das suas afirmações e enredos, vítima da sucessão de edições que permitiram a quem via projetar um perfil sociopsicológico de concorrente-tipo, frustrando a possibilidade de genuína adesão à eterna proposta do jogo da vida real.

          Nos novos formatos, a dança tomaria uma consciência telegénica de si, usufruindo mediaticamente da pretensa autenticidade gerada pelo desconforto ou virtuosismo, competitivo ou não, dos participantes.

          Assume uma dupla função nos formatos emuladores da realidadeiv. Aos anónimos que competem permite-lhes aceder às recompensas do capitalismo afetivo: domínio sobre uma noção de criatividade-fabril semanalmente renovada, mérito oriundo de uma aptidão executória, tradução económica do desempenho, visibilidade (as “portas que se abrem”), superação física, pessoal (quando não mesmo familiar), o corpo juvenil predestinado (“antes de andar já dançava”), o “artista emergente”, a validação do “sonho” – gerando no processo momentos de advertido drama e inadvertida comédia.

          Quando famosos, a participação expõe-nos às suas (in)capacidades denotativas, “humanizando-os” por meio daquilo que não se sabendo ou podendo dançar, dança – proporcionando advertida comédia e “inadvertido” drama.

          Os jurados deslocam-se da fluência artística e coreográfica para o campo da hiperafetividade operativa, acudindo ao drama social da compreensãov da dança (“Hoje senti que não estavas em palco”; “A tua entrega”; “És muito poderoso”; “O teu lugar é no palco”; “És um animal de palco”; “Estás a crescer na maturidade”; “Não senti que estivesses a dar tudo”; “Já não me surpreendes”; “Qual é o teu maior sonho?”; “Tens emagrecido imenso e isso é muito bom para a tua carreira”; “Achas que sabes dançar?”; “Ficam os dois muito bonitos em cima do palco”; “Anteriormente brilharam, mas agora arrasaram”; “Para o público lá em casa perceber, isto que tu fizeste…”).

          Dos concorrentes espera-se que apliquem um princípio de expressão à fluência técnica de partituras e figuras parqueadas em “estilos” e “géneros” de dança (o jurado que sorri e insiste depois de questionar o candidato sobre o género que acabara de dançar, perante a singela resposta “– Baile”; “Lady Gaga é um tcha tcha tcha”; “Esperava outra coisa mais tradicional”; “Eu gosto sempre de coisas assim conceptuais, gosto de coisas esquisitas, diferentes”), que aspirem a uma qualidade tecno-sublimada do movimento: mimetismo das figuras exteriores (“os passos”), harmonia com as interiores (do espírito). Onde se lia divertissement passa-se a ler dancetainment, gratificação pessoal, coletiva, já não celebratória de um “tempo livre” mas condição da urgência de um tempo competitivo a (ultra)passarvi. Para uma timeline a não-haver.

          Aparentemente em idade menor de erudição, a história da dança como entretenimento revela-se inusitadamente pertinente em questões de fenómeno: a vocação como linguagem expressiva (a hipótese do nada dizer como um dizer); os limites da discursividade; a (des)necessidade de legitimação (um público votante); relativismo técnico; a crise da ideia de movimento dançado como distinção de outras categorias de movimento; a captura pelo contexto (estou porque estou na TV); a capacidade de gerar presença; a autonomia da perceção – a busca de um nexo.

          Por exemplo, se é fácil desenvencilhar-nos em Cunningham destes princípios de expressividade, sublimação e organicidade do corpo ao serviço de quaisquer emoções, em benefício do acaso e da desagregação, como recortar esta postura floral telegénica dos gestos emocionais de Pina Bausch, cujo processo coreográfico tratou desta coincidência tão cara entre emoção, ideia de emoção e repetição precisa de gestos? Como fações: o movimento puro, abstrato e bastante (um modo); o gesto que procura conviver a todo o tempo com o seu próprio implícito/explícito (um como). Para o primeiro, o aparente sucesso da operação do segundo é em si o seu retumbante fracasso.

          Enquanto José Gil teoriza sobre movimentos de transição em animais – “não quando projetamos nos seus movimentos intenções humanas, mas na surpresa perturbante de compreender o incompreensível dos seus movimentos […] (“descobrimos em nós um outro sentido no qual nos introduz o devir-animal”) –, a catatua Snowball viraliza o seu repertório de 14 passos de dança, um Homo Sapiens gesticula dentro do Macaco Adriano, o bailarino do Conan pratica militância pélvica. A dancer is a dancer is a dancer.

          Entretenimento: seria isto tudo, não fosse tudo isto. Mediador do devir dança, “a nova fórmula ontológica que decide não só daquilo que é adequado para passar a fazer parte do mundo e do que não é, mas também daquilo que é em geral. É assim que a própria realidade se apresenta como um efeito peculiar do entretenimento”vii.

          Para quem assiste ao programa, tudo se passa a apreender por um paradoxo de contexto: à luz do plano em que se sugere dança, a única sugestão que sobrevive é a imanência total – se me visto a banana, sou a banana, o aparecimento do objeto, e é essa a única alteridade possível entre quem vê e quem dança. Não há um modo de sugerir banana, o que aparece desaparece-se. Ao contrário do que a falácia interativa sugere (“Agora o público só tem de votar bem!”), o espectador perde a possibilidade de ele mesmo participar na criação do processo que aceita desaperceber.

          “O único mistério é haver quem pense no mistério […] O único sentido íntimo das coisas é elas não terem sentido íntimo nenhum”viii. Para os cínicos, o mal-estar assentará sempre na (con)fusão: o entretenimento não se desinibe de atributos artísticos.

          A arte não se distrai.

          i In “Ich habé meinen Himmel”, entrevista no semanário alemão Die Zeit, de 12 de janeiro de 2006. Tradução livre.

          ii Ver Niklas Luhmann (1995). A Realidade dos Meios de Comunicação. São Paulo: Paulus.

          iii Ver Thomas H. Davenport e John C. Beck (2001). Attention Economy: Understanding the New Currency of Business. Harvard: Harvard Business School Press.

          iv Exemplificativamente, Dança com as Estrelas (TVI, 2013-presente), Dança Comigo (RTP, 2006-2008) (baseados no original da BBC Strictly Come to Dance e Dancing with the Stars); Achas que Sabes Dançar? (SIC, 2010 e 2015), baseado no original FOX, So You Think You Can Dance? São da edição portuguesa deste último as expressões transcritas doravante.

          v Ver Moriah Evans (2019), Configurar Expulsões Sencientes, Coreia #0.

          vi O que genericamente se reflete na falta de vida além Grande Final dos concorrentes, já que a sua presença física se passa a justificar não pela existência de um público mas de um telespectador.

          vii Byung-Chul Han (2006). Gute Unterhaltung. Eine Dekonstruktion der abendlandischen Passionsgeschichte. Berlim. Matthes & Seitz Berlin.

          viii Como em Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) (1925). “O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, n.º 4.

          Rita Natálio Rosário: Contagens do Assombro

          Uma fita desliza pela mão como um rosário assinalando a contagem de Avé-Marias e Pais-Nossos. Tremuras leves nas pernas antevêem a pendência do púbis. Face a face com a luz mínima, fica-nos o rosto assombrado de alguém que se prepara para cantar. Ana Rita Teodoro começa assim Assombro, penetrando com passos curtos um canal estreito e mal iluminado colocado no centro do palco, trazendo esta fita na mão. O que virá a seguir anuncia a integração de um percurso da artista pelos estados extáticos do butô com a vontade do corte e do fragmento, assim como o isolamento de imagens em forma de esculturas vivas que são o foco de outros trabalhos a solo homenageando diferentes partes do corpo como Orifice Paradis e Sonho d’Intestino.

          Assombro é uma peça de 2014/15, re-apresentada recentemente, em Maio de 2019, no festival DDD no Porto e em Julho no programa Estar em Casa, organizado por André e. Teodósio e Anabela Mota Ribeiro no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. O solo toma a forma de uma coreografia cantada com a estranha qualidade de habitar tempos diferentes de forma compossível, indagando o género e a génese do corpo feminino no cancioneiro tradicional português. Da sua dramaturgia fazem parte canções populares antigas, a maioria sobre ou para mulheres, recolhidas no Portugal profundo durante o Estado Novo por Michel Giacometti nos anos 1960/1970, e algumas recolhidas mais recentemente por Tiago Pereira (A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria) ou fontes de transmissão oral familiar. Fica a impressão de que a seleção destes “documentos sonoros”, hoje praticamente desconhecidos ou desaparecidos da cultura popular, é feita também com assombro, combinando atração e repulsa pelo pacote civilizacional em que as mulheres são cantadas como objetos de posse, perdição ou cobiça.

          Mais do que uma crítica focada nas letras destas canções ou na representação das sujeitas ali encarnadas, é como se cada música apresentada fosse uma prótese do corpo em busca de uma adequação ou de uma compatibilidade. Se Ana Rita Teodoro pode ser uma velha de pele lisa, ou um jovem de xaile, ou uma pessoa munida de uma prótese de pénis, ou uma boca pendurada num ser do futuro, a representação possível de um olhar sobre esse arquivo de canções é feita pela performance das aproximações e desvios à genderização do corpo, muito mais do que por um jogo óptico entre arquétipos da cultura e personagens do passado. É por via de operações de saturação, corte, deslocamento, omissão, substituição, etc. que emergem características assombrosas da violência sobre as mulheres e do contrato heterossexual, processo que constrói esse corpo protético de Teodoro, sempre demasiado exposto, demasiado à vista. A boca separa-se da voz, move-se mais ou menos do que as letras das canções pedem, a roupa roda em torno do corpo criando diferentes volumes e figuras, o ventríloquo sucede o papagaio que sucede a marioneta cantando os homens que casarão certas mulheres em troca de mulas:

          Se o teu pai me der uma mula russa
          Casarei contigo Oh cara patusca
          Oh bela! Sim sim! Oh bela sem flor!
          Oh chin chin la rim! Oh raiar do sol!
          Se não vens comigo, adeus meu amor!

          [Mula Russa — Trás-os-Montes, canção transmitida por Paulo Meirinhos)

          Assusta e assombra, pois, como o show de horrores de Freaks, de Tod Browning (1932), embora aqui o corpo seja monstruoso pela forma como se expõe, como combina ou retira partes e funções, assim como desqualifica a distinção entre animado e inanimado. É nesse caldo – ou talvez nesta sopa de pedra – que o feminino se abisma por não ser possível destrinçar as partes que o compõem, e colapsa por não prefigurar um todo, enquanto o feminismo pode de repente surgir encriptado em certas canções (Agora, agora soldado, é agora ocasião./ Meu marido foi à caça, lá prós campos de Aragão./ Se quiseres qu’ele cá não volte, roga-lhe uma maldição:/ Os corvos lhe comam os olhos, E a raiz do coração [Dona Filomena, canção de Trás-os-Montes transmitida por Adélia Garcia]). Neste caminho, não existem mensagens secretas, é mesmo “pondo a canção na boca” ou transformando a saia numa escultura viva de “pau feito” que a performance opera. E cabe dizer que certas reminiscências de butô se evidenciam no torso, nos braços e na face, picados pela luz vertical, ativando assim um certo estado ou um streaming da consciência que nos permite aceder aos elementos omissos de canções como Fonte do Salgueirinho. Essa canção, oriunda da região de Trás-os-Montes, e cuja musicalidade sinuosa como a de uma cobra na língua é pontuada pelo ritmo reco-reco de Teodoro abrindo a braguilha, seduz e convida a entrar no estado lascivo e cruel de Portugal a sangrar meninas desde tempos imemoriais:

          Ai, minha mãe mandou-me à fonte.
          Á fonte do salgueirinho.
          […]
          Ai, eu lavei-a com areia,
          e quebrei-lhe um bocadinho.
          Ai, anda cá “perra” traidora,
          onde tinhas o sentido.
          Ai, não o tinhas tu na roca,
          nem tão pouco no sarilho.
          Ai, tinhas-o naquele «mancebo»,
          que anda de amores contigo.
          Ai, minha mãe não me bata,
          com vara de marmeleiro.
          Ai, que eu estou muito doentinha,
          mande chamar o barbeiro.
          Ai, o barbeiro já lá vem,
          com uma lanceta na mão.
          Ai, vem para sangrar a menina,
          na veia do coração.

          (Fonte do Salgueirinho, canção transmitida por Adélia Garcia)

          Aceder à sombra ou a lugares mal iluminados do que é colocado perante os olhos é uma característica da performatividade de Ana Rita Teodoro. Mover ou imobilizar-se faz parte de uma arqueologia do espaço que separa o que é acometido de vida e o que começa a morrer. Perder o olhar na distância entre dois braços oscilantes e dirigidos ao alto pode permitir que a figura individual e a sua identidade sociopolítica se vá desprendendo ligeiramente do corpo, como uma terra em processo de desapropriação. A reter nesse caminho (em filigrana) é também o desejo processual, não-hierárquico e não-dual, pela quebra de uma identidade feminina, algo que Donna Haraway identificou no já clássico ensaio de ficção científica política e feminista Manifesto Cyborgi, e que mais tarde a antropóloga Marilyn Strathern tematizou no conceito de “conexões parciais”ii para a prática etnográfica. Ambas as teorias desejaram bloquear o dualismo infernal entre natureza e cultura e exigiram novas composições híbridas para identidades sem matriz. Cyborgs feministas são, ao mesmo tempo, criaturas de realidade social e de ficção, e nenhuma vista exterior ou superior pode dar conta do problema.

          Em Assombro, mais do que o estilo e a exigência da coreografia escrita, são as conexões parciais entre imaginações e épocas distintas – como aquelas que deram origem a estas canções e o desejo de Teodoro de as retomar – que marcam o traçado do feminino por fios de compatibilidade e não de comparabilidade. Comparar a identidade da performer com a identidade das mulheres cantadas neste cancioneiro, ou pressupor uma crítica à subjugação das mulheres do passado à luz da perspectiva das mulheres de hoje, seria ignorar o poder tecnológico e cibernético de Assombro. O trabalho da compatibilidade opera a olho nu, sem desqualificação do que não pode ser entendido, negociando e integrando estas canções que a todo o momento perguntam: “O que é uma mulher?” Talvez por isso assombre, ver este corpo costurado de conexões onde “compatibilidade e não comparabilidade […] seria o desafio em questão; constituição de um corpo conectivo como modo de afetação entre configurações do mundo distintas e suas distintas produções de sentido”.

          i D. Haraway ([1985] 1991). A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century In Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New York, Routledge.

          ii M. Strathern ([1991] 2004). Partial connections. Oxford: Altamira Press.

          Poorna Swami Reflexões sobre Políticas da Amizade numa Pista de Dança Global

          PT

          A amizade é uma dança imperfeita. É uma improvisação que está sempre a ser remodelada graças a gestos de cuidar, a erosões do ego e a desejos involuntários, de modo a fazer emergir o melhor num lugar que deve ser de igualdade. No mundo globalizado da dança, que reivindica a construção de amizades artísticas, se queremos mesmo ser amigos, os eixos das nossas solidariedades têm de ser permanentemente realinhados. Não basta dizer que nos conhecemos uns aos outros.

          O mundo da dança contemporânea – ou, como lhe costumamos chamar, a “comunidade” – parece estar cada vez menos isolado. É muito provável que um artista na Alemanha já tenha trabalhado com, ou que pelo menos conheça, um artista na Índia. Mas o facto de todos nos conhecermos – graças a residências, festivais e salões – não se deve apenas à gentileza da internet. Deve-se sobretudo ao dinheiro que possibilita os nossos encontros e que se move numa só direção. A pista de dança que partilhamos não é um lugar de igualdade.

             As nossas conversas e “colaborações” estão inevitavelmente assentes numa rede financeira complexa e calcificada e, portanto, também de poder. Muita da dança contemporânea que se faz na Índia, por exemplo, é financiada por organizações culturais europeias. E esse financiamento carrega consigo exigências — como o envolvimento de um dramaturgo, cenógrafo ou compositor oriundo do país que disponibiliza os fundos. O objetivo é promover o “intercâmbio cultural”. É raro que o princípio de atribuição tenha apenas em conta o mérito de uma ideia. E como o financiamento estrangeiro é muitas vezes a única opção viável para nós, criadores da cena urbana indiana, pergunto-me se não estaremos a forçar o intercâmbio com estranhos.

             Compreendo que o dinheiro que chega carregue um determinado propósito. Apesar de tudo, a arte é uma extensão da diplomacia. Mas se o objetivo é criar mais condições para a internacionalização, convém questionar as relações de poder que nos permitem estarmos juntos.

          Qual é o problema de trabalhar com estranhos? Ou além-fronteiras? Nenhum. Mas o modo como tratamos os intercâmbios não é assim tão igualitário quanto se diz. Estudei dança nos Estados Unidos. Vivi e trabalhei em Nova Iorque. Viajei por festivais europeus e plataformas de redes internacionais. E em todos estes lugares encontrei uma perspetiva comum sobre o trabalho oriundo do Sul e do Oriente. Os festivais dão preferência a trabalhos dessas regiões que abordem de forma linear histórias tristes dos seus países de origem, ou que apresentem uma fisicalidade que “vá beber” a tradições locais. E mesmo que um espetáculo não se encaixe nestas categorias, é assim divulgado. Não se trata de uma curadoria do exótico, mas de uma curadoria que serve de educação cultural para um colonizador com sentimentos de culpa.

             Não quero com isto dizer que estas obras não mereçam ter espaço de visibilidade, mas questiono por que razão os trabalhos oriundos destas regiões não são, na sua generalidade, de estéticas tão diversas como, por exemplo, os que são apresentados por artistas europeus brancos. O trabalho conceptual está reservado a artistas de regiões supostamente mais felizes (e com mais dinheiro).

             Numa conversa recente, uma produtora independente alemã falava-me do seu desapontamento por ver jovens criadores indianos a regurgitar coreografias emprestadas. “Quero ver peças indianas autênticas”, afirmava. Se, por um lado, concordo que muitos jovens artistas estão enterrados até ao pescoço em vocabulário de movimento que nem sequer estudaram, por outro lado também me parece paternalista exigir que as peças de coreógrafos da Índia estejam à altura de critérios estrangeiros de autenticidade cultural. O que quer isso sequer dizer? Será que existem exigências semelhantes para que se produza algo genuinamente alemão ou apropriadamente francês ou west coast?

             A apreciação do que é arte indiana “boa” ou “autêntica” está a ser feita muito longe do lugar de produção, e as consequências são notórias. As plataformas para projetos de jovens criadores na Índia são financiadas com dinheiro estrangeiro, o que faz com que os mentores e júris destes projetos sejam artistas estrangeiros que muitas vezes não têm qualquer entendimento histórico dos contextos nos quais estes artistas desenvolvem o seu trabalho. Premeiam segundo certos parâmetros de “indianidade”, como o uso de mudras ou o protesto acrítico contra a violência de género. Por outro lado, temos artistas a produzirem trabalho para preencher estes critérios, muitas vezes sem refletirem nas suas escolhas dramatúrgicas.

             O encontro intercultural, tal como está a acontecer, privilegia uma ideia estética e intelectual em detrimento de outras. Confirma a posição perigosa de que a dança deve, de certa forma, ser um símbolo nacional, sobretudo para quem não pertence à Europa ou à América do Norte. Ao mesmo tempo que muitos de nós lutamos contra políticas nacionalistas nos nossos países, estamos a contribuir, nas nossas práticas curatoriais e artísticas, para a apresentação de uma identidade nacional.

             Na Índia, os nossos festivais e workshops são responsáveis por idênticas generalizações. Os trabalhos e professores estrangeiros são promovidos como sendo do país x ou y. As suas práticas e interesses artísticos surgem em segundo plano. Esta priorização dá a entender que nós, na Índia, temos muito a aprender com o que vem de fora. O estudante indiano pode reivindicar ter sido exposto a uma experiência internacional. O artista forasteiro vende a experiência do além-mar. Não pretendo afirmar que o nacional é uma alternativa absoluta ao estrangeiro. Mas ao aceitarmos as estruturas de poder e de dinheiro que definem os nossos intercâmbios, também aceitámos um internacionalismo de reminiscência imperialista.

             A dança é a divisa. E nós os seus detentores. À medida que a dança é embalada, transformada num produto de marca e exportada, o seu valor aumenta e assim também as suas desigualdades. Os coreógrafos europeus vêm frequentemente à Índia colher ideias para usarem nos seus trabalhos, ou vêm criar peças para bailarinos indianos. Mas é muito raro convidar-se coreógrafos indianos para criarem peças para bailarinos europeus. Os nossos corpos continuam ao serviço da imaginação de outras pessoas. E a nossa imaginação raramente tem oportunidade de prosperar sobre corpos alheios, em territórios desconhecidos. Um verdadeiro intercâmbio cultural é uma rua de dois sentidos.

          Graças a alguns fóruns de discussão na Europa, começo a notar uma vontade de descolonizar noções de dança contemporânea. Estes fóruns estão a convidar participantes internacionais e a instigar uma crítica que venha “de dentro”. Ainda assim, parece um pouco fútil dar permissão aos que há muito resistem. Soa quase a uma tentativa de normalizar o descontentamento. E, por isso, pergunto-me se não estará o nosso discurso a servir apenas para tornar os nossos colegas europeus mais sábios. É cansativo sentir que carrego a responsabilidade de colorir estes lugares para garantir que são de facto “internacionais”. Sobretudo por continuarmos a não estar em igualdade com os nossos pares europeus.

          Por muito reticente que me mantenha em relação aos contextos em que nos encontramos, aprecio as amizades artísticas com pessoas com quem não posso estar com frequência. Uma delas é um artista suíço. Estamos a colaborar juntos pela terceira vez. Mas apesar de uma das nossas colaborações ter sido financiada por uma organização europeia, desenvolvemos uma amizade que se estendeu para lá deste enquadramento institucional. Escalpelizámos as questões políticas que queremos juntos ver refletidas no nosso trabalho.

            Podem dizer-me que fui cúmplice da desigualdade. Usei os fundos ao mesmo tempo que criticava a estrutura. Mas eu respondo que é estratégico, radical até, ser capaz de colocar grandes instituições ao serviço de outras estruturas mais justas que criamos com as nossas relações individuais. Pode ser que as instituições se atualizem. Mas isso não significa que ignoremos as histórias sobre as quais o discurso predominante se desenvolveu nem a forma como se convencionou olhar para determinados corpos. Pelo contrário, se queremos um verdadeiro intercâmbio, ou mesmo amizades, devemos olhar para essas histórias e para os seus recantos mais obscuros com espírito de artistas, em vez de nos olharmos como mascotes. Aparecer à porta de casa de alguém não chega.

          O que será então suficiente? Não consigo dizer ao certo. E talvez seja mesmo esse o ponto. Talvez precisemos de continuar a tatear e a aprofundar a reflexão sobre como nos relacionamos uns com os outros e com a arte de cada um. Sob que consciência histórica e corrente política. E com que intenção.

          Precisamos de fazer isto juntos. Desarrumar isto juntos. Olhar para lá do prestígio e da competição gerada pelas instituições, juntos. Sem emblemas de culpa, nem ofertas piedosas, nem conversa fiada pejada de acusações sem fim. O mais bonito de uma amizade é conseguir sobreviver a equívocos e a fricções. É não ser uma declaração cega de afeto, mas um processo no qual as pessoas podem desenvolver compreensão e intimidade. Uma amizade exige águas profundas, conversas que mudam a natureza dessa mesma amizade. Só temos de estar dispostos a arriscar. Arriscar descobrir coisas novas, juntos, à medida que vamos andando.      

          Texto originalmente publicado na sua versão completa sob o título Reflections on the Politics of Friendship on a Global Dance Floor em salons.tanzkongress2019.de

          A versão aqui publicada foi editada em colaboração com a autora.

          Traduzido do original em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia da Silva.

          EN

          Reflections on the Politics of Friendship on a Global Dance Floor

          Friendship is an imperfect dance. It is an improvisation, continuously reshaping itself through gestures of care, abrasions of ego, and unwitting desires to emerge the best on what was supposed to be an equal stage. In a globalised contemporary dance world, which claims to build artistic friendships, the axes of our solidarities must continually be realigned, if we are truly going to be friends. It is not enough to say we know each other.

          The contemporary dance world—or as we like to call it, “community”—is seeming less and less isolated. An artist in Germany is more than likely to have worked with, or know of, an artist in India. When another Indian artist visits Germany, both find their common connections and the world seems a smaller place. But the fact that we all know each other —through residencies and festivals and salons—is not simply because we now have the gift of the internet. Rather, it is because the money that backs our encounters moves in a particular direction. Our shared dance floor is not an equal stage.

          Our conversations and “collaborations” are inevitably based on a complex and calcified network of money, and so, also of power. For instance, much of contemporary dance in India is funded by European cultural organisations. And that funding comes with conditions—either the involvement of a dramaturge, or designer, or composer from the country doling out the funds. The attempt is to foster “inter-cultural exchange.” Rarely are grants made based upon the merit of an idea alone. Because foreign funding is often the only viable option for us urban Indian makers, I wonder if we sometimes force ourselves into intercultural collaborations with strangers.

          I understand that money that comes from Europe to India arrives with a particular mandate. After all, art in this case is an extension of diplomacy. But since the claim is to create more international conditions for dance, we must question the power relations that bring us face to face. Otherwise, that internationalism will remain a convenient label.

          What is the problem with working with strangers? Or across borders? Nothing, actually. But the ways in which we go about our encounters, exchanges, collaborations are not as egalitarian as we profess them to be. I studied dance in the United States. I have lived and made work in New York. I have travelled to European festivals and networking platforms. Through it all, I have found a common gaze towards work from the east or the south.  Festivals seem to curate works from Asia, Africa, and South America that either speak plainly of the sad stories of their homelands, or display unmatched physicality that “draws from” local traditions. And even if a work does not strictly fall into these categories, it is advertised as such. If not a curation of the exotic, it is a curation  of the cultural lesson for a somewhat guilty coloniser.

          I am not saying that these works do not deserve space. Rather, I question why works presented from these places, typically, are not as diverse in aesthetic as are say, works by white European artists. Conceptual work is reserved for artists from supposedly happier (and wealthier) places.

          Recently, I was chatting with an independent producer in Germany and she lamented how she was so disappointed to see young Indian makers regurgitating borrowed choreographies.“I want to see authentic Indian work,” she said. While I do not disagree with her that many younger makers are chest-deep in un-investigated movement vocabularies, it is paternalistic to demand that work from India live up to foreign notions of cultural authenticity. What does that even mean? Are there similar demands to be suitably German, or adequately French, or appropriately West Coast?

          The evaluation of what is “good” or “authentic” Indian art sits so far away from where the art is produced, and its effects are palpable. Because foreign funding sustains local projects, platforms for young makers in India are mentored and juried by foreign artists who often have no historical understanding of the contexts within which young Indian artists are making work. They laude work that is visibly Indian by certain markers of “Indianness,” be it the use of mudras or the uncritical protest of gender violence. Young makers in turn are producing work for these criteria, often without reflecting on their dramaturgical choices. How can that be considered authentic?

          The intercultural encounter, as it currently plays out, privileges one intellectual and aesthetic notion at the expense of others. It ratifies the dangerous sentiment that dance must somehow be a national symbol, particularly for those outside Europe and North America. While so many of us are fighting nationalist policies in our own countries, we are simultaneously solidifying the presentation of national identity in our curatorial and artistic practices. And that is what frightens me most—how we have internalised the power structures in our platforms of exchange.

          Back in India, our festivals and workshops are also guilty of similar generalisations. Works and teachers from abroad are promoted as being from X or Y country. Their practices and artistic interests come second. The implication is that we in India have much to learn from other shores. The Indian student can claim international exposure. The visiting artist can sell overseas experience. That isn’t to say the local is an absolute alternative to the foreign.  But in accepting the structures of power and money that define our encounters, we have also accepted an internationalism of imperialist remnants.

          Dance is currency. And we are its bearers. As dance is packaged, branded, and exported, its value increases and so do its inequities. European choreographers, time and again, have come to India to cherry pick forms to use in their works, or to create works on Indian dancers. But Indian choreographers of considerable merit are almost never asked to come make works on European dancers. Our bodies remain in service of someone else’s imagination. And our imaginations rarely have a chance to flourish upon those other bodies, in new territories. A true cultural exchange is a two-way street.

          To the credit of some discursive forums in Europe, I see a push toward decolonising notions of contemporary dance. These forums are inviting international participants and encouraging “critique from within.”  Yet, it seems a little futile to grant permission, as it were, to those who have long been resisting. It reads almost as an attempt to normalise the discontent. So I wonder if our discourse is being mined for the enlightenment of our European colleagues. Too often in such spaces, it gets tiring to bear the weight of colouring the encounter “international. ” That too, without reaping the benefits of having one’s work considered on equal footing.

          As much as I am sceptical of the situations in which we meet each other, I cherish my artistic friendships with people I cannot see often. One of these people is an artist from Switzerland. We are now working together for a third time. And while one of our collaborations was funded by a European cultural organisation, we have nurtured a  friendship beyond its institutional framing. We have hashed out the politics we together want our work to speak of.

          You could say that I have been complicit in the inequity. Taken the funding yet criticised the structure. But I would say it’s tactical, radical even, when we can repurpose larger, institutionally-produced, structures into fairer ones through our individual relationships. Eventually, the institutions might catch up. That doesn’t mean we look beyond the histories upon which prevalent discourse has developed or the way certain bodies have come to be viewed. Instead, we must look into these histories and their darkest corners, if we are to create truly international exchanges, friendships even. If we approached each other with the spirit of being artists, and not mascots of unwieldy cultural agendas, maybe that might begin to happen. To just arrive at each other’s door is not enough.

          So what is enough? I can’t exactly say. Perhaps that is the point. Perhaps we need to keep prodding at how we are relating to each other, and each other’s art. Upon what historical understanding and political current. And with what intent.

          We need to do this together. Mess it up together. Look beyond prestige and institutionally-produced competition, together. Not through tokens of guilt, or offerings of pity, or endless spiels of indictment. The most beautiful thing about a friendship is that it can survive messes and frictions. That it is not a blind declaration of affection, but a process in which people can grow into understanding and intimacy. A friendship demands deep water, conversations that change the nature of the friendship. We just have to be willing to risk that. To risk figuring it out, together, as we go along.

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          Gil Mendo “Uma corrente de ternura” Gil Mendo entrevista Pina Bausch

          Em setembro de 1989, Pina Bausch e a sua companhia de dança apresentam-se pela primeira vez em Portugal, nos Encontros ACARTE, com a peça Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört [Ouviu-se uma gritaria na montanha, 1984]. Após a sua última apresentação, Gil Mendo entrevista a coreógrafa a convite da Fundação Calouste Gulbenkian nas instalações da instituição. Nesta curta conversa, cujo registo permaneceria guardado desde então, Gil Mendo aborda questões às quais era particularmente sensível — do lugar dos/as intérpretes e da sua diversidade na criação à plasticidade das peças e aos sentidos múltiplos que provocavam. Gera-se um clima de cumplicidade entre si e a coreógrafa, frequentemente pautado pelo riso e por gargalhadas entre ambos, e que os levaria a jantar juntos nessa mesma noite.

          GIL MENDO: Pina Bausch, acho que uma das coisas que impressiona o público é o facto de a maioria das pessoas da sua companhia serem mais velhas e muito diferentes entre si, e parecerem ter personalidades muito fortes. Ora, o que eu queria perguntar é o seguinte: são a diversidade e a individualidade importantes na sua escolha das pessoas com quem trabalha? E, também, são a história pessoal e a fantasia dos/as bailarinos/as importantes para o seu trabalho?

          PINA BAUSCH: É verdade. Eu gosto muito de trabalhar com pessoas diferentes – altos, pequenos, largos, baixos… Mas, o que quer que pareçam, há qualquer coisa… ou o que quer que sejam, as suas personalidades, têm algo parecido, algo que a gente não sabe o que é, mas há qualquer coisa que é semelhante. Quanto à fantasia, não sabemos exatamente até fazermos uma audição em que tentamos em conjunto… não é o que se consegue ver, percebe? É um sentimento, ou confiança, que me faz pensar, “sim!”. E às vezes é uma coisa que acontece muito depressa, em conjunto, e às vezes demora bastante até que de repente funciona. Logo, ambas as formas são possíveis.

          GM: Bom, você fala sobre semelhança. Durante estas três noites [nos Encontros ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian] senti que havia uma grande empatia por parte do público com…

          PB: Empatia?

          GM: Simpatia…

          PB: Ah, simpatia!

          GM: …por parte do público com o acontecia no palco. Ou seja, sinto que nos identificamos com o que se passa no palco. Ora, para além do facto de os/as seus/suas bailarinos/as serem tão bons/boas em movimento e terem personalidades tão fortes, há também o tema do seu trabalho, como eu o vejo: vejo jogos de infância (logo, memórias); jogos de crueldade; catástrofe, ou talvez o que se poderia chamar as consequências de uma catástrofe: destroços, afogamento, homens indefesos nas mãos da fé – esta é obviamente uma interpretação pessoal, claro. O que eu queria perguntar é o seguinte: monta a sua companhia como uma amostra da humanidade? E podemos dizer que os seus trabalhos são como uma escolha, uma amostra selecionada do mundo? Porque eu também vejo por detrás de tudo isto – catástrofe, crueldade – que há uma corrente muito tocante de ternura. E talvez por isso, eu acho, seja tão fácil para nós no público nos identificarmos e sentirmos essa empatia com o seu trabalho.

          PB: Não sei o que dizer [abre os braços humildemente e desata a rir com GM]! Sim, é o que tento fazer e… e acho que essa é sempre a questão quando faço uma nova peça, sabe, quando se apresenta numa nova noite. E acho que a única coisa que posso fazer – porque não é um livro, não há um objeto, não há uma história, é algo… [gira as mãos para a frente, i.e., em progresso] –, posso apenas perguntar a mim mesma: como existo agora, neste mundo, desta vez (quero dizer, no contexto do trabalho, não no presente, apenas para mim pessoalmente). Mas estar desperta para os assuntos que conheço – sobre o que esperamos, o desejo que temos, ter muito medo de violência e de quando vai acontecer, e outras coisas como estas – é como começo a construir um trabalho.

          É uma certa maneira de trabalhar, a minha. E acho que é algo que as pessoas da companhia, sem falarmos sobre isso – porque não falamos realmente sobre isso – claramente procuram.

          GM: Para além disso, há outro aspeto que me impressiona no seu trabalho, e acho que impressiona muita gente, que é a metamorfose, tanto no sentido de coisas que se transformam noutras – um chão avesso pode também ser um mar onde se nada, ou morre, se afoga; uma perna é uma perna mas também parece um bastão de críquete ou um bastão de ouro – mas não só nesse sentido de os personagens se transformarem noutros personagens e as coisas se transformarem noutras coisas, mas também na forma muito rápida e subtil como que as cenas mudam. Estive aqui as três noites e, no entanto, impressionou-me sempre como de repente a cena é outra, e isso é tão rápido, é como uma metamorfose, tudo mudou. Poderia dizer algo sobre isso? Faz isso parte do seu processo de trabalho, essa metamorfose?

          PB: Sim, é muito importante… mas não lhe sei dizer porque é importante para mim, sabe?  Como, na maior confusão, de repente há qualquer coisa, algo completamente diferente, ou parte de qualquer coisa que parecia muito calma e se transforma em algo completamente diferente. Não sei, para mim há tantos ângulos ou coisas! Todos os tipos de coisas de há muito tempo também lá estão. É como algo no tempo, como um antes ou um depois

          E é verdade quando diz que é apenas a sua opinião pessoal, mas para mim também é muito importante que todos tenham a sua opinião – a sua própria. Qualquer pessoa que assiste faz parte da performance. Cada pessoa, onde quer que esteja – na sua vida ou nos seus sentimentos – retira algo diferente, ou acrescenta algo diferente; ou vêm cenas à cabeça… e quando se vê mais vezes, surgem coisas diferentes, ou sentimentos diferentes da sua vida, vê-se diferente de novo. E eu acho que nesse fazer parte, nessa participação de cada pessoa, não há por que perguntar a outro/a como foi a história – como se pode perguntar? É a sua história, é a sua relação com o que vê, cada uma, pessoal. Isso também pertence ao trabalho. E nós não nos conseguimos segurar a nada, estamos perdidos, não temos onde nos agarrar – isso também faz parte de se trabalhar assim!

          Porque acho, não sei exatamente mas acho, que é compreensível entre todos nós… às vezes quando não sabemos alguma coisa dizemos que a sentimos, mas isso parece-me inadequado; acho que sentir é algo bem exato. Isso é sempre algo que dizemos para nos desculparmos por não sabermos algo, porque não podemos expressar os nossos sentimentos. Mas acho que eles são realmente a coisa mais exata que sabemos sempre. Onde a sabemos? Não na cabeça; sabemo-la noutro lugar, mas sabemos. E eu acho que é algo que toda a gente entende, mas não é com a cabeça. O que existe é a nossa mente, que tentamos entender! Tentamos tomar consciência daquilo que sabemos. E não há palavras, forma…

          GM: Outro aspeto que acho importante para quem só teve oportunidade de ver anteriormente o seu trabalho em vídeo é o facto de ser tão orgânico quando é visto no palco. Ora, você é conhecida por usar terra verdadeira, flores, relva, árvores verdadeiras… Existe alguma razão especial para você gostar de trabalhar com estes materiais?

          PB: Existem muitas razões. Para mim, cada material é tão diferente. Por exemplo, se houver relva, há um cheiro, sente-se um cheiro, não se faz barulho… Noutra vez há coisas amontoadas, e quando se anda ouve-se o tempo todo, é uma espécie de música também; tem um cheiro, ou cola-se no corpo – é difícil, é diferente de atravessar. E isso é de certo modo a essência da peça, também, é o que a peça é, uma espécie de extrato daquilo que se tem a dizer. É algo… como um vazio sobre o futuro dos seres humanos, e da natureza também. Não sei… espero que um dia a gente não a veja apenas numa montra, ou algo assim. Acho que, em geral, nunca realmente olhamos para aquilo que temos (talvez para os carros…). Mas, no palco, é com isso que confrontamos o público, a nossa terra, o chão… Sei lá, são tantas coisas, e cada uma pode fazer o seu [sentido]…

          GM: Bem, muito obrigado. Muitas pessoas esperavam há muito ter a oportunidade de a ver em Lisboa. Assim, para terminar, gostaria de lhe perguntar, acha que teremos oportunidade de a ver novamente em Lisboa…

          PB: Isso seria maravilhoso.

          GM: …podemos contar com isso?

          PB: Sim, seria maravilhoso, eu gostaria muito. Até porque foi só uma peça, deveriam ver outra; porque outra é diferente e… quer dizer, sou eu na mesma! Mas assim pode mais facilmente imaginar-se como aquela casa pode ser diferente; se com uma é difícil imaginar, entretanto haverá outra! Foi muito bonito estar aqui. Seria maravilhoso se pudéssemos voltar.

          GM: Muitíssimo obrigado. Foi também muito bonito tê-la cá, e um grande prazer conversar consigo, obrigado.

          Transcrito e traduzido do original em inglês por Pedro Pinto.

          Circular Associação Cultural Editorial

          A Circular promove desde 2005 o Circular Festival, em Vila do Conde, centrando a sua actividade na divulgação das artes performativas, na relação do contexto local com as práticas artísticas e na reflexão sobre a criação contemporânea.

          Com o alargamento da actividade da Circular inicia-se um programa educativo e o projecto Artista Residente, integrando este último, desde 2015, João dos Santos Martins. Este projecto activa uma relação de proximidade entre a Circular e os seus artistas associados, que se traduz na produção e difusão dos seus trabalhos e no desenvolvimento de projectos de intervenção local.

          Neste âmbito, desafiámos dos Santos Martins a desenvolver um projecto que ampliasse o alcance da colaboração, ao que o artista propôs a criação de um projecto editorial da sua autoria, que se materializou no jornal Coreia.

          Coreia pretende contribuir para a diversidade de discussão em torno das artes, num periódico com distribuição livre em todo o território nacional.

           

          Paulo Vasques e Dina Magalhães

          João dos Santos Martins Editorial

          Anos idos, comprava todos os meses a revista Premiere. Era a minha companhia no autocarro entre a aldeia onde morava e a cidade onde estudava e ficava a única sala de cinema. Essa leitura regular viria a ser substituída, quando deixei de me interessar pelos filmes sugeridos pela Premiere, pelo suplemento cultural Ípsilon do jornal Público, que descobri na mesma altura em que a revista Obscena. Por maior ou menor relevância que tivessem, estas publicações incitaram uma prática de leitura, de pensar em conjunto mesmo que sozinho: através dos textos, dos autores – discordando destes, confirmando opiniões, apropriando visões, descobrindo o desconhecido. Foi só enquanto sedimentava a minha prática artística, quando comecei a refletir sobre os processos de ver e fazer arte, que me fui apercebendo de como eram escassas as plataformas editoriais especializadas ou até generalistas que, com frequência, pensassem a arte em geral e as artes performativas em particular, especialmente a dança. 

          Apesar de, em Portugal, a emancipação da dança ocupar um lugar tardio nos anos 90, ela foi, não obstante, acompanhada por uma prática crítica vigorosa, tal como o testemunha, por exemplo, a influência transversal do trabalho teórico de André Lepecki. Este panorama era ainda definido por uma grande vontade dos próprios artistas de produzirem discurso, rascunhos de pensamentos e conhecimentos que marcariam uma geração através de boletins como o do forumdança.BT, da APpD (Associação Portuguesa para a Dança), ou a revista Elipse—Gazeta Improvável, nos quais além de artistas, teóricos, filósofos, dramaturgistas, programadores e agentes culturais discutiam as suas práticas de forma urgente e colaborativa. O progressivo desaparecimento do espaço de reflexão sobre (e a partir d)as práticas coreográficas nos jornais, revistas, blogs (especializados ou não) foi deixando um buraco aberto no discurso público (para além do artístico), evidenciando brechas entre aquilo que é produzido, aquilo que se se vê e aquilo que se pensa sobre o que se vê. 

          Poderíamos especular sobre as razões para isto ter acontecido: a recente deriva neoliberal do mercado editorial, com as pequenas editoras e livrarias a serem engolidas pelos grandes grupos editoriais; os jornais sem independência, dominados pelo investimento ou subordinados à publicidade — e o próprio triunfo de uma lógica ‘empreendedora’ por parte dos artistas e das companhias que tentam desenfreadamente vender, ou sobreviver, como escreve Carlos M. Oliveira nesta edição. Assim como o ritmo de produção intensivo impossibilita os artistas de refletirem sobre a sua prática em distintos suportes, também a aparente inesgotável disponibilidade dos meios digitais alimenta uma certa crença de que está tudo online e, portanto, não é preciso articular nem registar nada. Já as universidades, por sua vez, produzem cada vez mais conteúdos sendo que estes ficam geralmente circunscritos aos seus próprios muros. E as escolas de arte, sucumbidas a conflitos de interesse incomportáveis entre a promoção de um ensino experimental e contemporâneo, o autofinanciamento e a defesa dos quadros profissionais, são perpetuamente ignoradas pelo Estado e pelos artistas seus críticos.  

          Noutra perspetiva, a dança continua a ser menosprezada pelas artes ditas visuais, tanto que se encontra praticamente ausente de quaisquer publicações especializadas e mesmo da curadoria geral dos museus e galerias. Talvez isto seja também responsabilidade dos artistas. Apesar de a dança, hoje, alinhar muito mais com os paradigmas da “arte”, ela continua a estar e a ser subjugada pelos paradigmas do teatro com a sua herança da representação. O que é problemático pois são justamente esses paradigmas que subsistem na crítica especializada que, no caso da dança, se continua a regular por aceções anacrónicas sustentadas nas disciplinas modernistas de análise do movimento – sem relação com as práticas contemporâneas herdadas da dança ‘pós-moderna’, da ‘nova-dança’, do conceptualismo, das novas ontologias da sua viragem performativa, ‘objetual’ e do ‘novo materialismo’. São, de resto, raros os livros dedicados aos artistas que fazem uso da dança ou da performance como prática. Tanto que a sua presença no espaço público é escassa, faltando ainda espaços de trabalho (e de condições nos espaços que existem), de financiamento, público e privado (do qual o mais gritante é o súbito desaparecimento dos apoios à dança por parte da Fundação Calouste Gulbenkian, instituição que muito contribuiu para a construção de uma comunidade de dança em Portugal, desde os anos 60). 

           

          Coreia não é mais uma publicação sobre dança. Parte desse ‘não-lugar’ que é a dança e do universo das pessoas que o constituem, mas não quer lá ficar, para que a dança possa também sair dela própria, dos seus nichos, do teatro. Coreia quer participar na construção de um espaço comum em carência e contribuir para uma permanente reactualização dos discursos que possam estimular esse espaço; abandonar o lugar da crítica fundamentada em julgamentos estéticos e morais e seguir um sentido outro de produção de pensamento a partir das obras e do pensamento dos artistas em formatos vários e por meio de entrevistas, tradução de textos seminais nunca publicados em português, contos, partituras, crónicas, reflexões, jogos e opiniões. 

          Coreia é um projeto totalmente independente, feito de afinidades várias, autores, géneros, gerações e cosmovisões, tendencialmente expansivas, inclusivas e democráticas, contribuindo retroativamente com uma perspetiva plural e multivocal, de abrangência local, mas global. Coreia é uma tentativa de formar uma publicação continuada, de carácter crítico e experimental, produzindo e construindo discurso a partir e a propósito das artes em geral, com especial incidência numa reflexão sobre as performativas e, particularmente, as coreográficas. 

           

          Cumprem-se este ano 50 anos da publicação em francês do livro Lógica do Sentido, de Gilles Deleuze, obra que iria recuperar o conceito de corpo-sem-órgãos de Artaud, que viria, por seu turno, a ser, talvez, um dos conceitos mais influentes da prática coreográfica. Um dos leitores contemporâneos de Artaud foi Tatsumi Hijikata, o pouco conhecido fundador do butô no Japão do pós-II Guerra Mundial. Se hoje ganha maior visibilidade, deve-se não só ao interesse dos artistas em reativar a história da dança, como é o caso de Marcelo Evelin, aqui entrevistado por Christophe Wavelet, como também pela recente acessibilidade à sua obra, que se encontrava, até à data, apenas traduzida em língua inglesa numa publicação académica de difícil acesso. É nesse sentido que aqui prestamos o nosso contributo para o conhecimento da obra deste autor ao traduzi-lo pela primeira vez para português, a partir do original em japonês, num esforço enorme da tradutora Marta Morais, a quem estamos muito agradecidos. Estamos gratos também ao Centro de Arte da Universidade de Keio, em Tóquio, e ao seu responsável, Takashi Morishita, que nos facilitou todo o processo nesta pequena aventura.  

          É na linha genealógica do butô que, inadvertidamente, surge a obra de Ana Rita Teodoro, de quem publicamos a sua primeira partitura na qual são as palavras que dão corpo ao corpo que se “materializa num ser integral de poesia”. É com este “ensinar o corpo a dançar às avessas” que Teodoro faz delirar a anatomia rejeitando a herança cartesiana anatómica que continua a reger a estética coreográfica. Se, por um lado, o corpo-sem-órgãos critica a materialidade do corpo, não é contra os órgãos que ele se posiciona, como diz José Gil, mas contra o organismo. E, se, entretanto, esse conceito se tornou démodé, nos últimos anos vêm-se afirmando distintas ficções sensoriais, partindo do interior da estrutura dérmica, que inauguram um resoluto ‘corpo-de-órgãos’. É numa crítica feminista a essas práticas ‘somáticas’ que a artista norte-americana Moriah Evans se lança aqui de vísceras para fora num manifesto pela relação entre dança e coreografia. Numa outra perspetiva, e baralhando mais as partes, escreve Cyriaque Villemaux o conto Inventar o Pai, no qual o pequeno João brinca com um móbil feito das partes do seu próprio corpo, criado pelo seu pai, que é, na verdade, seu filho.  

          Sem mais conexões e já que não temos princípios temáticos, desafiámos Duarte Nuno Amado, partindo da sua experiência de espectador, a refletir sobre a recorrência do black-face em espectáculos em Portugal, ao mesmo tempo que Felipe Ribeiro nos testemunha o processo eleitoral no Brasil especulando sobre o que pode a arte nos momentos que se impõem contra a sua própria existência. É neste sentido também que Rita Natálio ensaia uma necessária remodelação dos moldes de entendimento do mundo tal como ele é perspetivado. 

           

          Coreia é o “movimento que estão a ver”. Coreia é uma ambição, uma projeção, uma hipótese e uma potência. Queremos que sobreviva aos tempos, que se amplie, se amplifique, se multiplique. Coreia existe graças à Circular Associação Cultural, à qual agradecemos, timidamente, por permitir que a Coreia possa ser o que quiser. Coreia é uma contribuição para reativar uma discursividade crítica e experimental partilhada na dança em Portugal, e naquilo que esta possa expandir, entanto prática, para outros lados, e vice-versa. Começa com um gesto, involuntário, da Isabel, Lucena. 

           

          João dos Santos Martins 

          Takashi Morishita Ponto de Partida

          PT

          Tatsumi Hijikata começou por aprender dança já no final da adolescência. Era a chamada Neue Tanz. Depois de um ano a aprender dança moderna na sua terra natal, a região de Akita, decidiu tornar-se bailarino e partiu para Tóquio.
          Na altura, estávamos em 1950, na última fase da II Guerra Mundial, e a capital estava reduzida a uma planície queimada pelos bombardeamentos do exército americano. Não havia ainda sinais de recuperação.
          Entre os seus vinte e os trinta anos, Hijikata recebeu o pensamento, a literatura e as expressões artísticas que chegavam ao Japão vindas da Europa. Eram movimentos culturais como o existencialismo, no seu confronto com a vida humana e o mundo; o expressionismo e o surrealismo, perspectivados enquanto técnicas de dança; o dadaísmo, que incitava ao espírito de vanguarda; ou a literatura francesa, que oferecia temas e motivos para coreografias.
          Sendo influenciado pelo pensamento e pelas formas artísticas europeias, Hijikata criou um estilo totalmente diferente daquele que o ballet clássico ou a dança moderna tinham trazido para o Japão. Hijikata lutou por abriu novos horizontes à dança, por uma expressão vanguardista e experimental, fazendo nascer o butô, inicialmente designado por ankoku-buyô ou «dança da negra escuridão».
          Na época em que o butô deu os seus primeiros passos, aquilo que Hijikata via como o núcleo dessa dança revela-se neste seu ensaio. Digamos que o texto constitui o ventre do butô. Nele, são citados pensadores como Nietzsche, Sartre ou Bataille… Mas é Hijikata quem diz:
          «É na marcha do condenado à morte que eu vejo a forma original da minha dança.»
          «Ele não caminha, é forçado a caminhar; ele não vive, é forçado a viver; ele não morre, é forçado a morrer… Estou certo, porém, de que no meio desta total passividade há uma vitalidade original da natureza humana que paradoxalmente se manifesta.»
          É possível ver nesta descrição o ponto de partida do butô. Descubramos aqui também o presente do butô. Esvaziar-se, regressar ao zero, e renunciar à expressão – eis a essência do butô.

          JP

          土方巽の舞踏の始まり、そして本質

          土方巽が初めてダンスを学んだのは、十代の終わり頃で、そのダンスというのはノイエ・タンツだった。故郷の秋田で一年間、モダン・ダンスを学んだ後、ダンサーになることを目指して、土方巽は首都東京に出てきた。
          当時、つまり1950年代の東京は、第二次世界大戦の末期のアメリカ軍の爆撃によって焼け野原になっていて、まだ復興していなかった。その東京で、土方巽は新しいダンス表現を求めて、厳しい闘いを開始した。
          土方巽は、20歳代から30歳代にかけて、ヨーロッパから日本にもたらされた思想や文学、そして芸術表現を受け入れている。それらは、たとえば、世界と人生に向き合うための実存主義であり、表現のための基盤となる表現主義であり、ダンスの手法ともなるシュルレアリスムであり、前衛的な精神をうながしたダダイズムであり、ダンス作品のモチーフやテーマとなったフランス文学であった。
          土方巽は、こういったヨーロッパの思想や芸術に影響を受けつつ、ヨーロッパから日本にもたらされたダンスであるモダン・ダンスやクラッシック・バレエとは全く異なるダンスを創作したのである。
          土方巽は誰も見たことのない身体表現を追求した。そして、前衛的で実験的な表現をもって、ダンスに新しい地平を開いたのである。こうして、極東の小さな島に「舞踏」が生まれ、それは当初は「暗黒舞踏」と名づけられた。
          舞踏が始まった当時、土方巽が考えていた舞踏の核となるもの、さらにいえば、舞踏の母体となっているのは、土方巽のエッセイ「刑務所へ」によく表れている。このエッセイでは、ニーチェ、サルトル、バタイユといった思想家の言葉が引用されている。
          そして、土方巽は次のように述べている。
          「私は死刑囚の歩行に私のダンスの原形を見る」
          「歩いているのではなく、歩かされている人間。生きているのではなく、生かされている人間。死んでいるのではなく、死なされている人間。この完全な受動性には、にもかかわらず、人間的自然の根源的なヴァイタリティーが逆説的にあらわれているにちがいない。」
          土方巽のこの叙述に、舞踏の始まりを見出だすことができるし、舞踏の現在も見出だすことができよう。自らを空にし、無にして、表現することを捨てることに、舞踏の本質がある。

          Moriah Evans Configurar Expulsões Sencientes

          PT

          Uma tentativa de escrever um manifesto, quando já não é possível, ou um momento em que se sacrifica o cinismo e se fazem reivindicações ousadas em nome do idealismo, da fantasia e da esperança.

           

          SENCIENTES

          1. A dança torna claro que sentimos para existir. Estamos a descobrir os corpos – a reconfigurar os corpos1 – porque não podemos saber o que é um corpo. Não somos os nossos corpos, mas ao mesmo tempo somo-lo tanto, sobretudo quando mergulhamos no enigma existencial de ter um corpo, de ser um corpo, de lidar com a materialização de cada um no mundo, aqui e agora.

           

          2. A dança não deve ignorar o modo como, trabalhando a partir de um universo invisível, mas sentido, podem surgir novas configurações sociais. A crueza dos corpos e das sensações que se expõem a dançar não são pontos de partida mas de (talvez impossível) chegada. Trabalhando a uma escala imperceptível para o olhar humano, os performers e o público devem construir uma relação enraizada numa outra coisa que não a dependência do olhar no teatro. A dança (e a coreografia) devem ser autodeterminadas e emergir da sensação.

           

          3. A dança vive do afeto da perceção – do modo como se é observado e de como se observa a si próprio. A procura de sensação, imaginação, especificidade, transformação e presença extrema deve estar ancorada em campos interdependentes e descentralizados. Talvez a dança não passe de uma rede de perceções e intenções, por dentro e por fora de corpos ocupados com tarefas e ações discretas.

           

          4. A dança deve desinscrever o corpo dos bailarinos através da dança mas contra a própria dança e a sua tendência para utilizar o corpo como um veículo para a comunicação e expressão visuais. A dança deve reduzir drasticamente o seu coeficiente de teatralidade – i.e., ser uma obra que exibe a sua consciência e se dirige ao olhar do espectador – e aumentar drasticamente a sua absorção – ou seja, não mostrar qualquer consciência de estar a ser observada. A dança deve bloquear a vaidade; o trabalho deve ser orientado por motivações internas e não por estímulos que venham de fora.

           

          EXPULSÕES

          5. A dança deve acolher estados de afeto incontroláveis, bem como o vocabulário impreciso da carne, rejeitando a negação emocional muitas vezes associada à dança minimalista. A dança deve empurrar o corpo para extremos monstruosos num método que recorre a tarefas de expulsão, tais como rir, chorar, saltar e desgastar – dançar a partir de um estado de pós-desgaste2. Os bailarinos devem recusar o controlo corporal ao mesmo tempo que controlam, com as vísceras, um corpo palpitante e inegavelmente vital. Com o corpo enquanto “máquina desejante” que produz fluxos de matéria, a dança examina rigorosamente as fronteiras e as condicionantes internas e externas.

           

          6. Depois da misteriosa categoria conhecida como “técnica release”3, a técnica da expulsão pede à dança e aos bailarinos que digiram, regurgitem e expulsem o compreensível, que o vomitem e cuspam. A dança deve livrar-se da sua tendência para a convenção. Temos de confrontar o abjeto e o seu duplo – os momentos em que encontramos a impossibilidade dentro dos nossos corpos, a impossibilidade que nos constitui. O abjeto remete-nos para o estado de uma violência “intemporal em que o corpo se separa de outro corpo para existir”. O abjeto “é feito de julgamentos e afetos, de condenação e desejos, de sinais e impulsos”4.

           

          7. A técnica da expulsão analisa as políticas da carne e o modo como a carne sente. A dança deve presumir a importância significativa do corpo humano. A marxista feminista Silvia Federici convoca uma luta que começa com “a reapropriação do nosso corpo, a reavaliação e redescoberta da sua capacidade de resistência e expansão, e a celebração dos seus poderes, individuais e coletivos […]. Com a dança aprendemos que a matéria não é estúpida, não é cega, não é mecânica mas tem os seus ritmos, tem a sua linguagem e ativa-se e organiza-se a si própria”5.

           

          8. Na técnica da expulsão, a dança deve ir de clímax em clímax em direção a uma catarse que progride até um estado de desordem e renovação. Mantém-se especulativa e ainda assim partilhável. Não precisamos de “saber” concretamente em que consiste. É uma técnica que questiona mais do que resolve, porque a dança deve produzir coreografias que reflitam criticamente sobre os parâmetros que geram problemas. A técnica de expulsão é o ressurgimento da carne para um futuro da dança aberta ao devir. A dança americana de linhagem euro-ocidental pode ser sintetizada num movimento que vai da forma contida e controlada a uma anti-forma enérgica. A técnica de expulsão pratica uma morte dessa dança.

           

          CONFIGURAR

          9. Na dança, tal como na vida, estamos sempre numa construção relacional. Toda a dança é também um estudo sobre como trabalhar em grupo. Isto deve transparecer em todo o espectro que vai da dança à coreografia e vice-versa, recorrendo a processos de tomadas de decisão partilhadas. A estrutura coreográfica deve aparecer e desaparecer diariamente, na presença do público, tal como quando se diz que a dança desaparece no momento da sua concretização.

           

          10. A construção de uma dança contém necessariamente a sua exibição, assim como a performance de uma dança deve conter os meios aos quais recorreu para se construir. Dança e coreografia devem olhar para o processo como uma espécie de forma. A dança cria-se tanto através de métodos de reflexão – questionamento, resposta, coaching, registo e discussão – como de ação. Os processos de reflexão devem ser integrados no processo de observação de uma “peça”. Os papéis de bailarinos, público, cenógrafos, dramaturgistas e coreógrafos devem deixar de ser estanques. Nada nem ninguém funciona como uma entidade una nem se limita a ser representação.

           

          11. O corpo que dança tem de lutar contra o significado. A dança deve propor corpos que funcionem como ameaças diretas ao drama social da compreensão6. A coreografia deve ir além de um tableau e viver um ambiente visceral e catártico permanente. A dança deve desafiar a produção de imagens (e o sentido pronto a consumir) sendo ao mesmo tempo uma imagem que permite à ordem sensorial ofuscar o campo visual. Todos os corpos estão socialmente marcados e a dança deve dar conta de corpos com vitalidade e vulnerabilidade. As ideias sobre perfeição ou virtuosidade devem ser redefinidas a cada nova dança, dando autonomia aos indivíduos e afastando-se de quaisquer regimes totalitários ou de mecanismos de consolidação das diversas histórias da dança.

           

          12. Baseando-se em críticas feministas ao “olhar masculino” intrínseco à teatralidade da dança, a dança deve resistir aos modos como a figura feminina tem vindo a ser mediada por imagens que transformam o corpo material numa superfície habitada por fantasias culturais e categorizações de género, raça e classe. A dança tem de envolver o teatro para lá dos paradigmas patriarcais do proscénio. A dança deve tornar-se, por um lado, um exercício de incorporação e, por outro, uma arquitetura feminista que insiste nos paradigmas de interioridade, coletividade, materialidade, alteridade e performatividade.

           

          13. A somática do abjeto é um mecanismo que nos afasta do virtuosismo redutor a que estão sujeitos os corpos dançantes. Porque será tão difícil apreender esta proposta física sem cair nos velhos tropos da histeria, da irracionalidade e do oculto – que foram usados para denegrir práticas feministas ao longo da história? É um mecanismo que usa a dança para sublinhar os horrores do atual momento político, sobretudo nos EUA. Este é um momento desesperante de falhanço que torna também possível a transformação. As técnicas de expulsão conseguem colocar as entranhas cá fora através de interrogações viscerais sobre o que significa ser ou ter uma política de corpo hoje. A dança e quem dança devem expor a urgência de dentro de si próprias e em qualquer ambiente. Se a técnica de expulsão torna o corpo dançante indesejável, também formula um corpo em estado de revolta para renovar o corpo social e as suas coreografias.

           

          Traduzido do original em inglês por José Maria Vieira Mendes e Patrícia Silva.

          EN

          SENTIENT
          EXPULSIONS
          CONFIGURE:
          An attempt to write a manifesto when manifestos can no longer be written due to the tremendous heft of blatant failures; Perhaps this is just another proposal for the relation between dance and choreography; Maybe it is a moment to spite cynicism in favor of idealism, fantasy and the hope of bold claims.

          SENTIENT

          1. Dance underscores that we feel in order to exist. We are in a state of figuring out ourselves—of refiguring our bodies1—for we cannot know what a body is. We are not our bodies, and yet we are so much our bodies, particularly when we plunge into the existential conundrum of having a body, of being a body, of dealing with one’s embodiment in the world, today, now.

          2. Dance must address the ways in which working from the unseen, yet felt, world of bodies and space might unfold into new social possibilities. The raw bodies and raw feelings exposed in dancing are not points of departure, but the (perhaps impossible) points of arrival. Working at a scale imperceptible to the human eye, performers and audience together must build a relation that resides elsewhere than the theater’s dependence on vision. Dance (and choreography) must be self-determined and arise from feeling.

          3. Dance builds off the affect of perception–of being watched (whether by an audience or other dancers in the performance), and of watching over one’s self. In dance an interdependent yet decentralized field must anchor the pursuit of sensation, imagination, specificity, transformation and extreme presence. Maybe dance is just an interconnected web of perceptions and intentions, inside and outside of bodies, engaged in discrete tasks and actions.

          4. Dance must unscript the dancer’s body through dance, against dance and its compulsions to use bodily facility as a vehicle for visual communication and expression. Dance must drastically reduce its quotient of theatricality—i.e. being an art work that exhibits its awareness and plays to the viewer’s gaze—and drastically increase its absorption—i.e. not exhibiting any awareness to the fact that there is a viewer. Dance must block vanity; the work must remain as an internally motivated activity that is not externally driven.

          EXPULSIONS

          5. Dance must embrace uncontrollable affective states and the inexact vocabularies of flesh, rejecting emotional negation often associated with minimalist dance. Dance must push the body towards monstrous extremes that adjoin micro movements as a method with tasks that might be called expulsion work such as actions of laughing, crying, jumping, and wasting—to dance from a post-state of waste within the body. Dancers must refuse the possibility of bodily control while being in control of a palpitating body undeniably alive through viscera. With the body as an assemblage of ‘desiring machines’ producing fluxes of matter and nothing else, dance rigorously examines boundaries and internal-external predicaments.

          6. After the vague and mysterious category of bodily inhabitation known as “Release technique”, Expulsion technique asks dance and the dancer to digest and regurgitate that which is comprehensible and spew and spit it out. Dance must expel its predilection for convention; it holds steadfast to forms arrived at by the art form. We must confront abjection and its doubleness—moments when we find the impossibility within our bodies that constitutes our very being. Abjection functions as “ambiguity” and returns us to the state of the “timeless violence in which a body becomes separated from another body in order to be.” Abjection “is a composite of judgment and affect, of condemnation and yearning, of signs and drives”2.

          7. Expulsion technique examines how flesh feels and the politics of flesh. Dance must assume significance is inherent in the human body. Marxist-feminist Silvia Federici’s call for a struggle that begins with: “the re-appropriation of our body, the revaluation and rediscovery of its capacity for resistance, and expansion and celebration of its powers, individual and collective… From dance we learn that matter is not stupid, it is not blind, it is not mechanical, but has its rhythms, has its language, and it is self-activated and self-organizing3.”

          8. In Expulsion technique, dance must go from climax to climax towards a state of endless catharsis. Catharsis progresses towards a stage of disorder into renewal. It remains speculative, yet possible to share. We must not “know” concretely what constitutes an expulsion technique. It questions rather than solves because dance must produce choreographies that critically rethink the parameters of originating problems. Expulsion technique is a resurgence of flesh towards the future of dance with an openness of becoming. Western Euro-centric American concert dance could be conjectured as movement from contained and controlled form. Expulsion technique makes a death of dance controlled into order and moves towards an anti-form energetics. This anti-form dancing strives towards an invisible yet undeniable choreographic form through the means of doing, being and observing dance.

          CONFIGURE

          9. In dance, as well as in life, we are always necessarily in a relational construction. Every dance is also a study in how to work together as a group. The spectrum of dance to choreography and back again must expose this with increasing transparency. Dancing must produce choreographic structure through a process of shared decision-making. Choreographic structure must appear and dissolve daily, in the presence of the public, in the same way “dancing” is said to disappear in the wake of its enactment.

          10. The construction of a dance necessarily includes its display just as the performance of a dance must also include the means by which it has been constructed. Dance and choreography must attend to the processes of its appearance as a type of form. Dance is as much created through methods of reflection—questioning, answering, coaching, inscribing and discussing—as it is through action. Reflection processes must be integrated into witnessing a staged “piece.” The roles of dancers, audience, designers, dramaturgs and choreographers must no longer be delineated clearly. All elements in a dance must have multiple roles at any given moment. Nothing, no one functions clearly as one entity, nor solely as representation.

          11. The dancing body must fight signification. Dance must propose bodies that function as direct threats to the social drama of comprehensibility.4 Choreography must aim to move beyond display and tableau into a visceral, cathartic environment that is maintained to the level of state rather than a singular extreme moment. Dance must defy image production (and consumable meaning) all the while being an image such that the sensorial order overshadows the visual field. Bodies can be a series of portals to the imaginary, to felt sense, to alternative logics. The body functions as a stage, an explicit and opaque site. Who controls the unfolding of bodily signifiers? What is deemed appropriate or inappropriate? Every body is socially marked, and dance must account for bodies with vitality and lack. It must cease with precious bodily matters and move towards its inherent vulnerability and the vulnerability of existence in general. Ideas about perfection or virtuosity shall be articulated anew for every single dance. These ideas must give agency to individuals and must depart from any totalitarian regime or consolidation mechanism of dance’s various histories.

          12. Drawing on feminist critiques of the “male gaze” intrinsic to dance’s theatricality, dance must resist the ways in which the female figure has often been mediated through visual images that turn the material body into a façade or surface on which cultural fantasies and categorizations of gender, race, and class have often been played out. Dance must engage the theater beyond patriarchal paradigms of the proscenium. Dance must become part exercise in embodiment and part feminist architecture with an insistence on paradigms of interiority, collectivity, materiality, alterity, and performativity.

          13. The somatics of abjection is a mechanism to move beyond what is often a reductive virtuosity demanded of dancing bodies. Why is it hard to apprehend this bodily proposition without falling back into the tropes of hysteria, irrationality, and the occult – which have been used to malign feminist practices throughout history? It is a mechanism to use dance to underscore horrors of the current political moment, notably in the USA. It is a desperate time of failure also containing the possibility for transformation. Expulsion techniques can turn insides out through visceral interrogations of what it means to be or to have a body politic today. A dance and a dancer must stage urgency within themselves and within any environment. If expulsion technique makes the dancing body undesirable, it also formulates a dancing body in a state of revolt to renew the social body and its choreographies.

          Tatsumi Hijikata, 土方 巽 Para a Prisão

          Contemplava uma pedra e constipava-me logo, encontrava uma paisagem sem ninguém lá dentro e ficava logo inquieto. Achava que aquilo era uma deficiência minha. E foi a pensar assim que eu cresci. Um dia, pôs-se um homem ao lado do meu pai, uma árvore rachou, o pai caiu, eu agarrei numa pedra e resisti. O meu pai a ser derrubado. Foi este o início da minha percepção de um mundo infeliz. Eu que pensava que numa natureza a sangrar existiam erros mais férteis…

          Criminosos – estava sempre a farejar companheiros deste género. E foi assim que eu cresci. Todos somos forçados a carregar a dívida de sermos filhos de alguém, ansiando por companhia com quem sair de casa… Só por isso a minha raiva já era grande.

          Companheiros – estes pertencem à dimensão do cheiro. Para alguém como eu que viveu uma juventude de cão rafeiro, a palavra «mundo» era um perfeito delírio. Uma natureza a sangrar está sempre a sair fora dos arranjos da sociologia ou da historiografia, pelo que o meu olhar nunca se desviou dessa natureza. Digamos que os amigos que conheci em Tóquio eram senhores de um «mundo» mecânicoi, limpo, sem cheiro sequer, sem afinidades com a natureza que sangra. Não sei porquê, mas para mim eles eram cadáveres, era assim que eu os via.

          Será que não há por aí um trabalho capaz de espalhar pelo mundo a putrefação total, os medos mais vívidos, nus e crus? Sempre quis tocar no coração da raiva que sustenta um trabalho como este, tocar-lhe, mexer nele com as mãos.

          Hoje em dia já não sou um cão. Embora muito desajeitadamente, muito mesmo, acho que estou a recuperar. Todavia, o que é que significa realmente esta minha recuperação, o que é que isto afinal quer dizer para mim, não será que estive sempre a recuperar? Talvez seja para adoecer que eu continuo a recuperar… De qualquer maneira, a minha condição actual é a de andar às voltas dentro de um quarto, com uma espingarda nas mãos e a janela sempre escancarada.

          É uma luta de morte em que eu tento fugir de uma relação entre cordas de amarrar, a todo o custo escapar-me do buraco que é essa liberdade de estar amarrado. Com aquela infeliz história do campo de arroz, a minha juventude foi uma frustraçãoii. Há contudo uma coisa que para mim é clara: não me voltam a enganar com esse cheque falso que é a democracia e as suas companhias. Os pombos meio sujos largados pelas mãos dessa gente não me trarão mais novidades do futuro. Embora a minha adolescência não tenha sido sequer a de um cão a lamber as feridas do capitalismo, imponho um silêncio àqueles tempos. A espingarda, essa, continua pousada na janela. Mas eis que o meu dedo não chega ao gatilho! Haverá desgraça maior do que confiar o sonho à realidade para a qual terei de acordar um dia? Tenho é que fechar já a janela e continuar o diálogo entre a vida única que sou e o universo. Aquilo que nem na infância eu consegui alcançar… Finalmente, a metamorfose! O cão que fui acabou agora mesmo de se transformar num ser vivo chamado humano.

          De repente, entra um corpo nu pela troneira da espingarda. O corpo está a sangrar. Fazendo parte de um só organismo, os braços e as pernas andam sempre desgarrados, cada um para o seu lado. Com uma persistência semelhante à raiva ponho-me a repará-los. Chegando até a esquecer-me da origem das pernas, a origem dos braços… Sou a «loja dos corpos»; a minha profissão é a reabilitação do ser humano, hoje em dia mais conhecida por «bailarino».

          Todos os poderes da moral civilizada, de mãos dadas com o sistema capitalista, económico e político, levantam fortes objecções ao uso do corpo apenas com uma intenção de prazer, como um meio ou instrumento de prazer. Já para não falar do uso do corpo sem qualquer intenção, que é o que eu chamo dançaiii. Para uma sociedade essencialmente orientada para a produção, este uso do corpo só poderá ser o seu inimigo mais abominável, um verdadeiro tabu. Digamos que a minha dança partilha dos fundamentos do crime, da homossexualidade masculina, das festividades, celebrações ou rituais, já que mostra aberta e orgulhosamente à sociedade de natureza produtiva que a actividade da dança é sem intenções ou objectivos. Nesse sentido, é uma dança alicerçada nas auto-actividadesiv do ser humano, tais como a luta singela e sem artifícios face à natureza, a homossexualidade ou o crime. Considero assim que a minha dança pode bem ser um protesto à «alienação do trabalho» na sociedade capitalista. Talvez seja essa também a razão que me leva a abordar os criminosos com especial atenção.

          Há qualquer coisa de comum no silêncio dos criminosos, há erros que sobressaem pela sua rectidão sem igual. Estou sempre a ser arrastado pelas pernas direitíssimas dos jovens criminosos que hoje me passam à frente. São pernas que ainda não arcaram com a política, nunca a levaram às cavalitas enquanto cúmplice de galhofas desenfreadas. São jovens que perseguem, bem longe, bem para lá de qualquer suspeita, a faca cirúrgica ou a medicação geral que a civilização actual lhes oferece. Eu, que aposto a realidade numa vitalidade-nonsense que expulsa do corpo os ecos da lógica e da razão, sonho com o dia em que serei enviado para a prisão juntamente com estes criminosos. Na prisão, aprende-se futebol americano. Porque afinal as pernas dos criminosos não precisam de aprender a permanecer de pé num lugar como este! O que eu ando a investigar é uma dança assim, uma «dança criminosa».

          No mundo livre, os criminosos foram sempre forçados a estar de pé. Eles sabem perfeitamente, pela sua experiência, que na realidade lá fora não há nada em que valha a pena acreditar. Por variadas razões, é para eles impossível que a família seja aquela célula onde se podem sentar. Eles são a matéria-prima dos nossos tempos, a matéria que criou esse instinto de defesa de que pensar é perigoso. Como ponto de partida hipotético, vou agora imaginar uma cena em que eu estou de pé e eles são forçados a estar de pé. Em que eu ando, e eles são forçados a andar. De repente, eles começam a correr, e eu também. Eu caio. Eles correm. Eles levantam-se do lugar onde caíram sem qualquer ferimento. Mas porque será que o lugar de onde eu me levanto a sangrar não consegue coincidir com o deles? Afinal é vão questionar a causa da permanente corrosão das minhas acções. A reconstrução do ser humano só é possível na relação concreta com os jovens que persistentemente continuam a incorporar os movimentos naturais que pontapeiam o ventre do bom senso dos nossos tempos. É com uma dança assim, criminosa, que eu sonho. Ala! Que já não há nada aqui que me faça hesitar pôr fogo aos palcos.

          Lá para fora! Que na vida real posso bem vir a ser um homicida de segunda classe. Quero resgatar o meu corpo enquanto subjectividade, com todos os seus tremores, no meio dessa completa mistura, e também confusão, entre o processo da vida real e o processo imaginativo. Quero-me muito ver sentado, sem passaporte, ali mesmo no meio dos erros.

          De um quarto fechado para o exterior, e do exterior para a prisão. Imagino que terá de ser este inevitavelmente o meu percurso; sem se queixar da falta de liberdade, o meu corpo nu será naturalmente conduzido. Sem necessidade de inspecção dos seus pertences, acredito que será dada passagem ao corpo nu, e que uma vez mais se voltará a dar importância à dança que sabe narrar de pés e mãos vazias. «Ir pelos seus próprios pés, as vezes que forem necessárias» é uma expressão que continua a pôr o dedo na essência da dança!

          Georges Bataille diz-nos: «A nudez opõe-se ao estado fechado, ou seja, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca por uma continuidade possível do ser. Os corpos abrem-se à continuidade através dessas condutas secretas que nos dão o sentimento da obscenidade. Considerado nas civilizações onde tem um sentido pleno, desnudar equivale a condenar à morte»v. Penso que estas palavras de Bataille são uma aproximação máxima da nudez à solidariedade humana. O corpo nu é um corpo solitário, mas simultaneamente solidário, pois através da morte alcança pela primeira vez a solidariedade, ou seja, a própria continuidade do ser. Para mim, o palco de uma tragédia como esta é a prisão – é no palco da prisão que eu vejo desenrolar-se o drama da inseparável ligação entre nudez e morte.

          O assombro que sinto face à beleza da porta de entrada da prisão não é mais do que a perplexidade perante mim próprio quando confrontado com o caminho mais curto para o desnudamento. A nudez pode ser assim mesmo, verdadeiramente assustadora. Há que dizer, no entanto, que cá fora, no mundo livre, nós já estamos completamente nus, uma vez que o sentido e a autoridade da porta fechada da prisão se encontram hoje em declínio. Digamos para todos os efeitos que esta porta equivale a uma libertação. Acredito por isso que quando for conduzido irei alegre e contente. Serei impedido de falar, sim, farão tudo para que não possa ouvir quaisquer sons, mas eu continuarei consciente de que estou nu como sempre, mesmo se vestido com trajes cuja cor só muito dificilmente se pode chamar «cor». Nenhum outro palco é como este provido de um mecanismo tão perfeitamente adaptado aos meus actos destrutivos contra a produtividade e a moralidade. Vejo a condição da minha dança como um divertidíssimo banho misto na prisão; vejo os condenados à morte como a queda da civilização moderna e também o brasão do seu bom senso. É na marcha do condenado à morte que eu vejo a forma original da minha dança.

          Forçado a caminhar na direcção da guilhotina, o condenado à morte é já um homem morto, mesmo quando permanece agarrado à vida até ao fim. O violento antagonismo (conflito) entre a vida e a morte é levado a um extremo e a sua expressão adensa-se no interior deste ser desgraçado, compelido em nome da lei a uma condição injusta. Ele não caminha, é um ser forçado a caminhar; ele não vive, é um ser forçado a viver; ele não morre, é um ser forçado a morrer… Estou certo, porém, de que é no meio desta total passividade, e apesar dela, que paradoxalmente se manifesta a vitalidade original da natureza humana. Sartre escreveu: «Por ora, erguido no cadafalso com as mãos atadas, o criminoso não está ainda defunto. Para morrer, falta-lhe um instante. O instante desta vida em que encarniçadamente se deseja a morte…»vi. É esta precisamente a condição da forma original da dança; é este precisamente o meu trabalho: criar uma condição como esta em palco.

          É muito importante, nos tempos que correm, inundar os palcos com obras histéricas. No meio do ruído ou do mau gosto de matérias practicamente cruas, nós temos o direito de exigir uma garantia de actualidade (genuinidade). A sublime mortificaçãovii do crime. O rosto completamente vazio aguentando a tortura até ao fim. Os jovens que sabiamente incorporam uma vitalidade irracional. Os puros desesperos que aparecem antes da esperança ser despedaçada… A minha missão é estruturar tudo isto num colectivo de dança e finalmente criar um exército nu.

          Ansiando pelo exercício da mortificação, a geração contemporânea treme, inquieta. Presumo que muitos, quase todos (os elementos das Forças de Autodefesa), terão como que perdido a esperança e abandonado a solidariedade para com a carne da sua geração, juntando-se ao exército mais levados pela ânsia de serem amarrados do que pela necessidade de ganhar a vida. A dança é uma intermediária entre espíritos e impulsos numa cerimónia secreta que recarrega o sangue e a carne dos jovens. Cumpre-se quando, por fim, transforma estes seres numa arma mortífera que sonha.

          A situação actual encerra uma realidade distorcida e desmembrada que rompeu com a solidariedade. São circunstâncias que só podem ser enfrentadas através da fundação de uma nova figura individual do ser humano, e do resgate da sua solidariedade. No meu trabalho, esta solidariedade situa-se entre mim e a matéria-prima. Quanto à matéria-prima, e tendo em consideração a natureza do trabalho que faço, ela corresponde aqui aos seres vivos – às jovens criaturas de boca fechada. «O talento é uma amabilidade por respeito à matéria, consiste em dar um canto aos mudos. O meu talento será o amor que tenho por aquilo que compõe o mundo das prisões e dos campos de trabalhos forçados»viii. Aquilo que Jean Genet escreve nestas linhas coincide tal e qual com a minha determinação. Por outras palavras, e pensando nestas jovens criaturas que fecham a boca antes e depois de uma acção, «há que despir os trajes da percepção estéril que a civilização moderna desenhou. A minha tarefa é voltar a montar a partir de uma vitalidade nua e crua os esqueletos que foram edificados sobre complexos de vítima. Sou um homem de sensibilidade corporal muito simples. O sentido do trágico aumenta e diminui em função da sensibilidade do corpo». Estas palavras são de Nietzscheix e é precisamente porque eu sou um homem de sensibilidade corporal num sentido semelhante que o conjunto do meu trabalho pode ser descrito da seguinte forma.

          Cortar a cabeça com uma enxada – há que continuar sempre a aprender muito com este exercício. Pegar em armas mortíferas seguindo a própria vontade – mas primeiro é preciso imaginar como recuperar as mãos que nelas pegam. Estas novas mãos, moldadas para operar máquinas, têm de ser firmadas nas mãos que pegam em enxadas; não são mãos que possam lamentar-se por acidentes de trabalho. Há que cortar os delicados dedos que se entretêm a brincar com recortes. Tal como Marcuse disse: «O trabalho é a priori um poder e uma provocação na luta contra a natureza»x. Se mudarmos esta «provocação» para as minhas palavras, estaremos então a falar de «dança». Ressalve-se todavia que estão fora do alcance da nossa provocação as línguas que lambem as feridas desta destravada civilização de máquinas. Toda a política que engole funções cadavéricas, ocultando-as no seu próprio seio, não passa de um apinhado posto de incapazes que começam a desconfiar de si mesmos e do seu corpo criador. É necessário continuar a intervir cirurgicamente na actual situação – é preciso abri-la com as mesmas mãos que pegam em apagadores de quadros de giz, e limpam os sinais de um futuro impossível, assim como a cultura de vozes chorosas existentes na base da consciência de vítima. Na origem criadora do meu trabalho coloco um altar. Assemelha-se a uma mortificação. É em frente deste altar que estão os corpos humanos livres de impurezas. A minha tarefa é remover os brinquedos mortíferos dos membros afrouxados dos jovens de hoje, criados em condições estéreis, e então criar uma cultura desnudada, um exército nu.

          Não conheço hoje em dia trabalho que gere mais alienação e imponha dureza mais continuada do que a monda de verão nos campos agrícolas de solo empobrecido. Na energia subserviente aliada ao ritmo autónomo que sustenta este trabalho, há algo que quase tapa os olhos. É dentro dessa energia que os jovens camponeses perdem anos de vida! As crianças nascem e, ainda hoje, crescem a brincar com o cocó! Ainda hoje, nas zonas de grande pobreza da monocultura de arroz, famílias inteiras encontram recuperação na doença anal de crianças de seis anos. Os pais dão as mãos às mãos que fazem maldades aos deuses – é um padrão encantador, um esboço de sorriso, feito de um humor muito negroxi, que, para mim, é uma espécie de dança misteriosa.

          No ano treze da era Shôwa [1938] proliferaram casos de um tipo de obstrução anal e vaginal nas zonas de monocultura da região nordeste de Tôhoku. Imagino que as vozes chorosas dessa altura devam agora fazer parte dos novos registos para a preservação da cultura. Embora sejam hoje um importante acompanhamento sonoro da minha dança, estes choros eram de tal maneira «primitivos» que só passados doze anos, desde que me mudei para Tóquio, é que eu consegui dar-lhes a volta e pela primeira vez lidar com eles. Através de uma incessante atenção à natureza do quotidiano, vou ruminando o sentido destes gritos e a profundidade de gestos que mais parecem rituais secretos. Vou congeminando novos moldes de andar, tirados daquela terra escura onde dançar e saltar não conseguiam fundir-se. Entre os professores de dança que na adolescência me ensinaram as várias formas de perder os sentidos, encontra-se a escuridão desta terra japonesaxii. Tenho de levar para o palco a exacta sensação do que é pisarxiii esta terra. Sou um soldado voluntário nu, aquele que força o confronto entre este pisar e aquele movimento de pés domesticados pelo chão.

          Ritual de iniciação à adolescência – é este o meu altar de trabalhoxiv. Será uma espécie de mortificação. Poderá designar-se também como uma cerimónia de passagem dos rapazesxv. Gostava de criar uma dança assim, feita de carne e sangue. Não se trata aqui de tentar compreender o outro, e reciprocamente, mas sim de continuar permanentemente a experimentar com o corpo, é uma questão de acreditar – isso é que é assustador, pois tem de ser vivido na pele, aceite corporalmente, através da mortificação. Acreditar num ser humano é, hoje, uma tarefa solitária. Acreditar e sobreviver são actos mitológicos difíceis de identificar através das palavras. Só arriscando. Com as mãos que sentiram o peso dos testículos, há que dar corpo aos seus rostos obscuros.

          Fico doido quando vejo aquelas jovens criaturas que enchem as ruas e praças da cidade, aqueles corpos que perderam ressonância ética. O mais importante das minhas peças é o diálogo nu, um diálogo despido dos castigos atribuídos pela sociedade, das perseguições dramáticas, dos veículos rápidos ou das areias quentes existentes na realidade comum destes adolescentes e nos seus comportamentos sem encanto. Estes jovens seres vivos encontram-se à distância mínima de uma experiência primordial. Acredito que é através do ininterrupto diálogo com eles e do trabalho com os seus corpos que será finalmente possível criar o meu exército nu. Só quando nos relacionamos com estas armas mortíferas que sonham, e, há muito, ignoraram a miséria da política, se poderá levar a cabo uma reconstrução do ser humano.

          Janeiro de 1961

          Texto originalmente publicado sob o título Keimusho-he

          na revista literária Mita Bungaku, editada pela Universidade de Keio

          Tradução do original e anotação: Marta Morais, Fevereiro de 2019

          i Notas de Tradução: Todas as palavras em itálico correspondem a estrangeirismos no interior da língua japonesa, originalmente escritos no silabário que existe para o efeito, o katakana. Para além destes, o presente texto faz um grande uso também de pontuação. A pontuação, que não existia na língua japonesa, ou era feita através de outros mecanismos linguísticos, como a gramática, é igualmente de origem ocidental. «Para a prisão» é curiosamente um dos poucos textos redigidos pelo próprio Hijikata, já que os posteriores foram ditados, e não escritos, pelo autor. O seu envolvimento activo na escrita poderá estar na base desta «abundância» tanto de pontuação como de estrangeirismos. Conjugada com o raro uso nos textos de Hijikata de citações literárias, nomeadamente filosóficas, também de origem estrangeira, esta «abundância» revela o diálogo intenso do autor não só com o círculo intelectual de Tóquio, mas também com toda a cultura ocidental que inundava o Japão nesta época de grandes transformações.

          ii A «infeliz história do campo de arroz» refere-se a um episódio da infância de Hijikata na sua terra natal em Akita, na região de Tôhoku. Nas épocas de maior trabalho nos arrozais, os pais enfiavam as crianças numa cesta chamada idzume e largavam-nas nos carreiros entre os campos do arroz, desde a manhã até ao nascer da lua. De forma a que as crianças não fugissem, atafulhavam a cesta… «Como devem imaginar … eu mijava-me e cagava-me todo. A metade de baixo do corpo, aquilo era uma comichão danada… E então punha-me a chorar. … pelos campos fora ouviam-se choros desgraçados aqui e ali… Só que aos ouvidos dos que trabalhavam não chegava nada! … «Filhos da puta!». Quando anoitecia e me tiravam lá de dentro, não me conseguia pôr de pé. Tinha as pernas todas partidas, parecia um aleijado, a arrastar-me! Aquela criança nem que a obrigassem olharia mais de frente para a família. As articulações dobradas eram deixadas ali. Até parece humor… Mas a comédia é muito séria. Era um aperto enorme ficar ali entre a espada e a parede! Parecia que as pernas fugiam do corpo e se iam embora para sempre. Para onde iriam aquelas pernas que não voltavam? Acho que só o corpo de uma criança que foi maltratada até ao limite por estas cestas idzume sabe responder.» É assim que Hijikata escreve sobre as suas memórias de criança em «Inu no jômyaku ni shitto suru koto kara» («Do ter ciúmes das veias dos cães», publicado integralmente nos «Cadernos de Arte» Bijutsu Tetchô. Ed. Bijutsu Shuppansha: Tóquio, 1969).

          iii Neste ensaio, Hijikata não usa o termo «butô», apenas «buyô» (舞踊), a palavra mais comum para designar «dança».

          iv O termo «jiko-katsudô» parece remontar ao alemão «selbsttatigkeit» («self-activity») e às teorias da educação. «Auto-actividades» refere-se a actividades próprias, espontâneas, que não dependem de estímulos ou objectivos exteriores, podendo aplicar-se, neste contexto da sociedade industrial, à ideia de «actividades não produtivas».

          v Georges Bataille. L’Érotisme. Éditions de Minuit: Paris, 1957, p.19. Esta frase foi citada por Hijikata com os seguintes [cortes] do original: «La nudité s’oppose à l’état fermé, c’est-à-dire à l’état d’existence discontinue. C’est um état de communication, qui révèle la quête d’une continuité possible de l’être [au-delà du replit sur soi]. Les corps s’ouvrent à la continuité par ces conduits secrets qui nous donnent le sentiment de l’obscénité […] La mise à nu, envisagée dans les civilizations où elle a um sens plein, est [sinon um simulacre] du moins une équivalence [sans gravité] de la mise à mort.»

          Note-se que a tradução das citações foi feita com base no seu original, quando conhecido, mas também na própria tradução japonesa usada por Hijikata, respeitando as suas interpretações e mesmo os seus cortes.

          vi Jean-Paul Sartre. Saint Genet: comédien et martyr. Gallimard: Paris, 1952, p.101. Esta frase foi citada por Hijikata com o seguinte [corte] do original: «Pour le moment, debout sur l’échafaud, les mains liées, le criminel n’est pas encore défunt: il s’en faut d’un instant. Un instant de cette vie acharné à vouloir la mort, [comme Pierrot à vouloir dans sa bouche ce ver qui le glaçait d’horreur.]»

          vii A palavra usada por Hijikata é «kugyô» ou «kugô»(苦業), um termo de origem budista que significa literalmente «acto ou prática de sofrer», na sua acepção comum de aguentar um sofrimento para levar a cabo um trabalho, ou no sentido mais ascético de purificação espiritual e despertar (Cf. Dicionário Kôjien). «Provocar a morte», tal como está subentendido na palavra tradutora portuguesa «mortificação», será um exercício de desnudamento da razão, da vontade ou da intenção, baseado na aceitação do corpo enquanto prisão.

          viii Jean Genet. Journal du Voleur. Collection Folio, Gallimard: Paris, 1949, p.123-124: «Le talent c’est la politesse à l’égard de la matière, il consiste à donner un chant à ce qui était muet. Mon talent sera l’amour que je porte à ce qui compose le monde des prisons et des bagnes.»

          ix A última frase provém efectivamente da obra de Friedrich Nietzsche, Jenseits von gut und böse: vorspiel einer philosophie der zukunft [Para além do bem e do mal – prelúdio de uma filosofia do futuro]. Leipzig, 1886, p.139: «Der sinn fuer das tragische nimmt mit der sinnlichkeit ab und zu». Presume-se, no entanto, que o resto da citação virá de outra(s) obra(s) de Nietzsche, podendo até ser uma assemblage feita pelo próprio Hijikata. No tempo de Nietzsche, o termo «sinnlichkeit» traduzia-se ainda por «sensibilidade», como no tempo de Kant. Depois é que adquiriu o sentido de «sensualidade». Na versão japonesa lê-se literalmente «pessoa de sensibilidade corporal», sendo que «nikukan» se refere aos sentidos do corpo ou da carne (parte física por contraste à mental ou espiritual).

          x Herbert Marcuse. Eros and civilization: a philosophical inquiry into Freud. Beacon Press: Boston, 1955, p.110-11. Esta frase foi citada por Hijikata com o seguinte [corte] do original: «Work is a priori power and provocation in struggle with nature; [it is the overcoming of resistance].»

          xi «Ankoku no yuumoa»(暗黒のユーモア), literalmente «humor da negra escuridão» ou «humor muito negro», é uma expressão que nos remete para um dos termos que deu nome ao «butô», a saber, «ankoku buyô» ou «dança da negra escuridão»(暗黒舞踊). Este «humor» é eventualmente o mesmo que Hijikata descreve nas suas memórias de infância (Cf. Nota 1): um humor «sério», «entre a espada e a parede» (seppa-tsumatte iru: estado de desespero máximo, sem capacidade de fuga nem acção, suspenso entre a vida e a morte) e à mercê das «articulações dobradas» (tatamareta kansetsu: referência a um corpo incapaz de se pôr direito, um corpo sem capacidade de decisão). Estes são conceitos-base da dança de Hijikata de acordo com a sua discípula, Mikami Kayô (Utsuwa to shite shintai [O corpo como um recipiente]. Hashôbô: Tokyo, 1993, p. 88 – citado por Elena Polzer. Hijikata Tatsumi’s From being jealous of a dog’s vein. Humbolt – Universidade de Berlim: Berlim, 2004). O método de Hijikata, em parte originado pela sua experiência de infância, provoca situações psicologica e espiritualmente extremas – «desmaios, perca dos sentidos» (literalmente sottô卒倒) –, infligindo até um sofrimento ao corpo, através daquilo que ele designa «uma espécie de mortificação».

          xii Também aqui se fala da «escuridão», no caso, de uma «terra escura» (kurai-tsuchi暗い土), a terra natal de Hijikata, situada numa região climaticamente austera do nordeste do Japão, que terá marcado para sempre o seu corpo e a sua dança.

          xiii Embora de facto neste seu ensaio Hijikata não fale em «butô», ele usa aqui o verbo fumu (pisar踏む), o segundo elemento constituinte do ideograma «butô» (舞踏). Se o primeiro caracter, «bu», significa «dançar», o segundo, «tô», significa «pisar».

          xiv Sobre a relação do «butô» com a ritualidade, note-se que a palavra significa tradicionalmente um tipo de cortesia, também designada «haibu» (ou «haimu»), tal como referida na grande narrativa literária japonesa do século xi, Guenji Monogatari. A dança haibu constituía uma forma de agradecimento, dirigida tanto à corte imperial, ou ao imperador, como aos deuses (xintoístas) ou ao buda. Mais tarde, com a difusão da palavra «buyô» para designar «dança», a palavra caiu em desuso. Na Era Meiji, foi muito usada, enquanto termo tradutor, para referir formas ocidentais de dança, embora hoje seja sobretudo usada para designar a forma contemporânea do butô.

          Repare-se também que «butô» é usado na medicina para designar um conjunto de doenças neurológicas, butô-byô (Discinesia), tais como a Doença de Huntington, que afectam as funções motoras e cujos sintomas são movimentos involuntários do corpo designados corea (termo grego para «dança»).

          xv Optou-se na tradução pela conotação essencialmente masculina do termo «wakashu». A expressão usada aqui, «wakashu-iri», remete-nos não só para uma iniciação nos papéis sociais dos adolescentes, geralmente enquanto subordinados, como também para a iniciação amorosa e sexual dos rapazes, conduzida por mulheres adultas a nível comunitário local. Há depois ainda o contexto artístico, nomeadamente da arte guerreira dos samurais (wakashu-dô: caminho da homossexualidade) ou do kabuki (wakashu-kabuki), em que a iniciação sexual dos rapazes está ligada à homossexualidade, socialmente permitida apenas nesta idade pré-adulta. Era conduzida por homens adultos e cabia ao jovem o «papel passivo». No teatro wakashu-kabuki, depois da proibição do kabuki feminino (1652), os jovens e belos bishônen representavam os onnagata (papéis femininos), ou então os wakashugata (rapazes adolescentes), sobretudo enquanto bailarinos. A iniciação dos jovens actores servia, todavia, também como fachada para encobrir redes de prostituição masculina e homossexual dos «rapazes wakashu».

          Ana Rita Teodoro Orifice Paradis

          Pernas nuas, braços nus
          Atmosfera de paraíso
          Azul

           

          Sento-me sobre os calcanhares
          pernas juntas
          profundamente dobradas

           

          observo a linha
          desenhada pelo estreito encontro
          da coxa esquerda com a direita

           

          dirijo a coluna
          vertical ao céu

           

          braços ao lado do tronco
          um pouco atrás das costas

           

          A boca respira
          quente, o ar entra frio
          a língua passeia
          no volume interior da boca

           

          o lábio inferior vai dentro
          agarrado pelos dentes
          depois o superior

           

          explorar a boca com curiosidade
          curiosidade de boca

           

          Olho em frente e para longe
          as pessoas olham-me, como quem me espera
          elas estão também no interior da minha boca
          sentadas na coroa dos dentes
          estão fora e estão dentro

           

          Como é quente a boca
          húmida

           

          As mãos
          soltam-se da sua quietude
          uma mão sobe até à boca
          e a outra desce
          enfiando-se entre as coxas
          quando uma mão está em cima, a outra está em baixo
          elas cruzam-se na zona do coração
          sem fazerem caso uma da outra
          ao princípio
          um pouco vagas
          estrangeiras do caminho
          boca-vagina
          pouco a pouco
          definem-se
          musculadas e articuladas

           

          a mão leva comida à boca
          a boca come um alimento inventado
          ou come a própria mão
          sem nunca a tocar
          ou talvez
          por azar, rasando
          raramente

           

          as pernas
          vão abrindo
          pouco a pouco
          ganhando espaço entre elas
          descobrindo a vagina

           

          As mãos ocupam o lugar da boca
          e a boca fica vaga
          as mãos-dedos abrem e fecham
          fingindo ser vários,
          vários tipos de boca
          dentes de crocodilo, elefante
          coelho, boca de polvo,
          de gafanhoto,
          planta carnívora
          e porque não boca-dente
          bico de periquito bico de gaivota
          entre o pulso e o cotovelo
          entre o cotovelo e o ombro
          entre cada dedo
          bocas

           

          os polegares tocam a pele
          desenhando a linha boca-vagina
          por vezes para lá da vagina perfurando a terra
          ou para lá da testa na direção do céu
          como uma cócega em cada corpo de vértebra
          o movimento de onda aparece

           

          Estou sentada no centro de um círculo de pelo
          no chão com uma luz
          azul

           

          o pelo é o elemento protetor do orifício

           

          As costelas-boca
          levam os braços para trás
          fazendo as pernas-língua deslizarem
          para a frente

           

          Sentada sobre o sacrum
          apoiada nos cotovelos,
          evidencia-se a vagina-dentes
          e duas línguas-perna
          saboreiam o ar
          humidificam os pelos

           

          táctil, cheia de detalhe
          esponjosa mole
          guiada pela vontade de sair
          da sua função destinada de perna

           

          As pernas organizam-se
          como lábios
          as costas deitam-se no chão libertando os braços

           

          recomeço,
          pernas e braços brincam de boca
          na linha boca-vagina
          é o treino para a simetria
          uma ginástica aquática num tapete de pelo
          estado provisório das categorias
          peixe com pulmões
          peixe com pescoço
          peixe com polegar
          peixe com membros
          atravesso um mundo animal aquático
          que não quero especializar

           

          A bacia é também boca que fala
          vagina ou cu
          orifícios do passado
          localizados no baixo-ventre
          a bacia move-se
          para a frente e para trás
          a boca naturalmente
          abre e fecha
          envolvida no movimento de onda
          o maxilar acompanha
          balançando osso ilíaco, nuca
          não é preciso ler nenhum livro de anatomia para ter esta experiência
          é só estar atento
          ou ser silencioso
          ou permitir-se distrair

           

          sentada sobre o baixo ventre
          olho para trás das costas
          engana-se a frente e atrás
          e da espiral nasce o pescoço

           

          Mergulhar
          e oferecer o cu ao céu
          para me transformar numa caverna
          numa concha
          com mãos de
          algas
          flores
          que surgem da entrada da caverna-concha
          pélvis que ondula
          de cima para baixo

           

          um braço-língua vem humidificar o ar
          ar de nada
          ao acaso lamber
          ao mesmo tempo
          a caverna abre e fecha
          uma boca que fala
          deslocada da sua língua

           

          mergulho para um lado
          as pernas bem abertas ao céu
          numa tentativa de
          trocar a orientação do sexo
          o balanço da pélvis faz-me girar

           

          sou flor de sexo exposto ao céu

           

          De cócoras
          planta dos pés e das mãos no chão
          os dedos alongam-se nos pelos
          é tempo
          de alongar as pernas
          que tremem
          porque desconhecem a linha recta
          ondulam
          abrem e fecham
          imitando a boca, sou boca
          entre as coxas e os joelhos
          entre os joelhos e os calcanhares
          entre os pulsos e os cotovelos
          entre os cotovelos e os ombros
          entre cada dedo
          boca

           

          mastigo a boca, dentes duros mastigam dentes moles
          e a silenciosa saliva amolece
          tudo o que é osso

           

          sou boca
          sou saliva
          lascívia
          sou língua
          que dirige a saliva
          no interior dos ossos
          por todo o lado
          bocas querem falar
          falar de nada
          nos pelos que as protegem
          nada por todos os lados
          nadando na saliva
          comendo a boca-dente

           

          Para que o corpo não se estilhace em cacos de boca
          passo as mãos na linha a lamber os beiços
          pernas juntas e profundamente dobradas
          quando os dentes caem
          as bocas reduzem-se
          a um canto

           

          Muuulher e hooooooomem no cimo da áaarvore
          trocam sexo em vaaagas contíííínuas

           

          estaaava de noooite mas tudo se viiiia
          até o buraaaco do umbiiigo

           

          aaa galooope no paraíííso
          de carro não seeeeee chega láaaaa

           

          vaaagas tantas aparece um tiiigre
          seu rugido tuuuudo faz tremeeer

           

          aaaaai no paraííííso
          a novidade ééééé desastroooosa

           

          oooooh mulheeeer agarra essa espingaaaarda
          com os teus olhos fuuuuura o tiiiigre

           

          sem paraaaaar o galoooooope
          mergulha no riiiiiio que escooooorre

           

          aaaaaai no paraííííso
          a novidade éééé desastroooossa

           

           

          A versão da partitura-poema aqui publicada foi editada em colaboração com a autora a partir do do original de 2012.

          CHRISTOPHE WAVELET & MARCELO EVELIN Tem que Haver Mais Desbunde

          Entrevista com Marcelo Evelin feita por Christophe Wavelet por Skype no dia 12 de dezembro de 2018

          CW Alors, mon cher Marcelo, onde você mora agora?

          ME Eu moro em Teresina e em Amsterdã.

          CW Você tem ainda o apartamento em Amsterdã?

          ME Sim. Eu continuo dando aula uma vez por ano. Talvez isso já esteja chegando no final, mas ainda gosto muito de dar aula. A única relação que eu tenho com a Holanda é a escola de mímica, é o lugar que me interessa. Não tenho mais interesse em fazer nada no mercado.

          CW Agora você poderia fazer de Papai Noel, com a sua barba branca.

          ME Eu sei, vou fazer um Papai Noel queer, com uma coisa assim de Carmen Miranda: toda vermelha, cheia de veado na cabeça, sendo carregado por muitos veados, porque eu não sei se tu sabe, mas aqui no Brasil veado prolifera. E a fofoca, a confusão, o babado também vão aumentando concomitantemente com o tamanho do rombo no Brasil. Tu não pode imaginar o que está isso aqui.

          CW Fala para mim.

          ME A nossa nova Ministra da Família, da Mulher e da Diversidade se chama Damares Alves. Agora de manhã, na internet, vi um depoimento dela dizendo que viu Jesus em cima de um pé de goiaba. Jesus está falando para ela como conduzir o Brasil e a família brasileira.

          CW Então, Marcelo, a gente tem também que ver o Papai Noel. Que loucura… o que é que aconteceu com esse país maravilhoso?

          ME Eu não sei. De certa maneira, continua maravilhoso, porque aí também não está fácil, não é? Tem uma coisa estabelecida, uma base sólida, um tipo de educação que, por exemplo, no Brasil, não tem. Educação, em qualquer crise, ajuda a sustentar. Dá parâmetros. Aqui a gente não tem esses parâmetros. Está todo mundo jogado no desespero, na completa falta de crença, de esperança. Está muito difícil do lado subjetivo. Tem uma produção simbólica que está totalmente ameaçada e as pessoas não conseguem nem ver.

          CW Isso é o pior.

          ME A economia a gente reorganiza, as leis a gente refaz, as constituições a gente adapta, mas a subjetividade dos jovens, das crianças, das minorias que estão completamente colocadas de lado, completamente assustadas em relação ao que vai acontecer… eu te juro, estou com muito medo. A gente fez o “Batucada” agora…

          CW No Brasil?

          ME É. A gente fez de setembro a outubro, antes das eleições, as pessoas nos convidaram justamente por isso. A gente fez em três cidades brasileiras e em Santiago do Chile. Foi interessante fazer no Chile, até para ver um país que viveu uma ditadura muito forte recentemente, como é que está e o que sobrou disso. Pessoas que não se tocam, que têm medo de serem tocadas, que estão descobrindo de novo como fazer isso. E, aqui no Brasil, é muito difícil as pessoas acreditarem que a gente pode fazer uma revolução.

          CW Marcelo, fala para mim, você se lembra, em 1984, no final da última ditadura no Brasil, da situação a esse respeito?

          ME Eu me lembro do final oficial da ditadura, que foi em 1979. Eu tinha dezessete anos e fui morar no Rio, onde eu tinha morado até aos dez anos de idade. Fui procurar fazer teatro e vi o anúncio de um diretor que tinha estado exilado e estava voltando. O interesse desse diretor era que o conhecimento dele ficasse disseminado no Brasil. Como eu era do Piauí, ele me escolheu mesmo muito jovem, porque seria uma maneira de chegar no Piauí, que nessa época era muito mais longe do que é hoje, aliás, não existia. É o Augusto Boal. Eu vi a chegada do Boal no Rio. Ele foi do aeroporto para o teatro Cacilda Becker, no Largo do Machado, recebido por pessoas que o carregavam e uma multidão de artistas e jornalistas aplaudindo. Ele entrou e começou imediatamente a falar do método do teatro do oprimido, a botar as pessoas para fazerem coisas, elas começaram a se deitar no chão etc. Eu estava recém-começando, no meio de vários artistas bem mais velhos, pessoas que eu conhecia da televisão, que eram importantes, sem saber o que eu estava fazendo ali. Isso foi o começo da volta, da abertura no Brasil. Em 1983-84, a gente começou a fazer os panelaços na rua para pedir “Diretas Já”, que foi o começo da ideia das eleições, que aconteceram em 88. Eu não estava no Brasil na época, já morava na França quando as pessoas puderam votar pela primeira vez para eleger um presidente. E elegeram justamente Fernando Collor de Mello, que foi um tiranozinho. Eu não estou acreditando nesse momento do Brasil, porque estava indo relativamente bem. Nunca é perfeito, o Brasil é um país complexo. A gente tem uma diversidade enorme, sem direito de voz. Aqui a gente sabe que os negros são considerados inferiores, são colocados no lugar de subservientes. As semanas antes do segundo turno foram extremamente violentas. Muita intolerância na rua, a gente com medo de falar abertamente sobre o que quer que seja, os eleitores do Bolsonaro começando a fazer cerco e todo mundo fazendo muita campanha. Por exemplo, a gente pegava Uber só para conversar com os motoristas sobre a situação do país, pedindo para que votassem; todo mundo andando com adesivo e tentando falar nos supermercados com as pessoas. Foi muito bonito de ver esse movimento.

          CW Você estava em Teresina ou no Rio?

          ME Eu estava fazendo o “Batucada” em Belo Horizonte, depois em São Luís, quando passou ao segundo turno, depois ainda em Recife, onde fizemos nos dois dias anteriores ao segundo turno. A gente chegou quatro dias antes, teve uma manifestação grande com Fernando Haddad, milhões de pessoas na rua. Nós fomos em grupo, tentando fazer uma ponte entre o “Batucada” e a situação. O Brasil está dividido entre uma intolerância, uma dureza, e uma certa vontade de mudar, uma revolução um pouco engraçada, um pouco subversiva. Não é que a gente queira o governo do PT – falo por mim pelo menos, alguns querem de fato. Mas é uma defesa da democracia, porque realmente não faz sentido o que esse senhor prega, e já começaram os escândalos de corrupção antes de ele entrar.

          CW As pessoas continuam a conversar hoje, por exemplo, em Teresina, onde você está agora?

          ME Diminuiu muito a conversa, porque a gente não tem mais o que fazer. Foi um golpe muito grande. A gente sente que perdeu um espaço e que agora não é sobre tirar o Bolsonaro, e sim sobre esperar e começar a trabalhar para, numa próxima eleição, estarmos fortalecidos.

          CW Quatro anos de horror. Você agora tem um espaço em Teresina, não é?

          ME Sim, um espaço chamado CAMPO, muito precário. São dois estúdios de 500 m2 com pilares. O estúdio de cima é o que eu chamo de “Demolition Incorporada”. E embaixo é o “estúdio de baixo”, que está nas mãos de um artista visual e fotógrafo, Maurício Pokemon. Mas tem muitas outras pessoas da performance, teatro, moda… a gente usa os espaços para tudo. E conseguimos construir quatro apartamentos, com ar condicionado, porque aqui é preciso ar condicionado. É igual ao chauffage aí no inverno: tem que ter!

          CW Não sei se em Portugal saberão da situação climática de Teresina…

          ME Teresina foi considerada durante muito tempo uma das capitais mais pobres do Brasil. Quando o Lula assumiu o governo em 2002, ele fez o mapa da pobreza, e um município do Piauí, que se chama Guaribas, foi constatado como o mais miserável. Essa miséria não era só econômica e social, era também subjetiva, cultural e simbólica. A gente vem conseguindo desfazer isso. O Brasil mudou muito com o governo do Lula. Abriu portas para muita gente, tirou a pobreza e a miséria de um lugar recluso que era quase intocável. Teresina cresceu muito, principalmente nos últimos quinze anos. Culturalmente também começou a dar passos. É muito engraçado imaginar que Teresina é citada como uma das capitais do Brasil que tem dança, dentre cinco ou oito capitais, de um total de quase trinta. Acabo de ir a São Paulo dar uma palestra para o governo e comecei falando que, há vinte anos, seria impossível pensar num artista do Piauí sendo trazido para São Paulo para falar de arte e cultura. Mas Teresina tem uma situação climática que dificulta, porque é muito quente e não fica na costa. O calor afasta qualquer possibilidade de as pessoas virem para cá. É como Tohoku, onde vivia o Hijikata, no Japão. Tohoku é muito frio, muito pobre, muito gelado. É a mesma coisa.

          CW De onde vem o dinheiro para esses dois espaços que você descreveu?

          ME Esse prédio era um depósito de supermercado. A família da Regina Veloso, que trabalha comigo como produtora, tem uma relação de amizade com o dono. É um prédio grande que nos custaria muito mais se fôssemos analisar o preço real, mas a gente paga um preço simbólico e trabalha todos os meses para pagar. De tudo o que eu ganho na Europa, com as turnês, com as aulas que eu dou, com as subvenções para criação, vem uma percentagem para cá.

          CW Mas não tem nenhuma subvenção para o lugar?

          ME Nenhuma, nem um real, ninguém, nada. A gente nem consegue cobrar entrada para dizer que tem uma receita. Porque o lugar é muito precário. Então a gente pede doação, e isso é muito pouco. A gente faz um fanzine e vende. Mas aí só dá para pagar o aluguel da máquina de fotocópias. Já tentamos, inclusive com os órgãos governamentais aqui do Piauí. As pessoas não têm nenhum interesse porque dizem que não é um espaço deles.

          CW É só o trabalho da companhia que paga esses dois espaços?

          ME Não. Agora, por exemplo, o Pokemon ganhou uma subvenção para o trabalho dele. Então esse dinheiro vem. A Regina consegue alguns outros. A gente consegue que venha um grupo fazer uma residência, então ficam trezentos euros para a gente. Existem todos esses movimentos no sentido de conseguir pagar as contas.

          CW Se você comparar a sua situação em Teresina com a da Lia [Rodrigues] na Maré, quais são as diferenças estruturais?

          ME Faz algum tempo que eu não vou na Maré, mas a Lia tem mais acesso a subvenções. Também é um pouco mais velha, trabalha há mais de tempo e tem um grande suporte da França que ajuda muito. A gente, por exemplo, tentou o suporte da Maison Hermès esse ano, mas não tem mais dinheiro porque a Hermès nunca vai vender aqui em Teresina. As pessoas não têm dinheiro para comprar Hermès, então não tem importância. No Rio tem Hermès. Mas a Maré também é muito mais violenta. A gente não tem tanto risco de levar uma bala perdida saindo aqui do espaço. A Maré fica no Rio de Janeiro, que é um lugar turístico, central, importante, que atrai muitos curiosos, e isso ajuda muito a Lia a estar mais num fluxo, num trânsito. Eu estou muito isolado, e esse fato dá uma descrença com relação a que lugar é esse no fim do mundo. O que é que essa gente está fazendo?

          CW Entendo, faz sentido. Eu não vou ao Brasil há sete anos. Há agora outros projetos no país como o que você faz em Teresina?

          ME Eu imagino que sim. A ideia de residência artística é muito nova no Brasil, principalmente nas artes performáticas. É mais conhecida para artistas visuais, como o Capacete, que já tem vinte anos.

          CW Mas o Capacete também fica no Rio…

          ME Os poucos espaços que tem são no Rio e em São Paulo. Mas residência de arte performática não tem nem no Rio nem em São Paulo. A minha ideia com CAMPO é transformá-lo num centro coreográfico, um pouco nos modelos da França, um lugar onde se possa trabalhar não só com coreografia em termos de espetáculo, mas também pensando coreografia social, do convívio.

          CW Então você tem ideias para fazer crescer tudo isso em Teresina?

          ME O meu sonho é ganhar muito dinheiro na loteria, comprar esse espaço, gastar muito dinheiro num prédio escultural, uma coisa de nível japonês, e transformá-lo num grande centro, justamente para trazer atenção para um lugar pobre, e dizer que esse lugar também é capaz de ter ideias e de produzir. Porque, hoje em dia, apesar dessa discussão estar mais avançada, de equidade, de descentralizar Rio e São Paulo, na realidade esses ainda são os centros do Brasil. Eu tenho projetos de transformar oficialmente o espaço num centro coreográfico para o Nordeste. Existe uma diferença entre o Sul e o Nordeste do Brasil. Agora, nas eleições, isso ficou ainda mais claro, porque o Nordeste inteiro votou no PT, em Haddad, e o Sudeste inteiro, o Sul, votou em Bolsonaro.

          CW E como você faz agora, com a situação política recente? Qual é a diferença que faz para o seu trabalho artístico?

          ME Existe muito medo no ar no Brasil. Por exemplo, eles começaram a divulgar uma lista de artistas que estariam sendo perseguidos, ou perante quem a gente teria de ter atenção.

          CW Que horror! É racismo.

          ME Nessa lista estariam uns 700 nomes. Eu não estou nessa lista. Mas o “Batucada” é um espetáculo que lhes chamou a atenção. A mulher do [Sérgio] Moro, que é Bolsonaro, que se candidatou a deputada, colocou a foto do “Batucada” e de outros espetáculos num flyer dizendo “Nós não queremos mais isso no Brasil”. Então a nudez é uma coisa que ninguém quer mais. Eu estou criando agora um espetáculo em que nós estamos trabalhando nus. Mas eu acho que no Brasil a gente não vai conseguir apresentar. Nenhum SESC vai comprar um projeto que tenha nu.

          CW Mas o SESC é uma organização independente…

          ME O SESC é uma organização privada com funções públicas. Só que, nos últimos anos, quando começou essa coisa toda do Bolsonaro — a intolerância —, o SESC passou a ser o nosso Ministério da Cultura. Eu tenho várias críticas ao SESC, mas é o único órgão no Brasil que ainda está atendendo a cultura. E agora já se fala que todo o dinheiro para circular produtos artísticos tem que parar. Isso vai quebrar totalmente as nossas pernas, vai ser um desfalque. Se a gente perder o SESC, a cultura brasileira não vai para lugar nenhum. Eu só estou fazendo a minha criação agora porque consegui uma subvenção do Itaú Cultural.

          CW O Itaú Cultural é também uma organização privada, de um dos maiores bancos da América Latina. Eles também apoiam iniciativas de dança contemporânea?

          ME Sim. Eles têm um projeto chamado Rumos que é feito a cada dois ou três anos e contempla todas as áreas, inclusive arquitetura, patrimônio histórico, arquivo, áreas que estão um pouco esquecidas. Os resultados dos projetos que foram enviados no ano passado saíram neste ano [2018], e dos dezesseis mil projetos em candidatura só foram escolhidos cento e nove.

          CW Entendo. Esse dinheiro é para dois, três, quatro anos?

          ME Não, são cem mil reais, vinte e cinco mil euros. É tudo o que eu tenho para fazer uma peça, para pagar todo o mundo, para pagar o espaço.

          CW E você pode ganhar várias vezes esse edital?

          ME Eles dizem que eu posso me candidatar mais vezes. Mas existe pouca chance, porque existe muito mais do que cento e nove projetos bons. Eles não têm condição de subvencionar quinhentos projetos.

          CW Sim. Eles têm.

          ME Eles têm. Mas eles não querem.

          CW Vamos falar com a Milú [Villela]. Conta-nos brevemente quem é a Milú.

          ME A Milú é uma senhora muito simpática e elegante, muito rica, filha de um grande empresário que criou o Banco Itaú, e foi ela quem criou o Itaú Cultural, uma organização especialmente dedicada às artes, a princípio às visuais, mas que depois se expandiu para as performáticas e para todas as artes que lidam com minorias e grupos específicos. É um trabalho sociocultural bastante intenso e rigoroso em São Paulo.

          CW Você tem de convidar a Milú, um dia, para o seu espaço em Teresina.

          ME Seria muito importante e interessante. Não sei se ela se sentiria muito à vontade.

          CW Sobre a sua próxima peça, onde você se apresenta aqui na Europa, no primeiro mundo?

          ME Eu resolvi fazer a estreia dessa peça aqui no meu espaço em Teresina, por questões políticas. Vai se chamar A invenção da maldade. Não é uma peça sobre este momento político do Brasil, mas não tem como as pessoas não relacionarem com o que está acontecendo. Também escolhi ensaiar aqui e utilizar o isolamento que a gente vive, a precariedade do espaço, para tentar gerar uma dança que exatamente dentro desse estado de escassez de condições. O Itaú está tentando mandar alguns jornalistas para cá, porque é especial fazer uma estreia de um trabalho de arte contemporânea nesse momento. E vou apresentar depois no Porto, no Festival DDD no Rivoli, em Bolonha, no HAU em Berlim e no Kunsten em Bruxelas.

          CW Como sempre, você faz turnês chiquérrimas na Europa, vamos esperar que você se possa apresentar no Brasil num futuro próximo.

          ME Tudo no Brasil está suspenso até o carnaval. Mas este ano é mais especial porque entra um presidente que vai possivelmente mudar muitas coisas, então a gente vai ter que ficar lutando para que não mudem tantas coisas assim.

          CW Marcelo, os seus e os nossos amigos do Brasil têm medo, ou não?

          ME Muito medo. A gente tem medo de não conseguir mais nenhuma subvenção, de não conseguir mais apresentar em nenhum lugar, de apanhar na rua, de ser agredido, de que uma lei da igreja nos proíba de dançar sem roupa, a gente está com medo de tudo, medo de falar com as pessoas. A gente já consegue reconhecer, pela maneira como a pessoa se veste ou fala ou pelos assuntos, se é Bolsonaro. Então está se criando uma intolerância também da nossa parte. Nós também estamos um pouco agressivos.

          CW É difícil não ser intolerante.

          ME É difícil, mas sabemos que nós, os negros, os veados, os artistas, os nordestinos, somos a parte mais fraca, somos os que estão na mira das armas. O Bolsonaro está pregando a liberação das armas. O Brasil é o país que mais mata, onde existem mais crimes contra LGBT e transsexuais. A gente tem medo de isso se legitimar. Existe quase uma campanha para matar veado.

          CW Que horror. O que é que a comunidade LGBT no Brasil faz contra isso?

          ME As pessoas continuam conversando e se solidarizando entre elas. Teve uma campanha bonita antes da eleição que tinha um cartazinho escrito “Ninguém solta a mão de ninguém”; depois da eleição tem um cartazinho com “Ninguém solta a rola de ninguém”. Neste momento não tem muita coisa a se fazer, mas entre os meus amigos a gente fala que tem que haver mais desbunde. Desbunde é todo um movimento que a Tropicália deflagrou no Brasil e que virou e sustentou também o movimento gay. Desbunde é Ney Matogrosso, é Dzi Croquettes, são todas as trans trabalhando e fazendo o que estão fazendo. Nunca foi tão importante a gente continuar produzindo, justamente para manter a nossa força.

          CW Que coisa fazem os grandes, o Ney, o Caetano, a Bethânia etc., o que eles falam publicamente?

          ME A Bethânia tem uma foto que foi divulgada durante as eleições com a camiseta do Haddad. O Chico Buarque está na linha de frente em relação ao pronunciamento, se expondo. O Caetano faz shows, dá declarações. Existem vários artistas lutando, mas a gente não sabe porque o poder é maior. Eu sinto que esse é o momento de colocar o pé na porta e não deixar a porta fechar.

          CW Claro, é a única maneira.

          ME Eu acredito que é um momento culturalmente muito especial, porque as crises também nos levam a produzir mais adequadamente com o momento. Eu já sinto uma força vindo dessa resistência, da percepção de que a gente tem que fazer alguma coisa, como artista, com os nossos corpos, com as nossas inteligências, com a nossa voz. Eu acredito que o Brasil vá ocupar um lugar de destaque de novo, porque esse país tem uma dinâmica.

          CW Concordo totalmente.

          ME Eu sei disso porque vivi todos esses anos fora. Eu vejo a quantidade de facilidades objetivas que a Europa tem, mas falta uma dinâmica, falta sangue no olho. Então eu espero que a gente tenha forças, que a gente não seja dizimado, para que a gente possa focar o movimento no Brasil.

          Cyriaque Villemaux Inventar o Pai

          PT

          UM HOMEM DÁ À LUZ O SEU PAI

          Já que o pai não é o progenitor, talvez seja possível concebê-lo.
          Foi esta a reflexão a que puderam assistir os membros do pessoal hospitalar de Lisboa. Um tal de João trouxe ao mundo um pequeno rapaz a que decidiu chamar João, como o seu pai. De acordo com fontes fidedignas, terá mesmo dito: “É verdade que não é muito bonito, mas amo-o na mesma porque é o meu pai.”
          Para além de ser a primeira criança a nascer de uma pessoa dotada de um órgão reprodutivo masculino, trata-se também do primeiro ser a brotar de um pensamento. Assim que pudemos questionar o jovem filho sobre o método de procriação, eis o que nos respondeu: “Tudo partiu da ideia segundo a qual nós também herdamos dos nossos sucessores. Para que haja um legado é necessário um elo forte que nos reconduza aos antepassados. No entanto, sem descendente, o antepassado, enquanto pai, não passa de uma ficção. Só poderá viver como pai a partir do momento em que se produz uma ligação. Essa ligação tem duas pontas, mas não está nas mãos do pai lançar a outra extremidade do fio ao seu herdeiro ou herdeira. Pelo contrário, são estes últimos que reconhecem o pai e lhe estendem o elo que o conduzirá até à luz. Isto quer dizer que o herdeiro cria o seu antepassado, o herdeiro dá à luz o parentesco, produ-lo. A história da arte, por exemplo, pode ler-se de trás para a frente. Eu quis aplicar essa distorção – aliás indolor, não se preocupem – à minha vida. A ideia de pai não passa de um material passível de ser mastigado para produzir um objeto. Acontece que este objeto está vivo e poderá um dia falar.”
          Quanto à pergunta sobre de onde terá saído o pai, apenas tivemos direito a respostas evasivas do género: “Façam uso da vossa imaginação, jornalistas da tanga.”
          Uma coisa é certa: este acontecimento vai fazer história.

           

          O PAI CRESCE LONGE DA SUA CRIANÇA

          Há dez anos atrás demos conta neste mesmo jornal de um acontecimento absolutamente surpreendente: Um homem dá à luz o seu pai. Fomos tentar recuperar o paradeiro de João e do seu pai João, hoje já com dez anos de idade. Ainda vivem em Lisboa, mas parece que a experiência se tornou um pesadelo para o pai, entregue a uma família de acolhimento longe do seu filho, que está interditado de se aproximar do pequeno João sob pena de encarceramento imediato. A assistente social Ana Li Furtado2, com quem nos encontrámos, testemunha: “Tendo em conta o caráter extraordinário da filiação, os serviços sociais ordenaram que a família mono-infantil estivesse permanentemente sob vigilância, decisão a que o recente filho João não opôs qualquer objeção. Um amor natural parecia unir o filho e o seu pai e as múltiplas manifestações hostis a este modelo familiar (marchas silenciosas, artigos na imprensa, ameaças e outros pseudónimos trolls {o republicano mascarado; umpaiumfilhoumcorposaudável; JeSuisJoão; Salazar88; #iwantmyplacentaback}) não pareciam perturbar João e João. Estranhámos apenas um facto: o total silêncio que reinava entre eles. Todas as visitas efetuadas por mim ou por uma colega aconteciam quando a criança dormia ou estava entretida com um dos seus puzzles, a tentar encaixar uma forma num molde vazio, muitas vezes desenhos geométricos elementares, como um círculo, um quadrado ou um losango de cores diferentes. O pai, quando tentámos desviar a sua atenção das formas primárias pronunciando o seu nome, reagiu normalmente. Ou seja, parecia reconhecer-se a si próprio e a hipótese de uma qualquer forma de autismo nunca chegou a ser equacionada. Além disso, o pequeno João era uma criança com uma cabeleira angélica tão espessa quanto precoce, um daqueles casos que nos fazem acreditar que a natureza por vezes permite-se ser insolente. O sorriso e os caracóis adoráveis do pai, aliados à quietude do filho grisalho, eram altamente reconfortantes. O apartamento era modesto e extremamente limpo e arrumado. O filho João dormia no único quarto e, num recanto da sala, tratou de arranjar um casulo com tons azulados para o seu pai. Este recanto protetor continha evidentemente uma cama de grades de madeira clara por cima da qual pendia, rodando em círculos, um móbil fabricado pelo próprio João. Tratava-se de um móbil pouco comum, sem estrelinhas coloridas ou bichos sorridentes. As formas educativas habituais, que servem para despertar os sentidos do bebé, tinham sido substituídas por pedaços de cera rosa que não consegui identificar à primeira vista. Ao aproximar-me do objeto acabei por distinguir o que me pareceu serem moldes ou, para usar um termo técnico, um pequeno corpo em vista explodida. Será que estes moldes foram decalcados do pai João? Criados ou pensados a partir de um boneco? O filho João nunca diz nada (mesmo que hoje não haja dúvidas de que o seu pai foi a forma que serviu o molde). Sobrava a perturbação causada pela verosimilhança dos corpos flutuantes.

           

          “E nunca estranhou?
          ◦ A princípio sim, mas como o João se estava a divertir tanto com o móbil achei que se calhar não tinha mal nenhum. Afinal de contas, as crianças brincam com bonecas mais ou menos realistas e o que é mais divertido é arrancar uma perna, uma cabeça ou um braço à boneca e depois recompô-la de forma diferente. É mesmo uma fonte de prazer à qual é agradável poder recorrer com qualquer idade. Neste caso, o corpo estava já desfeito em pedaços e dispunha-se a imensas combinações possíveis. Um pé que parecia sair de um pescoço, ao mesmo tempo que um dedo do pé se aproximava de uma pilinha e parecia ter encontrado um irmão. A minha descrição pode parecer horrível, mas a verdade é que o espetáculo fez-me rir bastante.
          ◦ Os seus superiores tinham conhecimento de tudo isto?
          ◦ Sim, chegaram mesmo a deslocar-se para virem ver o que supuseram ser um objeto de tortura.
          ◦ E?
          ◦ Acharam-no bastante conseguido e lúdico. Imagine a felicidade de um querubim de caracóis loiros diante de um olho que flutua como um satélite junto a uma orelha que está ela própria a gravitar em redor de um calcanhar. Será isto pior do que chamar-se João?”

           

           

          O nosso folhetim prossegue na próxima semana.

           

           

          “Será isto pior do que chamar-se João?
          ◦ …
          ◦ Talvez seja mais difícil desvincular um indivíduo de um nome do que fazê-lo aceitar um corpo múltiplo. Um nome pega-se. Mas um nome associado a um corpo despedaçado torna-se muita coisa.
          ◦ Então você acha que tudo isto tinha boas intenções?
          ◦ Valha-nos Cristo e Fátima, não, Deus seja louvado! Não tenho dúvidas de que havia em tudo isto uma grande crueldade, mas que querem, dar à luz não é das coisas mais anódinas que existem. Não se trata de fazer como se fosse tudo óbvio. João deu à luz João e depois partiu-o em pedaços e disse: reconstitui-te à tua maneira, querido pai. E João riu-se, porque é a vida.”

           

          Enquanto o pai João, com o olhar, compunha o seu corpo de mil e um modos diferentes, o filho João observava esse pequeno ser que em breve falaria. Até hoje tinha-o rodeado de silêncio mas, apesar dos esforços, a criança parecia reconhecer-se no som [‘ʒwɐ̃w̃]. Era importante que este som não se colasse demasiado à pele de João, pois, uma vez embutido, seria muito complicado de o tirar. Ele queria manter o pai em suspenso à maneira do móbil de cera, que não passava de afagos e hipóteses. Para que João ficasse para sempre [‘ʒwɐ̃w̃] era necessário afogá-lo em si mesmo, tornar este nome um ambiente. Seria como revirar-lhe a pele e fazer dessa membrana o saco que retém o eco da criança: [‘ʒwɐ̃w̃]. João teve a ideia de multiplicar [‘ʒwɐ̃w̃], de o deformar até que se tornasse uma suite de onomatopeias, um canto de pássaro. Tinha ouvido falar de uns lisboetas proprietários de tentilhões que vivem para os lados da Musgueira. Os seus passarinhos foram treinados a repetir um canto único. Colocados numa gaiola coberta por um pano, escutavam durante horas um canto de tentilhão que imitavam. No dia da competição, cada pássaro (numa gaiola afastada dois metros e quarenta da sua vizinha) tem de encadear o maior número de trinados no espaço de tempo de uma hora. Um outro concorrente posicionado em frente à gaiola marca, numa régua em madeira, um traço por cada canto cumprido. João decide que talvez não seja má ideia fazer de [‘ʒwɐ̃w̃] o timbre de um canto, material maleável de uma melodia de tentilhão. Pôs então mãos à obra e compôs. A primeira versão a que chegou era de uma grande simplicidade. Contentou-se em inscrever uma nota por compasso, seguindo um andamento escolhido ao acaso. Chamou ao canto: Melodia do pássaro.

           

          Depois de dispor as notas pela partitura, faltava-lhe distribuir os fonemas do nome. E foi isso que fez, espargiu os fonemas do seu pai como faria com as cinzas de um defunto: [‘ʒ]; [w]; [ɐ̃]; [w̃]. A sua confiança no acaso era limitada e por isso João adquiriu um software de composição musical. Introduziu nele as notas e confiou a sua interpretação à voz de uma soprano digital. Uma nota por fonema, na ordem lógica do som [‘ʒwɐ̃w̃]. O resultado afastava-se bastante do canto do tentilhão. A melodia era humana, melancólica e demasiado longa. Seria ele alguma vez mais capaz de escutar todos os dias um tal lamento? Não. Mas o ar tinha uma certa graça e, se bem que a ornitologia do trilo fosse discutível, será que não valia mais a pena começar a aprendizagem de [‘ʒwɐ̃w̃] com um chilrear acessível para depois o encerrar num trilo único de onde nunca mais sairia? Porque antes de compor melodias novas que fariam com que João se perdesse um pouco mais no labirinto fonético em que se iria tornar o seu nome, era necessário assegurar que o pai seria capaz de aprender este primeiro canto. João instalou [‘ʒwɐ̃w̃] no parque e fê-lo escutar a Melodia do pássaro. Continuava a poder brincar com os seus cubos de madeira e outros brinquedos que ofereciam texturas e sons diferenciados, mas, num lugar fora do alcance dos seus dedos rechonchudos, um altifalante enviava-lhe o [‘ʒwɐ̃w̃] fraturado em música. Não parecia que o pai desse uma atenção especial à atmosfera musical que acabaria porém por se imiscuir. A música nunca foi difundida a níveis sonoros que pudessem alertar para o seu conteúdo. Qualquer estranho que visitasse João e o seu pai notaria apenas um fundo musical sem perceber o propósito. Além disso, a natureza doce do filho ecoava no tom da sua voz e era frequentemente necessário aproximar os ouvidos para se perceber o que saía da sua boca. Os interlocutores adaptavam-se inconscientemente ao nível sonoro enquanto o altifalante, colocado suficientemente próximo do parque, constituía uma espécie de barreira sonora entre a língua falada pelos adultos e a orelha falsamente passiva do pai. Esta língua longínqua não passava de um sussurro de consoantes com valor idêntico ao velho frigorífico da cozinha.
          Achava-se no arranjo dos elementos que circundavam [‘ʒwɐ̃w̃] uma familiaridade feita de sensações entre as quais o sussurro do velho frigorífico desempenhava o seu papel, tal como a cor da mesa da cozinha ou o cheiro do armário onde estavam dispostos os produtos de limpeza. Longe das palavras, estes elementos sensíveis organizavam-se em constelações que nenhuma imagem, som ou cheiro poderia reunir num todo. Restos de sensações captadas pelos órgãos deste pequeno corpo e que mais tarde se traduziriam em gestos, posturas, entoações. Associações efémeras, que ultrapassavam o que o nome João poderia alguma vez significar, inchavam-no como a uma tripa sem que essa pressão fosse visível do exterior, e continuavam a fazer-se e a desfazer-se às custas do nome João, mero recipiente ou panela saída de uma gaveta dessa mesma cozinha. Ele não passava de um tableau vivant sobre o qual se imprimiam misturas bizarras que desfilavam sob o seu olhar e cruzavam os seus sentidos. João apenas existia graças a elas ou graças ao que elas depositavam nele e ao modo como o iam emendando, fazendo-o assim sentir-se como uma bisnaga ou uma despensa na qual circulam felicidade e tristeza, motivadas por atrações a que, para usar uma expressão familiar, podíamos chamar lunares, e que depositam resíduos ao longo das paredes da despensa com a ajuda dos quais se tenta construir uma figura capaz de se aguentar de pé. Esta modelação quase primitiva era obra de mãos toscas, entorpecidas, e que nenhum olho supervisionava. Nunca haveria nada para ver, ou, quanto muito, apenas uma forma indescritível como a que se observa no fundo de um poço aonde não chega qualquer luz e sobre a qual só se pode ter uma ideia desfocando propositadamente o olhar. Ela manter-se-ia, apesar de tudo, fora do alcance, acessível apenas por círculos que, passando uma e outra vez por um mesmo sulco, acabariam por gravar um som, uma imagem, uma palavra ao acaso. João tornar-se-ia isso mesmo, ou antes, isso tornar-se-ia [‘ʒwɐ̃w̃] e essa língua longínqua, idêntica ao som emitido por um frigorífico, seria, quer se queira quer não, também ela incorporada.

           

           

          Traduzido do original em francês por José Maria Vieira Mendes.

          FR

          ENFANTER SON PÈRE

          Un homme donne naissance à son père

          Puisque le père n’est pas le géniteur il serait possible de l’enfanter.
          C’est la réflexion qu’ont pu observer les membres du personnel hospitalier de Lisbonne. Un dénommé João a ainsi mis au monde un petit garçon qu’il a choisi de prénommer João, comme son père. D’après des sources sûres, il aurait même dit : « C’est vrai qu’il n’est pas très beau, mais je l’aime quand même, parce que c’est mon papa. »
          En plus d’être le premier enfant né d’une personne dotée d’un organe de reproduction mâle, il s’agit également du premier être qui aurait accouché d’une réflexion. Ainsi lorsque nous avons pu interroger le jeune fils sur la méthode de procréation, voici ce qu’il nous a répondu : « Tout ça est parti de l’idée selon laquelle on hérite aussi de ses successeurs. Pour qu’il y ait héritage il faut un lien fort qui renvoie à l’ancêtre. Cependant, sans descendant, l’ancêtre en tant que père, peut rester à l’état de fiction. Il ne vit comme père qu’à partir du moment où un lien est produit. Ce lien a deux bouts mais il n’est pas dans le pouvoir du père de lancer l’autre extrémité du fil à son héritier ou héritière. Au contraire, ce sont ces derniers qui le reconnaissent et lui tendent le lien qui le guidera vers la lumière. Cela voudrait dire que l’héritier créé son ancêtre, qu’il enfante la parenté, qu’il la produit. Par exemple, l’histoire de l’art peut tout à fait se lire à rebours. Ce que j’ai souhaité faire c’est appliquer cette distorsion – du reste indolore, rassurez-vous – à ma vie. L’idée de père n’est qu’un matériau qu’il est possible de triturer pour produire un objet. Il se trouve que cet objet est vivant, qu’il pourra un jour parler ».
          Quant à la question d’où était sorti le père, nous n’avons eu droit qu’à des réponses évasives du type : « Faites un peu fonctionner votre imagination, journaleux à la p’tite semaine. »
          Nul doute en tout cas que cet événement fera date.

           

          Le père grandit loin de son enfant

          Il y a dix ans de cela nous relations dans ce même journal un événement des plus surprenant : Un homme donne naissance à son père. Nous avons tenté de retrouver la trace de João et de son père João, à présent âgé de dix ans. Ils vivent toujours à Lisbonne, mais il semblerait que l’expérience ait viré au cauchemar pour le papa, aujourd’hui placé en famille d’accueil loin de son fils, lequel a interdiction de s’approcher du petit João sous peine d’emprisonnement immédiat. L’assistante sociale Ana Li Furtado1 que nous avons rencontrée témoigne :

          « Étant donné le caractère extraordinaire de la filiation, les services sociaux ont ordonné un suivi constant de la famille mono-infantile auquel le récemment fils João n’a opposé aucune objection. Un amour naturel semblait unir le fils et son père, et les multiples manifestations hostiles à ce modèle familial (marches silencieuses, tribunes dans la presse, menaces et autres trolls pseudonymes {le républicain masqué ; unpèreunfilsuncorpsain ; JeSuisJoão ; Salazar88 ; #iwantmyplacentaback}) ne semblaient pas troubler João et João. Une seule chose aurait dû attirer notre attention : le complet silence qui régnait entre eux. Chacune des visites effectuée par moi ou une collègue se faisait lorsque l’enfant dormait ou était occupé à jouer à l’un de ces puzzles où la consigne est de faire rentrer un plein dans un vide, souvent de forme géométrique élémentaire tels des ronds, carrés ou losanges de couleurs. Le père, quand nous tentions de détourner son attention des formes primaires en prononçant son prénom, réagissait tout à fait normalement. C’est-à-dire qu’il semblait se reconnaitre et l’hypothèse d’une forme d’autisme n’a même jamais été envisagée. Par ailleurs le petit João était de ces enfants qui arborent une chevelure angélique aussi drue que précoce et nous fait penser que la nature se permet souvent des insolences. Le sourire et les boucles adorables du père associés au calme du fils grisonnant étaient tout à fait rassurants. L’appartement modeste était d’une grande propreté, João le fils dormait dans l’unique chambre tandis qu’il avait aménagé une partie du salon en un adorable cocon bleuté pour son papa. Ce coin protecteur accueillait bien évidemment un lit à barreaux de bois clair au-dessus duquel un mobile fabriqué par João pendouillait en cercles. C’était un mobile peu commun qui ne représentait pas de petites étoiles colorées ou bien quelque animal souriant. Les formes éducatives habituelles servant à éveiller les sens des bébés avaient été remplacées par des morceaux de cire rosée que je ne parvenais pas à identifier immédiatement. M’approchant de l’objet, je finissais par distinguer ce qui ressemblait à des moulages ou, plus techniquement, à la vue éclatée d’un petit corps. Ces moulages avaient-ils été réalisés directement sur João le père ? modelé ou pris sur une poupée ? João le fils n’en dit jamais rien (même s’il ne fait à présent plus aucun doute que son père fut la forme surmoulée). Restait le trouble causé par la vraisemblance des corps flottants.

           

          « Et à aucun moment cela ne vous a paru bizarre ?
          ◦ C’est-à-dire qu’au début oui mais comme je voyais João s’amuser beaucoup avec le mobile je me suis dit que peut-être il n’y avait rien de mal à cela. Après tout les enfants jouent avec des poupées plus ou moins réalistes et la partie la plus drôle est souvent d’arracher une jambe, une tête ou un bras à cette poupée puis de la recomposer différemment. C’est même une source de plaisir à laquelle il est agréable de puiser à tout âge. Ici le corps était déjà en morceau et offrait plein de combinaisons différentes. Un pied paraissait sortir d’un cou tandis qu’un orteil frôlait un petit zizi et semblait retrouver un frère. Ma description peut sembler terrifiante, en réalité j’ai beaucoup ri devant ce spectacle.
          ◦ Vos supérieurs avaient-ils connaissance de tout cela ?
          ◦ Oui, il se sont même déplacés pour voir ce qu’ils imaginaient être un objet de torture.
          ◦ Et ?
          ◦ Ils l’ont trouvé très réussi et très ludique. Imaginez un chérubin aux boucles blondes hilare devant un œil flottant tel un satellite à proximité d’une oreille elle-même en gravitation autour d’un talon. Est-ce pire que de s’appeler João ? »

           

           

          La suite de notre feuilleton la semaine prochaine

           

           

          « Est-ce pire que de s’appeler João ?
          ◦ …
          ◦ Peut-être est-il plus difficile de délier le nom d’un individu que de lui faire accepter un corps multiple. Un nom ça colle. Mais un nom associé à un corps en morceaux, ça devient beaucoup de choses.
          ◦ Vous pensez donc que tout cela partait d’un bon sentiment ?
          ◦ Oh, Jésus-Christ et Fatima, non, Dieu soit loué ! Je crois même qu’il y avait là une grande cruauté, mais que voulez-vous, donner naissance n’est pas ce qu’il y a de plus anodin. Il ne s’agit pas après coup de faire comme si tout cela allait de soi. João a mis João au monde puis il l’a mis en morceaux et a dit : reconstitue-toi à ta guise cher papa. Et João a ri car c’est la vie ».

           

          Tandis que João le père composait, du regard, son corps à l’infini, João le fils observait ce petit être qui bientôt parlerait. Il l’avait jusqu’à présent entouré du plus parfait silence mais, en dépit de ces efforts, l’enfant semblait se reconnaître dans le son [‘ʒwɐ̃w̃]. Il fallait que ce son ne s’attache pas trop à la peau de João car une fois incrusté il aurait été très compliqué de le lui arracher. Il souhaitait voir son papa rester en suspens à la manière du mobile de cire qui n’était que frôlements et hypothèses. Pour que João restât à jamais [‘ʒwɐ̃w̃], il fallait le noyer en lui-même, faire de ce nom un environnement. Ç’aurait été comme lui retourner la peau et faire de cette membrane le sac où enfermer l’écho de l’enfant : [‘ʒwɐ̃w̃]. João eut l’idée de multiplier [‘ʒwɐ̃w̃], de le déformer jusqu’à ce qu’il devienne une suite d’onomatopées, un chant d’oiseau. Il avait entendu parler de ces pinsonniers lisboètes sévissant du côté de Musgueira. Leurs passereaux étaient entraînés à répéter un chant unique. Placés dans une cage recouverte d’un drap, ils écoutaient pendant des heures un chant de pinson qu’ils imitaient. Le jour de la compétition, chaque oiseau (dans une cage ad hoc espacée de sa voisine de deux mètres quarante) doit enchaîner le plus grand nombre de trilles dans un laps de temps d’une heure. Un autre compétiteur positionné face à la cage marque sur une règle en bois un trait pour chaque chant accompli. João se dit que faire de [‘ʒwɐ̃uw̃] le timbre d’un chant, le matériau malléable d’une mélodie de pinson n’était pas une si mauvaise idée. Il se mit donc à l’œuvre et composa. La première version qu’il obtint était d’une grande simplicité. Il s’était contenté d’inscrire une note par mesure, suivant un tempo pris au hasard. Il avait appelé ce chant : Mélodie de l’oiseau.

          Une fois les notes disposées sur la partition, il suffisait d’y disperser le prénom en phonèmes. Et effectivement il dispersa son père en phonèmes, comme il l’aurait fait des cendres d’un défunt : [‘ʒ] ; [w] ; [ɐ̃] ; [w̃]. Sa confiance dans le hasard étant limitée, João fit l’acquisition d’un logiciel de composition musicale. Il y inscrivit les notes et confia leur exécution à la voix d’une soprano numérique. Une note par phonème, dans l’ordre logique du son [‘ʒwɐ̃w̃]. Le résultat était assez loin du chant de pinson. La mélodie était humaine, mélancolique et beaucoup trop longue. Serait-il jamais capable d’écouter chaque jour pareille complainte ? Non. Mais l’air avait quelque grâce et, bien que l’ornithologie de la trille fut discutable, ne valait-il pas mieux faire débuter l’apprentissage de [‘ʒwɐ̃w̃] par un gazouillement abordable pour ensuite l’enfermer dans une trille unique d’où il ne sortirait plus ? Car avant de composer de nouvelles mélodies qui perdraient un peu plus João dans le labyrinthe phonétique que son nom allait devenir, il fallait s’assurer que le père était bien capable d’apprendre ce premier chant. João installa [‘ʒwɐ̃w̃] dans son parc à jouer et lui fit entendre Mélodie de l’oiseau. Il disposait toujours de ses cubes en bois et autres doudous offrant différentes textures et bruits au touché, mais placée hors de porté de ses doigts potelés, une enceinte sournoise lui envoyait du [‘ʒwɐ̃w̃] fracturé en musique. Le père ne semblait pas porter une attention particulière à l’environnement musical qui devait pourtant finir par le pénétrer. La musique n’était jamais diffusée à des niveaux sonores qui auraient alerté sur son contenu même. N’importe quel étranger rendant visite à João et son père aurait simplement pu remarquer un fond musical sans en élucider le propos. Par ailleurs, la nature douce du fils trouvait un écho dans le ton de sa voix et il fallait souvent tendre l’oreille pour percevoir ce qui sortait de sa bouche. Les interlocuteurs s’adaptaient inconsciemment à ce niveau sonore tandis que l’enceinte placée suffisamment près du parc à jouer constituait une manière de barrière sonique entre la langue parlée par les adultes et l’oreille faussement passive du papa. Cette langue lointaine n’était rien de plus qu’un bourdonnement de consonnes sans plus de valeur que celui du vieux réfrigérateur de la cuisine.
          Il se trouvait pourtant dans l’arrangement des éléments qui encerclaient [‘ʒwɐ̃w̃] une familiarité faite de sensations parmi lesquelles le bourdonnement du vieux réfrigérateur jouait justement un rôle, au même titre que la couleur de la table de la cuisine ou l’odeur du placard où étaient entreposés les produits d’entretien ménager. Loin des mots, ces éléments sensibles s’organisaient en constellations qu’aucune image, son ou odeur n’aurait pu réunir en un tout. Des restes de sensations perçues par les organes de ce petit corps et qui plus tard devraient se traduire en gestes, postures, intonations. Des associations éphémères, qui dépasseraient ce que le prénom João pourrait jamais signifier, le gonflaient comme une baudruche sans que cette pression soit visible de l’extérieur, les associations continuant de se faire et de se défaire à l’insu du prénom João, simple récipient ou fait-tout sorti d’un tiroir de cette même cuisine. Il n’était rien de plus qu’un tableau vivant sur lequel venaient s’imprimer les mélanges bizarres qui filaient sous son regard et à la croisée de ses sens. Il n’existait que par eux, ou plutôt par ce qu’ils déposaient en lui et venaient lui reprendre provoquant ainsi la sensation étrange de n’être guère plus qu’un tube ou un garde manger dans lequel bonheur et tristesse circulent, motivés par des attractions qu’on pourrait nommer lunaire s’il fallait se référer à une langue commune, et qui déposent le long de sa paroi des résidus à l’aide desquels on tente de construire une figure capable de tenir debout. Ce modelage quasi primitif était l’œuvre de mains maladroites, comme engourdies, et qu’aucun œil ne supervisait. Il n’y aurait jamais rien à voir, ou alors seulement une forme indescriptible comme celle observable au fond d’un puits où nulle lumière ne s’attarde et dont on ne peut se faire une idée qu’en floutant par exprès son regard. Elle resterait néanmoins hors de portée, seulement accessible par des cercles qui, repassant dans un même sillon encore et encore, finiraient par graver un son, une image, un mot au hasard. João allait devenir cela, ou plutôt cela allait devenir [‘ʒwɐ̃w̃] et cette langue lointaine, égale au bruit émis par un réfrigérateur serait elle aussi incorporée, bon gré mal gré.

          Felipe Ribeiro A Trama, o Campo e os Buracos

          Depois de uma derrota tão radical nas urnas eleitorais no Brasil e com a previsão de cerceamento às liberdades e conquistas de direitos, de diminuição das ações afirmativas e do reequilíbrio socioeconômico, a pergunta que nos retorna é: arte como? A escala dessa pergunta pede uma revisão das estratégias daquilo que chamamos de política de resistência.

           

          A TRAMA
          Se há algo que a eleição de 2018 no Brasil nos colocou muito concretamente foi que a resistência perdeu. No caso presidencial, os brasileiros que ativamente se predispuseram a escolher um nome para liderar nossas vidas pelos próximos quatro anos preferiram o candidato que prometia uma agenda destilada de preconceitos e ataques às minorias. O mito do homem cordial que por tempos definiu o que é ser brasileiro e forjou nossa convivialidade foi explicitamente suspenso numa luta polarizada, na qual o discurso de restauração da pátria como o poder autoritário do pai venceu o imaginário de Brasil.

           

          Certamente perder não é deixar de existir, e menos ainda deixar de resistir. Mas perdemos e é preciso reconhecer isso para que possamos reconhecer, inclusive, as limitações da resistência. Continuaremos resistindo. É fato. Assim como também é fato que os generais, os agroindustrialistas, os políticos evangélicos, os pastores e os armamentistas sabem que continuaremos resistindo. Intuo que talvez eles não só esperem por nossa resistência como também a desejem. Assim, se forjam como atacados e reafirmam a necessidade de sua cruzada moralista.

           

          É a tática de guerra dos justiceiros: reduzir o problema das disparidades históricas a uma queda de braço circunstancial. História à parte, a disputa por poder se faz parecer equânime, e toda briga se torna antes pessoal do que política. Como em um videogame, ganha o avatar que se mostrar mais oprimido e, ainda assim, não desistir da luta pela justiça com as próprias mãos. Ganha aquele que conseguir unir os diferentes em prol de banir um mal comum. Ganha aquele que capitalizar os seus feitos metaforizando alguma das inúmeras lutas bíblicas. Ganha aquele que se forjar como herói e, por consequência, fizer do outro o vilão. É assim que os direitos humanos são revertidos em entraves para a vida em sociedade, que a luta por direitos iguais entre as múltiplas sexualidades é taxada de ditadura gay, que a discussão de temas de relevância social é denunciada como imposição ideológica e que a proibição desses temas no ensino é laureada como uma política de “escola sem partido”. Ou seja, tudo invertido. Todos os valores às avessas. Poderíamos chamar isso de guerra de narrativas. Durante as eleições esse termo vigorou. Mas suspeito que a questão seja bem pior e mais profunda. Penso que estamos em plena crise de significância e, sob ela, toda narrativa perde sentido lógico.

           

          Como convocar os brasileiros imersos nessa crise em que o significado parasita o significante? Como lidar com a resistência, quando esse próprio termo é parasitado e os religiosos fundamentalistas se entendem como os perseguidos que devem se infiltrar no estado laico? Quando os agroindustrialistas disseminam o discurso de que são eles os impedidos de desenvolver o país pelo excesso de demarcação de terras ambientais e indígenas, e os militares alegam ser os salvadores da pátria disciplinar? Como falar em resistência política nessa queda de braço a-histórica na qual os três grandes pilares coloniais – os cristãos, os extrativistas e os militares – se vendem como os resistentes?

           

          A guerra cultural que se instalou no país, criminalizando e difamando a arte, e ameaçando a liberdade de cátedra, deixa claro o quanto os ataques-travestidos-de-defesa se tornam estratégias de disseminação de um pensamento moral. No entanto, por outro lado, essas atitudes também deixam claro que os campos de produção de pensamento e desenvolvimento sensível são grandes entraves a qualquer projeto de poder autoritário.

           

          A arte e a educação nem sempre respondem bem às urgências de um momento, mas até por isso são forças estruturais na sociedade. O que parece ser nossa fragilidade é justamente nossa força e, se nossos feitos como artistas e professores são difíceis de contabilizar, é justamente porque nossa atuação é duradoura e subterrânea! Como essa força de vida se faz visível quando o que restou da comunicação foram os seus ruídos?

           

          A guerra não é o melhor campo de lutas.
          A guerra já é o campo contra o qual lutamos.

           

          O CAMPO
          A despeito de todas as críticas, as redes sociais foram a tecnologia de guerra dessas eleições. A exclusividade das comunicações do candidato de extrema direita nos aplicativos, em detrimento dos veículos tradicionais de imprensa, afrouxou ainda mais a capacidade de significância de seus seguidores. Passamos da opinião pública às fantasias privadas. E, talvez por inabilidade com esse campo recente, sucumbimos como sociedade aos devaneios mais perversos. Fato é que o caráter pessoal dessa tecnologia parece ter sido fundamental para a aceitação em massa das hipérboles do discurso. As ameaças radicais eram recorrentemente assimiladas como mera paixão circunstancial e desconsideradas em sua capacidade performativa. Vota-se num candidato não por acreditar no que ele diz, mas por desconfiar de seu discurso.

           

          É a crise de significância fazendo-se explícita! É imperativo reconhecê-la para, então, lidarmos com ela com a prudência e a perspicácia necessárias, sob o risco de, caso contrário, apenas aumentá-la. Parece que foi isso o que fizemos toda as vezes que resistimos esbravejando, interpretando, utilizando-nos do imediatismo de fala nas redes sociais, adjetivando mais do que substancializando, promovendo pensamentos rápidos e escritas de impulso. A cada vez que a ira se canalizava para esse fim, a tática de afetos tristes prevalecia e sucumbíamos à lógica do opositor. Julgávamos o outro, nos diferenciando dele e redimindo-nos de nossos pecados, e nesse jogo de espelhos alimentávamos o parasita achando que aplicávamos-lhe o remédio. Participávamos, assim, ativamente do jogo perverso de pessoalizar a política. Uma guerra de narrativas novelescas fadada ao fracasso.

           

          Antes de estabelecermos quaisquer táticas de ação em coletivo, sugiro pensarmos em qual campo performá-las. Até agora o campo prioritário foi o da comunicação, onde as narrativas se confrontam em tentativas de popularizar seus porquês e suas missões. Onde o tiro sai pela culatra é que, entre notícias falsas e simplificações equivocadas, tudo o que se mostra como possibilidade é re-enquadrado como seu oposto.

           

          Intuo que, apesar de toda urgência, o momento pede uma escala mais abrangente de ação, pensando e exercitando outros modos de vida, apostando no potencial libertador da incoerência e, certamente, diagramando nossos esquemas para materializarmos os impossíveis. Há, desde sempre, muitas pessoas imbuídas nessa ação. Mais recentemente, a artista Jota Mombaça definiu “impossível” como tudo aquilo que ainda não foi regulado pelo poder. Uma das belezas dessa definição é tornar o impossível uma circunstância volátil, sempre pronta a desaparecer, porém forte enquanto existe. De forma similar, penso que a necessidade de materializar os impossíveis é fazê-lo sob sua inexorável condição de desaparecimento. Entre materializações e desmaterializações, a arte me parece um campo de enorme potencial para essa experimentação.

           

          OS BURACOS
          Uma anedota. Uma anedota tornada uma epifania. Uma anedota tornada uma epifania tornada futuridade. Durante a apuração das eleições, estávamos entre um grupo de amigos em um bar na Glória, bairro residencial próximo ao centro do Rio de Janeiro. Fomos a esse bar, nessa vizinhança, por saber que, para nossa sanidade e controle de ansiedade, precisávamos estar em um espaço público e entre desconhecidos que comungassem de uma agenda social, ambiental e culturalmente inclusiva. Havia esperança. Talvez celebrássemos uma vitória apertada. Talvez descansássemos alegres ainda que só por uma noite. Nada disso aconteceu. Jair Bolsonaro foi eleito e, entre os desconhecidos do bar, havia uns tantos que celebravam a vitória e tripudiavam de uma derrota que eles achavam ser somente nossa. Nós e outros tantos desconhecidos naquele bar sentíamos o gosto salgado das lágrimas e uma manifesta sensação de impotência.

           

          Foi quando, do centro de nossa mesa, uma amiga negra se levantou em reviravolta. “Engole o choro!”, dizia ela, enquanto lambia também suas próprias lágrimas. “A vida dos pretos é assim desde sempre. Minha mãe já me dizia, ‘menina, engole o choro, porque já aconteceu e tu tem muito o que fazer’(…)”. Entre as discordâncias que essas frases podem conter, havia algo de essencial que nos fortalecia em conjunto. Era preciso viver mesmo que a despeito de tudo o que nos oprime a energia vital. Não tínhamos ideia do que estava por vir. Éramos assombrados pelas políticas de privilégios hegemônicos e privatistas que orientaram essa eleição, e que havia ganhado os votos até mesmo de quem mais precisa dos programas de assistência social. A aparição na TV daquele homem ex-militar – expulso do exército por tramar ataques terroristas – agora tornado presidente da república era uma tortura psicológica a todos nós. Seus discursos já haviam permitido uma série de violências verbais e físicas de seus seguidores em corpos visível ou presumivelmente dissidentes. A pontuação semântica da violência dava sempre o mesmo recado: “Bolsonaro vem aí!”. A ameaça daquela força não era devida somente às políticas que ele implementaria ou deixaria de implementar, mas pelo que seus seguidores faziam em seu nome.

           

          As várias violências perpetradas por motivações políticas deixavam claro que uma disputa eleitoral não se inscreve somente na macropolítica. Ela também delineia as micropolíticas e, certamente, as micropolícias. Os horrores se inscrevem tanto quanto nos microcosmos, e todos nós já tínhamos passado por situações de violência, no mínimo, de ordem verbal. Ali do nosso lado e no mesmo bar havia uma celebração desafiadora. Um grupo bolsonarista nos olhava, rindo e aplaudindo a TV. Eles se abraçavam e brindavam e nos xingavam de esquerdopatas, exaltando a necessidade de nosso extermínio e, claro, nosso envio para fora do país.

           

          Foi aí que, para engolir o choro, começamos a cantar. O samba. Essa música de preto tornada ícone nacional e que nos versa na ambivalência de dobrar a tristeza em alegria. Entre revoltas e reviravoltas, batucávamos na mesa e entoávamos que “apesar de você, amanhã há de ser outro dia…” e “o sol há de brilhar mais uma vez…” e “…o meu castigo, brigou comigo sem ter porquê…”. A força semântica das letras eventualmente disparava em nós um tom emocionado e encarnava-nos o sentido do momento, mas a tática de força vinha mesmo do canto, dos batuques na mesa e daquele corpo negro que, uma vez de pé, gesticulava acompanhando sua voz rouca e se recusava a sentar-se novamente. Apesar de todos os pesares, atomizamos um núcleo afirmativo de forças.

           

          Não demorou muito e os seguidores de Bolsonaro chegaram mais perto, começaram a sambar sob nosso canto e a rir do nosso luto. Afrontavam-nos com a ironia de quem achava que estávamos ali para animar a sua festa. Não nos importamos. Estávamos imbuídos demais em fazer do luto um propulsor de coletividade entre amistosos desconhecidos. Lá pelas tantas, nosso canto continuava e a sambada deles tinha perdido a graça. Nossa indiferença àquelas presenças, que ademais vinha pela triste consciência de que nenhum embate ali poderia mudar o curso da história, foi também enfraquecendo a capacidade deles de nos tripudiar.

           

          Passados alguns meses, essa situação ainda se inscreve em minha memória como uma epifania destes próximos quatro anos que agora se iniciam. Em meio a uma trama política que se tecia à revelia de nosso desejo, abrimos um buraco sem fundo que desregulava a cadeia de ação e reação dos acontecimentos. Mais do que esgarçar as tramas, construímos um centro de forças que, ao mesmo tempo em que reconhecia seu entorno, se recusava a enredar-se nele. Responder a uma perda macropolítica dessa magnitude com uma sequência de batuques e cantorias pode parecer uma ação pequena e até condescendente. Mas penso que sua escala e complacência nem por isso dirimem o teor político da ação, muito menos fazem dela uma forma de alienação. Antes, ela parece atualizar as trágicas palavras que James Baldwin escreveu uma vez a seu sobrinho negro: “Nós não poderemos ser livres até que eles sejam livres”. Ante qualquer classificação de resignação, o que Baldwin lembra a seu sobrinho é que o enamoramento do poder é, este sim, uma prisão. “Eles estão, na verdade, ainda presos a uma história que não entendem; e até que eles a entendam, não podem ser libertados (…)”. O eco de nosso batuque me volta como pergunta. Como lutar pela liberdade sem dividir a mesma prisão?

           

          Naquela noite os bolsonaristas se foram antes de nós. Mas muitas noites ainda hão de vir. A certeza de que a luta é longa, vislumbra uma futuridade para a arte como campo de ação. Um dos aprendizados foi perceber que saímos do jogo demonstrativo que tem produzido tantas armadilhas às subjetividades para fincarmos o pé na performatividade da ação. Em plena crise de significância, é necessário fazer arte que faça coisas acontecerem. Só assim nos esquivamos de uma arte-mensageira que se basta em circular pela trama e suas amarrações oxidadas, e forjamo-la como um buraco negro que não só esgarça essa trama, como também atomiza uma série de forças. Ora em gira centrípeta, ora centrífuga, os buracos negros são a potência capaz de materializar os impossíveis. Sua natureza inesperada, e até mesmo incoerente, porém atomizada, pode gerar as respostas que mais repulsam do que reagem. Assim, esses buracos negros, por excelência sem dimensão, atuam dando limite às micropolícias de todo tipo.

           

          Fortes e fenomenais, os buracos negros são também efêmeros. É no acúmulo das efemeridades que algo persiste. Os buracos se abrem, giram e desaparecem. Mas só para surgirem de novo em outros lugares, em maiores números, girando em diferentes rotações e sentidos, e novamente desaparecendo. E a cada vez que desaparecem, ativam justo essa arte de escavar buracos onde menos se espera. Assim persistem na efemeridade e resistem enquanto fluxo.

           

          Fazer girar não é um modo de vida alienado. É desregulação de diretrizes e abertura de espaço para sua reformulação. É também uma forma de persistir na luta sem ser capturado por ela. Os buracos negros giram – e toda gira é um buraco negro. Os buracos negros giram sua força de vida. Os buracos negros fazem girar a escuridão enquanto resistem ao autoritarismo que atua por feixes. É inclusive desse fluxo retilíneo e iluminado que surge a palavra fascismo. Essa gira não é endógena. Ela gira politicamente consciente do facho do fascismo e politicamente consciente de que a zona esgarçada que ela cria é também temporária. Não se trata tanto de abster-se das tramas de poder quanto de desorganizar seu fluxo unívoco. Talvez nesse sentido, e estimulados pelas ZAT’s, zonas autônomas temporárias, valha a pena pensarmos nas ZART’s, zonas de arte temporária, diagramadas para quem queira escapar ao poder sem desocupar a trama política.

          Duarte Amado O Rei vai nude

          Em 1976, chocada com uma cena de bullying, a escritora de livros para crianças Luísa Ducla Soares escreve um conto-manifesto que viria a ser adotado pela UNICEF, pelo Programa Nacional de Leitura, pelo rendering do teatro escolar e por docentes (des)inspirados para a festa de Natal:

           

          “Era uma vez um menino branco chamado Miguel, que vivia numa terra de meninos brancos e dizia: É bom ser Branco! Porque branco é o açúcar, tão doce, porque é branco o leite, tão saboroso, porque branca é a neve, tão linda!
          Mas certo dia, o menino partiu numa viagem de comboio e chegou a uma terra onde todos os meninos são amarelos. Arranjou uma amiga chamada Flor de Lótus, que como todos os meninos amarelos dizia: É bom ser amarelo! Porque amarelo é o sol, é amarelo o girassol, é amarela a areia da praia.
          O menino branco meteu-se num barco para continuar a sua viagem e parou numa terra onde todos os meninos são pretos. Faz-se amigo de um pequeno caçador chamado Lumamba que, como os outros meninos pretos, dizia: É bom ser preto! Preto como a noite, preto como as azeitonas, preto como as estradas que nos levam a toda a parte!
          O menino branco entrou depois num avião, que só parou numa terra onde todos os meninos são vermelhos. Escolheu para brincar aos índios uma menina de raça vermelha chamada Pena-de-Águia, que dizia: É bom ser vermelho! Da cor das fogueiras, da cor das cerejas e da cor do sangue, bem encarnado!
          O menino branco foi correndo mundo até uma terra onde todos os meninos são castanhos. Aí andou de camelo com um menino chamado Ali Babá, que dizia: É bom ser castanho! Como a terra do chão, como o tronco das árvores, como o chocolate!”

          Arrebatado pelo peddy-papper ét(n)ico, “Quando o menino branco voltou à sua terra de meninos brancos, enquanto os outros meninos brancos pintavam em folhas brancas desenhos de meninos brancos, ele fazia grandes rodas de meninos de todas as cores!”. Afinal, mesmo não se sendo branco, também não fazia mal desempenhar outros tons.

          (Provavelmente por estar a caçar em vez de ir à escola) A minha primeira colisão prosaica com o significante racial: ignorar o problema de ser-se castanho, até ser mascavado a graxa preta por excesso de casting de matéria castanha na turma.

          A epopeia policromática vem-me à memória enquanto assisto a um espetáculo no qual, em blackface, a artista aventava contra o ethos da máscara.
          Na performance que lhe antecedeu, em autoficção, outra artista ensaiara um número de stand-up comedy intercaladamente “acriolado”, garantindo que não se perdiam as subtilezas de um texto sofisticada e humoristicamente ininteligível.
          Para colocar a negritude na orla do visível, uma encena o negro com o negro; outra o negro sem negro.

          Paradoxo das boas intenções, ao ladrão que rouba por ter fome, raramente são reconhecidos os méritos de acabar com a Fome.

          Já sem a verve pueril de aprovação do final do 1.º Período, parte do público não adere às sucessivas propostas de ilustrando, neg(r)ar, só brincando de negrir – e já que normalmente são só os meninos brancos a viajar, meto-me num carro para casa.

          Descontada a minha literalidade iconoclasta, nos anxs 20xx ensaie-se mentalmente a reação à peça que principiasse com o hino: “É bom ser Branco!”

          Refugiado da liberdade de expressão, o negregado artista avista a chegada dos colonos das microagressões, onde antes era suposto inquietar-quieta a moral burguesa.
          Sugere-se mártir da beatitude presencialista que higieniza a experiência e arbitra a possibilidade de confronto, petrificando e subtraindo à experimentação quaisquer valores e princípios, anacrónicos ou presentes – sancionando-se uma organização estruturalmente benigna dos modos de reflexão.
          Que possibilidades resistem na/à diferença? O ético só é operativo na recusa, o sujeito ético na reprodução consensualizada da violência? E o humor que teima em brilhar mais na alegoria distópica do real?
          No zeitgeist da rede, onde a falta de opinião é uma emergência a acudir («opino ergo sum»), o Autor vê-se na contingência de ter de acolher com o mesmo relativismo as reações ao seu featuring étnico. A indignação procede da dúvida, não há falsos positivos. Sempre o que parece é.

          A indagação não surpreende. O relativismo mina a aparente disjunção ética/blackface, convertendo identidade em performance, agressão em desempenho, agenciado pelo kitsch ético enfeitado com atributos artísticos que emulam e especulam com o acesso ao tutti frutti multicultural.

          A proliferação destes dialetos da ternura tem pelo menos o (duvidoso) mérito de revelar a ausência de representações e protagonistas que se inscrevam noutros que não os polos da comicidade ou da nevrose identitária reativa.

          Na privatização global do étnico, a identidade sem território migra do eixo claro/escuro para o binómio visível/invisível. Na hipertrofia espetacular, o autor enriquece curricularmente na festa da insignificância do exotizado, hermético e em tom pré-irónico (como este texto).
          Livre pela erudição no seu macramé poético, o artista acede indistintamente a identidade e operação formal de charme; visibilidade e mediatismo; opção e ignorância; voluntarismo e “it”-performer; significante, significado e signo.

          Na alteridade sério/risível, o que finge confronta-se com o tão completamente. O bluff do devir torna-se proporcional à falsificação das intenções, sobreexigindo-lhe esteticamente ao ponto de ser forçado a apropriar-se da insustentável leveza da violência, que condena.

          O Outro atinge em palco a sua menoridade-útil, contribuindo para a reconversão salvífica do agente ético, ao desempenhar o papel de Menino das Moscas que precisa categoricamente de ser alvo da campanha irónica, elevado pela vitimização liberal das condições exercidas como vocação pessoal (para alegria das fotos das férias do Miguel com os pretinhos).

          Num curioso antípoda cromático, o ethic-chic da moda voga em torno da caneta-cor-de-pele da indústria – o nude –, cujo problema se resumirá em dizer ao que veste.
          A Prada retira de circulação parte de uma linha (brinquedos, porta-chaves e outros acessórios), acusada de mercantilizar iconografia racista. “#Prada Group abhors racist imagery. The ‘Pradamalia’ are fantasy charms (…) They are imaginary creatures not intended to have any reference to the real world (…).” Precisamente. Contra todas as expectativas, o Diabo veste Prada.

          Mediador das identidades convertidas em capital, o estético é agora o árbitro do conflito, negociando valor de uso e aceitação, no circuito consumível das etnicidades eletivas e utilitárias da economia do entretenimento (“Posso mexer no teu cabelo? O que é que fazes ao cabelo para ficar assim?”).
          É bom ser branco como a Beyoncé, porque branca é a Oprah. Para o Miguel, que reconhece as coisas boas da vida, é bom ser da cor da mercearia lá de casa.

          Inscrito no sistema do capital cultural, o devir minoria parece estar ao alcance do devir estilístico das dinâmicas criativas, que na continuidade das opções lúdicas encena em palco, como nas prateleiras, o simulacro do conflito entre “cabelos normais” e “cabelos secos, danificados, estragados ou muito secos”. A violência repousa, finalmente, na negociação entre (est)ética e o único enfado moderno – a infelicidade.

          Carlos M. Oliveira Passa(O)Tempo

          Janeiro de 2019, Portugal.
          O meu pai, septuagenário, bancário aposentado, fez teatro a vida toda. Ao ouvir isto, uma amiga trintenária que faz teatro e ganha a vida com isso, diz-me que se sente cansada pela actividade que, quando a iniciou há vinte anos, lhe oferecia possibilidades de futuro mas que presentemente, e desde há uma dezena de anos para cá, lhe oferece sobretudo frustrações. Parece-lhe a ela que um outro tipo de labor, como o do meu pai, que quando ainda jovem foi obrigado a assegurá-lo por razão dos tempos então serem outros, austeros, lhe ofereceria agora a estabilidade necessária para, paradoxalmente, se dedicar ao teatro como deseja. Dedicar-se à sua actividade predilecta sem a exaustão que se tem progressivamente inculcado no corpo por, apesar de tudo, lá ir conseguindo sobreviver com a prática do ofício. Mas a que custo?… suspira. Resistente à acumulação de esgotamentos que não pôde prever num tempo em que tanto ela, a passar à idade adulta, como a economia que a formou cresciam, suspira… pela alternativa que não foi a sua, ou pela que foi.

          Eu expiro fundo e… pauso. Quantos dos meus amigos poderiam dizer o mesmo? Toda uma geração de pessoas para quem a vida laboral, artística, se tornou um paradoxo quotidiano. Trabalha-se para se poder trabalhar, dedicam-se os dias à criação das condições necessárias ao exercício das práticas artísticas, ficando as práticas elas mesmas reservadas para o tempo que resta, muitas vezes escasso. Passámos, demasiadamente, de artistas a operadores logísticos. Uma actividade parasita que ocupou as vidas de quem não encontrou senão nas artes a possibilidade de exercer e exercitar a sua sensibilidade e inteligência, e de assim criar mundos prenhes dessas mesmas potências, tão pessoais quanto colectivas. Situação, de resto, não muito diferente da do meu pai, cujo emprego num banco público lhe permitiu precisamente, a curto, médio e longo prazo, permanecer disponível para se dedicar ao ofício teatral. Só que ao contrário de toda uma geração de artistas a que o meu pai pertence, que muitas vezes fizeram a sua arte à custa do tempo dedicado a uma outra actividade, muitas pessoas da minha geração têm vindo a soçobrar por não terem criado para si uma situação minimamente resiliente à agora habitual instabilidade económica. Uma geração de pessoas que, mesmo quando conseguem sobreviver através do labor artístico como a minha amiga, fazem-no com parcos benefícios sociais, muitas vezes insuficientes para o sustento de uma vida mais capaz. Basta pensar que o regime legal de muitos artistas é o de trabalhador independente e que o acesso que tal estatuto permite ao Serviço Nacional de Saúde não se compara, por exemplo, aos serviços de apoio médico de um banco público ou de uma qualquer seguradora que só rendimentos estáveis e porventura mais elevados poderão pagar. Pelo que o tempo passa, e como ninguém se exclui da necessidade de se cuidar e de assegurar um mínimo de bem-estar para que tenha, por exemplo, disponibilidade para trabalhar, lá vão os artistas soçobrando ao que se generalizou como sendo a força motriz da economia contemporânea: os mercados. Artistas que passam a servir o mercado seja por trabalharem em função das suas exigências seja por mudarem de actividade, muitas vezes para mercados mais acessíveis e regulados do que o das artes.

          Tenho amigos, por exemplo, que não se dizem frustrados com a vida artística por conseguirem vender o seu trabalho ao ponto de pagarem a quem lhes faça o outro, de logística e produção, condição de realização do primeiro. Artistas que, no fundo, conseguem não acumular tarefas demais, podendo dedicar-se adequadamente às exigências da sua prática, que nunca são poucas. Dependendo do mercado, e das suas flutuações, conseguirão eventualmente proventos suficientes para pagar uma renda de habitação em Lisboa ou no Porto, pagar o seguro de saúde ao qual recorrer em caso de acidentes de trabalho, cuidar o melhor possível dos filhos ou, já agora, dos pais envelhecidos, e toda uma série de necessidades básicas da vida quotidiana. Necessidades estas por vezes acrescidas pelas que resultam do facto de, numa lógica de sustentabilidade, o mercado das artes ser tendencialmente internacional. Não só a escala do mercado das artes em Portugal é pequena, mas também tanto é possível praticar honorários e preços de valor superior noutros países como ter acesso a melhores condições técnicas de trabalho. Isto implica um estilo de vida mais dispendioso e, não obstante ser desejado por muita gente por oferecer maior sustentabilidade à vida artística, é uma realidade acessível apenas a uma minoria dentro da minoria. Uma realidade que, de resto, não altera as condições de base da actividade laboral no país em que os artistas residem e do qual o seu trabalho, de uma maneira ou de outra, depende. Ou seja, o desenvolvimento do trabalho artístico nos mercados internacionais não assegura direitos laborais que substituam aqueles que dependem do sistema público do país onde se permanece radicado. Importa por isso pensar as condições que permitem não só a quem não vende trabalhar, mas também, e precisamente por esta razão, a quem vende ter acesso a uma vida cultural rica e diversa, condição inevitável do seu trabalho, bem como da renovação dos regimes simbólicos e das políticas, éticas e estéticas que daí advêm. Importa pensar estas condições sob pena de a arte que é não vendável não se tornar visível e acessível, ou nem sequer chegar a ver a luz do dia.

          Sabemos que as transformações do mercado de trabalho a que temos assistido neste início de século não são exclusivas das artes. Que as suas causas são as mesmas que têm levado ao desmantelamento dos bens públicos e dos valores associados à sua constituição. Mas também sabemos que, tal como as ciências, cuja importância pública se manifesta, entre outras coisas, num serviço nacional de educação e de saúde, a arte tem o valor, igualmente público, de proporcionar experiências vitais, de ampliar e diversificar as nossas capacidades, sensíveis e intelectuais, individuais e colectivas, e de nos permitir pensar o mundo de maneiras que de outro modo não têm lugar, ou então não têm visibilidade. De modo que, perante a degradação das condições de trabalho e dos direitos laborais, bem como do património público, material e imaterial, resultado da desregulação e desregulamentação dos mercados e de alterações nas políticas públicas que actuam em detrimento dos fundamentos constitucionais do próprio domínio público, é também pelo exercício das artes que se podem imaginar e realizar alternativas geradoras de um estado de direito para todos. Porquanto a arte é capaz de imaginar e criar mundos, é através da sua politização que se podem transformar as condições nas quais é produzida e recebida, criando um estado de direito capaz de melhor sustentar a produção de conhecimento, assegurar a criação artística e possibilitar o acesso de quem quer que seja aos regimes simbólicos que assim se engendram. Transversalmente aos domínios público e privado, os artistas têm de assumir, intensificar e ampliar o seu papel na revalorização da arte, seja no que respeita às suas condições de possibilidade, de produção e de criação, seja no que respeita aos modos da sua existência social. E a este respeito, já dizia o Joseph Beuys, somos todos artistas.

          Eros 404 Parvadas Escusadas

          Dança Moçambicana património cultural da humanidade. 

          Tufo 

           

          Bailarino português encarcerado por ser gay em 1949. 

          Valentim 

           

          Como o Vicente, o Eanes e a mascote da Expo98 mas da coreologia. 

          Mendo 

           

          Partilha com a de Calcutá o nome e as flores mas não é tão boazinha. 

          Teresa 

           

          O rei das pistas do país. 

          Botelho 

           

          Movimento que estão a ver. 

          Coreia 

           

          Poeta brasileiro que celebrizou “a pista de dança”. 

          Salomão 

           

          Criador dos Verde Gaio e de outras dez mil coisas das quais não nos livramos. 

          Ferro 

           

          Técnica essencial da coreografia contemporânea sem discurso (abrev.). 

          BMC 

           

          Verbo para descrever as caretas feitas em espectáculos de dança (gíria). 

          Marlenar 

           

          Como a Pina mas não atina. 

          Olga 

           

          É o que se dá quando se dança (popular). 

          Anca 

           

          Condição dxs bailarinxs (fig.). 

          Precariedade 

           

          Nome do filme de António da Silva protagonizado por bailarinos nus. 

          Dancers 

           

          Canção nacional que começou por ser uma dança no Brasil. 

          Fado 

           

          Dizem que ele não se mexe mas não pára de fazer coisas. 

          Fiadeiro 

           

          Demitido como Ministro da Cultura mas infelizmente não impedido de escrever sobre dança.  

          Sasportes 

           

          Não interessa nada mas os Bailados Russos ficaram hospedados neste hotel. 

          Palace 

           

          Segunda cidade mais importante na produção coreográfica nacional.  

          Bruxelas 

           

          Centro de emprego da dança em Lisboa. 

          Purex 

           

          Os seus caracóis têm tanto movimento quanto ela. 

          Mantero 

           

          É do judo mas isso não o ajuda. 

          Paulo 

           

          Extinto Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas (sigla). 

          CENTA 

           

          No que se gasta mais nos balés (pl.). 

          Pontas 

           

          No seu terreno tudo brota. 

          Horta 

           

          Dançou com a ‘rainha’ Margot. 

          Jorge 

           

          Diz-se de uma pessoa que dança mal (pop.). 

          Pé 

           

          Musa da dança (não, não é a Tânia Carvalho). 

          Terpsicore 

           

          Podia ser o Francis Graça dos dias de hoje mas não é. 

          Camillis 

           

          Agora não se diz ‘dança’, diz-se… 

          Performance. 

           

          Diz que é dos santos. 

          João 

           

          A Sophia escrevia-a com s.  

          Dansa 

           

          Bailarico (ant.). 

          Salsifré 

           

          Ali abana-se a boina e o fanny pack ao peito. 

          Mina 

           

          Homem velhaco ou dançarino. 

          Pequenino 

           

          A 3,99€ no Continente, leva tudo à frente.  

          Ballerina. 

           

          A sua comunicação doce é definida como sendo uma dança (pl.).  

          Abelhas 

           

          Simultaneamente um prémio Nobel negro e uma espécie de saia na sua grande maioria branca.  

          Tutu 

           

           

           

           

           

           

          Rita Natálio Futurologia

          No futuro, as palavras serão as mesmas mas as relações entre as palavras serão totalmente diferentes. Onde se lia humano e humanidade, ler-se-á aquele que partilha a biosfera, seja de que forma for, seja de que tamanho for, seja de que espécie for. A palavra espécie assim como a palavra género serão sucata terrestre, lixo, restos de um poder exercido que perde o sentido à medida que se identifica (não se identifica, identivai-se). Onde se lia violência, ler-se-á predação, porque antes foi lido desigualdade e hierarquia. Seremos pela predação porque esta ocorrerá como regulação sofisticada de posições políticas dos seres, como jogo de viver e morrer que ninguém controla, como superação da homofonia entre as palavras lei e rei. Por outro lado, onde antes se dizia bio falar-se-á geo e nem mesmo o vivo será separado do não-vivo, porque onde se gritava antropofagia!, será afirmado geofagia!, capacidade de ingestão do não-vivo, do profundo pacto com as rochas. Terá especial cuidado quem estiver morto. Terá especial cuidado quem estiver vivo. Abrir o coração e sentir o corpo vivo, como antes se fazia em bares ou camas, será a especialidade dos geofágicos, dos que passam entre a vida e a morte como entre gotas de chuva [ou balas], dos que chupam e são chupados pela terra. Entre a vida e a morte teremos dificuldade em estabelecer fronteiras porque a palavra fronteira ficará gradualmente manchada por títulos funestos: colónia, império, reinado, família. Assim, onde antes existiam checkpoints para delimitar separações, surgirão lugares imensos entre-as-coisas, purgatórios queer, ou tão-só reservas-ilimitadas-sobre-o-que-ainda-não-se-sabe-e-tão-pouco-se-quer-saber. Para aumentar essas reservas serão reaproveitados aeroportos, parques de estacionamento e outros espaços que simplesmente perderam o sentido. O regime de extração da terra estender-se-á às fontes minerais dos corpos humanos, e essas reservas servirão essencialmente como depósitos de cálcio, fósforo, ferro, sódio, enxofre, potássio ou zinco para o financiamento de novas estruturas vertebrais do tempo, i.e., [passado = estrela + osso] ou [presente = enxofre + futurozinco]. Se algumas situações continuarão a reenviar-nos para um sistema tradicional de formas teimosas, nessas reservas (dos lugares entre lugares) será possível amar o transfóssil, jogar à nova humanidade enquanto se fura a casca de um ovo, deslizar e sobreviver, beber cocktails de saliva com os microsseres das nossas línguas. A linguagem será então uma constante luta pela demarcação de novos povos, enquanto corpos se abrem à polimorfia. Farrapos humanos que sofreram no passado atrocidades petroquímicas (por exemplo, a violação da terra pela busca de sangue preto [= petróleo]) ou atrocidades sociotóxicas (por exemplo, o abuso de pessoas de pele escura [= racismo]) poderão recorrer a tratamentos vários para a cura e desintoxicação política intersexo. Então, onde se lia estratosfera, será lido extratosfera, pela combinação entre extração e atmosfera. Identificar-se-á uma parcela de dor entre palavras, sons e ritmos, como quem extrai da boca um dente [ente], como quem reconhece a drenagem de recursos sanguíneos, como quem reconhece a transformação de certos corpos em objetos. De maneira geral, quem orientará a realidade já não será aquele serzinho de duas pernas que diz olá e adeus, aquele antigo boneco da humanidade que dependia da palavra universal e desejava para o futuro testes de escolha múltipla. Esse boneco, depois de reformado e cosido com novos botões, será entregue ao cozimento da panela (gritaremos antropofagia!), erguer-se-á novo [ovo] para liberar homúnculos quiméricos da biosfera (gritaremos geofagia!). O boneco cozerá por séculos, enquanto nada, em nenhum momento, em nenhum lugar, caso, casa, hipótese, passado, presente, narrativa, acontecimento, futuro, projeção – de maneira alguma e sob que circunstância for – poderá ser [ou tentar-se fazer passar por] universal. Ao lado de cada polihumano, existirá um armário, uma gaveta, um planeta, um peixe, um tronco ou uma coisa extremamente localizável, muito singular, muito preta, muito amarela, muito dorida, muito fodida, a assistir a uma reunião sobre o futuro humano ovo. E ela gritará no meio dessa reunião: “Aqui não sou representada!”; “Aqui não podemos concordar sobre coisas básicas!”; “Aqui não podemos ter a certeza de que somos todos humanos!”; ou “Aqui fala-se a língua da desconfiança!”. Essas reuniões servirão sobretudo para nos lembrar como funcionava a política antiga e como ela continua a viver no futuro com novas roupagens. As contradições entre o novo e velho, agora chamadas de mitologia expandida, não deixarão de se fazer notar. Assim, dentro da forma humana, as deformações ocorrerão: problemas de pele, cancros, vaginites, clitóris triplos, cérebros calcificados. O passado surgirá sobre a forma de metástases, indicando a necessidade de tratamento por expansão mórfica. Já do lado de fora da forma humana, será a foda universal: bactérias expressivas, cálcio eufórico, política celeste, violência panpsíquica. Fazer um mapa dessa humanidade será então como traçar com as pontas dos dedos: as impressões digitais apagam-se para fazer o tal mapa. Aliás, existirá porventura a palavra forma no futuro? Não será tudo desígnio da predação que, qual sistema futurológico, implicará a constante negociação do que significa ter uma forma? Sonhar com pedras ou pronomes indicará o caminho de mudanças físicas concretas e toda a cartografia será como desenhar na areia das multinaturezas, contínua des-informação das formas ou tão-só uma língua que não consegue passar pelo ralo.

          [A partir de um excerto da performance-conferência Geofagia (2018) da autora.]

  • Contribuidores

      • Ação Cooperativista

          Fundada a 14 de abril de 2020, no contexto da pandemia de covid-19, a Ação Cooperativista é um grupo informal que pratica uma metodologia de trabalho colaborativo e que procura unir, valorizando a diversidade, profissionais das artes e da cultura em Portugal na reivindicação de direitos sociais fundamentais.

      • Alaa Abu Asad

          é artista e trabalha com linguagem e plantas. Desenvolve trajetórias alternativas onde valores de (re)presentação, tradução, olhar, ler e compreender se intersectam. O seu trabalho assume a forma de textos, filmes e performances, nos quais explora visualmente os limites da linguagem.

      • Alice Dusapin

          (Paris, 1989) é editora e investigadora independente, codiretora da revista octopus notes, da editora Daisy e do espaço Ampersand, em Lisboa. Em 2020/21 foi residente na Academia de França em Roma — Villa Médicis, período durante o qual organizou no MACRO uma exposição dedicada à obra de Wolfgang Stoerchle.

      • Alina Ruiz Folini

          nasceu na Argentina, mora em Lisboa e Amesterdão. É performer, coreógrafe e pesquisadore não binárie. Realizou o DAS Choreography na Universidade das Artes de Amesterdão como bolseire da Fundação Calouste Gulbenkian e o PACAP 4 no Forum Dança, em Lisboa.

      • Amit Noy

          (2002) acredita na dança. Nasceu em Santa Cruz, na Califórnia, de ascendência latina e israelita, e cresceu no Hawai’i e em Aotearoa (Nova Zelândia). Está a trabalhar numa performance com a sua família. Em hebraico, Amit significa bom amigo.

      • Ana Jotta

          (Lisboa, 1946) é artista plástica, sem que por isso se tenha dedicado ao teatro nos anos 70. Utiliza livremente o desenho, a pintura, a assemblage, a escultura, o bordado, a palavra escrita ou objetos do quotidiano. É uma gata sem dono.

      • Ana Matoso

          (Lisboa, 1974) é professora na Universidade Católica Portuguesa e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura. Doutorada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com uma tese sobre Tolstoi e Wittgenstein, trabalhou vários anos em edição de livros e traduziu Robert Louis Stevenson, Eudora Welty, Rachel Cusk, David Leavitt e George Steiner.

      • Ana Pi

          Ana Pi (Belo Horizonte, Brasil, 1986) é uma mulher negra, artista da coreografia e da imagem, pesquisadora das danças periféricas, dançarina extemporânea, pedagoga. Trânsito, deslocamento, pertencimento, sobreposição, memória, cores e gestos ordinários são vitais às suas práticas e trabalhos.

      • Ana Rita Teodoro

          (1982, Portugal), coreógrafa e artista interdisciplinar com percurso na dança contemporânea. De ADN bravio e ligeiro, vive hoje os seus 40 anos com olhos no futuro.

      • André Lepecki

          (Brasil, 1965) é escritor, curador, professor e presidente do Departamento de Estudos da Performance da Tisch School of the Arts da Universidade de Nova Iorque, trabalhando principalmente em estudos de performance, coreografia e dramaturgia.

      • Andrei Bessa

          (Fortaleza, Brasil, 1987) é dramaturgista, performer e professor. Mestre em artes pela UFC (Brasil). Artista da Inquieta Cia. Com maior ênfase na performance e no teatro, suas criações entrelaçam dança, literatura e audiovisual.

      • Ángela Millano

          (Vitoria-Gasteiz, Espanha, 1987) é coreógrafa e performer. Dedica-se à criação e investigação no campo das artes performativas contemporâneas.

      • Angelo Custódio

          (1983, Portugal) é um artista e performer que vive e trabalha em Amesterdão. Estudou canto clássico (BA) no Conservatorium van Amsterdam e tem um mestrado em Artes Visuais do departamento Master of Voice (MoV) do Sandberg Institute. 

      • Anh Vo

          (Hanói, 1995) é artista vietnamita residente em Nova Iorque. A sua prática passa pela dança e pela escrita.

      • Anna Halprin

          (Illinois, 1920-2021) foi uma das percursoras da dança pós-moderna norte-americana. Durante décadas praticou e transmitiu um trabalho interdisciplinar regido pela experimentação, a improvisação como método, a construção de partituras como coreografia, a inseparabilidade da arte e da vida, trabalhando consistentemente com a comunidade em projetos que conectam a dança com a ritualidade, a natureza e o cuidado.

      • Beverly Emmons

          (EUA, 1943) começou por estudar dança e tornou-se desenhadora de luz para Merce Cunningham nos anos 1960. Desde então transitou entre Broadway, Off Broadway, teatro, dança e ópera, tendo colaborado com Meredith Monk, Robert Wilson, Martha Graham, Trisha Brown e Alvin Ailey, entre outros.

      • Bhenji Ra

          (Warrang, 1990) é artista transdisciplinar que trabalha na intersecção entre performance e prática comunitária. Paga renda na terra roubada ao povo Gadigal da nação Eora, atualmente conhecida como Sydney, Austrália. Ela é a mother da House of Sle.

      • Bibi Dória

          (Campo Grande, 1995) atua na intersecção entre a dança, a performance e o cinema. Reside em Lisboa, onde cria e colabora em projetos. Fundou a Odete Filmes, produtora de cinema independente que leva o mesmo nome da sua cadela.

      • Bruno Levorin

          (São Paulo, 1985) é filósofo de formação e tem como objetivo fazer o maior número de perguntas possíveis a tudo que se manifesta. Seus trabalhos se situam dentro da dança contemporânea, atravessando a coreografia, a dramaturgia e a teoria crítica. Poeta, acredita na palavra como um monumento de espera, escuta e esperança. Dizer é fazer.

      • Bruno Zhu

          (Porto, 1991) é um artista que vive e trabalha entre Amesterdão e Viseu. Zhu é membro d’A Maior, um programa curatorial situado numa loja de produtos para o lar e vestuário em Abraveses, Viseu. 

      • Bryana Fritz

          (Chicago, EUA, 1989) é coreógrafa, bailarina e escritora. Trabalha na interseção entre poesia e performance. O seu trabalho dialoga com literatura medieval, fanfiction, estudos de media e histórias do analfabetismo. Colabora regularmente com Henry Andersen sob a insígnia de Slow Reading Club.

      • Calixto Neto

          (Olinda, Pernambuco, 1981) é brasileiro, atualmente instalado na França. Seu trabalho coreográfico se materializa em danças, filmes e textos. Além da colaboração com outros artistas, recentemente criou a peça oh!rage e os filmes O Samba do Crioulo Doido: régua e compasso e Pro Futuro Quilombo.

      • Carla Fernandes

          (Malanje, Angola, 1980) é jornalista, tradutora e produtora cultural. Trabalha assuntos relacionados com comunidades negras em Portugal e na Europa. Fundou a Afrolis – Associação Cultural, organização que promove expressões culturais de pessoas afrodescendentes.

      • Carlos Azeredo Mesquita

          (Porto, 1988) estudou design de comunicação e fotografia. Recebeu o Prémio BES Revelação em 2010 e trabalha atualmente entre as artes visuais e performativas. O seu primeiro espetáculo, Diet Plan for the Western Man, estreou na Bienal de Berlim, em 2018.

      • Carlos M. Oliveira

          (Santarém, 1980). Depois de um período de investigação académica dedicado à crítica da relação entre a coreografia e a dança, bem como aos modos de existência do conhecimento que lhes estão associados, dedica-se agora a produzir, criar e apresentar o seu trabalho artístico, sem abandonar os mesmos problemas.

      • Carmen Pombo de Brito

          (Madrid, 1880—Lisboa, 1964(?)) foi professora de dança educativa para raparigas através do bailado clássico e da ginástica rítmica. Teve escolas em Joanesburgo, Londres e Lisboa onde abriu a sua Escola da Arte de Representar em 1924 e na qual ensinou durante cinco décadas ininterruptas.

      • Célio Dias

          nasceu em Almada a 8 de fevereiro de 1993. Filho afetivo de Carlos e Lourdes Basílio, inicia a prática do judo com treze anos. Hoje é um poeta que abraça as questões intemporais da saúde mental.

      • Chiara Bersani

          (Veneto, Itália, 1984) é coreógrafa com formação em teatro, dança e performance. Colaborou com Rodrigo Garcia, Jérôme Bel e Alessandro Sciarroni. Em 2019, recebeu o Prémio UBU para Melhor Performer e o Total Theatre Award for Dance do Edinburgh Fringe Festival. 

      • Chloe Chignell

          (Austrália, 1993) é uma artista a viver em Bruxelas que trabalha com texto, coreografia e edição. Investe na escrita como uma prática de construção do corpo, examinando como a linguagem nos constitui. Dirige a rile*, uma livraria e um espaço para projetos, com Sven Dehens.

      • Christophe Wavelet

          (Paris, 1970) co-fundou e dirigiu o colectivo Albrecht Knust Quartet (1993-2001), co-editou o jornal Vacarme(1996-2000) e a revista Mouvement (1999-2002), e dirigiu artisticamente o LiFE — Lieu international des Formes Émergentes (2005-10). É curador, crítico de arte e professor em escolas de artes visuais e dança.

      • Clara Amaral

          (Fundão, 1984) trabalha com texto e performance. Partindo de uma prática artística interdisciplinar, a sua pesquisa debruça-se sobre o que significa ser leitora, ser escritora, e tenta expandir modos, já existentes, de leitura, escrita e publicação.

      • Clarissa Sacchelli

          (São Paulo, Brasil, 1983) é uma artista cuja atividade se concentra no campo da dança. Desenvolve seus projetos movendo-se entre peças coreográficas, performances e ações formativas, enquanto também colabora com diferentes artistas.

      • Cyriaque Villemaux

          (Offenburg, Alemanha, 1990) estudou alternadamente ballet e dança contemporânea. Em 2008, recebeu uma bolsa para estudar com Alicia Alonso no Ballet Nacional de Cuba. Nesse mesmo ano ingressou na escola p.a.r.t.s, que concluiu em 2012 com distinção. Colabora, desde então, com artistas como Jean Calotte, Marie Piètre Gala e a Cie les Claude’s. Estuda, atualmente, na Universidade de Bruxelas, onde prepara a tese “Biografia e entrevista: uma prática performativa do outro”.

      • Dani Issler

          (Telavive, 1983) vive em Paris e escreve um doutoramento sobre performance no pós-guerra na Universidade de Princeton, em Nova Jersey. 

      • Daniel Lühmann

          (Poços de Caldas, Brasil, 1987) dança, escreve e traduz, não necessariamente nessa ordem. Vive atualmente em Montpellier, integra o coletivo cohue, trabalha a solo e em colaboração com outros artistas, além de traduzir para editoras e instituições de arte.

      • Daniel Moraes

          (1981, BR) é um artista, curador e investigador acadêmico que vive e trabalha entre São Paulo e Lisboa. Mestre em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, fundador do Projeto Demonstra e do Projeto Decorporeidades.

      • Daniel Pizamiglio

          (Fortaleza, 1988) é performer e criador. Em Fortaleza encontrou o coreógrafo João Fiadeiro e mudou-se para Lisboa em 2012, onde atualmente vive e trabalha. Nos seus trabalhos busca materializar algo entre a poesia e o corpo, e como ativar a corporalidade dos afetos e da relação.

      • Dasha Birukova Даша Бирюкова

          (Moscovo, 1985) é curadora e escritora. Estudou história da arte e do cinema em Moscovo e especializou-se em filme e vídeo experimental e media art. Vive em Lisboa.

      • Davi Pontes

          (Rio de Janeiro, 1990) é artista, coreógrafo e pesquisador. Mestre em Artes pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua prática carrega o constante desafio de relacionar a coreografia e a racialidade e compreende a autodefesa como única demanda política razoável.

      • Diana Niepce

          (Ovar, 1985) é bailarina, coreógrafa e escritora. Investiga a linguagem e o hibridismo enquanto gesto político. Reformula a identidade do corpo performativo através da sua história, mutação e experimentalismo do fora da norma.

      • Diego Bagagal

          Diego Bagagal (Belo Horizonte, Brasil, 9 de agosto) estudou dança, teatro, cura e curadoria. Foi escolhidx para ser Salomé, Cleópatra e Orlando. Foi consideradx Artista Revelação pela Revista Encontro, em 2011. Está a criar um álbum para pôr vivxs e mortxs a dançar.

      • Dori Nigro

          (1988), performer e arte/educador. Doutorado em Arte Contemporânea. Mestrado em Práticas Artísticas Contemporâneas. Especialização em Arte-Educação. Bacharelado em Comunicação Social e licenciatura em Pedagogia. É membro do Tuia de Artifícios e da União Negra das Artes – UNA.

      • Duarte Amado

          (Lisboa, 1987). Viveu no Algarve, vive em Lisboa. Formado em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa, jurista, mestrando em Gestão Cultural pelo ISCTE. Público em formação. Escreve como quem vê.

      • Duarte Bénard da Costa

          (Lisboa, 1998) estudou em Lisboa e Cambridge, com foco em literatura inglesa, estética e grego antigo. Escreveu sobre história da dança e publica crónicas de arte, literatura e dança contemporânea. Os seus interesses incluem romances de cordel, assinaturas e mal-entendidos em poesia.

      • Edna Jaime

           (Maputo, Moçambique, 1984) começou a dançar em 1996, formando-se em dança e canto tradicional. Em 2001, teve o seu primeiro contacto com a dança contemporânea. Fundou, em 2021, a KHANI KHEDI, Soluções Artísticas, produtora que lida com suas iniciativas de artivismo por uma humanidade melhor.

      • Eduardo Batata

          (Estremoz, 1995). Performer e criadora transdisciplinar focada na investigação queer, enquanto cuidado, defesa e construção de um safe-space. Foca-se no questionamento de corpas marginalizadas, reivindicando a sua presença e visibilidade.

      • Élisabeth Lebovici

          (França, 1953) é jornalista, historiadora e crítica de arte, palestrante no Instituto Sciences-Po em Paris. O seu trabalho aborda questões de género e sexualidade assim como relações entre feminismo, ativismo no âmbito da crise da SIDA, políticas queer e arte contemporânea. Escreve regularmente no seu blog Le Beau Vice.

      • Emiliano Aversa

          (Agrigento, 1984) é um artista visual cuja pesquisa se foca no vídeo. A sua formação envolveu filosofia, imagem em movimento e butô. Escreve frequentemente para publicações de arte e fundou a MANIA, uma plataforma online dedicada às artes performativas.

      • Eros 404

          (Uncanny Valley, 2018) é um ser interseccional. Sem identidade, género, classe, raça, corpo, suporte, crença ou aptidão, possui unicamente um cursor em ouro.

      • Estelle Nabeyrat

          (Longjumeau, França, 1978) é curadora e crítica de arte. Acaba de publicar Woven Languages/Isabel Carvalho (ed. Le Lait/Atlas projectos). Escreve para Le Quotidien de l’art (FR), Texte zur Kunst (DE) e Camera Austria (AT) e trabalha em design na ENS-Paris-Saclay.

      • Fátima Ribeiro

          (Praia, Cabo Verde, 1962), moçambicana, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade de Coimbra, com bacharelato em Ensino do Português pela Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo. É professora de Português com longa experiência em vários níveis e públicos. É também tradutora e revisora linguística.

      • Felipe Ribeiro

          (Rio de Janeiro, 1977) é artista da imagem, curador independente e professor do departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.

      • Filipa César

          (Portugal, 1975) é uma artista e cineasta. Interessa-se pelas fronteiras entre a imagem em movimento e a sua receção, pelas dimensões ficcionais do documentário e pelas economias, políticas e poéticas da práxis do cinema. É professora na Universidade de Artes e Design de Karlsruhe. 

      • Filipa Cordeiro

          é doutoranda em Estudos Artísticos na NOVA-FCSH/IFILNOVA. É tradutora, escreve ensaio e poesia e participa regularmente em projetos colaborativos e de edição independente (Goodbye Issues e Forfatternes Klimaaksjon, entre outros). Paralelamente, faz música como Riva Mut.

      • Filipe Pereira

          (Fátima, 1986) é coreógrafo, bailarino e designer floral. O seu trabalho tem-se desenvolvido a partir de uma reflexão sobre a hierarquia dos dispositivos nas artes cénicas, dispersando a coreografia para os diversos elementos constituintes de um espetáculo, como a luz e a cenografia.

      • Francisco Camacho

          (Lisboa, 1969) é coreógrafo, bailarino, membro fundador da EIRA em 1993 e seu diretor artístico. Em 2016 criou o Festival Cumplicidades, dedicado à dança contemporânea.

      • Frédéric Sayer

          (Paris, 1978) é doutorado em literatura comparada, agrégé em letras modernas e psicanálise. Ensina literatura francesa nas “classes preparatórias” para as grandes écoles do sistema educativo francês.

      • Gaya Medeiros

          (Belo Horizonte, 1990) começou a dançar na igreja. Integrou durante nove anos a Cia Palácio das Artes e mudou-se para Portugal em 2019. Está fundando a BRABA.plataforma a fim de fomentar o protagonismo trans nas artes.

      • Georgia Quintas

          (Recife, 1973) é escritora, antropóloga, curadora, professora e pesquisadora no campo da teoria, filosofia e crítica da imagem fotográfica. Autora dos livros Jogos de aparência (2016), Inquietações fotográficas (2014), e Man Ray e a imagem da mulher (2008).

      • Germaine Acogny

          (Senegal, 1944) fundou o seu estúdio em Dakar em 1968, onde começou a dar aulas, co-fundou e dirigiu a escola Mudra Áfrique de 1977 a 1982 e fundou a École des Sables em 1998. Em 2021 recebeu o Leão de Ouro para Dança da Bienal de Veneza. 

      • Gil Mendo

          (Oeiras, 1946-Lisboa, 2022) foi coreólogo, professor e programador de dança. Foi membro da comissão instaladora da Escola Superior de Dança, cofundou o Forum Dança, e foi assessor para a dança do IPAE. Dedicou a sua vida a articular partes na prática da dança, a fazer colaborar as instituições, os artistas, as escolas.

      • Gio Lourenço

          nasceu em 1987 em Luanda, Angola, e cresceu em Portugal. Foi bolseiro do Centro Nacional para a Formação em Dança e Performance no c.e.m., fez o curso de Teatro e Animação na CERCICA e é ator residente do Teatro GRIOT.

      • Giovanna Monteiro

          (S. Bernardo do Campo, Brasil, 1994) é atriz e performer, interessada nas intersecções entre teatro, dança e performance. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo. Desde 2017 trabalha como criadora e performer junto ao Comitê Escondido Johann Fatzer.

      • Giulia Damiani

          é uma artista e escritora a viver em Amesterdão que trabalha com performance. A sua prática intersecciona o corpo, o lugar e métodos criativos feministas na procura de ruturas na linguagem e no contexto.

      • Guilherme Figueiredo

          (Lisboa, 1996). É artista plástico com licenciatura e mestrado em artes plásticas na ESAD das Caldas da Rainha. Procura explorar noções de play” dos anos 30 interligando com a virtualidade dos videojogos. Interessa-lhe a alquimia entre dados científicos e a ficção.

      • Guilherme Valente Marques

          (Lisboa, 1994) é escritor e moço de recados. Mora em Berlim.

      • Hélio Oiticica

          Hélio Oiticica (Rio de Janeiro, 19371980) foi um artista do movimento tropicalista e do grupo Neoconcreto, que procurou superar a noção de objeto de arte da esfera contemplativa para uma dimensão ética, social e política. Escreveu extensamente sobre a arte e o seu trabalho.

      • Henrique Furtado

          (Lisboa, 1988) é engenheiro em Energia e Meio Ambiente, bailarino e coreógrafo. Intérprete para artistas como Tino Sehgal e Vera Mantero, o seu trabalho colaborativo com Aloun Marchal e Chiara Taviani explora a sobreposição entre estilos e géneros, em que a voz e a imaginação têm lugar de destaque.

      • Henrique Neves 

          (Lisboa, 1965) é artista e assistente de Jérôme Bel. Na sua prática interessa-se pela forma como questões sociais e políticas habitam e assombram práticas contemporâneas, seja por via de gestos ou pinceladas.

      • Hwayeon Nam 남화연

          (Seul, 1979) é uma artista cuja prática se materializa em diversos suportes através dos quais ensaia e coreografa uma navegação no tempo onde arquivos respiram e ganham vida em direção ao futuro. Nam foi uma dos três artistas a representar o 58.º Pavilhão da Coreia na Bienal de Veneza em 2019.

      • Ignacio de Antonio Antón

          (Madrid, 1985) é coreógrafo, performer, pesquisador e arquiteto. Mestre em Performance Studies (NYU), atualmente navega em um doutorado na busca de formas ampliadas sobre o pensamento coreográfico. O seu trabalho se desdobra em múltiplos formatos, partindo do espaço como forma de praticar a criticalidade.

      • Indíralo

          Entre 5 e 9 de julho de 2023, formou-se uma assemblagem temporal entre humanos e não humanos. Este ajuntamento teve lugar no Centro Ciência Viva do Alviela, um espaço de divulgação científica situado num paraíso natural protegido, rodeado por bosques, atravessado por um rio e habitado por morcegos que vivem em cavernas que formam parte do enclave. Junto a estes e aos diferentes elementos que os compõem: ramos, pedras, folhas, cogumelos, troncos, água, sanguessugas e um tempo, etc… um grupo de humanos realizou o workshop que tinha como título: Indíralo. Este grupo era composto por Andreia Neves Marinho, Andreia Sofia Cardoso Lima, Patrícia Conde, Fernando Pedro dos Santos, João Henriques, Valentina Parravicini, Cristina Fuentes Ávila, Francisco Weber Ruiz, Gustavo Vicente, María Jerez e Quim Pujol. Estas pessoas estão vinculadas às artes performativas, à dança, ao teatro ou à antropologia, entre outras coisas e provêm de países como Portugal, Itália, Angola, Espanha… Esta assemblagem temporal é completada pelos espíritos que os participantes mantiveram a seu lado durante o workshop, como parte do mesmo.

      • Inês Zinho Pinheiro

          (Lisboa, 1993) é bailarina, investigadora e professora (Escola Superior de Dança). Doutoranda em Artes Performativas e da Imagem em Movimento (FBAUL), desenvolvendo uma investigação sobre exploração do movimento e criação coreográfica com pessoas que não costumam dançar.

      • Isabel Cordovil

          (Lisboa, 1994). Artista plástica criada entre freiras, padres e as infinitas maravilhas da internet pré-vigiada, trabalha principalmente com objetos escultóricos e práticas fotográficas como documentação autobiográfica.

      • Isabel Lucena

          (Lisboa, 1982) é designer gráfica e professora na ETIC. Estudou no Instituto de Artes Visuais (Viena) e tem um mestrado em Comunicação e Design pelo Instituto Sandberg (Amesterdão). É membro cofundador do Observatório das Transformações da Cidade de Lisboa.

      • Jan Ritsema

          (Amesterdão, 1945-2021) dedicou a sua atividade ao teatro explorando as suas fronteiras. Foi editor da International Theatre Bookshop (Amsterdão), deu aulas na P.A.R.T.S. (Bruxelas) e fundou, em 2006, The Performing Arts Forum (PAF, Reims, França), um lugar fundamental de encontro e partilha.

      • Janaína Moraes

          (Brasília, 1991) é artista da dança, performance e pedagogia. Doutoranda em Dança na University of Auckland (Nova Zelândia) e Mestre em Artes Cênicas na Universidade de Brasília (Brasil). Investiga convites coreográficos e(m) poéticas relacionais e a prática das residências artísticas. 

      • Janeth Mulapha

          nascida em Moçambique, é bailarina e coreógrafa. Começou por ser nadadora antes de entrar para uma companhia de dança. No seu trabalho questiona a posição das conquistas do género feminino, o drama e a comédia que são totalmente expressivas.

      • Jean Capeille

          (Paris, 1989), bailarino, escritor, investigador no departamento de Estudos de História de Arte da Universidade Paris I Panthéon – Sorbonne.

      • Joana Frazão

          (Lisboa, 1980) estudou Ciências da Comunicação e Cinema e Literatura. Foi uma das responsáveis pelas edições dos Artistas Unidos. Trabalha regularmente como tradutora de inglês, francês e castelhano desde 2001, tendo traduzido autores como Pau Miró, Enda Walsh e David Lescot.

      • Joana Levi

          (Rio de Janeiro, 1975) é criadora, performer e filósofa. Dedica-se a projetos experimentais e colaborativos que forjam uma cena atravessada por diferentes linguagens (da performance ao teatro, da dança ao pensamento filosófico).

      • Joana Lourencinho Carneiro

          (Beja, 1993) é designer gráfica e investigadora, residente no Porto. No seu trabalho mistura tipografia com texturas fotográficas e ilustração. Coleciona cassetes de música pelas quais estuda o percurso social e histórico que a música revela através do design.

      • Joana Sá

          (Lisboa, 1979) é pianista, compositora e investigadora. O seu trabalho caracteriza-se pela transversalidade, multidimensionalidade e por uma abordagem musical que parte dos mecanismos de disrupção dos corpos musicais para criar novas relações e configurações de corpos de música.

      • João Bento

          é artista sonoro e visual, licenciado em Artes Plásticas/Escultura pela ESAD, nas Caldas da Rainha. Compõe som para dança, performance, instalações, teatro, cinema e live acts. Articulando instrumentos analógicos/eletrónicos e objetos sonoros usados em contextos multidisciplinares.

      • João dos Santos Martins

          (Santarém, 1989) é artista. A sua prática distribui-se entre múltiplas colaborações e investigações que permeiam a dança, experimentando entre formatos como a coreografia, a exposição e a edição.

      • João Fiadeiro

          (Paris, 1965) é coreógrafo, performer, professor e investigador. Fundador do Atelier RE.AL, dedicou grande parte da sua carreira ao desenvolvimento e partilha da prática de Composição em Tempo Real.

      • João Pedro Soares

          (Almada, 1995) é cineasta, programador cultural e doutorando em Estudos Artísticos – Arte e Mediações na Universidade Nova de Lisboa. Encontra-se neste momento a trabalhar na sua tese de doutoramento sobre ecologia no cinema português documental contemporâneo.

      • João Polido

          (Marinha Grande, 1994) é um músico e artista a viver em Lisboa. Trabalha principalmente sobre o meio de som e da música para sondar questões de memória cultural, cruzando histórias de música e de política.

      • Joclécio Azevedo

          (Brasil, 1969) foi diretor artístico do Núcleo de Experimentação Coreográfica entre 2006 e 2011. É artista residente e coordenador do programa educativo da Circular Associação Cultural. Frequenta o doutoramento em Arte Contemporânea do Colégio das Artes (Universidade de Coimbra).

      • Jonathan Burrows

          (County Durham, Inglaterra, 1960) é um coreógrafo cujo foco do trabalho é sobretudo um corpo contínuo de peças com o compositor Matteo Fargion. Publicou A Choreographer’s Handbook (Routledge, 2010) e é professor associado do Center for Dance Research, Coventry University.

      • José Maria Vieira Mendes

          (Lisboa, 1986) é escritor e por vezes traduz. É membro da companhia Teatro Praga. Algumas das suas peças foram traduzidas para várias línguas. Entre outras publicações, destaca Uma Coisa Não é Outra Coisa, Uma coisa, e Arroios, diário de um diário. É professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 

      • Julián Pacomio

          (Mérida, Espanha, 1986) é performer, criador e curador espanhol radicado em Portugal. Investiga nos seus projetos cénicos a ideia de copiar, refazer, traduzir e apropriar materiais alheios.

      • Katarina Lanier

          é bailarina, artista visual e performer bósnia-norte-americana. Tem formação em filosofia, dança e ciências sociais. Tem interesse em processos colaborativos, nas possíveis relações entre produção de imagens e práticas de corpo e no uso experimental de códigos sociais. 

      • Larysa Shotropa

          (URSS, 1967) licenciou-se em língua e literatura russa. É doutorada em linguística pela NOVA FCSH. É investigadora e professora de língua e literatura russa na Universidade Nova de Lisboa, autora de artigos dedicados à gramática contrastiva, de material didático sobre a língua russa, tendo já traduzido obras de Ivan Bunin, Mikhail Bulgakov e Nikolai Gogol.

      • Leandro Souza

          (São Paulo, 1981) examina processos de construção de subjetividades e corporalidades subalternizadas. A sua prática situa-se entre as noções de trânsito, emaranhamento, estranhamento e síntese, por meio de uma abordagem coreográfica expandida.

      • Leonor Courtoisie

          (Uruguai, 1990). Artista e escritora sul-americana. Investiga o impossível criando ilusões a partir da linguagem, da vida quotidiana e da crítica socio-política no seu entorno. Publicou poesia, ficção e dramaturgia nas editoras Continta me tienes, Pez en el hielo, Criatura e Salvadora.

      • Leonor Lopes

          (Santarém, 1999) é criadora, performer e dog lover.

      • Leonor Mendes

          (Torres Novas, 1999). Formada em dança, trabalha maioritariamente como intérprete em dança, teatro e performance. Pouco a pouco, germinam as suas próprias criações com um forte interesse em trabalhar através da improvisação e colaboração.

      • Leticia Skrycky

          Leticia Skrycky (Montevideu, 1985) é designer de cena e criadora. Trabalha principalmente na área da performance e dança contemporânea. Tomando a iluminação como ponto de partida, investiga práticas de colaboração e cocriação entre humanes, não-humanes e linguagens no palco.

      • Liliana Coutinho

          (Lisboa, 1977) é programadora de Debates e Conferências na Culturgest. Doutora em Estética e Ciências da Arte pela Universidade Paris 1, é investigadora do IHC – Universidade NOVA de Lisboa e do ACTE – Université Paris 1/CNRS.

      • Lior Zisman Zalis

          (Rio de Janeiro, 1992) é pesquisador no campo interdisciplinar dos estudos culturais, antropologia e teoria política. Investiga as relações entre religião, política, materialidades e agência de seres não humanos. Trabalha com a escrita, ensaios e investigação artística.

           

      • Luísa Saraiva

          (Porto, 1987) estudou dança na Folkwang em Essen e psicologia na Universidade do Porto. Como bailarina dançou com Alexandra Pirici, Ben J. Riepe, Catarina Miranda, Jonathan Saldanha e Susanne Linke. Vive entre Portugal e Alemanha, onde desenvolve o seu trabalho, entre coreografia e curadoria.

      • Luiz de Abreu

          (Araguari, Minas Gerais, 1963) trabalha com dança contemporânea há 30 anos. Desenvolve uma pesquisa a partir do corpo preto como forma de discutir política na sociedade brasileira.

      • lula pena

          (Lisboa, 1974), anartista.

      • Marcelo Evelin

          (Teresina, Brasil, 1962) é coreógrafo, pesquisador e intérprete, fundador da plataforma Demolition Incorporada (1995), em atividade transatlântica entre Brasil e Europa, onde também reside desde os anos 80. Vem actuando como pedagogo, gestor e curador, tendo implantado em Teresina o Núcleo do Dirceu (2006-2013) e o CAMPO, um espaço para se pensar, fazer e difundir arte e disciplinas afins.

      • Maria José Fazenda

          (Faro, 1964) é doutorada em Antropologia pelo ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, professora coordenadora na Escola Superior de Dança – Instituto Politécnico de Lisboa e investigadora no CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia, polo do ISCTE-IUL.

      • Mariana Rezende

          é tradutora e escritora brasileira residente em Lisboa. É pós-graduada em Artes da Escrita e mestre em Estudos sobre as Mulheres pela Universidade Nova de Lisboa. Traduziu recentemente PRÓ – Reivindicando os Direitos ao Aborto de Katha Pollitt. 

      • Marinho Pina

          (Sonaco, Guiné Bissau, 1982) artista transdisciplinar e verbómano inveterado do chão de Sonaco. Conta histórias em qualquer formato que consegue. Julga‑se engraçado só porque a sobrinha de três anos adora as suas palhaçadas. Alimenta o blog montedeplavras com devaneios pseudofilosóficos.

      • Marlene Monteiro Freitas

          (Cabo Verde, 1979) é coreógrafa e bailarina. O seu trabalho é marcado pela abertura, o hibridismo, a impureza e a intensidade. É cocuradora do projeto (un)common ground desde 2020.

      • Marta Morais

          (1974) estudou Antropologia em Portugal, e língua e literatura japonesas no Japão, onde vive desde o ano 2000. A sua actual actividade de tradução literária de japonês-português decorre em paralelo com o apoio que dá na manutenção de um templo budista. Traduz a poesia wakado monge Ryôkan e os contos dôwade Miyazawa Kenji.

      • Melissa Rodrigues

          (Ilha de Santiago, Cabo Verde, 1985) é performer, arte-educadora, ativista. Mulher Negra. Feminista Decolonial. Pesquisadora nas áreas de cultura visual, imagem e representação, é pós-graduada em Performance pela FBAUP, licenciada em Antropologia pela FCSH – UNL e formada em Artes Performativas (FIA) pelo c.e.m.

      • Micael Ferreira

          (Torres Novas, 1993) é artista plástico. O seu trabalho multimédia está enraizado na natureza do espaço onde trabalha: um ateliê na Mata, em plena serra, onde o silêncio o provoca a produzir e criar.

      • Mierle Laderman Ukeles

          (1939, Denver, EUA) é artista sediada em Nova Iorque. Desde os anos 1960 relaciona a ideia de processo na arte conceptual à “manutenção” doméstica e cívica, redistribuindo valor nos modos de produção social. É artista residente do Departamento de Saneamento de Nova Iorque desde 1977, para o qual criou recentemente uma série de “work ballets”.

      • Miguel Castro Caldas

          Miguel Castro Caldas (Lisboa, 1972) escreve peças de teatro que antigamente entregava a um encenador, mas agora prefere ser ele a colocá-las em cena com a ajuda de amigos. Fez dramaturgia de espetáculos, estuda, dá aulas e traduz ocasionalmente.

      • Miguel Oliva Teles

          (Porto, 1989) exerce medicina interna e cuidados paliativos em Lisboa desde 2015. Procura na escrita um espaço onde se cruzem a vida, a poesia e a filosofia. Em 2021 publicou o seu primeiro livro de poesia: Errando.

      • Miguel Pipa

          (Vila do Conde, 1980). O seu percurso foca-se na investigação e pesquisa, na desconstrução de formalismos pré-concebidos, e na procura de diferentes práticas em diversas áreas como eletrónica, som, artes plásticas, performativas e escrita.

      • Miguel Wandschneider

          (Lisboa, 1969) licenciou-se em Sociologia no ISCTE, em Lisboa. Iniciou a sua atividade de curadoria em 1997, com a exposição Ernesto de Sousa: Revolution My Body, vindo a assumir a programação de arte contemporânea da Culturgest entre 2005 e 2017. É curador independente.

      • Min Kyoung Lee 이민경

          (1974, 서울 Seul, 대한민국República da Coreia) é artista de dança e performance. Trabalhou na Nova Zelândia, Europa e recentemente na República da Coreia. Os seus trabalhos sobre as condições de ser artista na vida contemporânea incluem 7 dias de Greve de Desaceleramento (2014), Arte, conforme Necessário (2015) e [Judson Drama] (2020).

      • Moriah Evans

          (Ohio, EUA, 1980) é uma artista que trabalha sobre e na forma de dança. É licenciada em História da Arte e Literatura Inglesa e mestre em História da Arte, Teoria e Crítica pela Universidade da Califórnia. Desde 2013, desenvolve o projecto The Bureau for the Future of Choreography. É directora editorial do Movement Research Performance Journal. Vive em Brooklyn, Nova Iorque.

      • Myriam Gourfink

          (Chaumont-en-Vexin, França, 1968) é bailarina e coreógrafa, focada na pesquisa de movimento desde 1996. Dirigiu o Programa de Pesquisa e Composição Coreográfica da Fundação Royaumont (2008-2013). Publicou, com Yvane Chapuis e Julie Perrin, Composer en danse, em 2020.

      • Nikita Kadan

          (Kiyv, 1982) trabalha com pintura, grafismo e instalação, muitas vezes em colaboração interdisciplinar com arquitetos, sociólogos e ativistas de direitos humanos. É membro do grupo de artistas R.E.P. (Espaço Experimental Revolucionário) e membro fundador do coletivo curatorial e ativista Hudrada.

      • Patrícia da Silva

          (Lisboa, 1980), formou-se na ESTC, começou por trabalhar com Mónica Calle e foi membro do Teatro Praga. Colaborou em trabalhos de artistas plásticos e participa com regularidade em espectáculos do Cão Solteiro e Teatro Praga. Faz esporadicamente traduções para instituições culturais e artistas.

      • Paula Caspão

          (Aveiro, 1968) é artista transversal, investigadora e docente no Centro de Estudos de Teatro (FLUL). Doutorou-se em epistemologia e estética na Universidade de Paris-10 e foi investigadora convidada em estudos de performance na Universidade de Nova Iorque.

      • Paulo Pinto

          (1972). Multiartista. Arte/educador. Arte/terapeuta. Psicólogo. Professor. Investigador no pós-doutoramento em Arte Contemporânea, U.Coimbra. Licenciado e mestre em Psicologia. Licenciado em Artes Plásticas. Licenciando em Teatro. Membro do Tuia de Artifícios e do Laboratório de Criatividade e Saúde Mental.

      • Pedro Cerejo

          (Bruxelas, 1974) é licenciado em Antropologia pelo ISCTE mas deixou-se dessas coisas e passou a ser tradutor. Foi jornalista e subiu a revisor de texto, acumulando assim técnicas e práticas sempre ligadas à palavra escrita. É doutorando em estudos de teatro.

      • Pedro Marum

          (Loulé, 1989) vive em Berlim onde trabalha como artista, curadorx e DJ. As suas práticas exploram a cultura rave queer e a música como tecnologia de êxtase e cuidado coletivo. É membro dos coletivos mina, suspension, XenoEntities Network e Rabbit Hole.

      • Pedro Morais

          (Lisboa, 1982) é tradutor e revisor linguístico. Licenciado em Filosofia e pós-graduado em Edição de Texto, tem colaborado com editoras como a Orfeu Negro, Antígona ou Dafne, ou instituições como o CCB. Traduziu Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici.

      • Pedro Pinto

          (Lisboa, 1977) é investigador pós-doutorado em estudos de género, sexualidade e corporalidade. Trabalhou anteriormente como músico e performer (1995-2008). Após a morte de Gil Mendo, seu companheiro de vida, retornou ao universo da dança, dedicando-se atualmente à sua historiografia no contexto português.

      • Piny

          (Lisboa, 1981). Ser humano que através da arte tenta criar um mundo mais justo e livre. Performer, arquiteta, coreógrafa, pesquisadora, pedagoga, ativista. Estuda e leciona fusões de danças do Médio Oriente, Norte de África e danças urbanas afro-norte-americanas.

      • Poorna Swami

          (Mumbai, 1993) é coreógrafa, bailarina e escritora residente em Bangalore, na Índia.

      • Pope.L

          (1955, Newark, EUA) é artista visual. A sua prática usa binários, contrariedades e noções preconcebidas incorporadas na cultura contemporânea para criar obras de arte em vários formatos, entre os quais performances em espaços públicos, com enfoque em linguagem, sistema, género, raça e comunidade.

      • Raimund Hoghe

          (Wuppertal, 1949–2021) iniciou a sua carreira enquanto jornalista cultural nos anos 1970. Entre 1980 e 1989 foi dramaturgista do Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. Desde então produziu cerca de três dezenas de peças nas quais a presença do seu corpo e da sua história figuram sistematicamente.

      • Raquel André

          (Odivelas, 1986) é colecionadora de encontros, performer, pesquisadora e artista. A sua prática inicia-se no teatro expandindo-se na interdisciplinaridade das artes cénicas e performativas. É doutoranda-bolseira no Centro de Estudos de Teatro (FLUL).

      • Renan Marcondes

          (São Paulo, 1991) é artista e pesquisador com foco nas artes performativas. Doutor em artes da cena pela ECA-USP, com passagem pela Justus Liebig Universität Giessen.

      • Rita Natálio

          (Lisboa, 1983) estudou artes do espetáculo coreográfico, é mestre em psicologia e doutoranda em estudos artísticos e antropologia com bolsa da FCT. Dedica-se à escrita, dramaturgia e performance, cruzando a criação de textos e espetáculos com estudos académicos. Publicou dois livros de poesia pela (não)edições: Artesanato (2016) e Plantas Humanas (2017).

      • Roberto Dagô

          (Jaguaruna, Brasil, 1990) é artista criador em dança e performance, investigando relações entre corpo, imagem e política. Bacharel em artes plásticas (UnB, Brasil), estudou cenografia (UTL, Portugal) e concluiu mestrado em criação artística em artes da cena (UGA, França).

      • Rogério Nuno Costa

           (Amares, 1978). Performer, investigador, professor, escritor, curador. Vive e trabalha entre Portugal e a Finlândia. Formação académica em Ciências da Comunicação. Desenvolve trabalho artístico transdisciplinar (teatro, dança, artes visuais, literatura). Artista associado d’O Espaço do Tempo.

      • Romain Beltrão Teule

          (Paris, 1989). Franco-brasileire. Mestre em Belas Artes, formou-se no PEPCC do Forum Dança. Utiliza as línguas como matéria performativa e coreográfica tendo criado performances que tratam de traduções, legendas, futuro e dobras.

      • Rosa Paula Rocha Pinto

           (1975) é doutoranda em Ciências Musicais pela FCSH-Universidade NOVA de Lisboa. É professora de História da Música e Cultura Musical e integra o Grupo de Teoria Crítica e Comunicação (GTCC) e o Núcleo de Estudos em Música na Imprensa (NEMI), do Centro de Estudos em Sociologia e Estética Musical (CESEM).

      • Sabine Macher

          (Alemanha Ocidental, 1955) é bailarina, performer, escritora, tradutora e fotógrafa residente em Paris, França. O seu trabalho é desencadeado pela observação, descrição, bem como atraído pela imanência e as suas formas.

      • Sara Godinho

          (Lisboa, 1989) trabalha como tradutora de jogos de coreano para português. Licenciada em estudos asiáticos pela Universidade de Lisboa e mestranda em coreano como língua estrangeira na Universidade de Jeonbuk na Coreia do Sul. 

      • Sara Graça

          (Lisboa, 1993) é artista plástica e mantém uma prática interdisciplinar, tanto individual como colaborativa. Passou pelas Belas-Artes do Porto e pela Goldsmiths, em Londres, e tem vindo a mostrar trabalho nos contextos não só das artes plásticas, mas também da música.

      • Sara Santos

          (Lisboa, 1985). Desde as primeiras tentativas de autodefinição, procuro formas originais de comunicar. Descobri na tradução um dos ofícios de o fazer, a possibilidade inebriante de ficar imersa na mediação entre dois polos de uma partilha.

      • Sara Wookey

          (EUA, 1972) é coreógrafa, pesquisadora, consultora e palestrante, residente em Londres, cuja prática explora a dança como um dispositivo relacional. É doutorada pelo Center for Dance Research (C-DaRE) da Coventry University e uma ativista pelos direitos dos artistas da performance.

      • Sergei Eisenstein Сергей Эйзенштейн

          (Riga, 1898-Moscovo, 1948) foi um realizador de cinema e teórico, ativo no movimento de vanguarda ligado à revolução russa de 1917 e na consolidação do cinema como arte. Foi pioneiro na técnica de montagem e colagem, autor de inúmeros filmes, entre os quais o mítico A Greve, de 1925.

      • setareh fatehi

          (Teerão, Irão, 1984) é coreógrafa-investigadora residente entre Teerão e Amsterdão. O foco do seu trabalho está na formação de espaços colaborativos translocais entre lugares distantes, explorando o aparato da imagem e da imaginação através das tecnologias corporais existentes.

      • Silvia Federici

          (Parma, Itália, 1942) é ativista feminista, escritora e professora na Universidade de Hofstra, em Nova Iorque. Pioneira na reivindicação de salário para o trabalho doméstico nos anos 1970, tem publicado sobre história das mulheres, colonialismo, globalização e trabalho precário.

      • Sílvia Pinto Coelho

          (Coimbra, 1975) é coreógrafa, investigadora do ICNOVA e professora auxiliar convidada na FCSH. Doutorada e mestre em ciências da comunicação, licenciada em antropologia e bacharel em dança, frequentou o c.e.m., o Forum Dança e a Tanzfabrik. Desde 1996 participa em processos de pesquisa, pedagogia e em filmes com colaboradores de várias áreas.

      • Sónia Baptista

          (Lisboa, 1973) coreografa, encena e escreve.

      • Sónia Vaz Borges

          (Portugal, 1980) historiadora militante interdisciplinar, é professora de História e Estudos Africanos na Drexel University (EUA). Prepara a edição de Ragás because the sea has no place to grab. A memoir of home, migration, and African liberation, pela Common Notions, em 2024.

      • Sorour Darabi ســـرور دارابی

          (Shirazشیراز, Irão ايران 1990) é um.a artista autodidata a viver em Paris depois de ter estudado no CCN, em Montpelier. No Irão, onde a dança é considerada um tabu, fez parte do coletivo underground ICCD. O seu trabalho aborda geralmente questões de língua, identidade de género e sexualidade.

      • Tadáskía

          (Rio de Janeiro, 1993) é artista negra e trans que vive e trabalha entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Seu trabalho em desenho, fotografia, instalação e têxtil mobiliza paisagens inventadas e místicas onde busca elaborar experiências imaginativas da diáspora negra.

      • Takashi Morishita

          (1950) é professor e diretor do Arquivo de Tatsumi Hijikata do Centro de Artes da Universidade de Keio, em Tóquio, no Japão. É autor do livro Tatsumi Hijikata, Butohfu no sutoh-kigou no souzou, kouhou no hakken(Tatsumi Hijikata, O butô enquanto partitura de dança — A criação de símbolos, A descoberta de um método).

      • Talles Lopes

          (Anápolis, 1997), artista e arquiteto, expôs em espaços como o Museu de Arte de São Paulo e o Museu de Arte Contemporânea de Castilla e León, recebeu o prémio EDP nas Artes em 2020 e foi artista residente na Delfina Foundation (2021).

      • Tânia Carvalho

          (Viana do Castelo, 1976) move-se entre a coreografia e a música, a dança e o desenho. Foi um dos membros fundadores da Bomba Suicida (1997-2014). Criou mais de três dezenas de obras entre produções independentes e para companhias de repertório como o Ballet da Opera de Lyon, a Companhia Nacional de Bailado e Dançando com a Diferença.

      • Tatsumi Hijikata, 土方 巽

          (Akita 秋田県,1928 – 1986, Tóquio東京) foi um bailarino e coreógrafo japonês, fundador, nos anos 50, do movimento que ficaria internacionalmente conhecido por butô (舞踏). A sua primeira peça, Kinjiki (禁色) estreou em 1959.

      • Teresa Castro

          (Lisboa, 1976) é professora associada de estudos cinematográficos na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Estudou história da arte e cinema em Lisboa, Londres e Paris. 

      • Teresa Fabião

          é bailarina, educadora, pesquisadora e artivista. Mestre em Dança, doutora em Artes Cénicas e especialista em Terapia pelas Artes Expressivas. Recebeu várias bolsas e viveu/atuou/lecionou em Portugal, Brasil, Espanha, Itália, Colômbia, Benim, Cabo Verde e EUA.

      • Tiago Amate

          (São Luís, Brasil, 1992). Artista-pesquisadore e performer, pesquisa a dança enquanto matéria indissociável do pensamento, relacionando-a com imagens dissidentes à hegemonia cénico-narrativa do cinema ocidental. Integra o grupo de pesquisa Ágora (PPGDança UFBA), sediado em Salvador, na Bahia.

      • Tiran Willemse

          é bailarino e coreógrafo da África do Sul, residente em Zurique. A sua prática de performance está enraizada na atenção ao espaço, à imaginação, ao gesto, e ao som, focando-se em como a construção de raça e género é performada, comunicada e desafiada.

      • Tom Engels

          (Bonheiden, Bélgica, 1989) trabalha como editor, curador, escritor e dramaturgista. Faz parte da Sarma, um laboratório para práticas discursivas e publicação expandida. Colaborou recentemente com Alexandra Bachzetsis, Mette Ingvartsen, Mette Edvardsen, Bryana Fritz, PRICE e Philipp Gehmacher. 

      • Valérie Castan

          (França) é artista coreográfica e audiodescritora de espectáculos coreográficos, formada em Dança pelo CNDC de Angers em 1986 e licenciada em Metodologia de Audiodescrição para o Cinema no ESIT, Paris-Dauphine.

      • Valeska Gert

          (Berlim, 1892-Kampen, 1978) foi uma artista de cabaret, bailarina e atriz, pioneira da performance e do movimento punk, reconhecida como o lado mais radical do Expressionismo alemão e, como a própria definiu, do grotesco. Judia que era, viveu exilada do nazismo nos Estados Unidos da América entre 1938 e 1947. Morreu ao lado do seu gato a quem deixou tudo, incluindo os seus direitos de autor, que revertem para uma associação de proteção de animais.

      • Vânia Doutel Vaz

          (Setúbal, 1985) dança há 30 anos. Desenvolveu a sua prática pela Europa, EUA e EAU. Vânia identifica-se como performer em tudo o que faz. Tanto na vida pessoal como profissional, questiona-se sobre a sua identidade de forma geral.

      • Vânia Gala

          (Coimbra, 1972) é coreógrafa e investigadora. Doutorada pela Universidade de Kingston, leciona no MA|MFA Coreography do Trinity Laban, responsável pelo módulo Examining practice. O seu interesse incide sobre práticas experimentais em performance e dança com ênfase em noções de recusa, (não)performance e opacidade.

      • Vânia Rovisco

          (Durban, África do Sul, 1975) foi intérprete para Meg Stuart entre 2001-07. Define-se desde então como artista visual performativa, inserindo o corpo na galeria de arte. O seu mais recente projeto, Reacting to Time – portugueses na performance, lida com o arquivo e a transmissão de obras de finais dos anos 60 em diante.

      • Vera Mantero

          (Lisboa, 1966) é coreógrafa e bailarina. Fundou o Rumo do Fumo em 1999. Prepara um livro de escritos sobre o seu trabalho.

      • Ves Liberta

          (Torres Novas, 1998) tem desenvolvido trabalho nas áreas da performance e poesia, debruçando-se sobre temas como empatia, queerness, herança e ccontaminação. Trabalhou com Ana Borralho e João Galante, Raimund Hoghe, Pedro Barreiro, Leonor Lopes, Dinis Machado e Eduardo Batata.

      • Vicente Antunes Ramos

          (São Paulo, Brasil, 1993) é diretor de teatro, dramaturgo e roteirista. Formado em artes cênicas pela Universidade de São Paulo cofundou o Comitê Escondido Johann Fatzer, coletivo que investiga a lida com documentos em cena.

      • Vicente Escudero

           (1888-1980) foi um bailaor espanhol, responsável pela renovação estética do flamenco na primeira metade do século XX. Escreveu testemunhos e tratados sobre dança e foi pintor, aliando a sua prática de dança aos movimentos modernistas.

      • Viktor Ruban

          (1983, Sambir, Ucrânia) é coreógrafo, performer, curador e ativista cultural. É diretor do Ruban Production ITP e fundador do Fundo de Emergência para as Artes Performativas na Ucrânia. É representante da Ucrânia no Parlamente Cultural Europeu.

      • Vitor Grilo Silva

          (Évora,1993) é investigador transdisciplinar. Texto mas não só. Freestyle.

      • Volmir Cordeiro

          (Florianópolis, Brasil, 1987) é coreógrafo e bailarino. Obteve um doutorado em dança pela Paris 8 e investiga relações entre criação coreográfica e pesquisa universitária. Entre suas principais obras, destacam-se Céu, Inês, Rua, Calçada, Época, onde investe na gestualidade marginal como mecanismo transformador de mundos.

      • Wilson Le Personnic

          (Argenteuil, França, 1990) é jornalista independente. Colabora com artistas do campo da dança e desenvolve uma atividade de escrita para jornais e teatros. Fundou e dirige a plataforma maculture.fr desde 2014.

      • Yvonne Rainer

          (São Francisco, EUA, 1934) é coreógrafa, bailarina e realizadora. Fez parte do colectivo Judson Dance Theatre e foi mentora do Grand Union ao longo dos anos 1960 e 1970 em Nova Iorque. Em 2006 publicou a sua autobiografia Feelings Are Facts.

      • Zeina Hanna زينه حنا

           (Beirute, Líbano, 1983) vive em Berlim e trabalha no circuito das artes performativas como coreógrafa, performer e dramaturgista. Na sua pesquisa recente observa a forma como os seres vivos habitam o mundo pela perspetiva de como, onde e quando dormem.

      • Zia Soares

          é encenadora e atriz. Trabalha entre a África e a Europa. Recentemente encenou O Riso dos Necrófagos (Teatro GRIOT/Culturgest), FANUN RUIN (Fundação Calouste Gulbenkian/So Wing_arts) e Pérola Sem Rapariga (So Wing_arts/TNDM II/apap-Feminist Futures).

  • Distribuidores

      • Açores [pt]

          • Corvo

              • Biblioteca Municipal do Corvo

                • Rua da Matriz 9980, 9980-024 Corvo

          • Flores

              • Casa Pimentel de Mesquita — Biblioteca Municipal Santa Cruz das Flores

                • Rua da Conceição nº 1, 9970-337 Santa Cruz das Flores

          • Graciosa

              • Biblioteca Municipal de Santa Cruz da Graciosa – Ilha Graciosa

                • Praça Fontes Perreira de Melo 9880 Santa Cruz da Graciosa

          • Horta

              • Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graca

                • Rua Valter Bensaúde nº 14, 9900-142 Horta, Açores

          • São Jorge

              • Centro de Artes e Ciências do Mar

                • Rua do Castelo, 9930-138 Lajes do Pico

              • Museu-Biblioteca Francisco Lacerda

                • Rua José Azevedo da Cunha 9850-038 Calheta

          • Pico

              • Biblioteca Municipal de São Roque do Pico

                • Rua Capitão Mor 9940-357 São Roque do Pico, Açores

          • Santa Maria

              • Biblioteca Municipal de Vila do Porto

                • Rua da Boa Nova 19-29   9580-516 Vila do Porto, Santa Maria, Açores

              • Espaço em Cena

                • Lugar Mãe de Deus nº 12  9580-480 Vila do Porto, Açores

          • São Miguel

              • Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada

                • Largo Colégio s/n 9500-054 Ponta Delgada

              • Estúdio 13 – Espaço de Indústrias Criativas

                • Rua das Laranjeiras, nº31 – Armazém 13, 9500 Ponta Delgada

              • Galeria Fonseca Macedo

                • Rua Guilherme Poças Falcão, 21.  9500-057 Ponta Delgada

              • Teatro Micaelense

                • Rua de São João s/n 9500-106 Ponta Delgada

          • Terceira

              • Biblioteca Municipal Silvestre Ribeiro – Ilha Terceira

                • Praça Francisco Ornelas da Câmara – Praia da Vitória
              • Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva

                • Rua do Morrão, 42, 9700-054 Angra do Heroísmo

              • Teatro Angrense

                • Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, Praça Velha s/n 9700-857 Angra do Heroísmo

              • Universidade dos Açores Campus Angra do Heroísmo

                • Rua Capitão João d’Ávlia, 9700-042 Angra do Heroísmo

      • Aveiro [pt]

          • Aveiro

              • Biblioteca Municipal

                • Largo do Dr. Jaime Magalhães Lima, 3800-202 Aveiro

              • Teatro Aveirense

                • Rua Belém do Pará. 3810 -009 Aveiro

              • Universidade de Aveiro – Serviços de Biblioteca, Informação Documental e Museologia

                • Campus Universitário de Santiago, 3810-193 Aveiro

          • Espinho

              • Biblioteca Municipal de Espinho

                • Rua 24 Parque João de Deus, 4500-358 Espinho

          • Ílhavo

              • Biblioteca Municipal de Ílhavo

                • Av. General Elmano Rocha, Alqueidão. 3830-198 Ílhavo

              • Centro Cultural Ílhavo

                • Av. 25 de Abril, 3830-044 Ílhavo

          • Ovar

              • Centro de Arte de Ovar

                • Rua Arquitecto Januário Godinho  3880-213 Ovar

          • Santa Maria da Feira [pt]

              • BCN

                • R. São Paulo da Cruz, 12 Santa Maria da Feira
                  4520-278 Aveiro

              • Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira

                • Av. Dr. Belchior Cardoso da Costa, 4520-152 Santa Maria da Feira

      • Beja [pt]

          • Aljustrel

              • Biblioteca Municipal de Aljustrel

                • Largo da Biblioteca – 7600 Aljustrel

          • Beja

              • Biblioteca Municipal José Saramago

                • Rua Luís de Camões, 7800-508 Beja

              • Teatro Municipal Pax Julia

                • Largo de São João, 7800-477 Beja

          • Serpa

              • Musibéria

                • Rua Dr. Afonso Henriques do Prado Castro e Lemos, 7830-393 Serpa

      • Bissau [gw]

          • Bissau

              • Camões – Centro Cultural Português – Embaixada de Portugal

                • Av. Cidade de Lisboa – CP 276- Bissau

      • Braga [pt]

          • Braga

              • Arte Total

                • Mercado Cultural Carandá Rua Dr. Costa Junior, 4715-127 Braga

              • Biblioteca Municipal de Braga

                • Rua de São Paulo nº 1, 4700-042 Braga

              • Livraria Centésima Página

                • A. Central 118-120, 4710-229 Braga

              • Theatro Circo

                • Av. da Liberdade 697, 4710-251 Braga

              • Universidade do Minho Associação Académica

                • Rua D. Pedro V nº88, 1º, 4710-374 Braga

          • Guimarães

              • Biblioteca Municipal Raúl Brandão

                • Largo Cónego José Maria Gomes, 4800-419 Guimarães

              • Centro Cultural Vila Flor

                • Av. D Afonso Henriques nº 701, 4810-431 Guimarães

            • CIAJG

              • Universidade do Minho — Instituto de Letras e Ciências Humanas

                • Campus Gualtar 4710-057 Braga

      • Bragança [pt]

          • Bragança

              • Biblioteca Municipal/Centro Cultural Municipal Adriano Moreira

                • Praça Camões 5300-104 Bragança

              • Teatro Municipal de Bragança

                • Praça Professor Cavaleiro Ferreira 5300-252 Bragança

      • Brasília [br]

          • Brasília

              • Camões – Centro Cultural Português – Embaixada de Portugal

                • SES Av. das Nações, Quadra 801, Lote 2 – CEP 70402-900 – Brasília-DF

      • Castelo Branco [pt]

          • Castelo Branco

              • Biblioteca Municipal

                • Praça 25 Abril (Ex-Quartel da Devesa), 6000-150 Castelo Branco

              • Cine-Teatro Avenida

                • Av. Gen. Humberto Delgado, 6000-081 Castelo Branco

      • Coimbra [pt]

          • Coimbra

              • Biblioteca Municipal de Coimbra

                • Rua Pedro Monteiro 3000-329 Coimbra

              • Casa das Artes Bissaya Barreto

                • Av. Sá da Bandeira 83 , 3000-351 Coimbra

              • CAV – Encontros de Fotografia

                • Pátio da Inquisição, 10

              • Convento São Francisco

                • Av. da Guarda Inglesa 1a, 3040-193

              • O Teatrão

                • Rua Pedro Nunes, 3030-199 Coimbra

              • TAGV

                • Praça da República, 3000-343 Coimbra

      • Díli [tl]

          • Díli

              • Camões – Centro Cultural Português

                • Rua Palácio do Governo – Díli

      • Évora [pt]

          • Évora

              • Associação Pó de Vir a Ser — Departamento de Escultura em Pedra

                • Rua de Machede nº58, 7000-864 Évora

              • Biblioteca Pública de Évora

                • Largo do Conde de Vila Flor 4, 7000-863 Évora

              • Teatro Garcia de Resende

                • R. do Teatro 10, 7000-528 Évora

          • Montemor-o-Novo

              • Cooperativa Integral Minga

                • Largo Machado dos Santos 10, 7050-135 Montemor-o-Novo

              • O Espaço do Tempo

                • Antigo Hospital da Misericórdia, Rua Luís de Camões. 7050-000 Montemor-o-Novo

      • Faro [pt]

          • Albufeira

              • Biblioteca Municipal Lídia Jorge

                • R. Sophia de Mello Breyner 46, 8200-084 Albufeira

              • Galeria de Arte Pintor Samora Barros

                • Tv. Cândido dos Reis 2, 8200-064 Albufeira

          • Faro

              • Biblioteca Municipal de Faro

                • Rua Pintor Carlos Porfirio 35   8000-241 Faro

              • Conservatório Regional do Algarve

                • Av. Dr. Júlio Filipe de Almeida Carrapato 93, 8000-081 Faro

              • Devir Capa

                • Rua Frei Lourenço de Santa Maria nº 4  8000-352 Faro

              • Teatro Lethes

                • Rua de Portugal, 58, 8000-281 Faro

              • Teatro Municipal de Faro

                • Horta das Figuras, EN 125. 8000-518 Faro

          • Lagos

              • Biblioteca Municipal de Lagos

                • Rua Júlio Dantas nº 4, 8600-585 Lagos

            • Festival Verão Azul

          • Portimão

              • Biblioteca Municipal Manuel Teixeira Gomes

                • R. da Quinta do Bispo., 8500-729 Portimão

      • Guarda [pt]

          • Guarda

              • Biblioteca Municipal da Guarda

                • Rua Soeiro Viegas 10, 6300-758 Guarda

              • Teatro Municipal da Guarda

                • Rua Batalha Reis | Nº 12 | 6300-668 Guarda

          • Vila Nova de Foz Côa

              • Biblioteca Municipal de Vila Nova de Foz Côa

                • Av. Cidade Nova 2, 5150-566 Vila Nova de Foz Côa

      • Leiria [pt]

          • Alcobaça

          • Caldas da Rainha

              • Centro Cultural e de Congressos

                • R Dr Leonel Souto Mayor 2500-227 Caldas da Rainha

          • Leiria

              • Arquivo Livraria

                • Av. Combatentes da Grande Guerra 53, 2400-159 Leiria

              • Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira

                • Largo Cândido dos Reis nº 6 2400-112 Leiria

              • Teatro José Lúcio da Silva

                • Teatro José Lúcio da Silva

      • Lisboa [pt]

          • Almada

              • Biblioteca Municipal/Forum Municipal Romeu Correia

                • Praça da Liberdade  2800-648 Almada

              • Casa da Dança / Casa Municipal da Juventude – Ponto de Encontro

                • Rua Trindade Coelho 3, 2800-297 Cacilhas

              • Teatro Municipal Joaquim Benite

                • Av. Professor Egas Moniz, 2804-503 Almada

          • Amadora

              • Escola Superior de Teatro e Cinema

                • Av. Marquês de Pombal, 22 B. 2700-571 Amadora

              • Quorum Ballet/Academy

                • Rua António Duarte Caneças 14A, 2700-069 Amadora

          • Barreiro

              • Teatro Projéctor

                • Rua Florbela Espanca nº40, 2830-235 Barreiro

          • Lisboa

              • 3+1 Arte Contemporanea

                • Largo Hintze Ribeiro 2E f, 1250-122 Lisboa

              • Alkantara

                • Calçada Marquês de Abrantes 99, 1200-718 Lisboa

              • Associação Casa da Achada

                • Centro Mário Dionísio. Rua da Achada, 11 R/C, 1100-004 Lisboa

              • Atelier Museu Júlio Pomar

                • R. Vale 7, 1200-474 Lisboa
              • Biblioteca Camões

                • Largo Calhariz 17, 1º  1200-086 Lisboa

              • Biblioteca Nacional de Portugal

                • Campo Grande, 83, 1749-081 Lisboa

              • BOTA

                • Largo Santa Bárbara 3D, 1150-287 Lisboa

              • CCB

                • Recepção, sala leitura, bilheteiras: Praça do Império 1449-003 Lisboa

              • Companhia Olga Roriz

                • Palácio Pancas Palha, Travessa Recolhimento Lázaro Leitaõ nº 1 , 1º  1149-044 Lisboa

              • Culturgest

                • Rua Arco do Cego 50, 1000-300 Lisboa

              • EIRA

                • Travessa de São Vicente 11, 1100-575 Lisboa

              • Escola de Dança do Conservatório Nacional

                • Rua João Pereira da Rosa 22 1200-236 Lisboa

              • Escola Superior de Dança

                • Campus do ISEL – Rua Conselheiro Emídio Navarro nº1, 1959-007 Lisboa

              • Espaço da Penha

                • TRAVESSA Calado, 26B, 1170-070 Lisboa

              • Estudios Pro.Dança

                • Rua de S. Domingos 10, 1200-690 Lisboa

              • Estúdios Victor Córdon

                • Rua Victor Córdon, 20, 1200-484 Lisboa

              • Faculdade Belas Artes

                • Largo da Academia Nacional de Belas Artes 1249-058 Lisboa

              • Faculdade Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa – Instituto de História Contemporânea

                • Av. de Berna 26C, 1050-099 Lisboa

              • FLUL – Centro de estudos de teatro

                • Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa

              • Fundação Calouste Gulbenkian

                • Av. de Berna 45A   1067-001 Lisboa

              • Galeria Francisco Fino

                • R. Cap. Leitão 76, 1950-052 Lisboa

              • Galeria Miguel Nabinho

                • R. Ten. Ferreira Durão 18-B, 1350-315 Lisboa

              • Galeria Quadrum

                • Palácio dos Coruchéus, Rua Alberto de Oliveira 52, 1700-019 Lisboa

              • Galeria Zaratan

                • Rua de São Bento 432 1250-221 Lisboa

              • Galerias Municipais

                • Palácios dos Coruchéus nº 52, R. Alberto de Oliveira, 1700-019 Lisboa

              • Kunstalle Lissabon

                • Rua José Sobral Cid 9E, 1900-289 Lisboa

              • Letra Livre

                • Calçada do Combro, 139   1200-452 Lisboa

              • Linha de Sombra/ Cinemateca Portuguesa

                • Rua Barata Salgueiro 39   1269-059 Lisboa

              • Livraria Tigre de Papel

                • Rua de Arroios 25,  1150-053 Lisboa

              • Livros XYZ

                • Rua Ilha do Príncipe 3 porta E, 1170-182 Lisboa

              • Mamaus

                • Campo dos Mártires da Pátria 100, 1º esq   1150-227 Lisboa

              • Museu do Chiado

                • Rua Serpa Pinto nº4 1200-444 Lisboa

              • Museu Nacional do Teatro e da Dança

                • Estrada Lumiar 10   1600-495 Lisboa

              • Pólo Cultural das Gaivotas

                • Rua das Gaivotas 8   1200-202 Lisboa

              • Produções Real Pelágio

                • Travessa de São Vicente, 11. 1100-620 Lisboa

              • Rua das Gaivotas 6

                • Rua das Gaivotas 6, 1200-202 Lisboa

              • São Luiz Teatro Municipal

                • R António Maria Cardoso 38. 1200-027 Lisboa

              • Sistema solar

                • R. Passos Manuel, 67 B.  1150-258 Lisboa

              • Snob – livraria

                • Cossoul –  Rua Nova da Piedade 66  1200-299 Lisboa

              • STET Livros & Fotografias

                • Rua Acácio de Paiva, 17B.  1700-006 Lisboa

              • Teatro Camões

                • Passeio do Neptuno, Parque das Nações. 1990-193 Lisboa

              • Teatro do Bairro Alto

                • Rua Ten. Raul Cascais 1 A, 1250-268 Lisboa

              • TNDMII

                • Largo de São Domingos-Rossio, 1150-320 Lisboa

              • Under the cover

                • Rua Marquês Sá da Bandeira, 88B. 1050-150 Lisboa

              • Universidade Nova — Faculdade Ciências Sociais e Humanas

                • Associação de Estudantes, Av. Berna 26C  1069-061 Lisboa

              • ZDB

                • Rua da Barroca 59, 1200-049 Lisboa

          • Odivelas

          • Oeiras

              • Centro de Dança de Oeiras Palácio Ribamar

                • Espaço Cultural Rua João Chagas 3, 1495-071 Algés, Oeiras

          • Torres Vedras

              • Estufa

                • Largo Dr. Justino Freire 7   2560-636 Torres Vedras

              • Teatro-Cine de Torres Vedras

                • Av. Tenente Valadim 19,  2560-273 Torres Vedras

      • Luanda [ao]

          • Luanda

              • Camões – Centro Cultural Português, Embaixada de Portugal

                • Av. de Portugal, 50, Luanda

      • Madeira [pt]

          • Funchal

              • Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira

                • Caminho dos Álamos nº35, Santo António 9020-064 Funchal

              • Biblioteca Municipal do Funchal

                • Av Calouste Gulbenkian 9. 9000-011 Funchal Madeira

              • Conservatório Nacional Dança

                • Avenida Luís de Camões nº 1  9004-517 Funchal

              • Dançando com a Diferença

                • R. dos Barcelos nº 9 R/C, 9020-391 Funchal

              • Mudas

                • Estrada Simão Gonçalves da Câmara, n.º 37, 9370-139 Calheta

              • Porta 33

                • Rua do Quebra Costas 33, 9000-034 Funchal

              • Teatro Municipal Baltazar Dias

                • Av. Arriaga, 9000-060 Funchal

              • Universidade da Madeira

                • Departamento de Arte e Design/FAH. Campus Universitário da Penteada 9020-105, Funchal

      • Maputo [mz]

          • Maputo

              • Camões – Centro Cultural Português – Embaixada de Portugal

                • Av. Julius Nyerere, 720 – 1º – CP 4696 – Maputo

      • Portalegre [pt]

          • Elvas

              • Museu de Arte Contemporânea de Elvas

                • Rua da Cadeia 7350-146 Elvas

          • Portalegre

              • Biblioteca Municipal

                • Rua de Elvas 54, 7300-126 Portalegre

              • Centro de Artes do Espectáculo de Portalegre

                • Praça da República, 39  7300-109 Portalegre

      • Porto [pt]

          • Matosinhos

          • Porto

              • Balleteatro

                • COLISEU PORTO, RUA PASSOS MANUEL, Nº137, 4000-385 PORTO

              • Biblioteca Almeida Garrett/Galeria Municipal

                • Jardins do Palácio de Cristal, R. de Dom Manuel II, 4050-239 Porto

              • Biblioteca da Fundação de Serralves

                • Rua D. João de Castro 210, 4150-417 Porto

              • Biblioteca Pública Municipal do Porto

                • R. de Dom João IV 17, 4049-017 Porto

              • Circolando CRL

                • CACE Cultural do Porto. Rua do Freixo 1071, sala 3. 4300-219 Porto

              • Coração Alecrim

                • Travessa de cedofeita 28. 4050-183 Porto

              • Duas de Letra

                • Passeio de São Lázaro 48, 4000-466 Porto

              • Época Café

                • Rua do Rosário 22 4050-519 Porto

              • Escola Artística Soares dos Reis

                • Rua Major David Magno, 139 4000-191 Porto

              • Escola Superior Artística do Porto

                • Largo São Domingos 80, 4050-545 Porto

              • ESMAE

                • Rua da Alegria 503, 4000-045 Porto

              • FAUP

                • Via Panorâmica Edgar Cardoso 215, 4150-564 Porto

              • FBAUP

                • Av. de Rodrigues de Freitas 265, 4000-421 Porto

              • FLUP

                • Via Panorâmica Edgar Cardoso, 4150-564 Porto

              • Galeria Municipal do Porto

                • Jardins do Palácio de Cristal, R. de Dom Manuel II, 4050-346 Porto

              • Gato Vadio

                • Rua do rosário, 281

              • Livraria AE FAUP

                • Via Panorâmica Edgar Cardoso, S/N
                  4150-564 Porto

              • Livraria Utopia

                • Rua da Regeneração nº 22, 4000 – 410 PORTO

              • Matéria Prima

                • Rua Miguel Bombarda nº 127, 4050-381 Porto

              • Maus Hábitos

                • R. de Passos Manuel 178, 4º Piso, 4000-382 Porto

              • Museu de Arte Contemporânea de Serralves

                • R. Dom João de Castro 210, 4150-417 Porto

              • Palácio do Bolhão

                • Rua Formosa, 342/346, 4000-249 Porto

              • Sonoscopia

                • Rua de Silva Porto 217, 4250-469 Porto

              • Teatro Carlos Alberto

                •  R. Das Oliveiras 43, 4050-449 Porto

              • Teatro Nacional São João

                • Praça da Batalha, 4000-102 Porto

          • Póvoa do Varzim

              • Biblioteca Diana Bar

                • Av.ª dos Banhos
                  4490-428 Póvoa de Varzim

              • Biblioteca Municipal Rocha Peixoto

                • Rua Manuel Lopes
                  4490-664 Póvoa de Varzim

              • Cine-Teatro Garrett

                • Rua José Malgueira 13, 4490-647 Póvoa de Varzim

              • Gimnoarte

                • Praça João XXIII nº 467, 4490-440 Póvoa de Varzim

          • Trofa

              • Biblioteca Municipal da Trofa

                • Casa da Cultura da Trofa Av. D. Diogo Mourato Lagoa – Santiago de Bougado 4785-580 Trofa

          • Vila do Conde

              • Auditório Municipal

                • Praça da República 45, 4480-741 Vila do Conde

              • Biblioteca Municipal José Régio

                • R. Dr. António José Sousa Pereira, 4480-807 Vila do Conde

              • Centro de Memória

                • Largo de São Sebastião 9, 4480-706 Vila do Conde

              • Centro Municipal da Juventude

                • Av. Júlio Graça 580, 4480-656 Vila do Conde

              • O Pátio — café

                • Praça Varandas do Ave 106, 4480-655 Vila do Conde

              • Solar Galeria de Arte Cinemática

                • R. do Lidador 147, 4480-754 Vila do Conde

              • Teatro Municipal

                • Av. Dr. João Canavarro, 4480-719 Vila do Conde

          • Vila Nova de Gaia

              • Armazém 22

                • Ginasiano Escola de Dança – Espaço Sacramento
                  Rua Guilherme Braga, 22/62
                  4400-174 Vila Nova de Gaia

              • Biblioteca de Gaia

                • R. de Angola, 4430-090 Vila Nova de Gaia

      • Praia [cv]

          • Praia

              • Camões – Centro Cultural Português na Praia – Embaixada de Portugal

                • C.P. 160, Praia

      • Santarém [pt]

          • Cartaxo

              • Biblioteca Municipal Marcelino Mesquita

                • R. Dr. Marcelino Mesquita, 2070-102 Cartaxo

              • Centro Cultural do Cartaxo

                • Rua 5 de Outubro. 2070-059 Cartaxo

          • Santarém

              • Biblioteca Municipal

                • Rua Braancamp Freire 2000-094 Santarém

              • Círculo Cultural Scalabitano

                • Rua Maestro Luís Silveira 4    2000-121 Santarém

              • Teatro Sá da Bandeira

                • Rua João Afonso nº 7   2000-055 Santarém

          • Torres Novas

              • Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes

                • Jardim das Rosas, 2350-444 Torres Novas

              • O Corpo da Dança

                • R. Fábrica 41, Torres Novas

              • Teatro Virgínia

                • Largo José Lopes dos Santos 2350-686 Torres Novas

      • São Tomé [st]

          • São Tomé

              • Camões – Centro Cultural Português

                • Rua Patrice Lumumba – Caixa Postal 454 – São Tomé

      • Setúbal [pt]

          • Setúbal

              • Biblioteca Municipal

                • Av. Luísa Todi 188, 2900-249 Setúbal

      • Viana do Castelo [pt]

          • Viana do Castelo

              • Biblioteca Municipal

                • Alameda 5 Outubro, 4900-049 Viana do Castelo

              • Teatro Municipal Sá de Miranda

                • Rua de Sá de Miranda 4900-529 Viana Castelo

      • Vila Real [pt]

          • Vila Real

              • Biblioteca Municipal

                • Rua Madame Brouillard 5000-573 Vila Real

              • Teatro Municipal de Vila Real

                • Alameda de Grasse, 5000-703 Vila Real

      • Viseu [pt]

          • Viseu

              • Biblioteca Municipal D. Miguel da Silva

                • Rua Aquilino Ribeiro nº 10 3500-077 Viseu

              • Teatro Viriato

                • LG Mouzinho de Albuquerque Apartado 2087 EC Viseu 3501-909 Viseu

  • Contactos

    • Circular Associação Cultural
      Praça Luís de Camões, 9 – 1.º
      4480-719 Vila do Conde
      www.circularfestival.com
      info@circularfestival.com
      facebook
      instagram

       

      Associação Parasita
      Produção Sofia Lopes
      www.parasita.eu
      associacaoparasita@gmail.com
      facebook
      instagram

       

       

      Direcção editorial
      João dos Santos Martins
      jdossmartins@gmail.com

       

      Editora-Adjunta
      Clara Amaral
      clairedelalune@gmail.com

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