• Sobre

      • PT

          Coreia é uma publicação fundada em 2019 de carácter experimental, crítico e discursivo a propósito das artes em geral, firmada numa relação umbilical com a dança. De tiragem semestral, o jornal pretende ser um forum independente e internacionalista focado no discurso produzido pelas obras e pelos artistas, preocupado em divulgar formatos vários como partituras, manifestos, entrevistas, crónicas, ensaios, críticas e reflexões em língua portuguesa.

          Coreia é impresso em papel e distribuído gratuitamente em Portugal e na CPLP em colaboração com o Camões — Instituto da Cooperação e da Língua. A cada nova edição, é disponibilizada online a edição anterior.

      • EN

          Coreia is a publication of experimental, critical and discursive nature about the arts in general, with special affiliation to the medium of dance. Published twice a year in Portuguese, Coreia intends to be an independent and internationalist forum focused on the discourse produced by the works and artists, while it is concerned with disseminating various formats such as scores, manifestos, interviews, chronicles, essays, reviews and reflections. Coreia is printed on paper and distributed for free in Portugal. With each new edition, the previous edition is made available online.

           

      • Estatuto Editorial

           

          COREIA é um projeto independente feito de afinidades várias, autores, géneros, gerações e cosmovisões, tendencialmente inclusivas e democráticas, em sintonia com uma perspetiva plural e multivocal, de abrangência local, mas global.

          COREIA é um jornal semestral de carácter crítico e experimental que produz conteúdos a partir e a propósito das artes em geral, com especial incidência numa reflexão sobre as performativas e, particularmente, as coreográficas, numa relação umbilical com a dança.

          COREIA tenta participar na construção de um espaço comum no meio das artes em geral e da dança em particular, e contribuir para uma permanente reactualização dos discursos que possam estimular esse espaço.

          COREIA está focado em divulgar formatos vários como partituras, manifestos, entrevistas, crónicas, ensaios, críticas e reflexões, assim como na tradução e publicação de textos seminais de artistas de dança nunca publicados em língua portuguesa.

          COREIA é uma contribuição para uma partilha crítica dos modos de ver e fazer dança em Portugal, que se querem expandidos.

           

           

      • Lançamento

          #9

          Lançamentos + Performance de Claralinda, Juliana, Inês, Irene, Isabel por Luísa Saraiva

          26 set 18h30 Coimbra

          Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha/Linha de Fuga

          28 set 19h Setúbal

          A Gráfica – Centro de Criação Artística, Setúbal

          29 set 19h Almada

          Casa da Dança

          30 set 18h Vila do Conde

          Capela da Nossa Senhora do Socorro/Circular Festival de Artes Performativas, Vila do Conde

          4 out 18h30 Beja

          Festival das Marias/CADAC – Companhia Alentejana de Dança Contemporânea, Beja

           

          #8

          23 mar 20:30 Lisboa
          Culturgest — Maratona para o Gil — com João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda e Pedro Pinto

          4 abr 18:30 Coimbra
          Salão Brazil/Linha de Fuga — com João dos Santos Martins e João Polido

          7  abr 16:30 Lagos
          Festival Verão Azul (Clube Artístico Lacobrigense) — com João dos Santos Martins e João Polido

          16 abr 16:30 Loulé
          Festival Verão Azul (Sul, Sol e Sal) — com João dos Santos Martins e João Polido

          18 abr 18:30 Vila do Conde
          Conservatório de Música, Teatro e Dança de Vila do Conde/Circular Associação Cultural — com João dos Santos Martins e João Polido

          24 abr 18:30 Braga
          Livraria Centésima Página — com João dos Santos Martins

           

          #7

          Lançamentos + Performance de Submission Submission (unplugged) de Bryana Fritz

          21 set 19:00 Coimbra
          A Fábrica/Linha de Fuga

          22 set 19:00 Lisboa
          Espaço Alkantara

          24 set 18:30 Faro
          DeVIR CAP

           

          #6

          A Parasita e a Circular disponibilizarão esta edição do Coreia para envio ao domicílio após os eventos de lançamento. O jornal é gratuito. Os portes de envio ficam a cargo do requerente. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          Lançamentos + Performance de um capítulo de She gave it to me I got it from her de Clara Amaral

          08 mar 18:00 Lisboa
          Galeria Zé dos Bois

          09 mar 14:00 Porto
          ESMAE

          09 mar 19:00 Vila do Conde
          Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude

          10 mar 17:00 Coimbra
          Laboratório Chimico/Linha de Fuga

          11 mar 19:00 Ponta Delgada
          vaga

           

          #5

          A Parasita e a Circular disponibilizam esta edição do Coreia para envio ao domicílio. O jornal é gratuito. Os portes de envio ficam a cargo do requerente. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          Lançamentos + Performance Ehera Noara de Hwayeon Nam com Ji-hye Chung

          22 set 18:00 Lisboa
          Atelier Museu Júlio Pomar

          23 set 18:00 Coimbra
          Museu Nacional Machado de Castro/Linha de Fuga

          24 set 19:00 Faro
          DeVIR CAPa

          25 set 17:30 Vila do Conde
          Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas

           

          #4

          Dadas as extraordinárias circunstâncias actuais, a Parasita e a Circular disponibilizam agora esta edição do Coreia para envio gratuito ao domicílio. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          18 fev 15:00 Santarém — Cancelado
          Teatro Sá da Bandeira

          20 fev 11:45 Vila do Conde — Cancelado
          Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde

          22 fev 18h30 Lisboa — Cancelado
          ZDB

           

          #3

          Lançamentos + Performance de Preste atenção a tudo a partir de agora de Daniel Pizamiglio

          11 nov 18:00 Gafanha da Nazaré
          Fábrica Ideias – 23 Milhas

          19 set 18:00 Vila do Conde — Com Melissa Rodrigues
          Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas

          27 set 18:00 Lisboa
          Espaço Alkantara

           

          #2

          Dadas as extraordinárias circunstâncias actuais, a Parasita e a Circular disponibilizam agora esta edição do Coreia para envio gratuito ao domicílio. Para receber a sua edição em casa, basta preencher este formulário.

           

          13 Mar 18:45 Vila do Conde — Cancelado 🦠
          Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde

          13 Mar 21:30 Porto — Cancelado 🦠

          Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural

          14 Mar 18:00 Lisboa — Cancelado 🦠
          Estúdios Victor Córdon no âmbito do evento Navegar é preciso? Sentidos para a internacionalização da dança

           

          #1

          Lançamentos + Performance

          21 set 18:00 Vila do Conde — Com Luísa Saraiva
          Teatro Municipal de Vila do Conde/Circular Festival de Artes Performativas

          26 set Lisboa — Com Joana Sá e Sorour Darabi
          Estúdios Victor Córdon

          4 out Cartaxo — Com Marta Cerqueira
          Ponto de encontro do Festival Materiais Diversos

           

          #0

          Lançamentos + Performance de Orifice Paradis de Ana Rita Teodoro

          21 Fev 17:00 Porto
          Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

          22 Fev 17:00 Coimbra
          Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (Auditório do Círculo Sereia)

          23 Fev 16:00 Vila do Conde
          Vila do Conde – Biblioteca Municipal José Régio

          23 Fev 18:30 Braga
          Livraria Centésima Página

          24 Fev 18:00 Lisboa
          Rua das Gaivotas 6

           

      • Ficha Técnica

          #9

          CONTRIBUIÇÃO #9 Alaa Abu Asad, Daniel Lühmann, Dori Nigro & Paulo Pinto com Georgia Quintas, Giulia Damiani, Janeth Mulapha, João Bento, Katarina Lanier, Lior Zisman Zalis, Luísa Saraiva, Projecto Decorporeidades (Daniel Moraes & Filipa Cordeiro com Gio Lourenço & Angelo Custódio), Projecto Indíralo (Andreia Neves Marinho, o Centro Ciência Viva de Alviela, Andreia Sofia Cardoso Lima, a floresta, Patricia Conde, Fernando Pedro dos Santos, João Henriques, a gruta, Valentina Parravicini, Cristina Fuentes Ávila, o rio Alviela, Francisco Weber Ruiz, Gustavo Vicente, María Jerez, Quim Pujol e os espíritos), Teresa Fabião, Tiran Willemse, Vicente Escudero, Zia Soares TRADUÇÃO Patrícia da Silva, Pedro Cerejo REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Fátima Ribeiro, Mariana Rezende DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena COLABORAÇÃO DESIGN GRÁFICO Joana Lourencinho Carneiro APOIOS NO LANÇAMENTO Casa da Dança (Almada), CADAC – Companhia Alentejana de Dança Contemporânea (Beja), A Gráfica (Setúbal), Linha de Fuga (Coimbra) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Maria Ángeles e Julio César Fraile Sandonis, sobrinhos-netos de Vicente Escudero, Arquivo fotográfico Museo Reina Sofia, Pedro G. Romero

           

          #8

          CONTRIBUIÇÃO #8 Ahn Vo, Ana Rita Teodoro & Valérie Castan, Chloe Chignell, Davi Pontes, Diana Niepce, Estelle Nabeyrat, Gil Mendo, Guilherme Valente, Inês Zinho Pinheiro, João Polido, Myriam Goufrink & Wilson Le Personnic, Pope.L, Rogério Nuno Costa, setareh fatehi, Silvia Federici, Tiago Amate TRADUÇÃO Joana Frazão, Marinho Pina, Patrícia da Silva, Pedro Morais REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins EDITORA-ADJUNTA Clara Amaral EDITORES COREIA GIL João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda, Pedro Pinto DESIGN GRÁFICO #8 Isabel Lucena DESIGN GRÁFICO COREIA GIL Nuno Beijinho APOIOS NO LANÇAMENTO Culturgest (Lisboa), Escola de Dança do Centro municipal de Juventude de Vila do Conde, Festival Verão Azul (Lagos, Loulé), Linha de Fuga (Coimbra), Livraria Centésima Página (Braga) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Galeria Mitchell-Innes & Nash, Pope.L, Myriam Gourfink, Thomas J. Lax, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Albert E. Dean, Gisela Casimiro, Ariana Furtado, Journal ADC, Anne Davier, Michèle Pralong, Dançando com a Diferença AGRADECIMENTOS COREIA GIL Ana Bigotte Vieira, Cristina Peres, Cláudia Galhós, Dora Fonseca, Duarte Bénard da Costa, Francisco Camacho, João Fiadeiro.

           

          #8 PARA O GIL

          Este caderno especial do Coreia integra a homenagem a Gil Mendo realizada  na Culturgest, em Lisboa, de 23 a 25 de março de 2023, e organizada por um grupo alargado e voluntário de pessoas da comunidade da dança contemporânea em Portugal. TEXTOS Gil Mendo, entrevistas com Ana Bigotte Vieira, Cristina Peres, Madalena Perdigão e Pina Bausch EDITORES João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda, Pedro Pinto DESIGN GRÁFICO Nuno Beijinho CAPA João Penalva PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, Cláudia Galhós, Cristina Peres, Dora Fonseca, Duarte Bénard da Costa, Francisco Camacho, João Fiadeiro

           

          #7

          CONTRIBUIÇÃO #7 Amit Noy, Beverly Emmons, Bryana Fritz, Clarissa Sacchelli, Edna Jaime, Eduardo Batata, Leonor Lopes, Ves Liberta & Vitor Grilo Silva, Germaine Acogny, Joana Levi, Janaína Moraes, Nikita Kadan, Paula Rosa Pinto, Renan Marcondes, Romain Beltrão, Sabine Macher, Viktor Ruban TRADUÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários), Joana Frazão, Patrícia da Silva REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Fátima Ribeiro TRANSCRIÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários) PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena APOIOS NO LANÇAMENTO Alkantara (Lisboa), Linha de Fuga (Coimbra), Devir-Capa (Faro) APOIO NA DISTRIBUIÇÃO Camões — Instituto da Cooperação e da Língua AGRADECIMENTOS Archivio Carol Rama, Helmut Vogt, Marcela Levi e Lucia Russo, Peter Angelo Simon.

           

          #6

          DIRECÇÃO EDITORIAL E EDIÇÃO João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ángela Millano & Julián Pacomio, André Lepecki, Andrei Bessa, Giovanna Monteiro, Leonor Mendes, Roberto Dagô & Vicente Ramos, Carla Fernandes, Chiara Bersani & Diana Niepce, Clara Amaral, Emiliano Aversa, Guilherme Figueiredo, Isabel Cordovil, Jan Ritsema & Jonathan Burrows, Miguel Pipa, Miguel Teles, Piny, Renan Marcondes, Vânia Gala TRADUÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários), Joana Frazão, Pedro Cerejo, Paula Caspão, Sara Santos REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann TRANSCRIÇÃO Inês Cardoso & José Gil (estagiários) PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde, ESMAE (Porto), Galeria Zé dos Bois (Lisboa), Linha de Fuga (Coimbra), Vaga (Ponta Delgada) AGRADECIMENTOS Alkantara, Eleonora Fabião, Maus Hábitos

           

          #5

          DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Alice Dusapin & Christophe Wavelet, Anna Halprin, Bruno Zhu, Dani Issler & Frédéric Sayer, Gaya Medeiros, Henrique Neves, Hwayeon Nam 남화연, Leandro Souza, Leticia Skrycky, Min Kyoung Lee 이민경, Paula Caspão, Raimund Hoghe, Sara Graça, Sara Wookey TRADUÇÃO Joana Frazão, José Maria Vieira Mendes, Patrícia Silva, Sara Godinho REVISÃO Pedro Cerejo, Daniel Lühmann, Mariana Monne, Leonor Courtoisie TRANSCRIÇÃO Cyriaque Villemaux EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Atelier-Museu Júlio Pomar, Devir Capa, Linha de Fuga, Residências Artísticas Polo Cultural das Gaivotas Boavista AGRADECIMENTOS Heaju Kim, Ji-hye Chung, Luca Giacomo Schulte, Ricardo Valentim, Stephanie Earle

           

          #4
          DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Bhenji Ra, Bruno Levorin & Ignacio de Antonio, Carmen de Brito, Calixto Neto & Luiz de Abreu, Jean Capeille, José Maria Vieira Mendes, Micael Ferreira, Miguel Teles & Daniel Pizamiglio, Pedro Marum, Rita Natálio & Vânia Doutel Vaz, Tânia Carvalho TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Suiá Ferlauto EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Teatro Sá da Bandeira — Santarém, ZDB, APOIOS Teatro Sá da Bandeira — Santarém, ZDB, Escola de Dança do Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, Carlos Manuel Oliveira, Daniel Tércio, Filipe Viegas, Luísa Carles, José Carlos Duarte, Maus Hábitos, Pedro Antunes, pepe cobo y cía, Sara Ramos, Vicente Trindade, Vítor Brotas, Vanessa Carvalho

           

          #3
          DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ação Cooperativista, Christophe Wavelet, Diana Niepce, Elisabeth Lebovici, Francisco Camacho, Henrique Furtado, João Fiadeiro, Liliana Coutinho, Lula Pena, Melissa Rodrigues, Mierle Laderman Ukeles, Miguel Teles, Miguel Wandschneider, Min Kyoung Lee, Vera Mantero, Volmir Cordeiro TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Patrícia da Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Duarte Bénard da Costa EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Alkantara AGRADECIMENTOS Duarte Amado, José Carlos Duarte, Matheus Martins, Mierle Laderman Ukeles, Ronald Feldman Gallery (Nova Iorque)

           

          #2
          DIREÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Pi, Clara Amaral, Diego Bagagal, Filipe Pereira, Hélio Oiticica, Miguel Castro Caldas, Rita Natálio, Teresa Castro, Tom Engels, Vânia Doutel Vaz, Vânia Rovisco, Zeina Hanna TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Patrícia da Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Sónia Baptista, Pedro Cerejo EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Associação Parasita, Circular Associação Cultural SITE Sara Orsi APOIOS Centro Municipal da Juventude de Vila do Conde, Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural, Opart/Companhia Nacional de Bailado/Estúdios Victor Córdon AGRADECIMENTOS André e. Teodósio, Ariane Figueiredo e César Oiticica do Projecto H.O., Claraluz Keiser, Daniel Pizamiglio, Donatella Cacciola, Duarte Amado, ESMAE, Frank-Manuel Peter, Sebastian Bardin-Greenberg, Sergio Zalis, Vânia Rodrigues

           

          #1
          DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Jotta, Carlos Manuel Oliveira, Carlos Azeredo Mesquita, Christophe Wavelet, Dasha Birukova, Duarte Nuno Amado, Joana Sá, Luísa Saraiva, Poorna Swami, Rita Natálio, Valeska Gert, Sergei Eisenstein, Sílvia Pinto Coelho, Sorour Darabi TRADUÇÃO Ana Matoso, Joana Frazão, José Maria Vieira Mendes, Larysa Shotropa, Patrícia da Silva REVISÃO Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Duarte Bénard da Costa, Cyriaque Villemaux EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Circular Associação Cultural WEBSITE Sara Orsi APOIOS Associação Parasita, Opart/Companhia Nacional de Bailado/Estúdios Victor Córdon, Festival Materiais Diversos

           

          #0
          DIRECÇÃO EDITORIAL João dos Santos Martins DESIGN GRÁFICO Isabel Lucena CONTRIBUIÇÃO Ana Rita Teodoro, Christophe Wavelet, Cyriaque Vilemaux, Carlos M. Oliveira, Duarte Amado, Eros404, Felipe Ribeiro, Marcelo Evelin, Moriah Evans, Takashi Morishita, Tatsumi Hijikata, Rita Natálio TRADUÇÃO José Maria Vieira Mendes, Daniel Lühmann, Marta Morais, Patrícia Silva REVISÃO Daniel Lühmann, Pedro Cerejo TRANSCRIÇÃO Carlos M. Oliveira EDIÇÃO, PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Circular Associação Cultural CO-PRODUÇÃO Associação Parasita WEBSITE Sara Orsi APOIOS Biblioteca Municipal José Régio – Vila do Conde, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Livraria Centésima Página, Rua das Gaivotas 6 AGRADECIMENTOS Ana Bigotte Vieira, André e. Teodósio, Christine Greiner, Cyriaque Villemaux, David Cabecinha, Hugo Dunkel, José Carlos Duarte, Kazuki Fujita, Patrick De Vos, Pierre-Louis Denis (William Klein Studios), Sabine Macher, Takashi Morishita (Centro de Arte da Universidade de Keio, Japão), Tomo Kosuga (Masayuki Fukase Archives)

           

          ISSN 2184-4461
          Direção: João dos Santos Martins
          Periodicidade: semestral
          Distribuição gratuita
          Depósito legal: 452179/19
          ERC: 127238
          Impressão: FIG — Indústrias Gráficas, SA — Coimbra
          Tiragem: 3000 exemplares
          Fontes: Glossy Display, F Grotesk

           

          Proprietário: Circular — Associação Cultural. Sede da redação/Sede do editor: Praça Luís de Camões, 9 – 1.º, 4480-719 Vila do Conde. NIF 507590767

           

          A Circular Associação Cultural conta com o Alto Patrocínio da Câmara Municipal de Vila do Conde e é uma estrutura financiada pela República Portuguesa/Cultura, Direcção-Geral das Artes.

  • Edições

      • 9

          Clara Amaral Editorial

          Janeth Mulapha VOZES

          Giulia Damiani Heart Brake – Pensar através de um sentimento expandido no movimento

          Alaa Abu Asad Flores Plantas silvestres da Palestina

          Daniel Moraes Gio Lourenço Angelo Custódio Projeto Decorporeidades

          Teresa Fabião Diálogos entre arte e vírus

          Luísa Saraiva Saúde mental nas artes performativas

          João Bento Matéria inédita

          Vicente Escudero Mi baile (A Minha Dança)

          Indíralo Indíralo: como não fazer algo individualmente

          Paulo Pinto Dori Nigro Georgia Quintas Vento (A)Mar

          Zia Soares FANUN RUIN abrir o lugar do luto

          Katarina Lanier O TERRENO AFETIVO. Notas sobre metodologias para corpos em espaços públicos

          Tiran Willemse Acolho muitos eus

          Daniel Lühmann O VaIvÉm

          Lior Zisman Zalis Políticas da caída ou como colocar o Estado pra baiar

      • 8 Para o Gil

          Joclécio Azevedo Maria José Fazenda João dos Santos Martins Pedro Pinto Editorial Para o Gil

          Gil Mendo (1946-2022) foi professor e agente ativo no terreno formativo, artístico e cultural português, tendo dado um assinalável contributo para o desenvolvimento da dança contemporânea em Portugal. A sua ação foi pautada por um interesse pelo bem comum, pela defesa da democratização da arte e da livre expressão da individualidade, pelo respeito pela pluralidade de ideias e estéticas. Foi um acérrimo defensor da necessidade de acompanhar e apoiar o trabalho das gerações mais jovens, no qual reconhecia força inventiva e vislumbrava um futuro promissor. A sua presença revelava uma postura de compromisso e de entrega, que não se restringia apenas aos papéis que assumiu institucionalmente, mas que se pautava sobretudo pela sua excecional capacidade de fomentar ligações e cumplicidades – em suma, por um imenso desejo de comunidade.

          Estuda dança no Centro de Estudos de Bailado do Instituto de Alta Cultura, no Teatro Nacional de São Carlos, entre 1969 e 1972, sob a direção de Anna Ivanova e David Boswell. O interesse pela coreologia leva-o a Londres, ao Benesh Institute of Choreology, onde se formou, em 1975. De regresso a Lisboa, é essa a matéria que ensina, primeiro na Escola de Dança do Conservatório Nacional, entre 1976 e 1986, e, depois, na Escola Superior de Dança do Instituto Politécnico de Lisboa, entre 1986 e 2014, escola cuja comissão instaladora integrara desde o início. Em 1990, também em Lisboa, é membro fundador do Forum Dança, integrando a sua direção, uma associação cuja missão coincide com a transmissão dos ideais da Nova Dança Portuguesa.

          Intervém na programação de dança na qualidade de consultor do Comissariado da Europália 91 – Portugal, momento este que servirá de trampolim para uma nova geração de coreógrafos, no quadro da integração de Portugal na CEE. É membro do Comité Executivo do IETM – Informal European Theatre Meeting, de 1991 a 1993. Paralelamente, participa como intérprete em espetáculos de Madalena Victorino. Entre 1993 e 1995, assume funções como consultor para a dança no Centro Cultural de Belém. 

          Integra a comissão instaladora do Instituto Português das Artes do Espetáculo do Ministério da Cultura, entre 1995 e 1998, e assume a função de coordenador do Departamento de Dança deste instituto, de 1998 a 2001. Mantém-se ativo em redes internacionais de artes do espetáculo, como o Roberto Cimetta Fund, de que é cofundador, em 1999. Em 2004,  torna-se assessor da administração da Culturgest, em Lisboa, na área da programação de dança, posição que mantém até 2017.

          O seu trabalho de dinamização artística — em particular no âmbito da organização do festival Europália em 1991 — foi distinguido nesse mesmo ano com a atribuição pelo Presidente da República do grau de Oficial da Ordem de Mérito. A sua relevante ação em várias áreas — no ensino, na política cultural, na programação de espetáculos — foi reconhecida, ao longo de todo o seu percurso, por alunos, artistas e colegas. Sobre todas elas pensou, agiu — e também escreveu. 

          O seu pensamento e as suas interrogações ficaram impressas em documentos de natureza diversa — ensaios, críticas, entrevistas concedidas a jornalistas e investigadores, e outras conduzidas por si, como as que fez à coreógrafa Pina Bausch e a Madalena Perdigão, diretora do antigo Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian. Entendemos que a pertinência, no passado, e a relevância, na atualidade, das palavras de Gil Mendo justificam a reedição de alguns desses documentos e a publicação de outros inéditos, precisamente quando se assinala um ano sobre a sua morte e a comunidade da dança se reúne para celebrar o seu legado. 

          De entre os documentos recolhidos, transcrevemos essencialmente os textos e entrevistas menos acessíveis, que não se encontram em circulação; ou que foram escritos, lidos, mas não publicados. Dividimo-los em duas partes: Reflexões e Retrospetivas. 

          Na primeira parte, agrupam-se documentos em que Gil Mendo, à época em que os escreve, sublinha a necessidade imperiosa de apoiar jovens criadores/as; explica as razões da sua demissão da comissão instaladora da Escola Superior de Dança, na sequência de uma crise interna vivida na instituição; questiona ou reconsidera os lugares dos/as intérpretes e outros intervenientes nos processos criativos; salienta a importância da experimentação de novos modos de composição e da desconstrução de linguagens artísticas; ou reflete sobre o estado da arte, da Nova Dança, da programação e da política cultural.

          Na segunda parte, reúnem-se escritos em que Gil Mendo relata retrospetivamente acontecimentos, como a expulsão pela PIDE do coreógrafo Maurice Béjart aquando da apresentação da sua companhia em Portugal; discorre sobre a importância da coreologia enquanto exercício de compreensão formal e conceptual do corpo em movimento; analisa o desenvolvimento e a preponderância de estruturas de criação, experimentação e programação, como a RE.Al ou a EIRA; pensa o modo como a dança contemporânea se foi transformando, e as suas fronteiras disciplinares transgredidas e diluídas, ao longo de várias décadas em Portugal.

          Em todos os textos é salientado o valor social da arte, perpassando em todos eles o elogio da democraticidade, da diversidade, da individualidade, da mobilidade, da acessibilidade e da solidariedade entre pares. São valores que também nós queremos manter presentes, e desejamos que sejam projetados para o futuro.

          A capa desta edição especial do Coreia é da autoria do artista plástico João Penalva, amigo íntimo e de longa data de Gil Mendo (e seu colega de formação em dança clássica no Teatro Nacional de São Carlos, antes de ambos partirem para Londres no princípio da década de 1970), e regista a expressão tão distinguível que para sempre nos recordará Gil Mendo: o seu maravilhoso sorriso.

          João dos Santos Martins, Joclécio Azevedo, Maria José Fazenda e Pedro Pinto

          Gil Mendo Texto introdutório ao programa de Análise e Notação de Movimento

          A 29 de julho de 1988, têm lugar as apresentações dos/as estudantes do 1.º ano do Projeto Interdisciplinar da Escola Superior de Dança (realizado no âmbito da disciplina de Metodologias e Pedagogias da Dança Educacional, coordenada por Madalena Victorino, em colaboração com as disciplinas de Estética e História das Artes, coordenada por António Pinto Ribeiro, e de Análise e Notação de Movimento, lecionada por Gil Mendo). Neste texto introdutório ao programa, Gil Mendo sublinha a importância da desconstrução e da experimentação nos processos criativos, recordando jogos e brincadeiras com os seus irmãos mais velhos na casa onde viviam em Lisboa, na Infante Santo, e também nas margens do Tejo. Neste retorno à sua infância, Gil Mendo articula tais memórias num jeito discursivo muito seu, que era também o seu predileto: o de contador de estórias.

          Uma vez deram-me um presente que me seduziu muito.

          Consistia ele num barquito e um farol colocados sobre uma base que tinha um mar pintado. O barquito movia-se sobre este mar de fantasia e, quando se aproximava do farol, este acendia e apagava uma luzinha vermelha.

          Era uma coisa para brincar só com os olhos. Dava-se-lhe corda e ficava-se a ver…

          Mas fascinou-me, por quaisquer fantasias que despertou em mim…

          Só o tive um dia. Um irmão meu resolveu desmontá-lo, para descobrir o que o fazia funcionar. Depois não o remontou. Mas aproveitou-lhe as peças para outras coisas.

          Este meu irmão tinha uma paixão pelos mecanismos. Acabei por compreender que, na realidade, quando os desmontava, não tinha intenção de voltar a montá-los, mas de compreender como funcionavam e, depois, usá-los, ou parte deles, para outras coisas, quase sempre muito diferentes.

          Lembro-me dos barcos de madeira que construía: com leme, quilha, velas que se içavam e arriavam, cabine, cada um mais elaborado do que o anterior… todos feitos com minúsculas peças e mecanismos de outras coisas: anilhas, rodas dentadas, cordas de relógio…

          No equinócio, quando as marés vivas deixavam lagos na praia que havia em frente da nossa casa, atravessávamos a correr a linha do comboio, levando nas mãos estes barquinhos de velas enfunadas, e íamos pô-los a navegar naqueles efémeros e tranquilos oceanos…

          Acontece-me muitas vezes, quando numa aula me ocupo, com os meus companheiros de trabalho, a desmontar e a analisar um movimento — uma tarefa árida que procuramos desempenhar com humor e fantasia… —, recordar, interiormente, estas histórias (ou melhor, recriar histórias com as peças — uma onda a galgar a praia, um tufo de azedas a irromper entre paralelepípedos, um silvo de comboio, um joelho esfolado a aparecer sob a fralda desbotada de uma camisa… — que vou destacando, e retendo, de um mecanismo demasiado complexo, ou demasiado simples, para que domine a sua elaboração).

          E, da mesma forma, quando assisto a uma dança que realmente me seduza, sinto como se no meu olhar houvesse dedos que se esgueiram no clarão do fascínio e tentam desmontar um mecanismo, não para copiá-lo ou reproduzi-lo, mas para senti-lo e entendê-lo e, quem sabe?, agarrar alguma peça que me permita aperfeiçoar o sistema que vou desenvolvendo para me relacionar com o mundo. 

          Gil Mendo Jovens coreógrafos

          Paralelamente à sua atividade como professor de coreologia, Gil Mendo faz crítica de dança no jornal Expresso na década de 1980. Ainda que os seus textos apareçam esporadicamente, registam eventos que se destacam na dança em Portugal nesse período, como é o caso do espetáculo Zoo&Lógica (1984), aqui descrito, e posteriormente muito referenciado na historiografia da dança em Portugal.

          Quando a Sagração da Primavera, de Stravinsky e Nijinsky, foi apresentada pela primeira vez no Teatro dos Campos Elísios, em 1913, o público sentiu-se agredido pela quebra das convenções a que estava habituado e reagiu com escândalo e indignação. Pelo contrário, os espectadores que assistiram agora no Teatro Municipal de S. Luiz a uma nova versão da Sagração, com coreografia de Carlos Trincheiras, pareceram-me sinceramente entusiasmados.

          Entusiasmo que não senti, certamente em parte por a minha forma de entender um ritual de sagração da vida ser diferente da de Carlos Trincheiras. O apreciador de uma arte não tem, evidentemente, que aderir emocionalmente a uma obra para se interessar por ela, nem deve recusar liminarmente o ponto de vista ou a forma de expressão de um criador, como terá acontecido com aquele público em 1913, sob pena de se condenar a ser quase sempre um espectador frustrado. Mas mesmo tentando entrar na leitura que Carlos Trincheiras faz da Sagração da Primavera, penso que ele atribuiu uma importância excessiva à figura do Sábio, com isso prejudicando o ritmo da obra, que fica também prejudicado com o recurso a paragens de movimento para reforçar o simbolismo de certas imagens. Por outro lado, o primitivismo é representado de uma forma muito linear e por isso pouco interessante visualmente, e não me parece bem conseguida a sua ligação com os movimentos mais próprios do homem contemporâneo, o agitar dos punhos, a corrida falsa, que Carlos Trincheiras também usa.

          Neste programa, a Companhia Nacional de Bailado voltou a apresentar Serenade, de George Balanchine, que tem no reportório há pouco mais de um ano. Parece-me positivo que esta Companhia, que tem por projecto a divulgação das principais obras do património universal da dança, não se fique pelos bailados românticos e organize o seu reportório de forma a proporcionar o conhecimento das criações mais significativas da evolução estética desta arte. A decisão, agora anunciada, de apresentar brevemente o Concerto Barroco, uma obra mais recente de Balanchine, e a Mesa Verde, de Kurt Jooss, é, assim, de aplaudir. 

          Gulbenkian: usar o spaço cénico

          Dos dois dos programas já apresentados pelo Ballet Gulbenkian nesta temporada, parece ressaltar um aspecto digno de atenção: a tentativa de utilizar o espaço cénico com um dinamismo e teatralidade que ultrapasse as limitações da cena tradicional, recorrendo a uma intervenção mais activa da cenografia.

          É um sinal positivo. A dança afirmou-se já suficientemente como expressão artística autónoma para poder reaproximar-se das outras artes e participar com elas numa concepção mais global do espectáculo, e uma companhia de dança contemporânea que alcançou o nível artístico que o Ballet Gulbenkian tem neste momento pode lançar-se em novas e arrojadas aventuras.

          Mas a simultaneidade de elementos cénicos diversos requer um cuidado especial de encenação para que eles se não anulem uns aos outros, antes se valorizem mutuamente. Ora, é precisamente a ausência de encenação que tem sido o ponto fraco das últimas criações apresentadas pelo Ballet Gulbenkian.

          Senti-o em relação à obra mais recente de Vasco Wellenkamp, Estranhos Transeuntes, apresentada no primeiro programa da temporada, em que à atmosfera a um tempo gélida e majestática criada pelos cenários e figurinos de Ana Silva e Sousa o coreógrafo sobrepôs um elemento de luminosidade quente e faiscante, como ondas sucessivas de energia vertiginosa, criando momentos de grande beleza — os momentos, por exemplo, em que há uma relação visual directa entre a energia concentrada em Ger Thomas e a exploração de movimento polarizada em Edmund Stripe, e em que as duas dimensões presentes em cena parecem emanação uma da outra — mas deixando os transeuntes desaparecerem excessivamente no turbilhão do movimento.

          Senti-o igualmente em relação ao Livro dos Seres Imaginários, o trabalho de Olga Roriz em colaboração com o cenógrafo Nuno Côrte-Real, apresentado em estreia absoluta neste segundo programa da temporada do Ballet Gulbenkian. Também a coreografia de Olga Roriz tem momentos de grande beleza, e é muito interessante e estimulante a forma como traduz em movimento os seres descritos por Jorge Luis Borges. Tocaram-me sobretudo o Pássaro da Chuva e o A Bao a Qu. Mas, por um lado, parece-me que o cenário tem um peso excessivo para a utilização que lhe é dada — não tanto a rampa, mas aquela asa desmesurada no fundo de cena — e, por outro, julgo que a coreografia segue uma narrativa demasiado parecida com a de um livro: passamos de um ser a outro como se voltássemos a página para um novo capítulo, o que em termos cénicos se torna monótono. Encenado de outra forma, este interessante trabalho de Olga Roriz teria decerto ficado valorizado.

          Também de Olga Roriz se estreou agora na temporada oficial da Companhia um trabalho apresentado pela primeira vez no último Estúdio Coreográfico, e que logo aí alcançou merecido êxito: Lágrima, sobre música de Nina Hagen.

          É um trabalho carregado de violência, muito bem conseguido em termos cénicos, e muito bem interpretado por Elisa Ferreira. É interessante observar como aqui Olga Roriz transforma o espaço cénico servindo-se apenas das luzes.

          Este programa do Ballet Gulbenkian (I) é totalmente dedicado a Olga Roriz e Vasco Wellenkamp, e é uma óptima oportunidade para revermos alguma das suas obras anteriores: Encontros de Olga Roriz, Percursos e Outono de Vasco Wellenkamp. É também uma óptima oportunidade para recordar que estes dois coreógrafos foram revelados pelos Estúdios Coreográficos do Ballet Gulbenkian, e referir a importância da existência de oportunidades para que se manifeste a criatividade e o espírito inovador dos bailarinos portugueses.

          No seu terceiro programa o Ballet Gulbenkian irá apresentar em estreia absoluta um trabalho de Vasco Wellenkamp, Ricardo Pais, Constança Capdeville e António Lagarto. Será uma obra com quatro criadores: um coreógrafo, um encenador, uma compositora e um cenógrafo. Poderá ser a primeira das novas aventuras que atrás mencionei. Será de certeza um espectáculo a não perder.

          Cómicos: “Zoo&Lógica”

          Reabriu ao público, no início de Fevereiro, a sala dos Cómicos, no rés-do-chão do Teatro do Bairro Alto.

          Aproveitando muito bem o espaço da pequena sala, Nuno Carinhas realizou ali uma instalação de grande beleza plástica, que foi sucessivamente habitada pelas pesquisas coreográficas de Gagik Ismailian, Ana Rita Palmeirim e Paula Massano, com música de Carlos Zíngaro e Constança Capdeville e textos de Clarice Lispector e António S. Ribeiro.

          Habitada também pelos espectadores, que neste caso estão dentro do próprio espaço cénico, sentados a toda a volta da sala, tão perto dos intérpretes como estes uns dos outros.

          O espaço, o volume, o pormenor do gesto e da expressão (que também é gesto), são aqui peças de idêntico valor no puzzle que é a visão de cada espectador, ao contrário do espectáculo convencional em que a distância em relação ao palco pode induzir na ilusão de que o movimento é desenhado numa superfície bidimensional. O espectador tem, aliás, que escolher para onde olha e, desta forma, escolhe as peças do seu próprio puzzle.

          Há neste espectáculo — Zoo&Lógica — uma progressão muito interessante:

          Gagik Ismailian fez uma colagem, cheia de humor e imprevisto, de gestos e movimentos retirados em parte dos jogos e expressões infantis, em parte dos filmes de terror, em parte das situações grotescas do quotidiano, com a característica de serem gestos de afirmação mais do que diálogo: a ameaça, o medo, a teimosia, o esgar, o entretenimento. A voz também tem essa característica: os gritinhos de prazer ou de susto, os beijos que se atiram, a frase “não tenho fome” teimosamente repetida.

          No trabalho de Ana Rita Palmeirim há uma relação com “o outro”, com o som e com os objectos isenta de emocionalidade, de efeito muito belo: o solo de Margarida Bettencourt, com os movimentos presos por um fio imaginário, o seu dueto com Gagik Ismailian e o trio com Filipa Mayer são lindíssimos. Aqui o gesto e o som ilustram-se mutuamente, a música é graficamente desenhada na tela transparente, e há um divertido coro de vozes sobrepostas que traz escrito nos vestidos um texto só parcialmente legível.

          Paula Massano usa um texto inteligível, que vai sendo dialogado pelos intérpretes e depois dito em voz-off pelo narrador, e cria uma atmosfera de idílio, sedução e sensualidade, tanto entre os intérpretes como na sua relação com o espaço e os objectos. É muito belo o jogo entre Ana Rita Palmeirim e Gagik Ismailian com as bolas coloridas, e muito interessante a utilização que é feita da cadeira e do aquário. Há algo de lânguido nos gestos, no repouso, na troca de olhares entre os intérpretes, que transmite uma sensação de bem-estar, de fruição do corpo, do espaço e do habitat, de grande efeito estético.

          Muito bem produzido este espectáculo de tocante simplicidade, que é um encontro de várias artes carregado de gentileza.

          Não são muitas, infelizmente, as oportunidades dadas aos jovens coreógrafos. Oxalá este novo espaço inter-média continue a acolhê-los.

          Hábito ou progresso

          Se hoje nos parece risível a reacção que o público teve à primeira audição da Sagração da Primavera será porque, entretanto, nos habituámos a sons tão mais estridentes que estes nos parecem banais? De forma alguma. O que acontece é que hoje ouvimos melhor, compreendemos melhor os sons que ouvimos, e somos capazes de sentir pulsar em nós próprios o eco da música de Stravinsky. Devemos esse progresso aos músicos, como devemos aos pintores e escultores, aos coreógrafos e homens do teatro, aos cineastas, o vermos mais e melhor e termos mais facilidade em articular e entender o que vemos.

          É esse contributo da criação artística para o apuramento dos sentidos e do raciocínio, e não a sua anestesia, que justifica o investimento na arte.

          Investimento que deve traduzir-se no apoio à criatividade, ao progresso, ao desenvolvimento, por um lado, e na extensão a toda a comunidade dos benefícios do progresso artístico, por outro. O primeiro aspecto tem que ver com o fomento da actividade artística. O segundo com a educação e o entendimento necessário entre os artistas e os pedagogos.

          Expresso, 3 de Março de 1984

          Gil Mendo Os sinais de mudança

          Neste texto que escreve para o Expresso no início de 1989, Gil Mendo dá conta do desenvolvimento da Nova Dança europeia, que em Portugal se dá a conhecer através da vanguardista e inovadora programação do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, dirigido por Madalena Perdigão. Regista ainda os desenvolvimentos paralelos da dança contemporânea em Portugal, alertando para a necessidade de acompanhar e apoiar os seus protagonistas e de lhes proporcionar o espaço que lhes permita crescer.

          No decurso da década de oitenta, tem vindo a afirmar-se um movimento inovador na dança europeia. Convencionou-se chamar-lhe Nova Dança Europeia e, ainda que que todos os rótulos sejam redutores e perecíveis, o termo “novo” não é, aqui, descabido.

          Foi a mudança de mentalidades ocorrida na Europa ao longo desta época que permitiu a inovação. Tal como a Dança Independente dos anos setenta esteve ligada aos movimentos da democratização e descentralização cultural, a Nova Dança dos anos oitenta pode ser entendida à luz da autonomia individual e do espírito antidogmático desta década.

          Se a Dança Independente dos anos setenta fomentou a renovação na dança europeia, abrindo-a à influência da dança norte-americana, formando novas companhias, fornecendo novos coreógrafos às companhias instituídas, divulgando novos estilos e introduzindo na Europa a ideia do experimentalismo, ela foi sempre, no entanto, marginalizada como movimento, enredada numa ideia rígida do que é e do que não é dança. O entusiamo militante dos bailarinos que queiram participar mais activamente nas decisões artísticas, viver o seu quotidiano com a vitalidade e criatividade dos seus colegas do outro lado do Atlântico, sem o peso de hierarquias rígidas, foi muitas vezes empurrado para uma itinerância de estradas secundárias e usado pelas instituições como um subproduto, mais barato e de maior mobilidade, útil, para fazer alguma dinamização cultural, que é como quem diz abrir as estradas por onde mais tarde pudesse circular a outra dança, mais rica e considerada mais nobre.

          Foi só na década de oitenta que, no seio deste movimento, conseguiu afirmar-se uma verdadeira diferença em relação à companhia convencional, e que o bailarino-coreógrafo, que já não quer ser apenas executante exímio mas, antes de mais, criador, se tornou o protagonista de um movimento inovador.

          Tornou-se, assim, claro, para um número crescente de espectadores, que existe uma forma de dança que não é um produto marginal mas outra forma, que esta dança não é o recurso daqueles que não tiveram lugar nas companhias convencionais, é uma escolha diferente e foi escolhida por essa diferença, que esta dança não exige menos dos que a criam do que qualquer outra, que não é a versão pobrezinha de qualquer outra. É outra dança — mais do que renovar inova —, não veio substituir o que existia, veio acrescentar algo de novo.

          É a existência deste espectador novo que permite, na década de oitenta, a afirmação da Nova Dança Europeia. Esta Nova Dança tem hoje o seu próprio circuito, que partilha com o Novo Teatro. Pela Europa vão surgindo os festivais que criam espaços para a receber, os produtores e os promotores que lhe garantem viabilidade, os críticos e ensaístas que a decifram. É europeia embora não recuse as influências da dança pós-moderna norte-americana, é inovadora sem deixar de transportar consigo uma enorme carga de memória. A Nova Dança Europeia é uma dança culta.

          Em Lisboa existe hoje este espectador que claramente escolhe a Nova Dança e o Novo Teatro. Para além dos progressos universais nos processos de mediatização e no acesso à informação, que subverteram os conceitos de centro e periferia, e de que Portugal é beneficiário, Lisboa tem tido regularmente, desde há alguns anos, através das mostras organizadas pelo ACARTE, um conhecimento directo desta nova forma de espectáculo. Tem ainda, desde há dois anos, nos Encontros ACARTE, um Festival Internacional integrado no circuito europeu de Nova Dança e Novo Teatro.

          Era de esperar, pela ordem natural das coisas, que o ACARTE promovesse o encontro entre o espectador que formou e o criador que motivou, e é de saudar a iniciativa de, nesta temporada, incluir criadores portugueses nos seus ciclos — Olga Roriz no Ciclo Solos — e organizar uma Mostra de Dança Contemporânea — Rui Horta e Amigos, Aparte e Dança Grupo.

          Há sinais de mudança na forma como a dança portuguesa é olhada pelos operadores culturais: onde antes se olhava para o bailarino português sobretudo como intérprete e executante, procura-se hoje o criador. Surgem Concursos e Mostras Coreográficas. Ao mesmo tempo que decorria, no Centro de Arte Moderna, a Mostra de Dança Portuguesa Contemporânea promovida pelo ACARTE, a Companhia de Dança de Lisboa apresentava no S. Luiz um programa totalmente preenchido com obras de jovens coreógrafos, dos quais três portugueses — Rui Miguel Nunes, Vera Mantero, Paulo Ribeiro.

          São sinais positivos, sem dúvida. Convém, contudo, que se reflicta sobre alguns pontos, para que uma Nova Dança Portuguesa não venha a ser vítima dos mesmos equívocos que sufocaram a Dança Independente Portuguesa dos anos setenta.

          Hoje podemos acompanhar o crescimento da Nova Dança Europeia, e isso entusiasma-nos. Mas por trás desse crescimento o que está? Já não é possível acreditar que a dança portuguesa crescerá apenas à custa da formação de executantes cada vez mais exímios. Hoje é preciso formar produtores e promotores, é preciso organizar circuitos, é preciso pensar na mediatização, é preciso conseguir financiamentos e garantir formas de circulação que os viabilizem. É preciso contar com um bailarino novo que não aceita vocabulários nem estilos impostos de fora, ao seu corpo. É preciso contar com as suas escolhas e dar-lhe o espaço para crescer, pôr-lhe ao dispor instrumentos de aprendizagem, de experimentação, de reflexão.

          Estas questões, que são elas próprias tema de reflexão em Seminários e Encontros Internacionais organizados regularmente no âmbito do circuito europeu de Nova Dança — e cujo debate o ACARTE tem aliás também, louvavelmente, promovido — são essenciais para o crescimento da Nova Dança Portuguesa. São, aliás, no campo da dança, as mesmas questões que, num âmbito mais largo, se põem a toda a actividade cultural de uma Europa que já não é tanto a Europa das capitais quanto a Europa da circulação e da autonomia, onde, quer-me parecer, se integra este novo bailarino e este novo espectador. Por isso nos dizem respeito a todos.

          Expresso, de 28 de Janeiro de 1989

          Gil Mendo Entrevista com a Dra. Madalena Perdigão

          Na altura em que se encontra a funcionar o seu primeiro curso de dança, a Escola Superior de Dança, então sob a direção de Wanda Ribeiro da Silva, publica, no primeiro número do seu Boletim, no verão de 1987, uma entrevista de Gil Mendo a Madalena Perdigão. Foi enquanto fundadora e diretora do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian (1958-1974) que Perdigão criou as condições para acolher uma companhia que viria a ser o Ballet Gulbenkian e, posteriormente, foi responsável pelo Serviço ACARTE (1984-1989), preponderante na mostra de novas expressões de dança, e instigador de um novo pensamento sobre a dança. 

          Gil Mendo – Desde a criação do ACARTE, temos tido a possibilidade de assistir a espectáculos de dança no Centro de Arte Moderna. Gostaria que a Dra. Madalena Perdigão começasse por nos dizer alguma coisa sobre as actividades do ACARTE no campo da dança.

          Madalena Perdigão – A acção do ACARTE no domínio da dança tem sido sobretudo voltada para a apresentação, na Sala Polivalente, de grupos caracterizados por serem, digamos, de vanguarda, nomeadamente por se dedicarem ao experimentalismo em dança. lsto foi decidido atendendo a que a acção da Fundação Gul­benkian no domínio da dança através do Serviço de Música tinha características diferentes, visto ser mais orientada para a apresentação do seu próprio Ballet Gulbenkian e, mais esporadicamente, de companhias de dança moderna norte-americanas.

          Portanto, pensou-se que havia um espaço a preencher com es­ses pequenos grupos que são uma espécie de núcleos de criação artística com um grande vigor e com grandes potenciali­dades, que não se encontram na maior parte das grandes com­panhias de dança. E pensámos muito na dança europeia que, no nosso entender, actualmente se está a sobrepor à dança americana. Tem-se a impressão de que a dança americana se esgotou um pouco e agora a dança europeia é que está a pegar no facho e a renovar-se. Como disse, tivemos muito em mente a dança europeia, embora sem pôr de parte, bem entendido, a dança norte-americana. Começámos até pela Molissa Fenley, se bem se lembra. Mas, em todo o caso, pensámos mais na dança europeia, na dança de vanguarda e no experimentalismo.

          Como disse, para preencher um lugar que, em certa medida, estava vago no que respeita à acção da Fundação Gulbenkian no domínio da dança através do Serviço de Música.

          Mas não pensámos só nisso; pensámos também em animar o an­fiteatro de ar livre, que está adstrito ao Serviço ACARTE, e para isso começámos por convidar as maiores e melhores companhias de dança portuguesas, o que representa também uma diversificação do apoio da Fundação Gulbenkian ao bailado em Portugal.

          Portanto: diversificar o apoio, em vez de ser só restrito ao Ballet Gulbenkian, diversificar apoiando também, de uma maneira indirecta, apresentando espectáculos, a Companhia Nacional de Bailado do Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia de Dança de Lisboa, que eram as melhores e as maiores companhias existentes. Para aquele anfiteatro não parece adequado convidar pequenos grupos, porque tem grandes dimensões. E ainda há uma terceira vertente, que foi só apontada mas que eu espero desenvolver, que é a verten­te da dança não europeia. Pensámos nela ao escolher, por exemplo, Elsa Wolliaston, que é uma bailarina com raízes africanas, e adoptámos esse critério porque uma das tendências, uma das vocações do ACARTE, é não se circunscrever à cultura europeia, abrir-se para outros continentes, como, aliás, é vocação do próprio país, de Portugal. Portanto, nessa medida, achamos que devemos estar abertos para culturas de outros continentes. Então apontámos, com a Elsa Wolliaston, esse caminho, que esperamos continuar.

          G.M. – Eu tenho-me apercebido, no contacto quer com estudantes de dança quer com profissionais de bailado, sobretudo os bailarinos mais jovens, do grande entusiasmo que lhes tem despertado os espectáculos de dança a que assistem aqui no ACARTE, e penso que sobretudo por duas razões: a descoberta do experimentalismo, da dança de vanguarda, e o contacto com grupos de dança europeus, nomeadamente de países que são, como Portugal, pouco populosos, embora mais desenvolvidos do que nós culturalmente, como a Holanda, a Bélgica.

          Até agora o ACARTE não recebeu qualquer proposta de experimentalistas portugueses? Eu pergunto isto porque, embora assistamos por vezes a espectáculos de dança caracterizadamente experimental, em Lisboa, são muito poucos e muito espaçados, e surpreende-me que estes jovens, sobretudo os que já estão profissionalizados, que se interessam pelo experimentalismo, não tentem, à semelhança do que fazem outros jovens bailarinos europeus, desenvolver as suas experiências e apresentar o seu trabalho.

          M.P. – Estou informada de que essa actividade vai recomeçar. O Serviço de Música reiniciou o Estúdio Coreográfico no mês de Agosto último, portanto aí haverá um espaço e um tempo para que os jovens coreógrafos apresentem as suas tentativas de experimentalismo em dança.

          Junto do ACARTE houve duas aproximações, uma de Santarém, do grupo dirigido pela Prof.ª Fátima Sampaio, e outra do Dança Grupo, dirigido pela Prof.ª Elisa Worm. Foi uma primeira aproximação para ver em que medida é que poderiam colaborar com o ACARTE.

          Quando dirigia o Serviço de Música, tive a ideia de organi­zar Estúdios Coreográficos para permitir a revelação de no­vos valores no domínio da coreografia e os Estúdios tinham lugar todos os anos.

          Houve também um pedido de um grupo que agora se apresenta como Projecto APARTE. Achei muita graça porque deu-me a impressão de ser um pouco paródia ao ACARTE. Este grupo, Lisboa-Nova lorque-Lisboa, também queria colaborar connosco, mas não o pudemos atender por causa da nossa programação. Exigiam uma permanência muito longa, portanto não se podia realizar aqui na Sala Polivalente. Vai ter lugar no Teatro de São Carlos e no Teatro D. Maria II, portanto será de facto um projecto à parte.

          Mas estamos abertos ao experimentalismo português na Sala Polivalente, como disse há pouco. Quanto ao anfiteatro de ar livre, eu creio que foi a Sra. D. Manuela de Azevedo que lançou a ideia no Diário de Notícias de que se poderia abrir o anfiteatro de ar livre a grupos de jovens bailarinos portugueses. Penso que seria um pouco arriscado, porque o anfiteatro de ar livre tem umas dimensões muito grandes, mesmo a Companhia de Dança de Lisboa já tem dificuldade em se adaptar àquele espaço. Mas na Sala Polivalente admito perfeitamente que venham a apresentar-se jovens grupos de dança portugueses devidamente enquadrados.

          G.M. – Eu penso que um dos problemas dos grupos portugueses que querem dedicar-se ao experimentalismo é o espaço onde fazerem as suas experiências antes propriamente de as apresentarem, e provavelmente esse é um dos óbices.

          A Dra. Madalena Perdigão, na sua actividade em prol da dança, tem sempre revelado um grande interesse pela inovação, e portanto pela experimentação, e também um grande interesse pela pedagogia, e eu, nessa base, porque verifico – e verifico-o com grande satisfação – que uma vez mais a Dra. Madalena Perdigão está na dianteira do que é necessário fazer, no ACARTE está a dar importância à divulgação da experimentação no campo da dança – eu penso que o ACARTE está a fazer um trabalho muito importante em prol dessa ideia de desenvolvimento, de experimentação e de inovação -, nessa base gostava que me dissesse o que pensa que outras insti­tuições, nomeadamente a Escola Superior de Dança, poderiam fazer também em prol desse desenvolvimento da criatividade sem o qual a arte não evolui.

          Quer dar-nos uma opinião, que pode ser inclusivamente uma crítica?

          M.P. – Eu penso que poderiam, por exemplo, organizar workshops e seminários, convidando para o efeito alguns artistas de passagem, ou vindos propositadamente, eventualmente em colaboração com as embaixadas, se se tratasse de professores e coreógrafos estrangeiros. Parece-me que seria muito importante abrirem esse caminho para os vossos alunos, organizarem seminários e workshops de nova dança.

          G.M. – O ACARTE como procede para a selecção e escolha dos grupos que traz a Lisboa?

          M.P. – Eu procedo aqui no ACARTE como procedia no Serviço de Música, muito à base de documentação. As companhias enviam vídeos, críticas de espectáculos já realizados.

          Há também o contacto pessoal com correspondentes estrangeiros, com organizadores de festivais, que nos dizem “tal ou tal agrupamento é merecedor de apoio”, “tal ou tal agrupamento tem mérito”, e, portanto, isso tudo ajuda a seleccionar.

          Há também certas formas de colaboração que se estabelecem automaticamente, por exemplo com a organização Dance Umbrella, em Londres, que organiza todos os anos um festival em que se apresentam companhias da América e da Europa. Nós estamos em contacto com eles e seleccionámos, por exemplo, três das companhias que vão apresentar-se em Londres em Outubro, e que virão apresentar-se aqui, em Lisboa, em Novembro.

          E já agora que falamos de pedagogia – e, de facto, confirmo que estou sempre muito aberta à importância da pedagogia e da parte formativa do bailarino -, eu queria dizer­-lhe que pedimos sempre, e muitas vezes somos atendidos, que as companhias ou os bailarinos realizem seminários dedicados a bailarinos portugueses. Temos organizado vários e vamos continuar a fazê-lo, em Novembro também. Sempre que as companhias o aceitam, nós organizamos workshops destinados aos bailarinos portugueses. Admito perfeitamente que seja possível estabelecer uma colaboração com a Escola Superior de Dança nesse aspecto.

          G.M. – Esperamos que sim! Já agora, em termos de frequência desses workshops, eles são mais frequentados por profissionais de bailado ou por estudantes de dança?

          M.P. – Mais por profissionais. Menos por estudantes, talvez porque a informação não lhes chegue.

          Gil Mendo O pássaro entre dois fogos

          Nesta entrevista à revista Face de agosto de 1989, precedida por um longo artigo intitulado “Escola de Dança com barra pesada”, Gil Mendo fala publicamente da sua demissão da comissão instaladora da Escola Superior de Dança. Tal acontece na sequência de uma crise interna vivida na instituição então recentemente criada, que culminou com o afastamento de dois colegas, Madalena Victorino e António Pinto Ribeiro, a quem muito se deveu o espírito inicial da Escola, e com quem Mendo criara uma relação de estreita cumplicidade, manifestando-se também crítico relativamente ao teor do projeto de lei que estabelecia as bases do ensino artístico, publicado um ano depois [Decreto-Lei n.º 344/90, de 2 de novembro].

          Gil Mendo é um personagem central na crise que abala a Escola Superior de Dança, e também na crítica ao modo como se projecta o ensino artístico em Portugal.

          Co-autor do projecto pedagógico da Escola Superior de Dança, símbolo do equilíbrio entre tendências, ex-bailarino e primeiro português licenciado em notação Benesh (sistema de escrita de dança), professor há mais de uma dezena de anos, Gil Mendo demitiu-se do seu cargo de vogal da comissão instaladora daquele estabelecimento de ensino. Com esta demissão acabou-se a “paz podre”; de certo modo fez-se a separação das águas. Durante meses, a pedido do presidente da comissão instaladora do Instituto Politécnico de Lisboa, Almeida Costa, manteve-se em funções. Agora acha que já é suficiente, que já não pode ficar calado.

          FACE – O seu pedido de demissão da comissão instaladora data de há meses, porque é que só agora assume publicamente esta ruptura?

          Gil Mendo – Pedi a demissão em 7 de Março. Aceitei, depois de uma conversa com o dr. Almeida Costa, que ele reteria o meu pedido até ele próprio ir à escola assistir a uma reunião do conselho científico e ter uma conversa com a comissão instaladora. Passaram-se vários meses e, na reunião de há duas semanas daquele órgão, as coisas agravaram-se. A minha intenção, era, não podendo continuar a trabalhar com o resto da comissão instaladora, por não nos entendermos quanto aos termos de gestão da escola, demitir-me e ser substituído.

          Aguentei estes meses, aguentei este silêncio, e não foi fácil, como deve calcular, mas continuei a exercer as minhas funções o melhor que era capaz. Só que no final deste ano lectivo comecei a sentir que a revisão do projecto de estudos que se ia fazer, a forma como era feita a avaliação dos estudantes, tudo se encaminhava – pode dizer-se tudo se encaminha – para o estreitamento do projecto no qual me empenhei.

          Que é que realmente aconteceu nestes meses para que lhe pareça inevitável esta ruptura?

          A minha solidariedade para com as pessoas que se empenharam neste mesmo projecto era na base dele e não uma solidariedade de grupo fechado. Criou-se um espírito que rejeita os que vêm de fora e que é muito cáustico para os jovens docentes e para os estudantes.

          A minha solidariedade para com as pessoas, independente das amizades que ali tenho, é na base de um projecto em que eu me empenhei. Se o vejo posto em causa, eu, por mim, quebro, considero quebrada essa solidariedade. Não vou, de facto, continuar na comissão instaladora. Vou insistir na demissão porque estas questões são demasiado importantes por terem a ver com o sistema educativo português e com o papel da arte na educação.

          Quer explicitar melhor essas questões de que fala?

          Ao chegarmos ao final destes três anos, que correspondem ao primeiro bacharelato, nós próprios tínhamos proposto fazer uma revisão do plano de estudos. Esse plano – penso eu – deve mesmo ser revisto. Aliás não tenho dúvidas nenhumas de que em algumas coisas nós errámos. Começámos por pensar que logo na entrada da escola os estudantes podiam optar pelo chamado ramo do espectáculo ou pelo ramo da educação. Depois, chegámos à conclusão de que deveríamos proporcionar um primeiro ano comum e deixar a opção para o segundo ano. Mas havia ainda várias outras opções possíveis, e, através da lei interna, que regulamenta a frequência, acabámos por considerar determinados estudos nucleares em ambos os ramos. Entre nós existia um compromisso – era considerado um compromisso moral – que respeitaríamos as tendências reveladas pelos estudantes e as escolhas que fossem fazendo.

          Tomemos por exemplo o ramo da educação. A possibilidade, alí, é a de formar professores do ensino vocacional: professores de técnica, professores que criem bailarinos. E para formar professores, à partida, no ensino vocacional, precisaríamos de contemplar várias técnicas. Começámos pela dança clássica, porque essa era possível na altura, mas a nossa intenção era desenvolvermos também a formação de professores de dança contemporânea – coisa que até hoje ainda não foi feita. Por outro lado, punha-se o problema de permitir que os estudantes optassem por serem professores de técnica ou de dança educacional. Esse era outro vector em que nós tínhamos a intenção de investir. Tudo isso passava também por desenvolver um trabalho de persuasão, de divulgação, porque pelo menos nessa altura havia muito pouca abertura para a ideia da integração da dança no ensino geral.

          E essa situação foi ultrapassada?

          Neste momento, com os projectos de reforma, as coisas não estão ainda, para mim, muito claras, mas há, apesar de tudo, uma muito maior receptividade à ideia de integração das artes na formação geral do indivíduo – embora eu esteja alarmadíssimo com este projecto de lei de bases do ensino artístico que apareceu aí. Espero sinceramente que não seja aprovado. É desastroso.

          Estava a falar sobre o que considerou a quebra de um compromisso moral entre os que elaboraram o plano de estudo…

          Havia este compromisso moral de respeitar a escolha dos estudantes e eu sinto isso, neste momento, posto em causa: há estudantes que revelam grande capacidade para um destes estudos e depois são eliminados pelo chumbo no outro. Não querem ser professores de ballet, querem seguir outro caminho, e têm grandes capacidades para isso, mas vejo pôr em causa as opções feitas pelos estudantes. Além do mais nós aceitamos na escola estudantes de variadas origens – porque hoje o mundo da dança é muito vasto e o tipo de formação com que o estudante chega àquela escola pode ser muito diverso – e, para mim, é um problema moral grave que um estudante, aceite pela escola, e que é perfeitamente evidente que nunca vai ser um professor de dança vocacional, a certa altura do seu curso se veja, no fundo, impedido de prosseguir por não obter sucesso em determinada disciplina, mesmo quando lhe são reconhecidas capacidades e qualidades em outras cadeiras que podem dar-lhe um perfil profissional num campo que, para mim, tem muita importância.

          Prende-se tudo essencialmente com esta questão: que é que se entende por arte? Há uma espécie de tradição empírica de formação dos bailarinos para a dança, para a formação de corpos de baile. Isso é uma coisa que as companhias precisam de continuar a fazer, não o ponho em causa, só que o mundo da dança não se esgota aí.

          Parece que para si a formação técnica clássica não é muito importante?

          Eu não desvalorizo, de maneira nenhuma, a formação técnica, mas penso que há que pôr à disposição do estudante as mais variadas técnicas e dar-lhes a maior quantidade possível de informação teórica – informação estética – e permitir que o estudante escolha, isto no caso da Escola Superior de Dança, que é um estabelecimento de ensino não destinado a formar corpos de dança ou solistas, mas vocacionado para a criação. A técnica, neste caso, tem de estar ao serviço da sua criatividade, como qualquer outra arte. E é aqui que eu vejo problemas, porque sempre que nós – nós porque não se trata só de mim – chamamos a atenção para estas questões, as questões da informação estética, as questões da análise, da reflexão sobre as coisas, a questão da criatividade, somos apontados como detractores da formação técnica. Ora não é isso que acontece. O que sucede é que a criatividade e a criação são mais importantes do que a técnica, que só é válida na medida em que está ao serviço da criatividade do indivíduo. 

          Eu rejeito uma visão passadista, historicista no sentido linear. Penso que hoje, no final desta década, estamos perante uma evolução de mentalidades para mim muitíssimo importante e acho que não devíamos, nós, que estamos no ensino, estar desatentos em relação a isso. Eu aceito mal, ou considero uma lacuna cultural pior, uma pessoa que ignora o presente a outra que tem algum desconhecimento sobre o passado. Isso não quer dizer que eu rejeite o conhecimento da história. Não é isso que está em questão. O que está para mim em causa é uma perspectiva linear e meramente cronológica da história da arte ou, se quiser, da história da dança.

          Que se reflecte na escola de que maneira?

          O que ali está a acontecer é o que eu sinto ser uma rejeição da pluralidade, absolutamente essencial para uma escola como esta – que é a única escola superior de dança em Portugal integrada num núcleo artístico. Ali devem coexistir as mais variadas correntes estéticas e técnicas para os estudantes poderem optar.

          O debate que tudo isso gera só é paralisante – como algumas pessoas dizem – se as questões deixam de ser discutidas em termos intelectualmente válidos e passam a ser pessoalizadas. Quando começam a acontecer coisas como o que eu considero confundir uma biografia com um programa de ensino, quando se põe em causa que alguém possa pronunciar-se sobre determinado assunto por o seu passado profissional não ser este ou aqueloutro, nesse momento eu sinto que tudo acaba por ser personalizado e que não posso mais manter-me em silêncio.

          Pelo que disse pode ficar-se com a ideia de que se trata de uma luta de gerações?

          Eu acho que não pode ser vista assim por haver pessoas mais novas do que eu com posições contrárias às minhas. Não penso que isso seja um problema de gerações. Poderá ser, essencialmente, um problema de informação e eu não acho aceitável, profissionalmente, que quem está envolvido no ensino, seja em que campo for, se deixe de preocupar com isso, com o presente.

          É uma questão de democratização também, e vendo eu tantas declarações a favor da pluralidade, a favor da democratização, em nome da Declaração dos Direitos do Homem, vendo e ouvindo estas coisas, olhando para a escola, só posso pensar que é necessário passar à prática. Não podemos passar de sonantes declarações para o lado mais burocrático das coisas, nem deixar pelo caminho essas ideias e remetermo-nos às questões meramente administrativas.

          Face n.º 11, 3 de Agosto de 1989.

          Gil Mendo Reflexões | Nova dança europeia – A década da surpresa ou a imunidade voluntariamente perdida

          Gil Mendo escreve para o jornal académico de Coimbra Via Latina (com direção de Francisco Silvestre Tão Lindo) em fevereiro de 1990. Nesse ano, a Bienal Universitária de Coimbra (BUC), com direção de António Augusto Barros, apresentaria uma grande mostra de dança portuguesa, de que Gil Mendo foi responsável, em preparação para o festival Europália 91, que decorreu na Bélgica. O texto é dedicado a Madalena Perdigão, então recentemente falecida, diretora do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, que mantinha, à data, uma relação de cooperação com a BUC.

          Surpresa. Eis uma sensação que quase sempre nos acompanhou ao longo da década de oitenta. Afinal a Europa não evoluiu na direcção de uma uniformidade cinzenta tiranicamente imposta por uma tecnologia inacessível ao cidadão comum, que tanto tínhamos temido e esconjurado. 

          Surpresa paradoxal, é da própria surpresa que nos surpreendemos e nos parecem, agora, lógicos os desenvolvimentos que não previmos. Mas acaso tenha sido essa imprevisão, ou o afecto que entretanto ganhámos por noções como acaso e imprevisibilidade, que nos ajudou a forjar as transformações que hoje estamos vivendo.

          Para quem acompanha com interesse a dança europeia, os anos oitenta foram, sem dúvida, surpreendentes e empolgantes. Entrada da década, dir-se-ia que a evolução se iria processar por via de um apuramento técnico levado a extremos de perfeccionismo, centrado na excelência do executante mais do que na proliferação dos criadores, através de uma selecção precoce de corpos superdotados, de um treino rigorosamente calculado para a inculcação de vocabulários precisos, realizado à margem do “humus” da turbulência e contaminação da vida comunitária, como que “in vitro”, para a produção de um intérprete dócil, atlético, émulo de um ser idealizado, sublime na sua virtuosa esterilidade.

          Não foi por aí, no entanto, que a dança alcançou a presença com que chega ao final da década e o prestígio e importância de que desfruta hoje na vida cultural da Europa. Antes o que foi pela acção de criadores heréticos, muitas vezes oriundos de outras artes, outros saberes (Wim Vanderkeybus vem do Teatro, George Appaix tem na sua formação a Literatura e a Música, Karine Saporta a Sociologia, Jean Claude Gallota as Artes Plásticas, Joseph Nada passou pelas Artes Marciais), que encontraram a Dança no seu caminho e resgataram de um mausoléu de rígidos vocabulários para a fertilidade de linguagens em permanente renovação.

          Este envio e contaminação de outras artes e outros saberes que melhor explica a erupção de uma Nova Dança Europeia, não enquadrável nos parâmetros definidos pelo Ballet ou pela Modern Dance, e de um surto de inovação que não se caracteriza pela afirmação de um novo estilo ou de uma nova linguagem, mas antes pela recusa em deixar se aprisionar por estilos e linguagens pré-codificados. A voluntária perda de imunidade (recorte-se o interesse de Paulo Maçã pela Arquitectura e o seu trabalho com actores e encenadores a aproximação de Olga Roriz ao Teatro e às Artes Plásticas) explica também alguma perplexidade que esta Nova Dança causa em sectores que por demais se habituaram a interpretar todas as obras, a enquadrar todos os criadores na cronologia linear de uma história dada como adquirida, estanque, imune a redescoberta ou reinterpretação.

          A par do que funda a sua actividade numa pesquisa pessoal liberta das peias de um vocabulário imposto e que parte para uma nova pesquisa a cada novo trabalho que empreende, surge na década de oitenta o crítico novo que abdica de parâmetros pré-estabelecidos de apreciação e que assume o pessoal, o subjectivo e o criativo no equacionar dos dados com que percepciona cada obra sobre que se decide escrever. Os anos oitenta são também os anos da afirmação do Ensaísmo no campo da Dança, o que constitui simultaneamente um indício do reconhecimento cultural e intelectual que a Dança alcançou e um contributo para o seu reforço (citem-se, entre outros António Pinto Ribeiro, Marianne Van Kerkoven e Norberto Servos). Ao recusar a imunidade, o bailarino dos anos oitenta aproxima-se simultaneamente da comunidade, cuja cultura e memória transporta consigo, e de si próprio. Não é um virtuoso que se despoja do seu ser em imolação a um estereótipo inatingível, mas um criador que habita integralmente o seu corpo. O coreógrafo solista, figura que praticamente se apagara da Europa do pós-guerra, regressa em força (mencionemos, como exemplos significativos, Cesc Gelabert, Daniel Larrieu, Suzanne Linke, Vera Mantero).

          Diversidade e individualidade são características da Europa dos anos oitenta que estão bem presentes na Nova Dança Europeia. Esta é uma dança que ao mesmo tempo nos surpreende, pois não dispomos do esteio de um estilo que no-la torne familiar, e sentimos próxima de nós, por se inspirar no corpo real, que não é um ideal de corpo comum a todos mas o corpo individualmente diferente e por isso tocante. O que aproxima a Nova Dança do Novo Teatro, tornando por vezes difícil, mas também supérfluo, decidir o que é pertença de uma ou do outro, e a sua inspiração na gestualidade do quotidiano para com ela construir um jogo que já não é nem a mímica narrativa linear nem a estilização de emoções supostamente comuns a todos os homens. Pina Bausch diria que tentamos tornar inteligível o conhecimento mais exacto que temos, e que é inexplicável. Na atenção explícita ou implícita, que dedica teatralidade do quotidiano, as personagens que construímos para comunicarmos uns com os outros, fruto da solidão que nos advém da consciência individual de pertencermos a um todo, bem pode dizer-se que a Nova Dança é uma dança de solidariedade, logo de felicidade.

          Se o criador dos anos oitenta aproximou a Dança da comunidade e lha tornou mais acessível, aproximou-se e ele próprio mais do corpo sobre o que compõe e teve, para tanto, o auxílio precioso de um novo medium ao seu alcance: o vídeo. A vídeo-dança é, efectivamente, uma inovação da década de oitenta. De instrumento de reportagem ou registo de um acontecimento artístico, o vídeo passou a ser ele próprio o suporte de uma realização artística e abriu um vastíssimo campo de experimentação e exploração coreográfica (atente-se nas obras produzidas pelo grupo L’Esquisse, ou por Régine Chapinot, ou Daniel Larrieu ou Jean-Claude Gallota, ou nas colaborações entre Conceição Abreu e Luiz lança, Madalena Victorino e Paulo Abreu, Olga Roriz e Joaquim Leitão). Neste campo pelo menos, não é previsível que a dança de oitenta encerre em si própria um ciclo. A vídeo-dança florescerá na década de noventa.

          Assim, chegados ao final da década de oitenta, podemos constatar que a tecnologia não se opõe, afinal, à diversidade, antes a estimula; que o domínio e a rapidez da comunicação audiovisual não tornará o mundo necessariamente uniforme. Digamos que a diversidade e a afinidade deixaram de ser fortemente influenciadas pelos acidentes geográficos. Hoje podemos partilhar ideias, descobertas e criações a milhares de quilómetros de distância. Não estamos imunes ao mundo, nem à surpresa. Não estamos condenados à uniformidade. Podemos começar a elaborar uma nova cartografia: a dos afectos. 

          Post-scriptum: dedico este artigo à memória de Maria Madalena de Azeredo Perdigão, figura ímpar da actividade cultural das últimas décadas e principal impulsionadora da integração de Portugal no movimento da Nova Dança e do Novo Teatro da Europa e, por extensão, a todos os seus colaboradores na imprescindível aventura que é o serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian. 

          Gil Mendo “Uma corrente de ternura” Gil Mendo entrevista Pina Bausch

          Em setembro de 1989, Pina Bausch e a sua companhia de dança apresentam-se pela primeira vez em Portugal, nos Encontros ACARTE, com a peça Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört [Ouviu-se uma gritaria na montanha, 1984]. Após a sua última apresentação, Gil Mendo entrevista a coreógrafa a convite da Fundação Calouste Gulbenkian nas instalações da instituição. Nesta curta conversa, cujo registo permaneceria guardado desde então, Gil Mendo aborda questões às quais era particularmente sensível — do lugar dos/as intérpretes e da sua diversidade na criação à plasticidade das peças e aos sentidos múltiplos que provocavam. Gera-se um clima de cumplicidade entre si e a coreógrafa, frequentemente pautado pelo riso e por gargalhadas entre ambos, e que os levaria a jantar juntos nessa mesma noite.

          GIL MENDO: Pina Bausch, acho que uma das coisas que impressiona o público é o facto de a maioria das pessoas da sua companhia serem mais velhas e muito diferentes entre si, e parecerem ter personalidades muito fortes. Ora, o que eu queria perguntar é o seguinte: são a diversidade e a individualidade importantes na sua escolha das pessoas com quem trabalha? E, também, são a história pessoal e a fantasia dos/as bailarinos/as importantes para o seu trabalho?

          PINA BAUSCH: É verdade. Eu gosto muito de trabalhar com pessoas diferentes – altos, pequenos, largos, baixos… Mas, o que quer que pareçam, há qualquer coisa… ou o que quer que sejam, as suas personalidades, têm algo parecido, algo que a gente não sabe o que é, mas há qualquer coisa que é semelhante. Quanto à fantasia, não sabemos exatamente até fazermos uma audição em que tentamos em conjunto… não é o que se consegue ver, percebe? É um sentimento, ou confiança, que me faz pensar, “sim!”. E às vezes é uma coisa que acontece muito depressa, em conjunto, e às vezes demora bastante até que de repente funciona. Logo, ambas as formas são possíveis.

          GM: Bom, você fala sobre semelhança. Durante estas três noites [nos Encontros ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian] senti que havia uma grande empatia por parte do público com…

          PB: Empatia?

          GM: Simpatia…

          PB: Ah, simpatia!

          GM: …por parte do público com o acontecia no palco. Ou seja, sinto que nos identificamos com o que se passa no palco. Ora, para além do facto de os/as seus/suas bailarinos/as serem tão bons/boas em movimento e terem personalidades tão fortes, há também o tema do seu trabalho, como eu o vejo: vejo jogos de infância (logo, memórias); jogos de crueldade; catástrofe, ou talvez o que se poderia chamar as consequências de uma catástrofe: destroços, afogamento, homens indefesos nas mãos da fé – esta é obviamente uma interpretação pessoal, claro. O que eu queria perguntar é o seguinte: monta a sua companhia como uma amostra da humanidade? E podemos dizer que os seus trabalhos são como uma escolha, uma amostra selecionada do mundo? Porque eu também vejo por detrás de tudo isto – catástrofe, crueldade – que há uma corrente muito tocante de ternura. E talvez por isso, eu acho, seja tão fácil para nós no público nos identificarmos e sentirmos essa empatia com o seu trabalho.

          PB: Não sei o que dizer [abre os braços humildemente e desata a rir com GM]! Sim, é o que tento fazer e… e acho que essa é sempre a questão quando faço uma nova peça, sabe, quando se apresenta numa nova noite. E acho que a única coisa que posso fazer – porque não é um livro, não há um objeto, não há uma história, é algo… [gira as mãos para a frente, i.e., em progresso] –, posso apenas perguntar a mim mesma: como existo agora, neste mundo, desta vez (quero dizer, no contexto do trabalho, não no presente, apenas para mim pessoalmente). Mas estar desperta para os assuntos que conheço – sobre o que esperamos, o desejo que temos, ter muito medo de violência e de quando vai acontecer, e outras coisas como estas – é como começo a construir um trabalho.

          É uma certa maneira de trabalhar, a minha. E acho que é algo que as pessoas da companhia, sem falarmos sobre isso – porque não falamos realmente sobre isso – claramente procuram.

          GM: Para além disso, há outro aspeto que me impressiona no seu trabalho, e acho que impressiona muita gente, que é a metamorfose, tanto no sentido de coisas que se transformam noutras – um chão avesso pode também ser um mar onde se nada, ou morre, se afoga; uma perna é uma perna mas também parece um bastão de críquete ou um bastão de ouro – mas não só nesse sentido de os personagens se transformarem noutros personagens e as coisas se transformarem noutras coisas, mas também na forma muito rápida e subtil como que as cenas mudam. Estive aqui as três noites e, no entanto, impressionou-me sempre como de repente a cena é outra, e isso é tão rápido, é como uma metamorfose, tudo mudou. Poderia dizer algo sobre isso? Faz isso parte do seu processo de trabalho, essa metamorfose?

          PB: Sim, é muito importante… mas não lhe sei dizer porque é importante para mim, sabe?  Como, na maior confusão, de repente há qualquer coisa, algo completamente diferente, ou parte de qualquer coisa que parecia muito calma e se transforma em algo completamente diferente. Não sei, para mim há tantos ângulos ou coisas! Todos os tipos de coisas de há muito tempo também lá estão. É como algo no tempo, como um antes ou um depois

          E é verdade quando diz que é apenas a sua opinião pessoal, mas para mim também é muito importante que todos tenham a sua opinião – a sua própria. Qualquer pessoa que assiste faz parte da performance. Cada pessoa, onde quer que esteja – na sua vida ou nos seus sentimentos – retira algo diferente, ou acrescenta algo diferente; ou vêm cenas à cabeça… e quando se vê mais vezes, surgem coisas diferentes, ou sentimentos diferentes da sua vida, vê-se diferente de novo. E eu acho que nesse fazer parte, nessa participação de cada pessoa, não há por que perguntar a outro/a como foi a história – como se pode perguntar? É a sua história, é a sua relação com o que vê, cada uma, pessoal. Isso também pertence ao trabalho. E nós não nos conseguimos segurar a nada, estamos perdidos, não temos onde nos agarrar – isso também faz parte de se trabalhar assim!

          Porque acho, não sei exatamente mas acho, que é compreensível entre todos nós… às vezes quando não sabemos alguma coisa dizemos que a sentimos, mas isso parece-me inadequado; acho que sentir é algo bem exato. Isso é sempre algo que dizemos para nos desculparmos por não sabermos algo, porque não podemos expressar os nossos sentimentos. Mas acho que eles são realmente a coisa mais exata que sabemos sempre. Onde a sabemos? Não na cabeça; sabemo-la noutro lugar, mas sabemos. E eu acho que é algo que toda a gente entende, mas não é com a cabeça. O que existe é a nossa mente, que tentamos entender! Tentamos tomar consciência daquilo que sabemos. E não há palavras, forma…

          GM: Outro aspeto que acho importante para quem só teve oportunidade de ver anteriormente o seu trabalho em vídeo é o facto de ser tão orgânico quando é visto no palco. Ora, você é conhecida por usar terra verdadeira, flores, relva, árvores verdadeiras… Existe alguma razão especial para você gostar de trabalhar com estes materiais?

          PB: Existem muitas razões. Para mim, cada material é tão diferente. Por exemplo, se houver relva, há um cheiro, sente-se um cheiro, não se faz barulho… Noutra vez há coisas amontoadas, e quando se anda ouve-se o tempo todo, é uma espécie de música também; tem um cheiro, ou cola-se no corpo – é difícil, é diferente de atravessar. E isso é de certo modo a essência da peça, também, é o que a peça é, uma espécie de extrato daquilo que se tem a dizer. É algo… como um vazio sobre o futuro dos seres humanos, e da natureza também. Não sei… espero que um dia a gente não a veja apenas numa montra, ou algo assim. Acho que, em geral, nunca realmente olhamos para aquilo que temos (talvez para os carros…). Mas, no palco, é com isso que confrontamos o público, a nossa terra, o chão… Sei lá, são tantas coisas, e cada uma pode fazer o seu [sentido]…

          GM: Bem, muito obrigado. Muitas pessoas esperavam há muito ter a oportunidade de a ver em Lisboa. Assim, para terminar, gostaria de lhe perguntar, acha que teremos oportunidade de a ver novamente em Lisboa…

          PB: Isso seria maravilhoso.

          GM: …podemos contar com isso?

          PB: Sim, seria maravilhoso, eu gostaria muito. Até porque foi só uma peça, deveriam ver outra; porque outra é diferente e… quer dizer, sou eu na mesma! Mas assim pode mais facilmente imaginar-se como aquela casa pode ser diferente; se com uma é difícil imaginar, entretanto haverá outra! Foi muito bonito estar aqui. Seria maravilhoso se pudéssemos voltar.

          GM: Muitíssimo obrigado. Foi também muito bonito tê-la cá, e um grande prazer conversar consigo, obrigado.

          Transcrito e traduzido do original em inglês por Pedro Pinto.

          Gil Mendo Ideia: Cristina Peres entrevista Gil Mendo

          Em consequência da sua demissão da comissão instaladora da Escola Superior de Dança em solidariedade com Madalena Victorino e António Pinto Ribeiro, Gil Mendo cofunda com ambos, juntamente com Miguel Abreu e Catarina Vaz Pinto, o Forum Dança, em 1990, incorporando o espírito de independência, experimentação e pensamento da Nova Dança. Nos seus primeiros anos na direção, edita quatro números de uma pequena publicação, no segundo dos quais, lançado em 1991, é entrevistado por Cristina Peres. A jornalista e crítica de dança indaga sobre o estado da arte da dança no início dos anos 1990 – momento em que a Nova Dança Portuguesa florescia – procurando entender, junto de Gil Mendo, as especificidades dessa nova experiência de corporalidade.

          Gil Mendo é quase uma omnipresença neste mundo da dança portuguesa. Neste, porque reconhece o radicalismo que a defende por oposição ao radicalismo de quem a considera invenção de alguns. Porque é uma das pessoas atentas que se aperceberam do fenómeno e o apoiaram, incentivando e ajudando a uma certa definição da diversidade. Não se trata de pretender que esta é uma forma de dança que vem substituir qualquer outra. Pelo contrário, vem acrescentar; não se perde seja o que for de determinado património artístico, como não deixa de existir o ballet, evidentemente. Como é evidente que esta nossa conversa sobre dança não pretende esclarecer em definitivo o que é isso de dança, esta ou aquela. Foi, sim, uma ocasião para revisitar ideias, das que eventualmente não se formulam sem uma razão específica. Valeu por isso e pelo exercício em si. E regista-se como aconteceu: sem princípio nem fim.

          Cristina Peres: Tendo em conta o eclectismo hodierno, o “ruído” presente nas formas específicas, como a dança, oriundo de outras áreas artísticas, e a tendência das artes para o indivíduo qual é o estado da dança, para onde se dirige?

          Gil Mendo: Não faço ideia. Penso se eventualmente esta geração que recusou os cânones e dogmatismo não irá criar outros…

          CP: O movimento, no sentido físico, está em crise?

          GM: Penso que não. Mesmo que pensemos que o novo não é possível, surge sempre algo que espantosamente é novo. Digo espantosamente, porque, por vezes, parecem-nos ideias tão óbvias mas que são novas.

          CP: O que é que tem mais possibilidade de ser novo, as ideias ou as formas?

          GM: Para mim são essencialmente as ideias. Só que elas produzem formas que, pelo menos na aparência, são novas, podendo ser uma espécie de desconstrução e reconstrução de formas que já existiam, ou conjugações diferentes das mesmas formas.

          CP: Acha que a dança é descontextualizável no sentido em que não vem directamente do nada mas recebe informação de muitos lados, no sentido em que é sintética mas se apresenta numa nova forma? Isto, num sentido inverso à delimitação de género e estilo a partir de influências?

          GM: É sempre possível olhar para as coisas desse modo. Se há algo que vejo pela primeira vez, vejo-o como se não tivesse existido nada antes.

          CP: Mesmo para si, como professor e estudioso da dança?

          GM: Faço por vezes associações com outras coisas mas tenho sido surpreendido ao não as associar com nada. É muito natural que o nosso quotidiano seja uma sedimentação de muita coisa que vem de trás e que transportamos connosco, é isso que nos fornece uma memória cultural. É isso que é notório nestas novas correntes das artes performativas que têm uma feição nacional, com influências de muitos lados diferentes. No entanto, é fácil reconhecer num criador as suas origens nacionais, a região a que pertence e a História que transporta consigo.

          CP: Acha que a dança é mais difícil hoje em dia?

          GM: É sem dúvida mais difícil, mas é mais aliciante. No passado, o que se fazia era tentar aproximar o corpo individual de uma ideia estereotipada de corpo ideal. Era muito trabalhoso, bastante frustrante, mas apesar de tudo era mais fácil e claro. Hoje há que conhecer-se a si e ao seu próprio corpo, estamos mais perante um processo de comunicação verdadeira. Então isso é tão difícil como eu tentar expressar-me.

          CP: Levado ao limite, se as coisas forem feitas com uma seriedade e uma duração no tempo razoáveis, poder-se-á dizer que esta é uma época-embrião de uma série de correntes novas? O movimento parece não ter limites a partir do momento em que existe a preocupação de descobrir algo que vem de dentro. A diversidade pode abrir caminhos a uma enorme quantidade de linhas, num sentido muito mais lato que qualquer classificação de novo.

          GM: O que começou a passar-se com a dança, sobretudo a partir de meados da década de 80 na Europa – reconheço que houve antecedentes nas décadas de 50 e 60 na dança nova-iorquina passou-se com as artes plásticas há muito tempo. Olhamos a obra de um pintor e não tentamos integrá-lo numa escola, embora por vezes arranjemos rótulos. Aceitamos facilmente a diversidade e estamos a começar a fazê-lo na dança.

          CP: O que equivale também a uma certa pulverização..

          GM: É, o que não é necessariamente mau. Aí poderá passar a existir uma pluralidade de gostos e opções estéticas que não têm de ser hierarquizadas. É importante porque é um processo de democratização no verdadeiro sentido. O que, para mim, é um avanço civilizacional considerável, dentro da consciência permanente da evidência da nossa ignorância. Não é possível um saber enciclopédico e este é o momento em que cada um acabará por, desejavelmente, saber o que para si é fundamental saber.

          Revista Forum Dança, n.º 2, março de 1991.

          Gil Mendo O “performer” criador

          Entre as muitas transformações que as artes performativas contemporâneas têm vindo a forjar, uma das mais interessantes e positivas é a redução drástica da distância entre o intérprete e o criador.

          Hoje, o “performer” é um parceiro activo no processo de criação.

          Na dança, esta evolução de mentalidades e atitudes tem reflexos na definição de novas exigências profissionais, e na forma como o bailarino encara a sua actividade, a sua formação e o seu crescimento artístico, que passam pela afirmação da sua criatividade, da sua individualidade e da sua diferença.

          Os tempos em que se pensava que o engenho criador só se adestrava eficazmente através da vivência relativamente dócil de uma carreira de intérprete, ficaram decididamente para trás de nós.

          E ainda bem.

          Esta mudança é um sinal de maturidade.

          Texto publicado no programa da Maratona para a Dança, realizada no Teatro Maria Matos em 1993, onde bailarinos, coreógrafos e promotores se reuniram para exigir mais e melhores condições de trabalho para a cena da dança independente. 

          Gil Mendo Agir em parceria: algumas notas sobre o apoio do Ministério da Cultura à criação e produção coreográfica de iniciativa não governamental

          Atento à dança contemporânea em Portugal, aos seus protagonistas e às suas necessidades, Gil Mendo terá a oportunidade de contribuir para o desenvolvimento de uma política cultural no país, na qualidade de membro da comissão instaladora do Instituto Português das Artes do Espetáculo e de coordenador do seu Departamento de Dança no Ministério da Cultura, tendo como ministro Manuel Maria Carrilho, e Rui Vieira Nery como secretário de Estado. Neste texto, Gil Mendo sublinha a importância de uma ação articulada entre as instituições do Estado e o tecido profissional.

          Em Portugal, o investimento do Estado na Dança foi sempre mínimo: nunca se prosseguiu uma estratégia de desenvolvimento durante tempo suficiente para lhe conhecer os resultados, e até hoje não se conseguiu implantar uma rede nacional de criação, produção e difusão de dança dotada dos meios, das competências profissionais e da independência artística necessários para assegurar o acesso de todos os cidadãos à fruição desta expressão artística nas suas variadas formas e correntes.

          Apesar disso, a dança independente portuguesa não deixou, nos últimos dez anos, de revelar uma grande vitalidade e capacidade de intervenção, forçada como foi a encontrar, à margem do sistema e das instituições oficiais, quase tudo o que lhe era necessário — desde uma formação profissional e artística actualizada a métodos contemporâneos de gestão e organização. Integrou-se naturalmente na comunidade internacional de profissionais das artes performativas independentes que, desde o início dos anos oitenta, mudou radicalmente o mapa cultural da Europa, e angariou um capital de saber que hoje não pode ser ignorado.

          Uma nova política cultural neste campo não pode deixar de contar com os profissionais independentes e com as suas organizações. Não apenas para lhes proporcionar o apoio há muito devido, mas porque eles são parceiros naturais e actores principais de uma estratégia que visa implantar uma rede nacional de estruturas e espaços culturais, dotada dos meios e das competências profissionais necessários para assegurar o desenvolvimento cultural nesta área.

          O esforço que o Ministério da Cultura vem fazendo, desde há dois anos, para aumentar progressivamente os meios disponíveis para o apoio à dança independente (de 64 000 contos em 1995 para 250 000 contos em 1997, o que representa um aumento de 290%) deve ser entendido nesse sentido.

          A nova regulamentação dos apoios do Ministério da Cultura à criação e produção coreográfica, publicada em Dezembro de 1996, para além de cometer a decisão do apoio a um júri de especialistas maioritariamente constituído por profissionais independentes da Administração Pública, prevê o apoio plurianual e a celebração de protocolos de actividade entre o Instituto Português das Artes do Espectáculo (estrutura que, na nova orgânica do Ministério da Cultura, é o interlocutor das artes performativas independentes) e estruturas não governamentais (considerados parceiros estratégicos para o desenvolvimento da dança em Portugal).

          O novo regulamento procura contemplar a pluralidade de estruturas que são activas no terreno profissional, sejam companhias de dança, estruturas de produção, programação ou difusão, centros de pesquisa e experimentação, ou outros. Valoriza-se a actividade desenvolvida, a sua credibilidade artística, o seu carácter profissional e o seu impacto cultural, e a capacidade de cativação de outros apoios.

          O mesmo é dizer, a boa gestão, o contributo para o desenvolvimento profissional e descentralização cultural, seja através do apoio a novos autores e da produção de primeiras obras, seja através do apoio à formação contínua e à reciclagem de quadros profissionais, artísticos e técnicos (considerados necessários ao desenvolvimento de uma rede nacional de criação, produção e difusão artística).

          Os investimentos a fazer, para dotar o país das infraestruturas necessárias para assegurar a existência de um mercado artístico que funcione com a máxima independência, só serão possíveis através do cruzamento de recursos e da realização de parcerias entre o Ministério da Cultura, outros departamentos do Estado e da Administração Local, instituições privadas, profissionais independentes e suas estruturas e organizações. 

          Tanto ao Ministério da Cultura como à comunidade profissional da dança independente interessa a existência de um tecido profissional saudável, actuante, capaz de se adaptar à evolução e ao desenvolvimento cultural e de responder aos desafios e às exigências do seu tempo. Só podem, por isso, considerar-se parceiros com um mesmo objectivo; e o sucesso ou insucesso de uma nova política cultural neste campo, e das instituições que a personificam, será determinado pelo sucesso ou insucesso desta parceria.

          Originalmente publicado no livro Movimentos Presentes: Aspectos da Dança Independente em Portugal, com coordenação editorial de Maria José Fazenda, pela Livros Cotovia e Danças na Cidade, em 1997.

          Gil Mendo 31 de agosto de 1995

          No momento em que se comemoravam os cinco anos da estrutura fundada em 1990 pelo coreógrafo João Fiadeiro, a RE.AL, Gil Mendo reflete sobre o seu papel preponderante no desenvolvimento e proliferação de linguagens da dança independente em Portugal – “o terreno”, como então antecipava, “onde hoje está provavelmente a germinar aquilo a que amanhã chamaremos novo”.

          Impossível lembrar-me do que terei feito nesse dia há cinco anos. Mas é quase certo que no centro das minhas expectativas e das minhas preocupações estaria a Mostra de Nova Dança Portuguesa que iria realizar-se em Novembro desse ano na Bienal Universitária de Coimbra BUC 90 e que constituía um passo importante na preparação do programa de dança da Europália 91 Portugal.

          Éramos um grupo numeroso de pessoas empenhadas numa múltipla aposta: demonstrar a existência e coerência de uma corrente de dança independente portuguesa que era realmente nova; revelar, num amplo festival sobre cultura portuguesa a realizar no estrangeiro, o que estava em efervescência e crescimento, o que era novo; falar do presente e sonhar o futuro; encontrar o nosso próprio lugar num circuito internacional então em plena pujança e onde havia já manifestações de curiosidade e interesse por este grupo de criadores e performers portugueses.

          Nesse dia de que hoje, solitariamente sentado em frente do processador de texto, comemoro, à minha maneira, cinco anos, se não vi o João Fiadeiro ou falei com ele, devo ter de certeza pensado nele e no seu Retrato da Memória Enquanto Peso Morto que então ele e o seu grupo de bailarinos, músicos, cenógrafa e desenhador de luz preparavam com afã e entusiasmo. (…)*

          Depois da BUC, do Convento do Beato, dos primeiros contratos internacionais, veio o Solo para Dois Intérpretes e a participação no Festival Klapstuk, as improvisações com Miguel Azguime, O que Eu Penso que Ele Pensa que Eu Penso no ACARTE, o Prémio Madalena Perdigão, a instalação no Centro Cultural da Malaposta, o Branco Sujo, a residência criativa em Salvador e os Recentes Desejos Mutilados, uma intensa circulação internacional, a criação de uma peça para os finalistas do CNDC de Angers, o regresso ao solo e à performance nas Danças na Cidade, a actual colaboração com Jorge Silva Melo, a próxima criação para o ACARTE.

          Recordando o que estes cinco anos foram para as artes performativas contemporâneas portuguesas, e a estratégia que se foi delineando, encontro a RE.AL presente em todos os pontos essenciais de uma estratégia cultural que tem sido sobretudo prosseguida por um sector jovem, independente, dispondo de apoios chocantemente escassos mas detentor de uma notável capacidade de intervenção e realização: a cidadania do mundo sem decepar as suas raízes; a participação num movimento cultural e humanista que não se deixa delimitar por fronteiras de nenhuma espécie; a tentativa de criar estruturas flexíveis de produção, bem implantadas numa comunidade sem por isso perderem mobilidade; a atenção à formação, à experimentação, ao reconhecimento e à descoberta do novo; a inserção num espaço que não tem que ser rotulado de pertença exclusiva de uma arte específica, em que as várias artes performativas confluem despidas de cânones, e que é o terreno onde hoje está provavelmente a germinar aquilo a que amanhã chamaremos novo.

          Não podemos dizer que tudo começou há cinco anos, porque há cinco anos o que se tentou concertadamente fazer foi revelar algo que já estava em marcha, nem devemos olhar para este ciclo de cinco anos como algo que em si se encerra, porque na nossa actividade tudo se vai sempre encadeando, a despeito de aqui e ali reconhecermos e assinalarmos pontos de ruptura ou viragem.

          Mas é bom que comemoremos, quanto mais não seja porque comemorar é um ritual que cimenta os nossos laços comunitários.

          Olhando para o programa destas comemorações dos cinco anos da génese da RE.AL, encontro aí com prazer o rasto do passado, mas também o sinal do futuro. A RE.AL tornou-se num espaço acessível a performers de todas as origens. Como os espaços que, há cinco anos, nos acolhiam em outros centros europeus.

          Como dizia, não consigo lembrar-me exactamente deste dia, 31 de Agosto, de há cinco anos. De certeza que estava cheio de expectativas. Se tiver, acaso, pensado “como será daqui a cinco anos?”, devo ter pensado que decerto ainda teria expectativas. E é verdade que tenho. Mas ser-me-ia impossível imaginar então que teria hoje razões para comemorar estes cinco anos. Reconheço que as tenho, muitas. E isso vale bem uma comemoração.

          *O corte indicado no texto consta da publicação original.

          Publicado originalmente no dossier dos cinco anos da REAL / Festival “A dança muda lugares”, realizado no Centro Cultural da Malaposta em 1995.

          Gil Mendo A importância do artista programador

          Texto datado de 25 de dezembro de 2012 e que lança um olhar retrospetivo à atividade da EIRA (cujos 20 anos de existência foram assinalados em 2013) e do coreógrafo Francisco Camacho, refletindo sobre os espaços e contextos de apresentação da dança, bem como sobre o desdobramento do artista enquanto programador – assumindo dessa forma uma posição de compromisso com um tecido cultural diverso e emergente.

          Quando, em 1993, Francisco Camacho criou a EIRA, a geração que fundou o que então se chamava a Nova Dança Portuguesa ambicionava ver instituído em Portugal um sistema organizado de apoio à actividade performativa de iniciativa independente, como havia nos países europeus mais desenvolvidos, onde esta geração tinha muitos contactos e cumplicidades artísticas; ambicionava dispor de espaços de trabalho que tivessem as características necessárias para viabilizar uma intensa actividade de colaboração artística, pesquisa, experimentação e criação; e ambicionava que se desenvolvesse em Portugal um circuito de co-produção e difusão destas novas correntes que lhes permitisse crescer na relação com o público.
          A actividade coreográfica de Francisco Camacho foi acolhida desde o início por um circuito internacional que desde os anos mil novecentos e oitenta vinha sendo criado por artistas e profissionais precisamente com a preocupação de difundir e viabilizar as novas correntes que então emergiam com grande ímpeto nas artes performativas europeias.
          De então para cá, ainda que com altos e baixos, houve grande evolução no tecido artístico e profissional das artes performativas europeias e portuguesas: o que então se chamava Nova Dança foi generalizadamente aceite e incorporado e passou a designar-se simplesmente Dança Contemporânea (como aliás aconteceu com o Novo Teatro e a Nova Música), os circuitos de difusão desenvolveram-se, a figura do programador afirmou-se, novos centros de espectáculo e festivais apareceram; no caso português, os artistas e as suas organizações foram, com grande esforço próprio, conquistando espaços de trabalho.
          Não sendo o melhor dos mundos, porque os meios disponibilizados nunca pareceram suficientes, há que reconhecer que se estruturou minimamente um tecido artístico profissional com as suas organizações independentes, as suas instituições, os seus circuitos de difusão.
          Mas esta mesma evolução teria arrastado consigo um predomínio da uniformização e superficialidade que um ‘mercado internacional’ corre sempre o risco de gerar, não fora a capacidade de antecipação que os artistas parecem ter por natureza e o facto de terem tornado muitos dos seus espaços de trabalho e produção em espaços de resistência ao domínio de ‘tendências’, de salvaguarda da pesquisa e da experimentação, de acolhimento de projectos de risco, de cativação de espectadores para os projectos emergentes.
          Neste campo, a actividade de Francisco Camacho e da EIRA é exemplar: reduzido ao mínimo indispensável o espaço de escritório, todo o espaço da EIRA é espaço de estúdio, de trabalho criativo e de partilha, de experimentação e pesquisa, de apresentação e de diálogo. Desde que passou a ter uma estrutura de produção própria, Francisco Camacho sempre cuidou de a pôr ao serviço do desenvolvimento coreográfico, através de actividades de formação e de pesquisa, da promoção dos intercâmbios artísticos nacionais e internacionais, do acolhimento e programação de projectos de outros coreógrafos.
          Francisco Camacho soube assumir, para além da sua actividade coreográfica, que só por si justificaria o relevo que tem na dança portuguesa actual, um papel de organizador e programador que reputo da maior importância. Fê-lo em colaboração com artistas e organizações internacionais e nacionais – e destaco, nos últimos anos, a sua actividade de curadoria com o Festival CITEMOR – e fê-lo no seu próprio espaço de trabalho, na EIRA, onde tantas vezes nos revela o trabalho, os projectos e as obras de outros artistas.
          No vigésimo aniversário da EIRA, escolho destacar este aspecto pela importância que atribuo ao artista programador e ao espaço local e informal de apresentação, ao espaço de proximidade, num momento em que vejo alastrar na Europa e em Portugal uma ideia de ‘eficácia’, de ‘sustentabilidade’ e de ‘internacionalização’ dominada pela filosofia do mercado. Ora esta ideia empobrecedora poderá arrastar consigo a ideia de que uma rede de instituições de difusão é suficiente para garantir o sucesso – e a ‘triagem’ – dos projectos artísticos. Pelo contrário, o circuito de difusão que permite o acesso de um público mais alargado à criação artística contemporânea é que depende do trabalho dos artistas, das suas organizações e das condições que lhes sejam dadas para investigar e experimentar, partir do que começa sempre por ser feito por poucos e para poucos.
          E assim, neste vigésimo aniversário da EIRA, fica o meu preito e o meu voto interessado pela continuação e desenvolvimento da actividade que Francisco Camacho, o artista programador, e a sua equipa, lhe têm imprimido. 

          Gil Mendo Testemunho

          No dia 29 de abril de 2008, Dia Mundial da Dança, a REDE – Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, na altura sob a direção de João Fiadeiro (RE.AL) e de Filipe Viegas (Bomba Suicida), decide homenagear Gil Mendo, nomeando-o seu primeiro sócio-honorário. A homenagem decorre no festival Festa da Dança, na LX Factory, em Lisboa, num momento de luta contra a precariedade do sector artístico, e conta com a presença do então ministro da Cultura, António Pinto Ribeiro. O testemunho que Gil Mendo partilha faz uma retrospetiva de fundo sobre os precedentes da Nova Dança Portuguesa e o panorama posterior, refletindo sobre o seu papel de facilitador e mediador entre artistas, público e instituições.

          TESTEMUNHO

          O movimento da Nova Dança Portuguesa, que julgo que podemos com justeza considerar o motor principal, embora não necessariamente o único, do desenvolvimento notável que a dança contemporânea independente portuguesa conheceu nestes cerca de vinte anos, foi obra de muita gente. Nem de outra forma se lhe poderia ter chamado ‘movimento’. O meu papel nele foi um de entre muitos, e fui muito menos ‘fazedor’ do que muitos outros. Por isso me sinto sempre um pouco embaraçado e constrangido quando me é atribuído um protagonismo ou perícia de que não me considero detentor. Os protagonistas de um movimento artístico são os artistas, em primeiro lugar, e de seguida os produtores e organizadores que o acolhem e viabilizam e os críticos e ensaístas que o contextualizam e divulgam. Ora eu fui sempre mais um ‘facilitador’ (no sentido do termo britânico facilitator) e, ocasionalmente, um intérprete das ideias novas junto das instâncias a que tinha acesso. Não se interprete isto como falsa modéstia, nem sequer como modéstia. Tenho consciência da importância que a minha acção teve em certos momentos e foi uma acção consciente e empenhada. Mas teve importância apenas no contexto da activa existência dessa comunidade de artistas, produtores, pensadores e pedagogos que deram e dão forma a este movimento.

          É por ter tão presente e considerar tão importante essa rede complexa e diversa de iniciativas e de acções que em dada altura confluíram num movimento que até hoje não parou, e os gestos isolados e solitários que precederam e incentivaram esse movimento, que me pesa a responsabilidade de um testemunho que é forçosamente parcial. Ao prestar-me a dar este testemunho, faço-o por isso no pressuposto de que de mim se espera apenas isso mesmo, um testemunho baseado na minha própria experiência, no que vivi e acompanhei, e não um relato histórico detalhado, só possível de ser feito com a distância que garante a objectividade e a isenção. Decerto, neste testemunho, deixarei por referir muitos protagonistas e acontecimentos que foram relevantes, do que peço antecipadamente desculpa.

          Sendo hoje este movimento protagonizado por um grande número de jovens artistas e profissionais que não viveram a sua génese, e havendo entre eles não poucos que têm uma predisposição natural para o estudo e a investigação, gostaria de encorajá-los a um estudo rigoroso sobre esse período tão interessante da dança portuguesa, sobre o qual há já alguns valiosos testemunhos publicados, nomeadamente nos livros Movimentos Presentes, editado pelas Danças na Cidade e a Cotovia em 1997 e coordenado por Maria José Fazenda, e Dez Mais Dez, editado em 2001 pela Re.AL e pelo Forum Dança.

          A minha atenção a este movimento e o meu envolvimento com ele data do final da década de oitenta. Até então, e desde 1976, tinha sido professor da Escola de Dança do Conservatório Nacional e estado sobretudo envolvido nos esforços, e nalgumas lutas, pela preservação e desenvolvimento do projecto do Conservatório Nacional, com as suas cinco escolas, de Cinema, de Dança, de Educação pela Arte, de Música e de Teatro. Tinha criado fortes laços de solidariedade profissional e pessoal com alguns colegas na luta pela consolidação de um ensino artístico que fosse simultaneamente rigoroso, culto, democrático e propiciador da criatividade. Desde 1983 era membro da comissão instaladora da Escola Superior de Dança, e foi aí que este movimento nascente me encontrou.

          Sentia-se, na altura, no mundo da dança em Portugal, a emergência de uma geração que dificilmente se revia nos cânones então dominantes: o tecnicismo, a rigidez de vocabulários pré-determinados, a hierarquização de funções entre criadores e executantes, a estreita limitação do que se considerava ser ‘dança’, a estilização do movimento que, pretendendo exaltar uma visão do corpo, anulava todas as diferenças identitárias, nomeadamente de sexo e de género.

          Como os seus antecessores, estes jovens deslocavam-se bastante ao estrangeiro para estudar. Mas, ao contrário daqueles, que iam quase sempre à procura de aperfeiçoamento, como executantes, nos estúdios dos grandes mestres, estes iam à procura do desenvolvimento criativo, dos workshops de composição e de improvisação, da experiência de outras abordagens da dança e do processo criativo, e mesmo do estudo de outras linguagens performativas. E, nestes períodos de estudo no estrangeiro, foram encontrando outros artistas com quem discutiam e partilhavam ideias e com quem foram estabelecendo laços e cumplicidades que mais tarde viriam a ser muito importantes para o movimento da Nova Dança Portuguesa. Esta era uma geração verdadeiramente cosmopolita.

          Nos Estúdios Coreográficos do Ballet Gulbenkian, em iniciativas da Companhia de Dança de Lisboa e em espaços alternativos começavam a destacar-se os trabalhos de Vera Mantero, João Fiadeiro, Francisco Camacho, Clara Andermatt, Paulo Ribeiro e outros.

          O estúdio de Rui Horta, na Rua Camilo Castelo Branco acolhia uma parte substancial destes jovens artistas e proporcionava-lhes espaço de trabalho.

          Paula Massano, que sempre recusou integrar-se nas estruturas formais de dança da época, vinha há anos a defender e a apresentar uma dança que pensava o seu tempo e que se cruzava com outras linguagens, nomeadamente as artes plásticas, e que foi incontornável precursora do que viria a seguir. Foi ela, creio, a responsável por atrair o interesse de outros artistas, como Nuno Carinhas, ou pensadores, como António Pinto Ribeiro, sobre a dança.

          Olga Roriz, Margarida Bettencourt e alguns outros bailarinos do Ballet Gulbenkian apresentavam-se como autores fora do Ballet Gulbenkian sempre que os seus projectos se não adequavam à estrutura de uma companhia.

          A Bienal Universitária de Coimbra, BUC, estava atenta a este movimento emergente e tinha começado a acolhê-lo, apresentando criações de Paula Massano e de Vera Mantero.

          Uma boa parte destes artistas tinha em José Ribeiro da Fonte, homem de vastíssima cultura e de uma capacidade ímpar para compreender o que estava a emergir, um confidente e conselheiro imprescindível.

          Antes de chegarem às instituições, as ideias novas iam-se formando e clarificando em intensas e inspiradoras conversas de rua ou nos bares do Bairro Alto.

          Havia no ar esta sensação de emergência de algo novo, mas não havia ainda um mínimo de tecido estrutural que viabilizasse uma mudança que precisava de ser sustentada por outras formas de organização, a despeito das tentativas de constituição de alternativas (o Pós d’Arte, de Vera Mantero, Francisco Camacho, João Fiadeiro e André Lepecki, o Aparte, de Margarida Bettencourt e João Natividade, o Dança Grupo, de Elisa Worm, entre outros).

          O Serviço ACARTE, criação de Maria Madalena de Azeredo Perdigão, iniciara a sua programação regular de Nova Dança, Nova Música e Novo Teatro e depois a realização anual dos Encontros ACARTE. Madalena Perdigão, que fora já a responsável, entre muitas outras coisas, pela criação do Festival Gulbenkian de Música, que na década de 60 nos permitira algum contacto com grandes nomes da criação contemporânea e que quebrara anualmente o asfixiante isolamento em que vivíamos, teve uma vez mais uma acção visionária. Assessorada por George Brugmans, então director do Festival Springdance, de Utrecht, na Holanda, e por Roberto Cimetta, fundador e director do Inteatro, de Polverigi, Itália, que com ela co-dirigiam os Encontros Acarte, começou a trazer a Lisboa sistematicamente a vanguarda das artes performativas europeias e norte-americanas. E a proporcionar aos jovens coreógrafos e performers portugueses o contacto directo com os seus pares europeus e norte-americanos, através dos muitos workshops organizados, e a todos, artistas, críticos, estudiosos e público em geral, a oportunidade de pensar e discutir o pujante movimento de inovação que estava, desde o início dos anos 80, a crescer nas artes performativas na Europa. O ACARTE pôs-nos realmente no mundo. Proporcionou-nos descobertas emocionantes, encontros fundamentais, o acesso a redes informais – de organizadores, de críticos, de artistas – que já então estavam activas na Europa e nos Estados Unidos. E, talvez o mais importante de todos os encontros, o encontro de um público, minoritário que fosse. Quem viveu essa época não pode ter esquecido o clima de festa, a sensação empolgante de estar a viver algo de muito forte, uma sensação de pertença que nos unia, espectadores, organizadores, artistas, pensadores, em inesquecíveis dias e noites na Sala Polivalente, no Anfiteatro ao Ar Livre, no Self-Service do Centro de Arte Moderna, no Grande Auditório e nos jardins da Fundação Gulbenkian. O ACARTE deu um contributo sem paralelo para a criação de um desejo de comunidade, de movimento.

          Na Escola Superior de Dança, tínhamos, antes de iniciar o curso, resolvido experimentar, através de workshops, algumas das matérias que queríamos incluir no currículo, e ao mesmo tempo estabelecer um primeiro contacto com alguns daqueles que pensávamos poderem vir a encarregar-se de as estruturar e ensinar. Foi assim que convidámos António Pinto Ribeiro para um seminário no campo da Estética e História das Artes, matéria que ele viria a ensinar quando o curso abriu em 1986, e Madalena Victorino para um workshop de Dança Educacional, matéria que ela viria igualmente a ensinar no primeiro curso.

          Eu já antes conhecia o António Pinto Ribeiro, tinha-o conhecido através da Paula Massano, e fascinava-me a sua capacidade de análise e de fundamentação teórica deste movimento nascente e a forma aliciante como expunha as suas ideias. A sua colaboração com o Expresso deu um contributo valiosíssimo a este movimento, destacando o trabalho destes criadores então emergentes e chamando a atenção para a sua importância e relevância cultural. O que o António Pinto Ribeiro fez no Expresso foi dar protagonismo total ao trabalho de artistas emergentes que, na lógica da ordem e hierarquias vigentes no ‘establishment’ da dança de então, mereceriam apenas uma curta nota de encorajamento. E isso marcou um ponto de viragem fundamental que viria mais tarde a ser seguido por outros jornais e críticos de dança.

          Não conhecia até então a Madalena Victorino, embora ela tivesse já há algum tempo o seu Atelier Coreográfico para não profissionais. A Madalena Victorino e a sua actividade tiveram um enorme impacto em mim. Aqui estava alguém que era capaz de despertar nos outros, de forma sedutora e feliz, a vontade de se envolver num processo criativo, de experimentar, inventar e compor, de dizer de si e do mundo. O trabalho da Madalena Victorino aliava à exigência artística, que era muita, a acessibilidade, que era total.

          Ninguém, na minha vida profissional, foi tão importante para mim como o António Pinto Ribeiro e a Madalena Victorino. Conhecê-los mudou a minha vida para sempre.

          Como é natural, o entusiasmo que sentíamos por estas novas ideias fez-nos desejar que elas estivessem no centro do que seria o curso da Escola Superior de Dança. Mas este destaque dado a artistas emergentes, a radicalidade do que eles defendiam em relação ao que era então a ideia de dança prevalecente, e mesmo o protagonismo que a Madalena Victorino e o António Pinto Ribeiro, que eram vistos como ‘outsiders’, estavam a assumir, tinha começado a gerar crescente fricção e alguma querela. Daí a surgirem conflitos e incompatibilidades pessoais insanáveis foi um passo. Se no terreno profissional isto pôde ser gerido, apesar de tudo, com alguma flexibilidade e informalidade que preservou a continuação de relações profissionais a despeito das divergências, numa instituição que estava a nascer, bastante voltada sobre si própria por força de estar ainda a construir-se, foi fatal. E doloroso para todas as partes. Eu demiti-me da comissão instaladora. A Madalena Victorino e o António Pinto Ribeiro acabaram por ser afastados no final do seu primeiro contrato. Porventura não era ainda a altura de este movimento entrar nas instituições. Mas não faltava muito.

          Nós estávamos totalmente empolgados por aquilo em que estávamos envolvidos: divulgar novas ideias, torná-las acessíveis, divulgar e apoiar o trabalho daquela jovem geração de coreógrafos e performers portugueses, estabelecer pontes com os nossos pares noutros países.

          Foi assim que decidimos criar o Forum Dança, com o apoio e envolvimento de vários elementos do Atelier Coreográfico para não profissionais da Madalena Victorino, entre eles a Catarina Vaz Pinto, que viria a desempenhar um papel activíssimo e importantíssimo no Forum Dança. Connosco como fundador estava também o Miguel Abreu, jovem e dinâmico actor, encenador e produtor, editor da revista O Actor e director da produtora Cassefaz, que intuía como ninguém o que era preciso alterar, em termos organizativos, no campo das artes performativas, para lhes garantir independência e capacidade de iniciativa, e que veio posteriormente a estruturar a actividade de produção do Forum Dança. E a Cristina Santos, que tinha sido nossa aluna na Escola Superior de Dança, tendo já atrás de si, embora fosse ainda muito jovem, uma carreira de bailarina da Companhia Nacional de Bailado, e que hoje dirige o Forum Dança.

          Lançámos os Cursos de Formação de Monitores de Dança para a Comunidade, por onde passaram alguns dos que viriam a ser chamados a segunda geração da Nova Dança Portuguesa, como João Galante, Margarida Mestre, Teresa Prima, Paulo Henrique, Ezequiel Santos, Paula Castro, para mencionar apenas alguns. Eram cursos voltados simultaneamente para o pensar, o experimentar, o fazer e o transmitir, para o que concitámos a colaboração de muitos criadores e pedagogos, não só da área da dança mas também do teatro, da música, do vídeo, etc. Cultivámos os contactos internacionais e lançámos uma revista. Em colaboração com a nova-iorquina Ann Rosenthal e a sua organização MAPP, e com apoio da Fundação Luso-Americana, o Forum Dança viria mais tarde a organizar a vinda a Portugal de programadores e outros profissionais dos Estados Unidos, de que depois resultaram várias residências, estágios e digressões de portugueses naquele país. E com o Théâtre Contemporain de la Danse, de Paris, foram organizados estágios de bailarinos portugueses naquela cidade. Como sabem, já com a sua actual direcção o Forum Dança desenvolveu a sua actividade de formação de intérpretes de dança contemporânea e de produtores e por lá tem passado grande parte da geração actual deste movimento.

          Datam daqueles primeiros anos também alguns dos projectos da Madalena Victorino, como Torrefacção e O Terceiro Quarto, que tanto impacto público tiveram.

          O José Ribeiro da Fonte, com quem eu conversava muito e com quem partilhava o interesse e entusiasmo por esta então emergente geração de coreógrafos, tinha entretanto sido nomeado para o Comissariado para a Europália-91 Portugal, sendo ele o comissário de Música e Dança, e convidou-me para trabalhar com ele como assessor para a Dança. Foi a minha primeira actividade de programador e simultaneamente o primeiro projecto internacional em que me envolvi e a minha primeira e feliz colaboração institucional com o José Ribeiro da Fonte.

          Decidimos que o festival Europália, um grande festival que se realiza na Bélgica e que foca a cultura de um país ou região, era uma óptima oportunidade para revelarmos internacionalmente esta nova geração da dança portuguesa. Sentiamo-nos seguros para o fazer, porque sabíamos que esta geração estava em sintonia com o que de mais interessante estava a acontecer nos circuitos internacionais de dança contemporânea.

          Esta era também uma oportunidade de estimular e apoiar o esforço de organização e produção independente que estava a surgir em torno destes criadores. Desejávamos que esta primeira exposição internacional da Nova Dança Portuguesa se realizasse em condições profissionais normais, isto é, integrada numa programação internacional regular, e de acordo com a escolha do respectivo programador, e não isolada numa efeméride especial. Eu tive muito apoio de pessoas como o George Brugmans e o António Pinto Ribeiro, e foi por influência deles que desde o início tive como meu principal interlocutor na Bélgica o Bruno Verbergt, então director do Festival Klapstuk, de Lovaina, à época o mais prestigiado festival europeu de revelação de novos valores e por isso muito frequentado pelos profissionais europeus e norte-americanos.

          O Bruno Verbergt veio assim a ser o nosso grande parceiro nesta estratégia de divulgação internacional da Nova Dança Portuguesa e, mais jovem do que eu, foi para mim um mestre com quem muito aprendi. A preparação da participação da Nova Dança Portuguesa no Festival Klapstuk 91, numa série de sete espectáculos que se chamou Os Novos Portugueses, e a selecção dos participantes, passou pela produção de um grande número de novas criações, pela organização de uma mostra de Novíssimos no Convento do Beato em Lisboa, por uma presença maciça da Nova Dança Portuguesa na BUC 90, em Coimbra, pela organização de uma mostra na sala estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, esta totalmente negociada pela produção associada aos criadores representados, encabeçada pelo Albino Moura, então ainda bailarino da Companhia Nacional de Bailado, mas cada vez mais envolvido como produtor e organizador com esta geração de coreógrafos. Os coreógrafos cujos trabalhos foram seleccionados para o Festival Klapstuk 91 foram Aldara Bizarro, Francisco Camacho, Joana Providência, João Fiadeiro, Paulo Ribeiro, Rui Nunes e Vera Mantero. Os trabalhos do Francisco Camacho, do Paulo Ribeiro e da Vera Mantero foram igualmente apresentados em Bruxelas, no Théâtre 140, em Kortrijk, no Limelight, e em Namur, na Casa da Cultura. Ficaram de fora alguns nomes importantes deste movimento, mas foram os trabalhos e a sua adequação aos critérios do Festival Klapstuk que determinaram a selecção.

          Na sequência da nossa participação no Festival Klapstuk no âmbito da Europália 91, um grupo de produtores, técnicos e organizadores permaneceram na Bélgica, em estágios organizados pelo Vlaams Theater Instituut, então dirigido por Guido Mine, com o objectivo de estimular as relações entre organizações e profissionais portugueses e flamengos.

          Embora apenas uma parte dos protagonistas da Nova Dança Portuguesa estivesse representada no Festival Klapstuk 91, o sucesso da série Os Novos Portugueses confirmou e ampliou o interesse por esta geração da dança portuguesa, que estava já a surgir nos circuitos internacionais, em boa parte em virtude das cumplicidades artísticas que alguns destes criadores emergentes tinham já criado e de que vos falei antes. Alguns deles estavam já a mover-se no circuito internacional, a procurar as suas parcerias de eleição. Muitas vezes na minha actividade vim a beneficiar de, ou a dar seguimento a, contactos que tinham sido iniciados pelos artistas.

          A Europália, a sua preparação e a sua concretização, confirmaram-me a justeza de uma convicção: a da importância das parcerias entre as instituições e as organizações no terreno, da associação entre os meios da instituição e a flexibilidade e agilidade da pequena organização e do profissional no terreno. É uma convicção que mantenho.

          A afirmação internacional era nesta altura um passo importante para o reconhecimento interno, mas era também a única forma possível de viabilização dos projectos artísticos para que, então e por muito tempo depois, não havia circuito nacional.

          Nos anos seguintes, alguns profissionais internacionais viriam a ser muito importantes para esta fase inicial da afirmação de alguns destes coreógrafos: Bruno Verbergt, George Brugmans e Anita Mathieu, que então era a programadora de dança da Ferme de Buisson, em Paris, para Vera Mantero; Bruno Verbergt, Marie Descourtieux (então administradora do CNDC d’Angers) e Les Ballets C. de la B. para Francisco Camacho, Christian Ferry Tschaeglé, em Paris, e depois Dieter Jaenecke, em Hamburgo, para João Fiadeiro, Dieter Buchoh, em Frankfurt, para Clara Andermatt e Paulo Ribeiro, etc.

          No festival Klapstuk 91 tinham sido tão evidentes as afinidades e a sintonia entre os participantes portugueses e a espanhola Monica Valenciano, que Carlos Marquerie, então director do Teatro Pradillo, em Madrid, desafiou o Forum Dança para a realização de uma pequena mostra de dança portuguesa no âmbito de Madrid 92 Capital Europeia da Cultura.

          Por intermédio de Carlos Marquerie e nos esforços que ambos desenvolvemos ao longo de alguns anos, a partir daí, para gerar parcerias entre artistas e projectos ibéricos, viria a conhecer artistas como Olga Mesa, Pep Ramis e Maria Muñoz, La Ribot (que foi o Zé Laginha, no festival a sul, e não eu no CCB, como muitos pensam, que apresentou pela primeira vez em Portugal; eu tinha conhecido La Ribot em Salamanca, onde ela estava em residência a preparar as suas primeiras Piezas Distinguidas, e ficado completamente rendido, e o Zé Laginha e eu assistimos depois juntos à primeira apresentação das Piezas no Teatro Pradillo). Por iniciativa do Carlos Marquerie conheci também outros organizadores que apoiavam a Nova Dança Espanhola, como Ana Rovira, de Girona, e Alberto Martín, de Salamanca. Nunca fomos muito longe porque nos nossos dois países, nessa altura, as condições de circulação da dança que nos interessava eram muito adversas. A cumplicidade artística entre portugueses e espanhóis, no entanto, nunca deixou de existir, alguns artistas portugueses, como o Francisco Camacho, e espanhóis, como Blanca Calvo e Ion Munduate, e instituições ou organizações como o Museu de Serralves, o Citemor, O Espaço do Tempo, a Devir, etc, ou espanholas, como La Porta e La Mekanica, têm-na mantido viva. Hoje que as condições de difusão se estão a alterar positivamente nos dois países, espero que consigamos aproximar-nos mais.

          Tínhamo-nos entretanto tornado membros do IETM – Informal European Theatre Meeting, uma rede internacional que tinha nascido da iniciativa de alguns profissionais no início da década de 80, e que desde então não parou de crescer e de se renovar. Sendo eu que representava o Forum Dança no IETM, envolvi-me então bastante intensamente na sua actividade, até porque fui durante alguns anos membro do seu comité executivo. Para mim, e felizmente para um grande número dos seus membros, o que definia esta rede estava claro no seu nome: informal e encontro (meeting). O encontro sem agenda prévia rígida, que favorece o imprevisto é, na minha experiência, responsável por alguns dos mais bem-sucedidos projectos. É muitas vezes a partir do encontro ocasional que, pela identificação ou pela diferença de pontos de vista, de experiências, etc., se torna perturbador e gera atracção, que germinam relações artísticas e culturais interessantes e duradouras. Isto é verdadeiro também para a história da Nova Dança Portuguesa e deste movimento que surgiu nos anos oitenta, e se consolidou na disponibilidade para o encontro e em encontros muitas vezes inesperados, e permito-me sublinhar a importância de não nos deixarmos nunca manietar pela pressão dos resultados e produtos concretos e imediatos, por critérios de avaliação baseados em definições prévias de objectivos demasiado rígidos, porventura válidos em outros campos de actividade mas que, desconfiando do imprevisto, podem induzir alguma esterilidade na actividade no terreno, mesmo que, paradoxalmente, favoreçam a multiplicação de produtos.

          Em 1992, em Genéve, num intervalo entre reuniões, o George Brugmans convidou-nos, ao Bruno Verbergt e a mim, para um almoço em que nos propôs que o Springdance, o Klapstuk e o Forum Dança firmassem um contrato por três anos de co-produção internacional de criações de coreógrafos portugueses. Assim nasceu o Tejo Trust, que viria a justificar que o Forum Dança criasse um Núcleo de Apoio Coreográfico e obtivesse da então Secretaria de Estado da Cultura um subsídio a três anos de forma a poder assinar este contrato. Foi uma estratégia do George Brugmans, que conhecia bem Portugal, para nos ajudar a introduzir nas relações entre as organizações no terreno e as instituições uma ideia de planeamento e compromisso plurianual. O Tejo Trust, em associação com La Ferme du Buisson, produziu o Sob, da Vera Mantero, e depois, já sem o Springdance, que, tendo George Brugmans saído da sua direcção, se desvinculou, mas com o CNDC d’Angers e Les Ballets C. de la B., o Primeiro Nome Le, do Francisco Camacho.

          A convite de Ghislain Boddington, que dirigia a organização shinkansen, de Londres, e que até hoje mantém relações de trabalho e cooperação artística com organizações e artistas portugueses, nomeadamente a EIRA e Francisco Camacho, passámos a pertencer a uma pequena rede internacional, o Butterfly Effect Network, constituída pela já citada organização britânica, por uma organização flamenga, o Stuk, que era a estrutura onde se realizava de dois em dois anos o festival Klapstuk, mas que tinha actividade permanente e que era dirigida pelo Mark Deputter, uma organização austríaca e uma organização eslovena. Esta rede organizava anualmente o European Choreographic Forum, em Dartington, no sul de Inglaterra, fomentando o encontro e colaboração entre artistas seleccionados em conjunto pelas quatro organizações. Antes de o Forum Dança se juntar a esta pequena rede, já o Francisco Camacho tinha participado no primeiro European Choreographic Forum. Eu conheci a Ghislaine Boddington através da nossa comum participação no IETM e, através dela e do Mark Deputter, conheci muitos artistas e organizadores que pude, por minha vez, pôr em contacto com outros que eu conhecia. Menciono estes exemplos simples porque me é muito cara a ideia da atenção ao outro, da partilha, do funcionamento em rede assim descomprometido e não como uma espécie de grande cadeia multinacional de interesses, e porque acredito que nessa partilha sem eliminação de diferenças esteve e está a força do movimento que celebramos.

          Foi numa viagem de avião entre Frankfurt e Liubliana, para um encontro do Butterfly Effect Network, que o Mark Deputter me confidenciou que estava a pensar seriamente vir viver para Lisboa. O Mark tinha pouco tempo antes conhecido a Mónica Lapa num encontro internacional em Gent. A Mónica, nessa altura, já tinha criado, com o Albino Moura, o Festival Danças na Cidade. Aproveitou o facto de estar em residência com a Clara Andermatt em Arnhem, na Holanda, para dar um pulinho a este encontro internacional em Gent. E lá encontrou o Mark Deputter. Não me ocorre nenhum encontro que tenha sido mais importante para a dança em Portugal e para todos nós do que este entre a Mónica Lapa e o Mark Deputter.

          Foi através do João Fiadeiro, estava então a Re.AL a residir no Centro Cultural da Malaposta e tinha eu acabado de ser convidado para assessor para a Dança do Centro Cultural de Belém – onde me reencontrei com o José Ribeiro da Fonte, que era o assessor para a Música – que tomei conhecimento do projecto Skite 94, um projecto pluridisciplinar de residência de artistas numa cidade durante um mês, concebido pelo Jean-Marc Adolphe, director da associação Figures du Mouvement, e hoje director da revista Mouvement. O João Fiadeiro estava empenhado em trazer este projecto a Lisboa no âmbito da Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura, mas o Centro Cultural da Malaposta não tinha dimensão suficiente para o acolher. Eu levei portanto a ideia ao Centro Cultural de Belém, tendo-me antes aconselhado com o José Ribeiro da Fonte. O Skite 94 acabou por se realizar no Centro Cultural de Belém e no Centro Cultural da Malaposta e ter apoios pontuais de produção da Re.AL e do Forum Dança. A ideia inicial era acolher 60 artistas de todas as áreas e muitas nacionalidades. O processo da selecção dos participantes era assim: o Jean-Marc Adolphe convidava um certo número de artistas e pedia-lhes que indicassem outros a convidar. Acabámos por ter não 60 mas 120 artistas durante um mês em Lisboa. A primeira semana era preenchida por workshops e por apresentação de trabalhos de alguns dos participantes. O Bonjour Madame…, do Alain Platel, por exemplo, foi apresentado no CCB nesse âmbito. As duas semanas seguintes eram totalmente livres, podendo os participantes experimentar o que quisessem com quem quisessem, e devendo diariamente solicitar à produção o espaço de trabalho de que iam necessitar. Eram encorajados a envolver-se com a cidade e a produção fazia o que fosse necessário e possível para lhes facultar o acesso a algum espaço da cidade que particularmente os inspirasse. A última semana era dedicada à apresentação de fragmentos de experiências que os participantes quisessem mostrar. O Jérôme Bel, por exemplo, apresentou pela primeira vez o seu Nom donné par l’auteur, no Cinearte. Eu não teria tido capacidade para conceber ou gerir eu próprio um projecto desta dimensão. Quem assumia a produção no dia-a-dia era o Jean-Marc Adolphe, assistido pela Shilá Fernandes, então uma jovem recém-licenciada do Departamento de Dança da Faculdade de Motricidade Humana. Eu estava lá para acudir às crises, se as houvesse, assegurava a ligação com o Centro Cultural de Belém, durante aquele tempo totalmente ocupado por este evento. Foi um projecto louco mas fascinante, que se espalhou por toda a cidade de Lisboa e que criou ligações artísticas que duram até hoje. Entre os participantes, para mencionar apenas uns poucos, estavam o Alain Platel, a Meg Stuart, a Emmanuelle Huynh, o Christian Rizzo, o Mark Tompkins, o Frans Poelstra. Nos anos seguintes alguns dos participantes do Skite estavam sempre a voltar a Lisboa. O Ronald Burchi, um americano que pertencia aos Ballets C. de la B. – talvez tenham visto, durante o Ciclo Meg Stuart, um filme feito com ele, aquele americano que se encontrou na Europa na condição de emigrante ilegal – ficou mesmo alguns anos em Portugal, trabalhando sucessivamente com o Francisco Camacho, o João Galante e a Teresa Prima e a Lúcia Sigalho.

          Na primeira metade da década de 90, Lisboa tinha-se tornado imensamente atractiva para muitos artistas. E a marca de cosmopolitismo que os fundadores da Nova Dança Portuguesa tinham imprimido a este movimento desde o início estava mais presente do que nunca.

          Os protagonistas do movimento da Nova Dança Portuguesa, envolvidos como estavam na viabilização dos seus próprios projectos artísticos, não tinham no entanto deixado de trabalhar sobre a afirmação e o desenvolvimento do tecido artístico nacional.

          O João Fiadeiro, com a Re.AL, tinha criado os LAB, um projecto que perdura até hoje, sempre em evolução, e que foi o lugar de revelação dos primeiros trabalhos da chamada segunda geração da Nova Dança Portuguesa.

          E em 1993, por iniciativa da Mónica Lapa, realizou-se aquele que foi o evento que simbolicamente confirmou a existência deste movimento enquanto comunidade artística e profissional: a Maratona para a Dança, que durou 12 horas ininterruptas no Teatro Maria Matos, de que resultou um manifesto e depois a criação da Associação Portuguesa para a Dança, que, embora de âmbito e com objectivos diferentes, foi a antecessora da REDE. Tornou-se publicamente evidente nessa altura que esta se tinha tornado uma comunidade com muitos artistas e organizações com capacidade de interagir.

          No âmbito da Lisboa 94, a Clara Andermatt e o Paulo Ribeiro realizaram o Dançar Cabo Verde, a que se seguiram a colaboração da Clara com artistas cabo-verdianos, de que viria a resultar a História da Dúvida, e que foi o princípio de um intercâmbio com artistas e organizações de países lusófonos, depois prosseguido pelas Danças na Cidade – com o Dançar o que É Nosso, as residências e colaborações artísticas intercontinentais, e esta relação com o mundo que hoje o Alkantara nos proporciona e que devemos ao Mark Deputter.

          Talvez a parte visível do trabalho desta comunidade artística sejam só as produções, os espectáculos, o número de espectadores. Mas nós sabemos quantos encontros e desencontros, quanta reflexão e pesquisa, quantas tentativas, desistências e insistências (e quantos falhanços também) são necessários para que haja uma produção que valha a pena. E eu acho que este movimento, que a vossa actividade, tem sistematicamente devolvido a Lisboa aquele ar de porto aberto ao mundo que vai tão bem com a sua história.

          Quando, no final de 1995, fui convidado para integrar a comissão instaladora do IPAE – Instituto Português das Artes do Espectáculo, presidida pelo José Ribeiro da Fonte, a comunidade profissional da dança portuguesa tinha já demonstrado a sua capacidade para actuar no terreno em todas as áreas relevantes: na criação e produção, na internacionalização, na iniciativa, concepção e realização de eventos, na pesquisa e investigação, na formação contínua e no apoio aos artistas emergentes, na realização de parcerias. Até aí, esta comunidade tinha sabido aproveitar eventos institucionais, como a Europália e a Lisboa 94, e tinha demonstrado serem as suas organizações os melhores parceiros para o sucesso dos projectos. Agora era necessário definir um sistema de apoios que viabilizasse a regularidade destas actividades. E evitar, se possível, que esses apoios trouxessem consigo contrapartidas que sufocassem a actividade ou condicionassem a sua iniciativa. Faltavam meios de produção, infra-estruturas, circuitos de difusão. O José Ribeiro da Fonte faleceu pouco depois do início dos nossos trabalhos. Fui um rude golpe, para nós que com ele integrávamos a comissão, que o admirávamos tanto e que tínhamos tantas expectativas nesta missão com ele. Seguiu-se algum tempo de indefinição que atrasou a institucionalização do IPAE. Mas nem por isso deixámos de continuar a trabalhar. E quando Ana Marín assumiu a presidência da comissão e depois a direcção do IPAE finalmente institucionalizado, voltámos aos caminhos que tínhamos começado a projectar com o José Ribeiro da Fonte. Não vou dizer-vos que a minha passagem pelo IPAE foi isenta de angústias. Não é fácil estar na posição em que eu estive quando se vem de tão estreita ligação ao terreno e se tem tão aguda percepção das suas necessidades, a uma grande parte das quais, obviamente, não se tem possibilidade de atender. Mas o IPAE proporcionou-me uma enorme aprendizagem e laços profissionais e emocionais que ficarão comigo para sempre. Trabalhei com uma equipa dirigente profundamente empenhada na sua missão e atenta ao terreno artístico. E a minha passagem pelo IPAE deu-me, a mim que vinha de um movimento lisboeta e internacional, a possibilidade de descobrir outros projectos artísticos, instalados noutros pontos do país e o trabalho que desenvolviam. Quando lançámos os primeiros concursos e viabilizámos a criação de estruturas profissionais em torno dos principais criadores, eu receei, confesso, que isso os isolasse. Não precisava de me ter preocupado. É uma característica admirável das estruturas de dança portuguesas a sua capacidade de partilha de meios, de acolhimento de outros coreógrafos e de atenção aos emergentes. E enquanto estive no IPAE outros projectos foram surgindo que depois se tornaram estruturas. Ainda bem que conseguimos apoiá-los quando estavam a emergir. A verdade é que não há investimento que se preze sem algum risco. É preciso apoiar de forma sustentada os que já provaram (mas é melhor não exagerar no tempo que é necessário para os considerar merecedores de confiança) e apoiar também os que ainda são só uma esperança. Uma coisa não é alternativa da outra, acho mesmo que uma coisa não sobrevive sem a outra. É também importante estar atento aos que emergem solitariamente. A rebeldia aparece quase sempre em ruptura com o que está. E a rebeldia, já vimos, pode ser o sinal de uma inovação importante. Por isso convém que não a arredemos sem pelo menos antes lhe termos prestado a devida atenção.

          Com altos e baixos, a verdade é que até hoje não foi contestada a implicação do Estado no financiamento das actividades no terreno nesta área. E que alguns projectos então lançados pelo Ministério da Cultura, como a rede de Teatros e Cine-Teatros, cresceram, tornaram-se claros e estão a dar resultados. A mim não me surpreende. Tem havido sempre técnicos empenhados a trabalhar nestas questões.

          Hoje, como sabem, a minha actividade divide-se entre a Escola Superior de Dança e a Culturgest. Voltei ao ensino quando saí do IPAE e depois voltei também à programação. Antes de ir para o IPAE, também era professor da Escola Superior de Dança e era programador no CCB. Quando estava no início da minha actividade na comissão instaladora do IPAE, fui convidado para fazer uma palestra na Faculdade de Arquitectura do Porto, num ciclo cujo tema era A Viagem. Fui falar dos acasos e dos encontros que fui tendo na minha actividade internacional nos anos precedentes. Chamei-lhe Regresso em Aberto, inspirado no Open Return dos bilhetes de avião. Agora já regressei. Não com a energia que tinha antes, nem de longe, mas regressei para um meio muito mais desenvolvido, tanto num campo como noutro.

          A Escola Superior de Dança é hoje uma escola muito mais aberta e relacionada com o meio profissional da dança contemporânea. Não é perfeita, quem o é?, por isso lá estamos atentos a todas as melhorias possíveis. O mundo do ensino superior está em grande transformação e eu espero que ela seja realmente no sentido dos propósitos anunciados, nomeadamente na creditação da actividade profissional e na possibilidade de interacção entre o universo académico e o universo profissional. O que pressupõe a clara compreensão dos objectivos de cada um. Eu considero que o terreno profissional não deve nunca abandonar os seus projectos de formação, porque há um lado da formação que é de ponta, que está a ser transmitido ao mesmo tempo que se experimenta e pesquisa, que precisa de uma flexibilidade que dificilmente as instituições e os tempos académicos têm. E que o mundo académico deve acompanhar de perto o que é desenvolvido no terreno profissional e a seu tempo incorporar e sistematizar.

          A Culturgest é um paraíso. É um prazer enorme trabalhar com o Miguel Lobo Antunes e a equipa da Culturgest é de ouro. São pessoas que gostam do que fazem e que têm prazer em fazê-lo bem. Temos gosto em colaborar com os nossos colegas no terreno e cada vez nos envolvemos mais em co-produções. Temos uma colaboração regular com os festivais Alkantara e Temps d’Images, e este ano vamos ter também uma colaboração com o A Sul. Temos tido sucessivas co-produções com O Espaço do Tempo, onde grande parte das obras que co-produzimos passa um período em residência de criação. São muito importantes para nós os centros de residência artística. São suportes fundamentais da criação. Já tivemos e vamos continuar a ter colaborações com várias das vossas estruturas. Valorizamos muito esta ligação com os nossos colegas, e eu espero que se mantenha esta vivacidade que há no terreno, esta variedade de projectos e de dimensões. Hoje há, em muitas áreas, uma obsessão com a dimensão que confesso que me assusta e que espero que não nos atinja. São necessárias todas as dimensões e uma forte interacção entre elas para garantir a saúde de um tecido artístico.

          Quando voltei para a actividade de programação, descobri com grande prazer que hoje também há uma comunidade profissional de programadores em Portugal. Por iniciativa do Rui Horta e da Luísa Taveira foi crescendo uma rede informal de programadores que se reúne periodicamente. Eu juntei-me também a essa rede e é um prazer ter interlocutores e parceiros com quem partilhar a nossa informação e os nossos projectos. E é um sinal de uma mudança em Portugal que, espero, há-de ser importante na viabilidade e na mobilidade dos projectos artísticos.

          Eu tive um percurso sui generis. Fui alguém que esteve atento, e que calhou estar em certos sítios em certas ocasiões, e poder abrir uma ou outra porta quando era preciso e que o fez sem hesitação ou cálculo. A mim tudo o que aconteceu foi um pouco obra do acaso e dos encontros e não de um projecto profissional ou de um desígnio que tivesse delineado e preparado. Estava disponível para ser tocado por estes artistas, por este movimento, e sei que é essa disponibilidade e atenção que apreciam em mim. Fui aprendendo convosco e continuo a aprender convosco. Devo-vos algumas das maiores alegrias da minha vida. A vossa amizade e o vosso apreço são fonte de enorme felicidade para mim. Por isso aceito a vossa homenagem e me emociono com ela.

          Gil Mendo Um corpo liberto de ideias feitas

          Para a sua tese de doutoramento sobre as transformações culturais ocorridas em Portugal na década de 1980, vistas a partir do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, a investigadora Ana Bigotte Vieira chega a Gil Mendo para com ele entender o momento que então se vivia na dança, nos corpos, nas instituições e nas práticas.

          Ana Bigotte Vieira: Encontro-me, então, de roda do Serviço ACARTE, e como o Gil Mendo é um especialista em dança vou tentar focar-me nesta área, mas o ACARTE é maior…

          Gil Mendo: É, de facto, e uma das coisas muito importantes do ACARTE é precisamente o cruzamento de linguagens (embora este estivesse na altura já inscrito no que se chamou a Nova Dança, Novo Teatro e Nova Música), mas para mim há um aspecto muito importante do ACARTE que é o cruzamento de públicos: os públicos das formas novas.

          Gostava de começar um bocadinho mais atrás, para perceber onde é que o ACARTE se inscreve quando aparece em 1984. No que diz respeito à dança, o que é que existe então em Portugal, em termos de companhias, programação e ensino?

          Nessa altura havia duas companhias institucionais, que eram a Companhia Nacional de Bailado e o Ballet Gulbenkian; havia uma escola oficial que era a Escola de Dança do Conservatório Nacional e depois existiam uma série de estúdios particulares, como o Estúdio da Ana Mascolo.

          Já nessa altura havia alguns grupos independentes, mas estruturavam-se muito à semelhança do Ballet Gulbenkian, embora houvesse uma tendência para uma menor hierarquização das funções. Já existiam os Estúdios Coreográficos do Ballet Gulbenkian – e é importante falar nisso porque ligo muito aquilo que começou a acontecer nesses Estúdios com o que depois o ACARTE veio apoiar e amplificar, que é surgirem alguns autores – bailarinos do Ballet Gulbenkian – que se começavam a fazer notar por um público mais interessado no novo: os casos da Vera Mantero, João Fiadeiro…

          Depois, fora desse âmbito, também já existia o Grupo Experimental de Dança Jazz, que deu origem à Companhia de Dança de Lisboa e que foi fundado pelo Rui Horta; existia o estúdio do Rui Horta, que acolhia também alguns jovens emergentes como era o caso da Clara Andermatt, o caso do Francisco Camacho e outros. E, portanto, já havia um fenómeno de geração, uma geração que já tinha começado quando saía de Portugal para ir para o estrangeiro fazer estágios, estudar durante alguns períodos: já iam não tanto à procura do aperfeiçoamento técnico, que era o que acontecia tradicionalmente (ou seja, as pessoas iam estudar o que estudavam em Portugal mas com outros mestres, em Londres, em Paris e alguns em Nova Iorque), mas de outras coisas a que não tinham acesso em Portugal (nomeadamente, gente da dança que ia para o Lee Strasberg estudar teatro, ou gente que ia estudar dança de forma mais participativa e criativa: a improvisação, o contacto-improvisação, etc.). E, portanto, já existia essa geração nascente. O ACARTE veio amplificar tudo isto, porque veio dar a estas pessoas a possibilidade de conhecerem muito do que se passava nessa altura na Europa e nos Estados Unidos, mas não apenas, e fazê-los perceber que, na sua ânsia de uma forma diferente de trabalhar com o corpo e de trabalhar com a dança, não estavam sozinhos, que havia um movimento vasto na Europa nessa altura. 

          É preciso também enquadrar o que acontecia antes de existir o ACARTE, há alguns nomes que acho que é justo que citemos, sobretudo dois: um é o da Paula Massano, o outro é o da Olga Roriz, que já tinha um percurso no Ballet Gulbenkian. Ah! E o nome da Elisa Worm: em relação ao que se fazia no campo da dança independente, [espelhava] já uma tentativa de se organizar de uma forma diferente e, sobretudo, quebrar a distinção entre o coreógrafo e o intérprete. O coreógrafo até aí esperava do intérprete um corpo dócil que pusesse em prática a sua ideia, e a partir desta altura começa a surgir em Portugal a vontade de um trabalho em que o intérprete também é um criador, e, portanto, há algo de coreógrafo também no intérprete e a distância hierárquica entre o coreógrafo e o intérprete esbate-se.

          E em relação ao ensino? Como era então o ensino, nomeadamente na Escola de Dança do Conservatório Nacional e, claro, na recém-criada Escola Superior de Dança?

          A Escola de Dança do Conservatório Nacional era uma escola que assentava em duas técnicas: a técnica da dança clássica e a modern dance, que nessa altura era a técnica Graham. Quando nós criámos a Escola Superior de Dança, embora continuássemos a ter essas técnicas como técnicas-base — a escola de dança teve instalação a partir de 1983 e abriu os seus cursos em 1986 —, já houve uma grande influência do que se estava a passar…

          Em 1986, o ACARTE já se encontra em funcionamento…

          Já houve influência, a ideia-base já era o primado da criação e da criatividade e, portanto, quando abriu a escola esta tentava já estar a par do seu tempo. Naturalmente, o Conservatório Nacional a partir daqui também teve uma evolução bastante grande, nomeadamente em relação às técnicas contemporâneas. Nesta altura, meados dos anos 1980, as pessoas, quando pensavam no contemporâneo, pensavam só na técnica Graham, mas já havia muitas outras coisas. E as coisas depois evoluíram bastante. Nesse aspecto eu também considero o contributo do ACARTE muito importante.

          Nas técnicas?

          Noutras maneiras de trabalhar com o corpo. 

          Pois, o que vai de encontro a outra das minhas perguntas. Este tipo de dança, que tipos de corpo cria? Não o corpo dócil a que se referiu…

          Sim, e atlético e moldável. Com o ACARTE — agora já saindo do âmbito dos profissionais da dança — houve nesta altura (final dos anos 1980, início de 1990) bastante querela estética. Ou seja, pessoas que rejeitavam completamente o novo e pessoas que queriam rejeitar completamente o que estava para trás. Mas, em relação ao público em geral, acho que o ACARTE lhe deu oportunidade de descobrir muita coisa do que se estava a fazer no mundo: nomeadamente, a recusa de um modelo de corpo, de uma ideia de dança totalmente pré-determinada, de um trabalho com vocabulários restritos. E em que o coração do movimento quotidiano… em que o coração da voz… o trabalho com o corpo tal como ele é (naturalmente, trabalhando-o para o poder utilizar) [se torna possível, por contraponto a] uma ideia rígida de qual é o corpo possível para a dança, [que] deixou de existir.

          Qual é a relação entre a criação da Escola Superior de Dança e a reforma do Ensino Artístico levada a cabo pela Dra. Madalena Perdigão?

          Madalena Perdigão tinha estado ligada à reforma Veiga Simão, que foi feita em 1971, onde se reformou também o Conservatório. Depois houve umas tentativas de reforma do próprio Conservatório, de reconversão. O Conservatório tinha cinco escolas: a Escola de Música e a Escola de Teatro, que eram do Conservatório original, e depois foram acrescentadas a Escola de Educação pela Arte, a Escola de Cinema e a Escola de Dança.

          Que ainda não são escolas superiores?

          Não, embora o Conservatório em conjunto fosse tutelado pela Direcção-Geral do Ensino Superior. Mas o Conservatório tinha estudantes, na Dança e na Música, desde os sete anos de idade; depois no Teatro, no Cinema e na Educação pela Arte já eram estudantes com o ensino secundário completo.

          Embora na altura não fosse exigido, havia uma separação grande entre a parte académica e a artística. Fizeram-se várias experiências, a Escola de Dança teve a primeira experiência de ensino integrado que depois só viria a ser retomada mais tarde… mas depois houve várias tentativas de reestruturação, porque estas escolas todas cabiam mal naquele edifício e isso deu azo a grandes dificuldades de entendimento, porque em todos os cruzamentos que se procurara fazer, havia sempre a questão do espaço e do que era sentido por quem lá estava há mais tempo – neste caso, a Música – como uma invasão do seu território e isto tornou muito difícil o entendimento. A Madalena Perdigão esteve ligada a todas estas tentativas de reforma. Mas, na realidade, já não foi com ela, em 1983, que foram finalmente criadas por decreto, no papel, as Escolas Superiores. E que se decidiu que elas seriam escolas autónomas e que estariam no Ensino Superior Politécnico. 

          Tinha havido um projecto muito interessante, ainda sob a égide de Madalena Perdigão, que era um curso de Educação pela Arte que fornecia o apoio pedagógico para a formação de professores destas áreas todas. Acabou por não se conseguir entendimento à volta deste projecto…

          É a seguir a este projecto que a Dra. Madalena Perdigão regressa à Fundação Calouste Gulbenkian e funda o ACARTE…

          Não me lembro se houve alguma coincidência entre o estar neste Gabinete do Ensino Artístico no ministério e o ACARTE. A Madalena Perdigão esteve sempre ligada à Fundação Gulbenkian: já tinha sido a criadora do Festival Gulbenkian de Música, já tinha sido a criadora do Ballet Gulbenkian, e  fundou o ACARTE, que abriu em 1984, e depois vieram os Encontros ACARTE [em 1987]. Embora a actividade do ACARTE fosse uma actividade ao longo do ano, havia este momento no ano que eram os Encontros ACARTE, que era um festival, em Setembro, todos os anos. Houve algumas coisas muito inteligentes que a Madalena Perdigão fez: uma delas foi ela chamar a trabalhar consigo como co-directores dos Encontros ACARTE o George Brugmans, que é um holandês, na altura director do festival Springdance, e o Roberto Cimetta. Porque é que isto era muito importante? Porque existia nesta altura na Europa uma rede: tinha-se começado a constituir uma rede de profissionais, programadores e produtores, que procuravam garantir a sobrevivência destas novas formas. Até aí o que é que acontecia? Os teatros trabalhavam sobretudo com as companhias, companhias estabelecidas, com um corpo permanente de bailarinos ou actores, ou o que fosse, e este movimento novo de renovação na Europa tinha sido compreendido por estes programadores, que eram muito próximos desta geração de criadores… E, para garantir o sucesso e a sobrevivência destes artistas, destas formas [artísticas], era necessária uma circulação internacional. Eles não podiam mais existir completamente encerrados nos seus países. Então começaram a criar essa rede e eram muito atentos ao que se estava a passar em cada país. E, nesse aspecto, o George Brugmans e o Roberto Cimetta foram preciosos co-directores com a Madalena Perdigão. Era uma grande qualidade que tinha: saber fazer-se acompanhar de pessoas informadas e não fazer as coisas meramente porque achava que era assim. E depois havia este festival que era uma coisa fascinante, porque, sendo uma coisa organizada muito profissionalmente – os espectáculos começavam à hora certa, etc. –, tinha um clima… que era um clima de festa! E juntava, de facto, os públicos… Os públicos de teatro, que tinham começado a ir lá para ver o Novo Teatro, começaram a ir também para a Nova Dança e a Nova Música, e o mesmo acontecia com os outros. E estes momentos eram também momentos de cruzamento de públicos com artistas. Depois a outra coisa muito importante foi que foram organizadas uma série de conferências em que se juntavam alguns dos nomes mais importantes que escreviam,  nessa altura, sobre dança e que apoiavam – em termos teóricos – a dança e não só… já  também com portugueses que começavam a despertar para estas coisas e era muito informativo para o público. Ou seja, as bases teóricas que sustentavam este movimento estavam ao alcance dos espectadores. Por outro lado, paralelamente à programação de espectáculos, havia a organização de workshops e os artistas portugueses tinham acesso ao contacto com os artistas de outros países que, digamos assim, lideravam este movimento, e que vinham apresentar o seu trabalho em Portugal.

          Lembra-se da abertura do Centro de Arte Moderna [CAM], em 1983? Será que é relevante o facto de o ACARTE estar localizado no primeiro museu de arte moderna do país?

          A criação do CAM teve que ver com a necessidade que o José Azeredo Perdigão sentiu, a certa altura, de ter um lugar onde expor tudo aquilo que a Fundação Gulbenkian foi adquirindo já depois da morte de Calouste Gulbenkian. E, naturalmente, isto foi também muito importante porque foi um espaço de amostragem da arte contemporânea. E o facto de, junto a isto, se criar o ACARTE com um auditório, uma sala polivalente, e de começarem a ter as artes performativas ao lado da arte contemporânea, fazia todo o sentido, eram mais barreiras que tinham sido quebradas. Era importante que as pessoas não continuassem a dizer: “Eu sou espectador desta forma de espectáculo” ou “Eu não, eu gosto é de pintura ou escultura”, esse cruzamento foi realmente muito importante. Mas quando o ACARTE surgiu, a sua intenção era também pedagógica; aliás, tinha também o Centrinho para crianças [noutro pavilhão].

          Como conheceu Madalena Perdigão?

          Já não sei exactamente como a conheci. Conheci-a no âmbito do funcionamento do ACARTE. Também em relação à Escola Superior de Dança, tivemos na altura uma revista da Escola e eu lembro-me de, logo para o primeiro número, a ter entrevistado.

          É possível traçar umas linhas do que pode ser a filosofia de Madalena Perdigão para as artes, procurando esboçar uma continuidade entre o Ballet Gulbenkian, os Festivais Gulbenkian de Música e a reforma do Ensino Artístico?

          Eu acho que teve um papel fundamental, em várias alturas, em Portugal. Era uma pessoa, por um lado, muito prática – a formação dela era de Matemática –; por outro, de trato fácil. Uma pessoa com uma grande visão, com um grande sentido de serviço público – e em relação às artes. A sua linha condutora, parece-me, foi sempre que, por um lado, Portugal estivesse a par do universo que consideramos mais evoluído e, por outro lado, que isso fosse acessível ao comum das pessoas – e daí esse interesse pela pedagogia, pelo trabalho artístico com as crianças, pela Educação pela Arte, onde também foi muito importante. Era uma pessoa que queria favorecer o desenvolvimento artístico profissional, mas também tornar a criação artística acessível a toda a gente. Para mim, trabalhou sempre nestas duas áreas.

          Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte – ACARTE. Em que debates se inseriam estas palavras?

          Pois, animação era uma coisa de que já se falava bastante em Portugal, na altura, e que tinha que ver, de facto, com levar as actividades artísticas à população, falava-se muito em animação, era uma palavra que tinha entrado no nosso vocabulário a seguir ao 25 de Abril e que tinha que ver com a divulgação e a acessibilidade. E Educação pela Arte tinha que ver com a pedagogia e tinha, na altura, uma corrente de trabalho artístico com crianças e de favorecer o desenvolvimento humano através da prática artística. Criação artística, obviamente, o ACARTE, para além de acolher muitas coisas estrangeiras, também co-produzia e apoiava…

          Uma ideia de que a cultura não é apenas o acesso às obras-primas, como nos anos 1950… mas também a criação contemporânea.

          Exactamente. Que é o que está a nascer neste momento, o que está a ser criado neste momento.

          Tentando entender mais a fundo os anos 1980… Por exemplo, e penso em algum teatro, é como se o 25 de Abril “levasse as artes para a rua”, como se costuma dizer etc. Mas há uma série de outras coisas, entre elas a abertura de um museu de arte, que demoram mais de dez anos a acontecer… 

          Em primeiro lugar, a história do teatro é diferente da história da dança. O teatro já tinha uma tradição de resistência política, e já existiam os grupos independentes, que tinham sido criados na fase final do salazarismo. Depois houve ali um período em que o que começou a acontecer foi que os mais jovens, os que já tinham chegado ao teatro depois disso, sentiam-se com pouco espaço. E então houve ali alguma fricção. Depois foi ultrapassado, sobretudo porque os grupos de teatro independente, esses que existiam já antes, também a certa altura compreenderam a necessidade de se abrirem aos outros e de darem espaço aos que tinham acabado de chegar. Portanto, a história do teatro é um pouco diferente, eu julgo que aqueles mais jovens que se reviam completamente no ACARTE eram realmente esta geração, uma geração já pós-25 de Abril e que teve também ali a oportunidade de conhecer muita coisa, porque o ACARTE trouxe o teatro físico… enfim, muitas coisas que eram pouco conhecidas em Portugal.

          Para além do ACARTE, que outras coisas havia? Penso em instituições, ou mesmo em termos de consumos culturais. Ou seja, o ACARTE move massas numa altura em que ainda não há concertos de estádio… há a Festa do Avante que é também um fenómeno… há o Rock Rendez-Vous…

          Daquilo que conheço, daquilo que vivi e em que participei, no campo da dança havia a Companhia Nacional de Bailado, que nesta altura era uma companhia de repertório clássico. Havia o Ballet Gulbenkian, que tinha tido uma evolução muito interessante a partir do Milko Šparemblek – e depois essa evolução ganhou consistência com o Jorge Salavisa, que decidiu tornar o Ballet Gulbenkian uma companhia contemporânea. E havia também o estúdio coreográfico do Ballet Gulbenkian, que também tinha sido criado pelo Milko Šparemblek, e que também foi muito apoiado pelo Jorge Salavisa. Na dança estes eram os principais. E depois existiam, de facto, algumas companhias e alguns coreógrafos que trabalhavam já no universo independente, numa altura em que não havia os apoios que há hoje – que são uma coisa que a Portugal chegou tardiamente –, mas as pessoas tentavam realizar o seu trabalho. Houve a experiência do Rui Horta, ele foi talvez quem demonstrou que era possível a existência de uma dança independente. Depois, no Porto, havia o Pirmin Treku, que era o expoente no campo da dança clássica, e havia o Ballet Teatro, da Né Barros e da Isabel Barros, que era a escola, o centro contemporâneo, que também teve importância. 

          A sociedade portuguesa, está a mudar muito rapidamente nos anos 80. O aparecimento da “noite”, do rock, uma série de novos consumos… o Frágil foi-me referido frequentemente em entrevistas como o local onde se continuava a noite depois dos espectáculos.

          Em Lisboa houve esse fenómeno do Frágil. Nós íamos todas as noites e era o local onde nos encontrávamos ou onde prolongávamos o dia… tínhamos ido a um espectáculo no ACARTE e a seguir íamos ao Frágil, normalmente os artistas também vinham. Nesse aspecto, o Frágil juntou a noite lúdica com a troca cultural, depois mais um bocadinho para a frente isto espalhou-se para o Majhong, então era ali, naquela Rua da Atalaia: subia-se e descia-se, as pessoas encontravam-se nas esquinas… As pessoas nessa altura dialogavam muito, na medida em que, com os parcos apoios que existiam, não estavam completamente absorvidas no seu trabalho. E então tinham muita oportunidade de se encontrar, de falar, de trocar. E era curiosa a “noite” quando nasceu: era uma extensão da actividade cultural.

          Sim, entrevistei o Paulo Graça [um dos primeiros desenhadores de luz no país] e ele a dada altura também faz luzes para coisas no Frágil, para as Manobras do Maio…

          Claro, o ambiente era propício. Depois havia outras coisas que iam acontecendo; por exemplo, a galeria d’Os Cómicos, que acolhia também alguns espectáculos… enfim, alternativos, não eram espectáculos para palco… havia uma sede de trabalhar de maneira diferente, por um lado, mas depois havia uma vontade muito grande de afirmação de uma geração.

          Uma geração que se demarcava da anterior?

          Em parte, sim. Claro que eu, em termos de idade, sou mais velho, mas senti-me completamente identificado com esta geração. Demarcava-se na medida em que queria afirmar uma forma diferente de trabalhar. E teve algumas resistências, que mais tarde se esbateram. Há uma figura, infelizmente desaparecida, que é importante referir, que foi muito importante para muita gente das várias áreas artísticas, que era o José Ribeiro da Fonte. Foi outra personalidade com esta grande capacidade de abrangência: muito importante para essa geração. Era um homem um pouco mais velho, com peso social, chegou a ser director artístico do São Carlos e era um homem, por um lado, muito aberto ao novo, de uma cultura muito vasta e transversal, e que foi um apoio muito grande a esta geração de criadores. 

          É possível ver aqui uma escola? Que forma uma geração, até a nível teórico…

          Não sei se lhe posso chamar uma escola, mas, de alguma forma, sim. O ACARTE favoreceu os encontros. Não era por acaso que se chamavam Encontros ACARTE, porque eram realmente encontros, encontros de pessoas com funções diversas. Encontros entre artistas, entre artistas e programadores, entre artistas e teóricos, entre teóricos, e encontros de toda esta gente com o público. E o público sentia-se realmente participante. É impossível reproduzir isto, mas eu recordo-me bem daquela ligação no jardim da Gulbenkian entre o CAM, o auditório ao ar livre e depois o edifício mesmo da Gulbenkian e nós circulávamos por ali, e depois havia sempre o bar, às vezes passava cá para fora e era possível as pessoas cruzarem-se e conviverem.

          Em dois anos, entre  1986 e 1988, como se lê nos  textos dos programas escritos por Madalena Perdigão, há um crescimento rapidíssimo da dança. O que é que se passa nestes dois anos?

          O ACARTE não veio criar um universo novo, veio dar visibilidade a esse universo e permitir os encontros no âmbito desse universo. Mas isso correspondeu a um momento muito rico na Europa em relação à dança. E em Portugal isto também era assim: é uma geração cheia de capacidade inovadora, vontade de fazer coisas e qualidade artística. E foi muito encorajada por este clima que o ACARTE criou. Mas era natural que as coisas evoluíssem assim rapidissimamente, porque enquanto antes tinha acontecido haver pessoas mais ou menos isoladas com ideias que antecipavam o que viria, o que surge é uma geração. 

          E a nível estético – que tipo de corpos, espectáculos, movimentos, relação com o espaço, cenários, enfim… que corpos aparecem em cena?

          Não há um tipo de corpo. Eu usaria uma palavra para ligar a série de coisas que enumerou, e isso era uma grande preocupação: a verdade. Verdade e coerência, não fazer coisas por fazer. Os corpos eram muito diversos, mas eram sobretudo corpos verdadeiros. E depois o vocabulário que esses corpos usavam também era verdadeiro em vários sentidos, era verdadeiro porque ia buscar coisas do dia-a-dia, que não faziam parte de nenhum cânone ou de nenhum vocabulário predeterminado: eram os movimentos que os corpos podiam fazer e que faziam. E verdade no sentido em que o corpo não está a ser violentado para ir além das suas próprias capacidades. E [no sentido em que] o que vemos como virtuoso já não é o que ninguém pode fazer, mas aquilo que, com o corpo que tenho, posso fazer e transmitir aos outros e aquilo com que os outros mais facilmente se identificam, com que mais empatia sentem, virtuoso porque é verdadeiro. Por isso é que eu falo em verdade, porque acho que estava muito inscrita nas preocupações dessa geração.

          No sentido de não artifício…

          Exactamente. No sentido de não recorrer ao artifício, ou recorrer o menos possível ao artifício, de ser verdadeiro no seu próprio corpo.

          Isso é interessante até em questões como a da representação…

          Não. Representação havia, obviamente há sempre representação. E quando digo verdadeiro, não é: eu estou em cena a ser eu próprio. É: estou em cena a usar o meu corpo como ele é, e exploro ao máximo o que o meu corpo é capaz de fazer e não estou permanentemente a violentá-lo. Eventualmente não estou a ser eu próprio, mas não estou a fingir.

          No entanto, algumas dessas coisas são violentas, estou-me a lembrar do Wim Vandekeybus com as suas propostas-limite…

          Sim, claro. Mas são violentos dentro do que aqueles corpos podem…

          E não dentro do que uma linguagem exige aos corpos…

          Exactamente.

          De que modo é que isto se cruza com uma democratização do corpo, uma certa libertação dos costumes, muito recente no país…

          Tem tudo que ver, obviamente, porque aqui o que se pretende é mesmo essa democratização. Claro que não posso dizer que aquilo era acessível a toda a gente, porque nem toda a gente estava para ali virada, mas, para quem quisesse, era-lhe acessível, de facto. Não se estava a tentar que as pessoas olhassem para o que se passa em cena e ficassem fascinadas – aquilo é uma coisa que eu nunca poderei fazer –, a mensagem que se queria transmitir era uma mensagem de acessibilidade. 

          Como uma geração de jovens que se pode exprimir livremente, até livremente das questões ideológicas em sentido mais directo e explícito…

          Exactamente.

          O que não quer dizer que não partilhe de uma série de ideologias…

          É ideológica. Não se expressa é por clichés. E logo a seguir a Abril nós ainda podemos ver surgirem uma série de clichés. E aqui, de facto, o cliché é recusado…

          Tudo o resto decorre, portanto, daí: os cenários, a relação com o espectador, a relação com a palavra… O que era o Novo Teatro-Dança da Europa, que dá o subtítulo aos Encontros ACARTE?

          O Novo Teatro-Dança da Europa veio trazer sobretudo as coisas da Dança-Teatro alemã, porque, no meio disto tudo, também é uma corrente importante. Naturalmente que a dança alemã tinha as suas características próprias porque tinha uma herança do movimento expressionista e é curioso que a Pina Bausch só chega a Portugal em 1986 ou 87… Mas o ACARTE já existia desde 84. Porque uma coisa é a Dança e Teatro, outra coisa é a Dança-Teatro, não me estou a recordar se houve algum ciclo dedicado mesmo à Dança-Teatro…

          Usei a expressão porque os Encontros ACARTE têm este subtítulo…

          Sim, claro. Mas é Novo Teatro, Nova Dança, não está necessariamente a focar uma coisa a que se chamou Teatro-Dança, ou Dança-Teatro.

          De que modo é que esta iniciativa se pode relacionar com a entrada de Portugal para a CEE?

          Eu não acho que se possa relacionar directamente, mas havia um grande desejo por parte dos portugueses que tinham sido muito arredados da Europa ao longo de quatro, quase cinco, décadas, e tinham um grande desejo de regressar à Europa, e de partilha com os outros europeus. Há, de facto, nesta geração um grande desejo da Europa…

          Até no país…

          Claro. E, portanto, é natural que isso se reflectisse, mas não vejo uma relação directa, vejo é o contexto, que nos iria conduzir logicamente à integração na então CEE.

          Quem é Roberto Cimetta? O que é o IETM?

          O Roberto Cimetta é um italiano, infelizmente desaparecido muito jovem, que fundou o Inteatro em Polverigi, que foi um dos iniciadores deste movimento europeu. Foi também um dos iniciadores do IETM, que é Informal European Theatre Meeting, uma espécie de associação criada para favorecer o conhecimento, a troca e, de uma maneira informal, pôr  os produtores, sobretudo nessa altura os programadores, e ajudar a criar um circuito europeu.

          Nesta altura quase não há programadores em Portugal…

          Não, no início não está lá ninguém, muito embora como está lá o Roberto Cimetta, que é quem acolhe essa primeira reunião, e o George Brugmans, que são co-directores do ACARTE… eu não sei se nalgum destes encontros não terá estado também o António Augusto Barros. Porque esqueci-me de falar de uma outra realidade que existiu nessa altura que era a Bienal Universitária de Coimbra, que foi também um factor de internacionalização, que era um festival que acolhia autores sobretudo do teatro, mas também foi o primeiro, antes da existência do ACARTE, a acolher a Nova Dança Portuguesa. 

          Eu participei no IETM a partir de 1991, foi anterior à Europália, quando houve o encontro do IETM em Lisboa, no ACARTE, em que eu fui convidado para o Comité Executivo…

          Mas já tinha ido antes ao IETM?

          Não, eu já tinha tido encontros com algumas pessoas, encontros muito promovidos pelo George Brugmans, o Roberto Cimetta infelizmente já não era vivo, com outros membros do IETM e depois a partir de 1990 tivemos uma participação alargada de vários portugueses e ainda hoje… 

          O que é este IETM inicial? De que instituições estamos a falar?

          Do Springdance, do Inteatro, do Kaitheatre, da Onda, mais uma série deles… Em Espanha, provavelmente, o Teatro Central de Sevilha, o Feliz Meritis. Em Amesterdão, uma outra organização, que era a Mickery…

          O que é o Movimento da Nova Dança Europeia?

          É um movimento que recusa uma dança dominada por cânones e por vocabulários predeterminados e, portanto, de alguma forma, faz a ponte com a dança pós-moderna norte-americana e com um corpo liberto de ideias feitas sobre o que é a dança e o que não é a dança e promove, portanto, o encontro entre a dança e o quotidiano.

          E de que modo é que se pode dizer que isto é um movimento de pensamento? Uma forma contemporânea de produzir conhecimento sobre o mundo?

          Eu acho que é porque aqui o pensamento é muito importante e este corpo transmite pensamento também. E também um entendimento do mundo.

          Ainda sobre a dança europeia: de que modo é que a Nova Dança Europeia ou mesmo a criação do IETM se podem inserir em, ou se cruzam com, uma recém-formada Europa da cultura? É que, se formos a ver, a União Europeia estava a alargar-se, a própria União Europeia deixa de ser só económica, como nos anos 1950…

          Hesito em atribuir essa responsabilidade ou dar esse crédito a esta fabricação da CEE. Eu acho que a Europa da cultura já existia antes, e que a cultura foi sempre transfronteiriça. E o que acontece aqui é que, mercê do derrube das fronteiras, que foram derrubadas para permitir a circulação dos bens económicos, dos produtos e facilitar o comércio… naturalmente a cultura aproveitou isso e, de alguma forma, as actividades culturais também beneficiaram com isso, mas estas ideias que alguns homens políticos – honra lhes seja feita – defenderam para favorecer uma Europa de paz, de entendimentos e de convivências pacíficas… mas isso já existia, nomeadamente nas actividades culturais e nos homens de cultura, eles eram era homens políticos que tinham a possibilidade de dar forma jurídica a estas coisas…

          E mesmo certas coisas que aparecem: co-produções, certos modos de organização do trabalho…

          Claro, isso tem depois que ver com uma evolução efectivamente do mundo económico europeu e de uma Europa sem fronteiras rígidas entre países, onde se circulava livremente, onde se trocava livremente, onde se podia mais facilmente estabelecer esse tipo de contrato, co-produção, e fazer coisas em conjunto.

          Qual é a importância directa do ACARTE na programação de outras instituições?

          Eu julgo que, eventualmente, o exemplo do ACARTE terá estimulado outros programadores, é preciso dizer que até há não muito tempo havia muito poucos programadores de dança em Portugal. A figura do programador teve uma grande importância a certa altura, e quando se fala das origens do IETM e desses programadores europeus é preciso reconhecer-lhes uma grande importância. Hoje é claro que o programador também é importante, mas também se criou uma mística do programador, como se fosse um artista, o que contesto, não acho que o programador seja um artista, acho que o artista é o artista e o programador serve a relação entre o artista e o público. Mas durante muito tempo tivemos que batalhar para que se compreendesse que não chega ter um teatro ou um centro, mas é preciso ter lá alguém que o faça funcionar e não é só a equipa técnica, também há alguém que é o programador e que não pode ser lá o vereador da cultura da Câmara. É preciso alguém que esteja no terreno, que tenha contactos, que vá ver coisas; que conheça e que estabeleça as relações. Quando apareceu o ACARTE, ainda não havia assim tantos programadores.

          Que programadores existiam?

          Para dizer a verdade, até nem me lembro de nenhum. Naquela altura, que eu conhecesse, o António Augusto de Barros e a equipa dele, da Bienal Universitária de Coimbra. Há-de haver outros…

          António Pinto Ribeiro diz que Madalena Perdigão é provavelmente uma das primeiras programadoras portuguesas.

          Tenho medo de ser injusto ao não indicar nomes, se calhar havia pessoas no Porto a fazer esse trabalho que eu não conhecia. Aqueles que eu conheço, porque na minha actividade tive directamente que ver com eles, realmente o António Augusto de Barros, sem dúvida alguma; a Madalena Perdigão, claro; o António Pinto Ribeiro, que veio logo a seguir; eu próprio comecei a ser programador na Europália, e depois no CCB em 1993…

          De que modo é que a experiência do ACARTE o influencia como programador?

          A experiência do ACARTE a mim influenciou-me muito porque me fez descobrir a geração na dança com a qual eu me identificava, uma geração vinte anos mais nova do que eu. Depois o que me influenciou mais em relação à minha actividade no CCB foi a actividade que eu desenvolvi enquanto um dos fundadores do Forum Dança e a actividade que desenvolvi no IETM, o cruzamento destas duas coisas.

          Uma nova escrita, por último. A Nova Dança fez-se acompanhar pela emergência de novos críticos. Em que difere esta escrita da anterior? Quais os seus media?

          Quando [esta nova escrita] surge, surge paralelamente a esta geração de que eu te falei – e a primeira pessoa que aí teve um papel muito importante foi o António Pinto Ribeiro. O que acontecia anteriormente? Os críticos já existiam, estavam muito atentos às coisas mais institucionais, e não se atreviam sequer a dar espaço a isto que estava a surgir. O António Pinto Ribeiro, pelo contrário, fez destes novos criadores o centro.

          Escrevendo no Expresso?

          No Expresso. Paralelamente, surge o André Lepecki, que começa por escrever no Blitz, mais tarde é o Ezequiel Santos que escreve no Blitz… e depois vão surgindo… surge a Maria José Fazenda, que escreve no Público, a Cristina Peres, que escrevia no Se7e primeiro e depois no Expresso

          E para finalizar: de que modo pode a memória do ACARTE ser importante?

          É importante porque é importante não perdermos a memória das coisas… Para vivermos bem o presente e projectarmos bem o futuro é importante não esquecermos o que se passou. E em relação àquilo que se chamou a Nova Dança Portuguesa, que hoje se chama Dança Contemporânea Portuguesa, ela tem uma história, e não deve ignorar a sua história. E também o próprio mundo das artes performativas, a sua apresentação em Portugal, tem uma história e o ACARTE é importante nessa história. Nós não podemos esquecer a história e é verdade que nos últimos anos não se tem falado muito no ACARTE, mas eu julgo que, para muitas pessoas, e não sou apenas eu e mais meia dúzia, essa história está muito presente. E a gratidão que nós sentimos por esse momento ímpar…

          Quase um momento fundador, um mito de origem?

          Pois, é um início de uma forma organizada de mostrar e partilhar. Não digo que seja o início de outras coisas, porque havia já coisas que tinham vindo a emergir, mas é de facto um início, em Lisboa, de uma forma de mostrar e partilhar. Eu tenho muito medo de dizer “olha, ali é que é o início” porque realmente já existia a BUC e teve um papel importantíssimo…

          Entrevista realizada na Escola Superior de Dança, sita na Rua de O Século, em Lisboa, a 25 de julho de 2011, transcrita por Pedro Cerejo, editada por Ana Bigotte Vieira e João dos Santos Martins.

          Gil Mendo Vinte anos depois: Algumas considerações pessoais

          Atento observador do desenvolvimento do tecido profissional e da programação de dança na cidade do Porto, Gil Mendo integrou o júri do projeto “Interfaces”, onde o NEC produzia trabalhos de colaboração entre jovens criadores independentes. Neste texto, que integra a publicação Ensaio Aberto- Núcleo de Experimentação Coreográfica: Abordagens à Produção Artística, lançada em 2005 aquando da comemoração dos 12 anos do NEC, Gil Mendo descreve uma das suas características éticas enquanto agente das artes, nomeadamente, a não hierarquização entre espaços de apresentação, obras, artistas e carreiras.

          Passadas quase duas décadas sobre o movimento de ruptura aglutinador que se convencionou chamar da Nova Dança Portuguesa (NDP), muita coisa mudou em Portugal. Aquilo que na altura era um movimento herege conduzido por um grupo de criadores jovens que o establishment da dança olhava com desconfiança, veio a ser progressivamente aceite à medida em que o mais vasto movimento de renovação europeu e internacional, no qual a NDP se inseria, se estendeu a Portugal e foi, como era inevitável, pacificamente incorporado.

          Como é natural, e como sempre aconteceu com todos os movimentos de renovação e todas as revoluções, o seu triunfo e a sua generalizada aceitação trazem também consigo a sua banalização. Mas neste caso, porque se tratava de um movimento antidogmático, que precisamente se rebelava contra a imposição de conceitos, formas, processos e vocabulários rígidos, a sua banalização corresponde sobretudo a uma generalizada aceitação da diversidade.

          Não se trata apenas da diversidade de géneros ou de correntes artísticas, daquela diversidade que nos separa claramente embora nos não incompatibilize irredutivelmente e veja-se como foi generalizada no meio da dança a reacção negativa e a sensação de perda, de risco e de empobrecimento provocada pela súbita extinção do Ballet Gulbenkian. Não, a diversidade que é verdadeiramente significativa, aquela que é uma directa consequência do movimento renovador dos anos oitenta do século vinte, é a diversidade que existe no seio duma mesma corrente artística e que nos convida a olhar para cada objecto artístico como se fosse totalmente novo, mesmo se pertencente a uma corrente ou resultante de uma postura artística que julgamos nossas conhecidas.

          Um dos aspectos, da história da dança portuguesa recente, que me parece mais singular é a enorme resistência dos principais protagonistas do movimento da NDP a deixarem-se aprisionar numa fórmula ou encobrir num rótulo, a despeito do sucesso artístico e da aceitação que entretanto alcançaram. Essa postura, de permanente busca e questionamento, faz com que ainda hoje estejam na vanguarda e com que a influência maior que projectam sobre as gerações seguintes seja a de uma ética de verdade e não a de um legado de fórmulas e de processos.

          Pergunto-me por vezes se seria hoje possível um movimento de ruptura, ou que forma poderia assumir um movimento de ruptura neste ambiente de aparente abertura a todas as formas e a todas as pesquisas, embora ainda parco em infra-estruturas para as acolher.

          A minha maior angústia nestes últimos tempos, no entanto, tem sido a de não conseguir acompanhar tudo o que se passa à minha volta. Rara é a semana em que não perco a oportunidade de conhecer um projecto ou o trabalho de um autor que ainda não conheço ou que conheço mal. Pessoalmente, procuro olhar para um projecto ou uma obra com o mínimo possível de preconceitos. Não hierarquizo os autores segundo as idades, isto é, não espero que um projecto seja mais ou menos consistente, ou mais ou menos inovador, consoante a idade e a experiência do autor. Não hierarquizo as obras segundo a dimensão, isto é, não penso que um solo tenha menos peso numa carreira artística do que uma peça de grupo, nem que uma obra muito curta tenha menos peso artístico do que uma obra muito longa.

          Não hierarquizo os lugares: não considero um grande auditório mais do que uma sala estúdio, nem um espaço formal mais do que um espaço informal, em termos artísticos. Tampouco menosprezo as carreiras criativas efémeras: o processo coreográfico contemporâneo induz ao envolvimento criativo dos intérpretes e estimula o desenvolvimento da autoria, e é bem possível que uma experiência de criação que não tenha continuidade numa carreira de coreógrafo tenha um valor e uma importância artística relevante. Assim como não menosprezo o trabalho artístico desenvolvido em meios escolares ou comunitários, à margem do circuito artístico profissional: não apenas por ele ser fundamental para o desenvolvimento artístico e cultural, mas porque no seu seio podem dar-se acontecimentos artísticos que são notáveis precisamente em termos artísticos, independentemente da sua repercussão pública.

          O que é importante é que todas estas hipóteses correspondam realmente a escolhas e não a recursos. Ora eu penso que nós talvez ainda não tenhamos adaptado totalmente o nosso olhar analítico e crítico à dança como ela é hoje (e aqui estou a falar da dança criada por uma geração que não viveu a ruptura da Nova Dança, que cresceu artisticamente já no ambiente de presumível abertura, transdisciplinaridade e informalidade que essa ruptura fomentou), nem adaptado totalmente a rede de infra-estruturas às necessidades para a produzir e difundir. Nisto eu vejo de facto um grão de crise. Mas não é uma crise apenas portuguesa. Nem é crise de maior. É-o em grau suficiente para ir forjando soluções e alternativas que se afiguram marginais, mas que são porventura, em termos de futuro, aquelas onde germinam as coisas mais relevantes. É importante estar-lhes atento. Acredito que, mesmo num clima de abertura e abrangência como aquele em que, felizmente, temos vivido, há sempre um establishment e há sempre margens. E acho importante estar atento às margens, sem nelas procurar interferir, para não ficar prisioneiro de visões estreitas, julgando-as largas, ou duma consciência pobre da realidade que me cerca, julgando-me homem do mundo.

          Gil Mendo Introdução da Coreologia como disciplina em Portugal 

          Ao longo de quarenta anos, Gil Mendo foi professor de coreologia, nomeadamente do sistema Benesh, inventado pela bailarina Joan Benesh e pelo matemático Rudolf Benesh na década de 1940. Para além do registo rigoroso do movimento, Mendo realça, numa época em que o vídeo impera, o contributo da coreologia para a composição de movimento.

          Introdução da Coreologia como disciplina em Portugal 

          A Coreologia como disciplina foi introduzida no Curso de Dança do Conservatório Nacional, na sequência da Reforma do Conservatório de 1973, por Maria Bessa. Eu próprio tornei-me professor de Coreologia da Escola de Dança do Conservatório Nacional no ano lectivo de 1975/1976, após conclusão do curso do Benesh Institute of Choreology, e mais tarde ensinei notação Benesh na Escola Superior de Dança, até à minha aposentação. Nos meus primeiros anos de ensino deste sistema de notação, com Maria Bessa, contribuímos para a graduação de alguns estudantes, e alguns professores, em Portugal, em colaboração com o Benesh Institute, o Conservatório Nacional e a Academia de Dança Contemporânea de Setúbal. O ensino da Benesh Movement Notation mantém-se hoje, penso, com carácter regular, apenas na Academia de Dança Contemporânea de Setúbal. Mas outras instituições (nomeadamente a ESD) mantêm o ensino da Labanotation (pelo menos em ligação com a análise de movimento baseada na teoria Laban). Hoje podemos, penso, considerar a Coreologia uma disciplina mais ampla do que o estudo de um dos sistemas universais de notação de movimento, até porque se continua a pesquisar no campo da preservação das obras e matérias dos processos coreográficos, com os muitos meios tecnológicos hoje disponíveis. Mas continuo a pensar que o estudo de uma notação (uma escrita) é um contributo importante para a criação de hábitos de organização, visualização, concepção e memorização do movimento. 

          Texto escrito em 2017 para o projeto “Para uma Timeline a Haver — Genealogias da Dança como Prática Artística em Portugal”. 

          Gil Mendo A sua última apresentação pública

          Dos inúmeros eventos e momentos que marcaram a sua vida, houve um que Gil Mendo tinha especial prazer em relatar, tanto em conversas informais como em apresentações públicas dedicadas à história da dança: a vinda de Maurice Béjart a Lisboa em 1968, em plena ditadura fascista em Portugal. Neste texto de 2017, Gil Mendo recorda a fatídica noite da apresentação de Romeu e Julieta no Coliseu dos Recreios, retratando-a como um episódio de resistência política, uma indelével fratura no regime censório que oprimia os desejos dissidentes (artísticos e outros) da sua geração – e toda a vida do país.

          Em 1968, no âmbito do Festival Gulbenkian de Música, os Ballets du XX Siècle, dirigidos pelo Maurice Béjart, apresentaram, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o seu Romeu e Julieta. O bailado era um libelo contra a tirania e continha, a certa altura, uma gravação fictícia de notícias radiofónicas, nas várias línguas dos intérpretes, e que incluía um excerto em português, que mencionava uma revolta de estudantes em Coimbra e a brutalidade da repressão.

          O Coliseu estava à cunha e no final do espectáculo houve uma enorme apoteose. Aconteceu que, nesse mesmo dia, o Robert Kennedy (irmão do Presidente John Kennnedy e candidato à Presidência dos EUA) tinha sido assassinado. O Maurice Béjart veio ao palco, disse “Mesdames et Messieurs, Robert Kennedy est mort victime du fascisme et de la violence” (senhoras e senhores, o Robert Kennedy morreu vítima do fascismo e da violência) e pediu um minuto de silêncio, após o que disse “Les jeunes, battez-vous contre toute forme de dictature” (jovens, combatam todas as formas de ditadura). Foi um pandemónio, e um numeroso grupo de estudantes que estava nas galerias cantou A Internacional.

          No dia seguinte, de manhã, a PIDE foi ao Hotel Borges, no Chiado, para prender o Maurice Béjart. Algumas bailarinas rodearam-no e ele conseguiu aceder ao telefone da recepção e telefonar ao Embaixador de França (o Béjart era de nacionalidade francesa). O Béjart acabou por sair do hotel acompanhado do Embaixador e da polícia (veio depois a saber-se que o tinham conduzido à fronteira e aí deixado). A polícia política apagou também a parte da gravação em português. O Embaixador da Bélgica (a companhia era belga), mandou cancelar o segundo espectáculo e pediu que toda a companhia abandonasse o Coliseu antes da chegada do público.

          O Maurice Béjart só voltou a Portugal cerca de duas décadas depois para ser condecorado pelo Presidente Jorge Sampaio, numa cerimónia no Palácio de Belém em que lhe pediu publicamente desculpa pelo sucedido. (Uma curiosidade: por esses dias, salvo erro mesmo o dia que deveria ter sido o da segunda representação do Romeu e Julieta, era também a primeira apresentação, no Teatro Nacional de São Carlos, da Giselle dançada pela Margot Fonteyn e pelo Rudolf Nureyev. Correu o boato, mas não sei se é verdade, que o Rudolf Nureyev queria vir à boca de cena, perante o então presidente Américo Tomás, declarar que não dançava por solidariedade com o Maurice Béjart, e que terá sido a Margot Fonteyn a conseguir demovê-lo.) Em qualquer caso, este incidente terá porventura ditado o fim do Festival Gulbenkian de Música, que foi uma das muitas iniciativas de Madalena Perdigão que permitiram ao público português o contacto com figuras cimeiras das artes (como o Igor Stravinsky, entre muitos outros).

          Texto escrito para o projeto “Para uma Timeline a Haver — Genealogias da Dança como Prática Artística em Portugal”, no âmbito do qual Gil Mendo fez a sua última apresentação pública, na Fundação de Serralves.

          Gil Mendo O que queremos levar connosco?

          No final dos anos 1990, afirmavam-se e proliferavam novos festivais onde dança, performance art e outras linguagens se cruzavam e se fundiam – sendo o festival Mergulho no Futuro um dos seus emblemáticos exemplos. Na publicação do seu programa, em 1998, Gil Mendo fazia o ponto de situação desse movimento de desfronteirização e mobilidade das disciplinas artísticas, ao mesmo tempo celebrando a possibilidade de novas hibridizações, novos desejos artísticos. Nessa antecipação de devires ainda por imaginar, Gil Mendo perguntava à comunidade: “O que queremos levar connosco?” Um quarto de século depois, no âmago das nossas imaginações coletivas sobre o futuro da arte e do mundo, continuamos a perguntar-nos o mesmo como exercício ético de cidadania – e assim deveremos continuar a fazer.

          De todas as transformações a que temos assistido, no campo das artes performativas, nas duas últimas décadas deste século, aquelas que terão mais duradouras repercussões no futuro serão porventura as que derivam do esbatimento de fronteiras entre disciplinas artísticas e da consequente mobilidade dos criadores no seu interior.

          Mobilidade, eliminação de barreiras, foram causas emblemáticas do movimento da “Nova Dança” e do “Novo Teatro”, que tão fortemente marcaram a década de oitenta. Sublevação tácita de uma geração de autores contra fórmulas predeterminadas e imobilistas que, do seu ponto de vista, reduziam a actividade performativa a um repisar de artifícios inadequados às novas realidades sociais e culturais, este movimento não pretendeu instaurar novas fórmulas em substituição das que recusava. Pelo contrário, opôs-se ao purismo a favor da contaminação, de uma maior aproximação à vida, ao quotidiano das pessoas. Ao quotidiano passaram os autores a ir buscar a sua principal matéria de trabalho, não para operarem uma transposição pura e simples da vida para a cena mas para criarem em cena algo que poderia ser transposto para a vida. Cada novo projecto passou a desenvolver-se num processo de pesquisa envolvendo autores e intérpretes, a linguagem passou a ser definida por esse processo em vez de o predeterminar.

          Passou assim a praticar-se uma permanente reaprendizagem de linguagens, a fronteira entre autor e intérprete esbateu-se, passando este a desempenhar um papel tão fundamental como o daquele no processo de criação, e uns e outros passaram a sentir a necessidade de aprofundar conhecimentos e desenvolver perícias além das fronteiras estritas de uma determinada disciplina a que estivessem à partida ligados.

          O que de fundamental resultou daqui não foi, por isso, o regresso a um “teatro total” em que todas as disciplinas coexistiram paralelamente, mas a explosão de múltiplas formas em que elementos tradicionalmente atribuídos a diferentes disciplinas são manipulados pelo mesmo autor e, o que é talvez mais consequente, pelos mesmos intérpretes, sem que para isso tenham que desaparecer as diversas disciplinas, enquanto repositório de saberes e perícias que não têm cessado de se aperfeiçoar e desenvolver.

          A geração que irá marcar o início do novo milénio é a geração dos discípulos deste movimento, uma geração não marcada pela ruptura estética dos anos oitenta, para quem a multiplicidade de vias abertas para as artes performativas ao longo da década de noventa constitui um campo a explorar bem mais excitante e lúdico do que quaisquer querelas ou antagonismos.

          A década de noventa não tem sido uma década de rupturas neste campo, mas não deixa por isso de ser uma década de fortes personalidades criativas e inovadoras. Não estando circunscritos a movimentos redutores, os autores do nosso tempo podem, a cada momento, seleccionar influências e fontes de inspiração para o seu trabalho. O que é importante nesta década não é o que se pôs de lado, ou abandonou, mas o que se ganhou, o que se acrescentou. Aliás, como toda a gente, também os autores neste fazem um balanço, questionam e reinterpretam, à luz dos conhecimentos actuais, figuras e momentos emblemáticos do século XX, especulam sobre a memória, interrogam-se, interrogam-nos, sobre o que de essencial levamos daqui para o próximo milénio.

          A forma vertiginosa, ainda que subtil, como os desenvolvimentos tecnológicos deste fim de século invadiram o nosso viver quotidiano e transformaram o convívio social não poderia deixar de reflectir-se, de mais de uma maneira, na evolução das artes performativas. A apropriação artística de novas tecnologias, com tudo o que deixa antever de renovação de formas e dispositivos cénicos e de novas relações possíveis entre obra e espectador, não será talvez a mais significativa. Mais significativo poderá ser o que trarão de novo as gerações para quem o convívio com um quotidiano altamente mediatizado e globalizado, em que o real e o virtual coexistem, é já um convívio natural e isento de perplexidade.

          Mas a generalizada mediatização, a transferência do espectáculo e da espectacularidade para outras esferas que não são a da arte e da criação artística, determinou também uma redefinição do campo artístico e, nomeadamente, do espaço em que as artes performativas actuam e da forma como procuram interagir com a sociedade. Tornou-se mais íntima e emocional a relação entre performer e espectador, duma intimidade e emocionalidade que só o confronto ao vivo permite e que é dificilmente apropriável pelas indústrias do entretenimento. O processo de criação, a pesquisa, o trabalho em progresso, a obra em aberto, ganham terreno sobre o produto artístico e a obra acabada. A relação com o espectador é mais provocadora do que apaziguadora, não pela intenção de agredir mas pela insistência em levantar questões, em despertar, em provocar no espectador a identificação e a emoção, sem lhe oferecer respostas redentoras. A cumplicidade que procura estabelecer-se com este espectador não se baseia no domínio comum de linguagens codificadas, mas numa comum vontade de preservar a experiência individual, a diferença individual, a memória individual. E talvez isto, este instinto não reaccionário de preservação, seja o que de mais fundamental as artes performativas transportem para o novo milénio.

      • 8

          João dos Santos Martins Clara Amaral Editorial

          Na última página da edição anterior do Coreia o futuro era deixado em aberto. A primeira página deste Coreia mantém o futuro em construção sabendo, à partida, que haverá mais quatro edições e que assim se inicia uma nova série. Esta é uma edição especial que se desdobra em duas. Por um lado, o Coreia prossegue a sua linha editorial com um novo design de Isabel Lucena, e introduz uma coeditora, Clara Amaral. Por outro lado, publicamos um caderno exclusivamente dedicado a Gil Mendo, figura ímpar no panorama da dança contemporânea em Portugal que nos deixou em 2022. O suplemento, publicado no contexto da “Maratona para o Gil” a realizar na Culturgest em março de 2023, é editado lado a lado com Maria José Fazenda, Joclécio Azevedo e Pedro Pinto, com design de Nuno Beijinho.

          Num dos seus editoriais para a Revista do Forum Dança, em 1992, Gil Mendo refletia sobre o papel das artes performativas na “manutenção (ou deveríamos dizer recuperação?) da comunicação e da troca nas sociedades”. Quando começámos a construir o futuro desta edição do Coreia, falámos sobre os nossos desejos, os escritos que nos movem e comovem, as pessoas com quem estamos numa proximidade distante. Assim se vivem alguns afetos. À distância. Sem que essa seja menos valiosa que a proximidade, ou como nos escreve setareh fatehi desde Teerão: “Em caso de (eu) estar presente, de qualquer forma possível,/Tudo o que estiver perto dessa presença é real.”

          E a realidade, que vertiginosa tem sido, passou um ano desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, que espoletou uma trepidante tendência bélica na Europa e virou a página Covid. Se em Portugal se luta pelos acesso justo a bens essenciais e por preços dignos na habitação, no Irão a luta das mulheres por uma emancipação política intensifica-se, no Brasil celebra-se euforicamente o fim da era do genocídio e ecocídio bolsonarista. A convivência do tempo comum na esfera da digitalização ao lado da disparidade geográfica, política e social cria uma sensação nauseabunda de ansiedade. Desde esse lugar de tormento, abrimos o jornal com uma proposta epistolar de Tiago Amate, que nos escreve “hoje com um quê de desespero”.

          Na sua conferência no Teatro do Bairro Alto, Franco Bifo Berardi discutia com a ativista ambiental Ideal Maia que a forma de ação política que lhe parece estar ativa hoje passa não pela participação, mas pela renúncia: a renúncia ao trabalho, a renúncia à produtividade, a renúncia à vida tal como ela é. A renúncia já antes expressada por Bartleby, o escrivão, é reafirmada por Rogério Nuno Costa, que escreve nesta edição que “o mundo que temos é uma valente merda. Se calhar é o pior dos possíveis. Ou um dos impossíveis”. O que fazer perante uma vida que não faz sentido e no qual as forças de mudança política clássicas parecem exauridas? “Onde foram parar nossas alternativas? Por acaso ainda existem?”, escreve Amate.

          Alternativas existem, se dúvidas houvesse, dissiparam-se no momento em que Leyla Brasil ocupou a peça Tudo sobre a Minha Mãe de Daniel Gorjão, no Teatro Municipal São Luiz com um protesto para dizer que as pessoas trans continuam a trabalhar precariamente nas ruas por não terem lugar noutras esferas da sociedade. As instituições culturais tentam abrir-se para não serem canceladas, mas a tentativa muitas vezes não está enraizada em mudanças estruturais que realmente baguncem as lógicas e práticas hegemónicas do pensamento.

           

          A disputa dos corpos, da representatividade em oposição à inclusão, da oportunidade em oposição à tendência, está na ordem do dia. Cada vez mais é inevitável pensar políticas de representatividade, por se observarem na sociedade discriminações obtusas, que frequentemente têm as suas raízes profundas na linguagem. 

          O artista Joseph Grigely comentava isso mesmo a propósito de uma notícia do New York Times de junho de 2021: “Revistas de Medicina cegas relativamente ao racismo como crise de saúde, dizem os críticos.” Na sua página de Instagram, Grigely criticava o “uso da cegueira como uma metáfora pejorativa”. E continuava: “Mas está claro que a intenção do uso da frase é conotar uma falta de consideração, ou pensamento racional. (…) Na verdade não sabes o que é um insulto até te aperceberes de que o corpo que tens e o corpo que te tem a ti é usado como uma metáfora descritiva de ignorância no maior jornal dos EUA.”

          Diana Niepce descreve a primeira vez em que entrou autonomamente na Culturgest por uma entrada acessível a cadeira de rodas para assistir ao espetáculo Ôss, de Marlene Monteiro Freitas com o Dançando com a Diferença, um grupo profissionalizante que reúne pessoas com e sem deficiência. A sua experiência crítica questiona espaços de agenciamento e leva-nos a perguntar qual será a diferença entre apresentação e representação na dança. 

          Pensando (e atuando) sobre acessibilidade, Ana Rita Teodoro traz-nos a transcrição de uma conferência de Valérie Castan, audiodescritora especializada na tradução e interpretação de espetáculos de dança, para pensar nas especificidades da experiência cinestésica a par da experiência visual. 

          Dando atenção à escuta, o músico João Polido debruça-se sobre questões de tradição, identidade nacional, memória e a criação de mundos via práticas culturais, a partir das experiências de som. Estelle Nabeyrat, curadora e escritora francesa, descreve a sua relação com o trabalho de som do artista visual Pedro Barateiro a partir de uma vivência coletiva num concerto de Dean Blunt onde a experiência estética se confundiu em estranheza: um apelo. Nabeyrat lembra-nos que ser espectador/a é, também, ser assombrade de relações inesperadas entre artistas. 

          O coreógrafo Davi Pontes alinha-se teoricamente com o pensamento quântico da filósofa Denise Ferreira da Silva e propõe Racial ↔ Não-local com o intuito de “bagunçar a lógica do linear”. O seu exercício de pensamento assume um “recordar ético que dispensa as forças mórbidas da melancólica coreografia moderna e propõe possibilidades na beira do abismo temporal”. Em semelhante exercício de questionamento  do tempo na coreografia, Miryam Gourfink fala, numa entrevista ao jornalista Wilson Le Personnic, sobre a sua investigação a partir do movimento ínfimo, intra, mínimo do corpo. São movimentos que não são percetíveis ao olho humano e que obrigam a uma reorganização do espaço que ocupa a visão como modo de perceção ainda dominante na dança. 

          A coreógrafa e escritora Chloe Chignell dá corpo (e mão) a Baladas em jargão VII — Um auto-retrato, parte do projeto Ballades infidèles, iniciado por François Villon, um poeta francês do século XV, e desenvolvido pelo artista Simon Asencio. Na contribuição de Chignell, habitamos o corpo de uma balada que viajou da língua francesa para o inglês e daí para o português. Pensa-se o ato de ler desde o corpo de quem normalmente é lida, neste caso, a balada, que também confidencia: “O desejo de cada poema é manter-se ao mesmo tempo dizível e desconhecido.”

          Mantendo-nos no desconhecido e nas suas possíveis aparições fantasmagóricas, Anh Vo, artista vietnamita residente em Nova Iorque, escreve a partir da sua peça BABYLIFT e como esta leva a comungar “com a multidão de anónimos morta no decorrer da guerra do Vietname”. A dança e a sua relação íntima com o desaparecimento — que terá, segundo Vo, de ser desligada da efemeridade — é o que “permite” a comunhão com fantasmas “sem ter de os tornar visíveis”.

          Publicamos pela primeira vez, em tradução portuguesa, escritos do artista norte-americano Pope.L acompanhados por uma série de imagens do seu trabalho de performance nas ruas de Nova Iorque dos anos 1970 e 1990. Trazendo o corpo em proximidade com o chão, o seu trabalho insiste na literalidade do gesto performativo, questionando estruturas hierárquicas do espaço social, racialidade e poder. No chão, mas num gesto de sensualidade somática, encontramos também a bailarina e professora Inês Zinho Pinheiro, que propõe “que sejamos chão em conjunto, ‘cher’ em conjunto”.

          Num momento em que várias estruturas artísticas ficaram literalmente sem chão por verem os seus apoios da DGArtes descontinuados numa nova roda-viva de empobrecimento, isto obriga-nos a pensar como ser chão em conjunto e a imaginar outros modos de sobrevivência. 

          Talvez regressando a “um corpo que dança”, como sugere Silvia Federici no seu artigo de 2016 que republicamos. A filósofa italiana reflete que olhar para o corpo como uma “produção social (discursiva) ocultou o facto de que o nosso corpo é um recetáculo de faculdades, capacidades e resistências”. Com esta crítica, Federici não sugere recuperar a ideia de um corpo natural, mas reivindica um corpo que ultrapassa a periferia da pele “numa continuidade mágica com os demais organismos vivos que povoam a terra: os corpos humanos e não-humanos, as árvores, os rios, o mar, as estrelas”. De acordo com Federici, devemos reapropriar o nosso corpo, não só individualmente como coletivamente. 

          Assim se termina esta edição do Coreia #8, o movimento que continuarão a ver.

          Os próximos Coreias continuam abertos a novas contribuições. Abrimos também a possibilidade de assinatura do jornal e de doações através do site coreia.pt. 

          Tiago Amate Uma carta que dança ao Sul

          Lisboa, 11 de janeiro de 2023

          Queridos amigos,1
          Escrevo hoje com um quê de desespero. Nada demais, nada que impossibilite o correr da vida segundo uma lógica de mais-valia que não nos deixa parar; lógica que expropria nossa força de trabalho, nosso tempo e, ultimamente, até nosso sono para agregar valor às mercadorias e aos abismos sociais num mundo de extensas crises humanitárias. Não me sinto angustiado à toa, mas, sem explicar ao certo, percebo que seguimos rodeados de pessoas mentalmente saturadas e adoecidas. É compreensível a exaustão em tempos de sociedade do desempenho, como anunciou há mais de dez anos Byung-Chul Han: “A sociedade do desempenho é uma sociedade de autoexploração. O sujeito do desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente”2. No entanto, insisto em perguntar para onde foram as experiências de solidariedade, de autocuidado e, sobretudo, de dissidência em contraposição aos sistemas hierárquicos impostos biopoliticamente segundo o controle da vida social no ocidente. Onde foram parar nossas alternativas? Por acaso ainda existem?
          O adoecimento generalizado que acompanha a ascensão das redes sociais no século XXI e das novas ondas de fascismo não está dissociado da perversidade ideológica do capitalismo, agora financeiro e informacional3, além de suas estratégias biopolíticas para manutenção de poder, como comprovam os desastres midiáticos (e simultaneamente políticos) do século passado: a propaganda nazista de Goebbels, a espetacularização iconográfica de invasões coloniais no continente africano e o televisionamento de guerras forjadas na Coreia e no Vietnã. Se hoje temos fake news, há toda uma perversa economia política dos meios de produção e comunicação a ser desvelada antes. Guy Debord a resume em um de seus famosos aforismos: “O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem.”4 É, sobretudo, a mais-valia uma das responsáveis pelo esgotamento humano e não-humano, quando transformaram cada âmbito da vida ocidental em espetáculo e, portanto, em mercadoria. Tenho assistido novamente a alguns filmes de Jean-Luc Godard após sua morte em 2022, sobretudo aqueles realizados pouco antes do fatídico maio de 1968, entre os quais Masculino Feminino (1966) e A gaia ciência (1967), e percebo a tentativa de sintetizar paradoxalmente os absurdos de uma vida moderna resignada com sua própria exploração, enquanto delira por revoltas fracassadas ou sucumbe a falsos atos de resistência. É, sim, desesperador viver numa modernidade do esgotamento que apenas adensou a lógica utilitária do objeto.
          Se não somos produtivos, tornamo-nos descartáveis. Qual a diferença dessa perspectiva para aquela vigente em tempos de capitalismo mercantil, quando inúmeros corpos racializados foram escravizados e transformados em objetos descartáveis das monarquias eugenistas europeias? Se durante as invasões coloniais a figura do homo sacer apresentava-se como o outro passível de ser aniquilado pelo poder soberano, isso acontecia porque os povos assassinados sequer alcançavam o estatuto europeu de humanidade: eram objetos da vontade branca, vidas desnudas fora da ordem do direito, como descreve Giorgio Agamben5. Não que essa configuração tenha mudado: a comoção seletiva da branquitude continua uma explícita denúncia da falácia humanista diante da necropolítica contemporânea. Alguns corpos valem menos que outros, talvez porque não sejam tão humanos assim. No entanto, a diferença é que mesmo essa humanidade excludente, na sociedade do desempenho, passou à condição de homines sacri. Segundo Han, a vida numa sociedade de doping deve ser mantida sadia a todo custo, mas apenas para continuar produtiva. É o oposto da vida que deve ser aniquilada: “Sua vida equipara-se à vida de um morto-vivo. São por demais vivos para poder morrer, e por demais mortos para poder viver.”6 Não se tornaram cadáveres, mas sim zumbis.

          “É um princípio epistemológico. O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo. Acham que o trabalho é a razão da existência deles. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar, experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso.”7

          Para Krenak, a insistência do homem branco na exploração do outro desenvolveu-se como experiência social de autoexploração. As políticas neoliberais de uma sociedade de desempenho mantiveram as pessoas escravizando a si mesmas no regime de mais-valia. Se não forem úteis o suficiente, não precisam mais de alguém para cobrá-las; que o façam sozinhas agora. E por isso o adoecimento generalizado: tornamo-nos insuficientes, mas segundo a óptica de quem nos explora. Fomos todos encerrados numa caixa de Pandora contemporânea, no entanto mais parecida com a forma que espécies são cultivadas em laboratório, úteis a algum experimento. Estamos enclausurados numa sociedade tecnocientífica que encontra justificativas para a manutenção de suas opressões seculares, explorando corpos à exaustão.
          Presos nesse ciclo infindável, vemos a emergência de inúmeras doenças mentais, entre elas a depressão, a ansiedade e o burnout8. Em comum, essas doenças carregam o modus operandi da insuficiência subjetiva numa modernidade que privilegia a perspectiva dos exploradores, opressores, detratores etc. Somos cotidianamente atacados e boicotados por lógicas que impedem o desenvolvimento de atos de resistência, sejam simbólicos ou materiais, ao destituí-los de sentido. A guerra híbrida que se instalou com o aperfeiçoamento do ciberespaço tem produzido disputas de narrativa a favor de signos viciados pelas ideologias do horror, da violência e do fascismo. Assim, uma obra de arte que contém nudez pode repentinamente virar uma ameaça pedófila, como ocorreu com La Bête, do coreógrafo Wagner Schwartz. Um corpo nu que manuseia e se assemelha a uma das esculturas de Lygia Clark tornou-se alvo dessas acusações quando imagens de sua performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2015, viralizaram na internet. Adultos e crianças interagiam com Wagner, disponível para mudar de posição a partir do toque do público. A nudez do coreógrafo diante de crianças, então, foi acusada de pedofilia pela extrema direita. Isso não é uma novidade, visto que as substituições de sentido são a estratégia política dos conservadores. No entanto, nada se compara à difamação criminosa e às ameaças de morte produzidas por fascistas. Wagner, então, precisou deixar o Brasil.
          São os mesmos fanáticos que, em 8 de janeiro de 2023, destruíram dezenas de obras de arte na invasão aos Palácios da democracia brasileira, reproduzindo cenas esdrúxulas do episódio no capitólio norte-americano, mas com outras pitadas de perversidade: mural de Di Cavalcanti rasgado, esculturas de Brecheret, Giorgi e Krajcberg destruídas… o que mais esses vândalos são capazes de fazer quando mesmo a arte não os impede do ímpeto de aniquilação? O desespero do zeitgeist traduz um verdadeiro abismo ao qual lançam-se pessoas e, à deriva, em queda livre, não conseguem mais responder criticamente aos comandos virtuais enviados por máquinas de guerra e por hierarquias de poder que fazem a manutenção das ameaças às subjetividades autônomas.
          Quando anuncio meu desespero, é uma forma de assumir o medo desta distopia que avança com pouquíssimas interdições em democracias liberais ao redor do mundo. Mas ainda sou otimista e penso que atos de resistência atravessarão o espaço e o tempo, como Krenak: “O que nos resta é viver as experiências, tanto a do desastre quanto a do silêncio. (…) Ou toda vez que você vê um deserto você sai correndo? Quando aparecer um deserto, o atravesse.”9 Por isso danço, danço como se atravessasse um deserto que conheço. Deserto de lagoas, cujas águas brotam da chuva.

          “Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
          sobre os automóveis de Roma.
          Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara,
          água e folha da Amazônia
          Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra
          Você não me pega, você nem chega a me ver
          Meu som te cega, careta, quem é você?”10

          Danço como ato de impermanência na resistência, como algum antídoto ao logocentrismo do antropoceno mas, sobretudo, às interdições que se multiplicam na vida social. Um pensamento que vem dançando e se recusa a ter na normalidade da economia política de expropriação ou na razão ocidental qualquer ordenação sobre si. Porém, se vejo pessoas adoecendo logo ao lado sei que também não estou imune, é um processo coletivo, e por isso precisamos urgentemente cuidar uns dos outros e também das utopias com as quais flertamos socialmente. Estamos corresponsabilizados e somos um organismo vivo, um planeta que integra um sistema solar numa galáxia perdida no espaço infinito. Mas isso não nos impede de respirar autonomamente, cada um à sua maneira e ritmo. É na diferença, portanto, que nos encontramos resistentes e vivos diante de consensos impostos. Por isso respiro e me permito parar, como numa dança que abandona o desespero por desempenho.

          1 Este texto foi originalmente escrito antes de sua leitura nas imediações do Convento de Arrábida, onde aconteceu uma das performances integrantes do projeto Cartas que dançam ao Sul. Com a intenção de serem enviadas ao Brasil, essas epístolas se transformam em videodanças, hibridizando-se numa perspectiva não linear a partir de múltiplas interações entre corpo, câmera, imagem e palavra.
          2 HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 101.
          3 A análise otimista de Manuel Castells sobre uma economia baseada no informacionalismo, publicada em 1996, encontra sua crítica no trabalho de Byung-Chul Han, quando este descreve uma era de psicopolítica digital dominada pelo neoliberalismo: “Hoje, essa euforia já se mostrou uma ilusão. A liberdade e a comunicação ilimitadas se transformaram em monitoramento e controle total. Cada vez mais as mídias sociais se assemelham a pan-ópticos digitais que observam e exploram impiedosamente o social. Mal nos livramos do pan-óptico disciplinar e já encontramos um novo e ainda mais eficiente.” Em: HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: yiné, 2018, p. 19.
          4 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 25.
          5 “Os Estados-nação operam um maciço reinvestimento da vida natural, discriminando em seu interior uma vida por assim dizer autêntica e uma vida nua privada de todo valor político (o racismo e a eugenética nazista são compreensíveis somente se restituídos a este contexto).” AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 139.
          6 HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 269.
          7 KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 113.
          8 Em relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde, cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo viviam com algum transtorno mental em 2019. Só o suicídio teria sido responsável por mais de uma em cada 100 mortes, sendo 58% dos casos registrados abaixo dos 50 anos de idade. Durante o primeiro ano da pandemia de COVID-19, a OMS estima que casos de depressão e ansiedade tenham crescido pelo menos em 25%. Disponível em: < https://www.who.int/publications/i/item/9789240049338 >, acessado em 20 de fevereiro de 2023.
          9 KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 116.
          10 Reconvexo, música composta por Caetano Veloso para Maria Bethânia.

          Pope.L Notas sobre Crawling Piece/Diário de Performance/ Manifesto de Performance #78

          Notas sobre Crawling Piece

          vulgo Quanto Custa Aquele Preto na Montra?

          (Verão 1991 / Ruas de Nova Iorque)

          Masoquismo estético, os seus des-contentamentos, performando lutas sociais poeticamente / analiticamente via agência publicitária de lamentações: para incitar uma dinâmica recursiva entre o privilegiado/subordinado – para nos testar a nós/ a nossa negociação do social. Rastejar: SOFRER: provocação para a ação. Pergunto: A arte corporal iliba? Por exemplo, é somente uma luta desconectada e ISOLADA? Americanos, adoramos o capital pessoal = individualismo. Tão reconfortante. Se dar corpo continua a ser uma idiossincrática explosão individual, então ação = solipsismo. Preocupo-me. As pessoas dizem ironia = arte séria. As pessoas dizem: não sejas tão CLARO. A tua crítica não é confusa o suficiente, as tuas palavras não são longas o suficiente, que raio se passa contigo, não vês a trapaça? Conclusão: a FÉ é um produto. Ironia, outro produto. Coloca ‘elas’ juntas. Ama essa lógica falha. O verdadeiro ESPÍRITO do meu projeto: MIJAR no coração sangrento do PAI. Falha do tribunal. Não da LEI. Máxima machista: Ações são efeminadas. Palavras são viris. A confusão é conspurcada – à totalidade TOTAL. REIVINDICO: Quando sofro. Faço-o para todos. Isto é DESONESTO (mas tenho que enfiar a carapuça) não importa que produto venda ou com que bíblia acene. A minha MÃE: Billy, faz-te à vida e deixa-te de palavras – arrisca o couro onde nós, o zé-povinho, vivemos…

          Publicado originalmente no Art Journal, 56, n.º 4 (Inverno de 1997), “Performance Art: (Some) Theory and (Selected) Practice at the End of This Century”, pela CAA.

          (do Diário de Performance, 1991)

          A verdadeira questão

          Jaz na justaposição

          Da destituição e plenitude

          Isso é tão in-quietante 

          E a sensação de que poderia ser eu amanhã

          Faz a minha arte parecer autosserviço.

           

          As porções da vida não são divididas equitativamente… 

          Se as coisas fossem mais claras, mais limpas, mais brilhantes, mais arrumadas

          Mais tipo bolacha Ritz…

          Se apenas houvesse rico ou pobre,

          Preto ou Mouro

          Ou só alguns brancos a arrancar à dentada cabeças de cotonetes…

          Cairia eu na miséria

          A defender, a ir na onda, a fingir sofrer

          Por algo supostamente totalmente outro?

          Eu sou o mano mais escuro, o muito mais escuro,

          A resolver puzzles infiltrado

          Num bom emprego em más alturas.

          A levantar o meu salário sobre os corpos na Palestina

          Vejo-os dispostos como judeus em Bowery

          Como no terminal da estação de autocarros de Port Authority,

          No âmago de Nova Iorque

           

          As pessoas dizem que há beleza na feiura.

          Passa o Häagen-Dazs 

          Vomita-o na retrete,

          Fá-lo milhentas vezes.

          Não deixes que o teu lado bom o estrague.

          Tenho a minha própria anorexia cultural.

          É um tanto ousado,

          Ponho-me de bruços e rastejo até me tornar realidade.

           

          Não te escapas da verdade, ‘tás a ver,

          Arte não é sobre obras-primas

          Queres perfeição? Compra uma Smith & Wesson.

          Toma um Slurpee, isso, sim, é uma lição!

          Arte devia ser desleixada e vergonhosa.

          Vergonha: o chicote, o corte e a maçã.

           

          Como podes amordaçar a corrente e os escravizados?

          Arte devia ser enorme mas caber na boca.

          Na minha arte, quero a coordenação olho-mão

          Para criar uma celebração conflituosa.

          Arte que chama a atenção dos transeuntes.

          Arte que é macabra & inócua & incompleta.

          Arte simbólica do salto

          Que precisamos para nos livrar da nossa paz de espírito.

           

          ….

          Eu queria a coordenação Olho/mão

          Para criar uma celebração conflituosa

          Eu – Eu – Eu – Eu queira fazer algo

          Que comunicasse com quase

          Qualquer um nas ruas

          Algo macabro, algo inócuo, contudo incompleto,

          Algo profundo, algo doloroso, simbólico

          Da armadilha da fé de que precisamos para nos abanar

          Do nosso sono

           

          No trabalho,

          Pessoas diferentes viram histórias diferentes

          Aquelas que viram as ações na rua

          não viram o filme.

          Quando esmifras a tua intenção

          Estás a defender a insegurança

          Uma grande dama disse isto

          Ruth Maleczech! então não o esqueças

          Ela disse (e vou citá-la só uma beca)

          “Só porque dizes que existe

          Não significa que é realmente visível”

           

          Então se eu fosse mudar alguma coisa

          Mudava algumas das minhas decisões

          Mudava algumas crenças

          Por detrás da visão

          Quanto misturas Arte + política

          Acabas sempre a tratar os sintomas

           

          A maioria dos que viram a performance na rua não foi convidada para a exposição

          Então – Se eu fosse mudar algo

          Aceitaria as minhas limitações 

          Tentaria criar pontes

          Entre o que é feito, o que é dito

          E o que é escondido

          Levava todos para a cozinha

          Para uma subversão de arroz, feijão e porco frito

           

          Enfim, só não quero arruinar a minha imagem

          Como alguém uma vez disse “Arte precisa de contexto”

          Um Álibi, talvez café e pastel

          Podia ficar constipada e 

          Desaparecer…

          Então o que faríamos?

          Bebíamos uma coca-cola e ficávamos famintos.

          O excerto que aqui se publica reúne dois blocos de texto complementares originalmente publicados na Art Journal, 56, n.º 4 (Inverno de 1997) “Performance Art: (Some) Theory and (Selected) Practice at the End of This Century, pela CAA, e em manuscrito no catálogo que acompanhava uma retrospectiva do trabalho de Pope.L no MoMa, Nova Iorque: member: POPE.L, 1978—2001, editado por Stuart Comer com Danielle A. Jackson, 2019. 

          Manifesto de Performance #78

          — A Morte da Performance; A minha mãe; Eu próprio

          Sabes de antemão de algumas coisas. Como a morte.

          Ainda assim, no fim ela te escapa.

          A vida é assim também. Esperança, igualmente.

          Hoje estive a pensar na minha mãe. Vejo-a

          na sua casa, que consiste num quarto pequeno numa casa estreita numa rua pedregosa num lugar especificamente criado para a malta preta.

          Quando penso na minha mãe, frequentemente fico triste, não deprimido atenção mas triste. Uma tristeza que sulca como uma onda sobre o horizonte das minhas pálpebras. Pergunto-me porquê todo esse drama e nego-o com uma careta de indignação. A minha mãe está mais velha hoje do que alguma vez foi. Isto é lógico, mas ainda me surpreendo. Ela senta-se aprumada na sua cama. A TV está aos seus pés as paredes caiadas a azul que ela contempla cheia de paz com o olho de uma tartaruga. Ela tem um livro numa mão a outra crispada no seu colo: espasma quando a televisão faísca com estáticas. Perto da cama, junto à sua mão há uma mesinha com cigarros pretos, um copo de cerveja, um romance cor-de-rosa e muitas caixas de fósforos. Ela está a dormir. Com a respiração pausada. O quarto brilha como uma pira fúnebre.

          E estou triste. mas jubilante de uma forma estranha, pois a morte da minha mãe é a minha jovem e mísera inspiração a gatafunhar neste restaurante à espera que o teatro abra; evito aquela atenção cuja presença não se menciona, porquanto eu sou um performer a caminho da minha morte.

          Publicado originalmente em manuscrito no número 1 da revista THE ACTPerformance Art, inverno/primavera 1986, pelo Performance Project, tendo como editor Jeffrey Greenberg e co-editores Jacques Cwat e o próprio William Pope.L. 
          Traduzido dos originais em inglês por Marinho Pina.

          Anh Vo A força aparicional da dança

          Depois da estreia de BABYLIFT (2021), em Nova York sem público, estava muito deprimido. Primeiro diagnostiquei-me com uma clássica depressão pós-performance – o inevitável colapso que acontece depois de trabalhar loucamente num projeto que significa tudo para mim, mas não parece significar nada para o resto do mundo. À medida que as semanas e os meses foram passando, o corrosivo sentimento diário de vazio não desaparecia. Nem desapareciam os pesadelos e a paralisia do sono, pareciam até aumentar de intensidade e frequência. Alguma coisa estava errada. Talvez estivesse assombrado.

          Ser assombrado não devia ser, para mim, uma surpresa; afinal, BABYLIFT tinha estreado sem público principalmente porque eu queria dançar com fantasmas, com a multidão de anónimos morta no decorrer da guerra do Vietname. Era uma tarefa impossível. Pesavam muitas mortes sobre este pequeno país destruído por meio século de guerras com impérios, tanto antigos como recentes – França, Japão, China e os Estados Unidos da América. Crescer em Hanói, numa das primeiras gerações vietnamitas que viveram relativamente em paz (pelo menos do ponto de vista geopolítico), fez-me sentir distante das guerras. A diretiva tácita era, e ainda é, continuar e seguir em frente. Não podemos ficar parados a olhar para trás, se não queremos que os fantasmas nos alcancem.

          E lá estava eu, a pedir aos fantasmas que dançassem comigo, e nunca me ocorreu que eles poderiam ficar e assombrar-me depois do fim da performance. Senti-me falsamente protegido pelo carácter efémero da performance, o mesmo que, aparentemente, livra a performance dos grilhões do tempo e a envolve no presente fetichista. “O ser performance […] atinge-se através do desaparecimento”1, a famosa declaração da teórica da performance Peggy Phelan. E se a performance desaparece no presente não reproduzível, os fantasmas invocados também se dissiparão ao mesmo tempo que o momento singular de uma performance se dissipa.

          Há algo de reconfortante e que garante segurança nesta articulação ontológica da performance enquanto desaparecimento, o que justifica a ideia de que os encontros com fantasmas em performance sejam também efémeros. Numa reviravolta paradoxal, a hiperfixação no presente efémero acaba por banir inadvertidamente os fantasmas ainda mais para o passado, sem vínculo à contemporaneidade. Mas assombrar é o mais contemporâneo possível. Assombrar desafia a progressão da linha temporal do passado para o presente e para o futuro, ou até a crença de que os fantasmas são o regresso de um passado que ficou por resolver. Assombrar tem uma qualidade atemporal e não porque está fora do tempo. É precisamente o contrário, assombrar, com a sua presença eterna, evidencia a força turbulenta do tempo, recusa qualquer lógica temporal e assim desestabiliza a dicotomia entre passado e futuro, entre vida e morte. Jacques Derrida lembra-nos, “um fantasma nunca morre, permanece para poder voltar uma e outra vez”2.

          Nesse sentido, fui ingénuo quando estava a trabalhar em BABYLIFT e esperava que um momento de comunhão com fantasmas funcionasse como um aperto de mão inócuo, uma troca de cumprimentos no teatro sem consequências materiais. Não podemos estabelecer contacto com fantasmas e sair ilesos. Nesse encontro visceral com o desconhecido temos de questionar o que pensamos saber, e o que achamos ser a realidade deixa de parecer muito real. Assombrar produz inevitáveis transformações. Pode não ser imediatamente aceite, ou pode ser temporariamente evitado recorrendo a rituais de exorcismo. Podemos tentar resistir em vãs tentativas de o afastar, mas eventualmente a assombração apanha-nos. Repito, “um fantasma não morre”.

          Em 2021 não estava pronto para dar as boas-vindas aos fantasmas que entusiástica, ainda que imprudentemente provoquei (como se os fantasmas alguma vez esperassem que estivéssemos preparados; como se nos conseguíssemos preparar para a sua erupção e disrupção). Então, para comprar um estado de calma provisório, ganhar algum tempo e começar a lidar com esta minha nova condição de pessoa assombrada procurei dois poderosos intermediários: a psicanálise e o xamanismo do Sudeste Asiático. Por um lado, a psicanálise e a sua metodologia de associação livre animam a força da assombração com a curiosidade científica pelas suas consequências sentidas (i.e., sintomas como pesadelos), trabalham meticulosamente sobre a psique individual do sujeito para reconhecer os vestígios da presença inquieta de fantasmas. Por outro lado, o xamanismo promete um acesso ao assombro menos tortuoso, onde o xamã, com recurso a várias ferramentas de adivinhação, consegue falar diretamente com os fantasmas, quase como se fossem seres vivos, por vezes com uma linguagem simples, às vezes em línguas diferentes, ou até telepaticamente, mas é sempre claro que a comunicação entre eles está a acontecer.

          Estou tentado a dar nomes aos fantasmas identificados neste meticuloso processo de cuidar dos assombros, apesar de achar que é uma vontade à qual não devo ceder. Por exemplo, os fantasmas com quem interajo não têm nome, continuam por aqui desde as guerras, pertencem às multidões anónimas de mortos. Mas, mais do que tudo, nomeá-los e assim fixá-los num documento seria enganador, daria uma ilusória sensação de clareza que implicaria podermos simplesmente confrontar as assombrações diretamente e obter as respostas de que estamos à procura. Seguir o rasto da assombração pode levar a algumas respostas (a perguntas que nem sequer sabíamos ter), mas as respostas só nos levarão a mais perguntas. “Um fantasma permanece para poder voltar uma e outra vez.”

          A experiência de consultar xamãs e de ser psicanalisado foi muito esclarecedora. Ao mesmo tempo, não tenho a certeza de que almejar o esclarecimento seja o caminho a seguir ao trabalhar com assombrações. Talvez seja necessário algum esclarecimento, mas apenas no sentido de dar alguma segurança sem dissipar todo o medo e toda a curiosidade, para continuar a avançar no escuro e a seguir o rasto dos fantasmas. Para nos mantermos sensíveis no meio da dúvida e da incerteza, para nos aventurarmos pelo desconhecido sem o colonizar pelo campo iluminado do conhecimento, mas para que simplesmente nos deixemos ser movidos por esse desconhecido.

          Ao pensar nestas questões de mover e de ser movido regressei à dança, como se fosse uma bússola guiando-me por terrenos espectrais e desconhecidos. Quero voltar à questão do desaparecimento, cuja formulação assente na efemeridade e na preciosidade do presente parece banir a dança e as assombrações para um passado distante. Ainda assim, não quero apressar-me a repudiar o desaparecimento – existe, de facto, alguma coisa semelhante ao desaparecimento na dança, com a sua ambivalência entre ser escorregadia e evasiva e ao mesmo tempo ter uma materialidade visceral. E é precisamente nesta relação íntima com o desaparecimento que a dança consegue estar em movimento com fantasmas e rastrear movimentos fantasmagóricos sem ter de os tornar visíveis. 

          Aqui o termo desaparecimento precisa de ser desligado da noção de efemeridade, o que não é tarefa fácil porque a efemeridade contém a promessa utópica de que a dança e a performance não podem ser registadas e fixadas. No seu provocador estudo sociológico sobre assombrações e assuntos de fantasmas, Avery Gordon coloca pressão sobre a materialidade sensível do desaparecimento, descrevendo que “um desaparecimento só é real quando é aparicional”3. O desaparecimento já não está cristalizado num momento fugaz do presente não reproduzível. Ao invés, o desaparecimento assombra e é definido por essa assombração, pelos efeitos materiais sentidos mesmo na sua suposta ausência. Não é coincidência que Gordon reconheça esta força aparicional do desaparecimento e, de forma semelhante aos meus instintos artísticos, decida seguir o rasto das mortes em massa orquestradas pela Guerra Suja da Argentina, numa tentativa de ouvir aqueles que desapareceram pelas mãos das juntas militares, nos anos setenta e oitenta. O que está morto tem uma forma de nos dizer que está (ao) vivo se tivermos paciência de o ouvir.

          E os mortos também nos dizem como dançar com eles. Que é dançar ao mesmo tempo connosco enquanto seres assombrados, com os nossos corpos e com a sua impossível rebeldia. O corpo, sempre em excesso de si mesmo, talvez não seja tanto uma entidade física como um veículo do aparicional, uma convergência de forças desconhecidas que não estão ali, mas cuja presença é sentida. A dança, com a sua devoção incondicional às idiossincrasias do corpo, parece prontamente permeável ao imperativo ético de comungar com fantasmas. Este tráfico com fantasmas não deixará a dança intacta, exigirá uma transformação de como nos movemos e como somos movidos. Não insisto que devamos marchar em frente na direção de uma ilusão de transformação com a nossa compulsão vanguardista de estarmos à frente do tempo. Em vez disso, quero ter tempo para me sentar quieto, estar no tempo, estar com a força aparicional do tempo, ouvir os fantasmas cheio de humildade e vulnerabilidade.

          Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.  

          1 “Performance’s being […] becomes itself through disappearance.” Peggy Phelan, Unmarked: The Politics of Performance (Nova Iorque: Routledge, 1993), 146. N.T. Como não está publicado em português coloco aqui a versão original.
          2 Jacques Derrida, Espectros de Marx, (Coimbra: Editora Palimage, 2021).
          3 “A disappearance is only real when it is apparitional.” Avery F. Gordon, Ghostly Matters: Haunting and The Sociological Imagination (Mineápolis: University of Minnesota Press, 2008), 63.

          Diana Niepce Crítica para a dança

          Entro pela primeira vez na Culturgest com uma entrada acessível. (Extraordinário.) Não tive de ligar a pedir para entrar, ou de dizer a um amigo a dizer que estou a chegar, ou de pedir ajuda com os desníveis. Até parece simples, mas não, isto não acontece em qualquer lado. No café queimo tempo com as amigas e, quanto mais se aproxima a hora, mais a mesa se aglomera com os famosos da dança. Isto seria expectável se eu alguma vez tivesse conseguido conciliar a minha agenda com os espetáculos da Marlene Monteiro Freitas, mas como só hoje se tornou possível, não estava à espera disto.

          A sede de um banco nacional em Lisboa, que se assemelha à casa do Tio Patinhas, enche e enche. (É um Rock in Rio, só vejo rabos e pernas porque, quando estás sentada na multidão, o campo de visão é limitado.) Entro no hall vermelho (aquele da casa de banho dos deficientes de porta dourada, que parece um quarto de BDSM), abrem as portas, subo a rampa inclinada, e o grande auditório parece maior do que me lembrava, talvez pela quantidade absurda de humanos que não param de entrar.

          O espetáculo é Ôss com o Dançando com a Diferença. A cena abre e um performer com síndrome de Down com calções de boxe e ténis dirige-se a um sintetizador, onde diz coisas irreconhecíveis, e desenvolve um ritmo. (Parece que entrei numa discoteca azeiteira do início do milénio.) Pula da mesa para o centro e ao mesmo tempo que corre, bate palmas e salta por cima do suporte do microfone relativamente baixo. (Sinto-me estúpida.) O público segue os movimentos do performer com os abanões do próprio corpo e, histérico, reage às acrobacias deste circo verdadeiramente impressionante, ou parvo. (És odiosa Diana. Não sei se sou. Será que faz sentido evocar os horrores circenses numa companhia de inclusão nos dias de hoje, quando durante tanto tempo as pessoas com deficiência foram desta forma exploradas?)

          A música muda para uma gaja aos gritos numa ópera dramática. (Parece a minha vizinha de baixo que quer ser cantora de ópera e diz que tem de ensaiar muito.) O performer executa um solo com alternância de imagens que remete à mímica do cinema mudo, com uma série de caretas, pliés, movimentos de boxe e de ginástica. (Como eu sou pitosga e o auditório é uma espécie de estádio de futebol, adivinho aquilo que não consigo ver nas imagens.)

          A cortina de ferro abre por trás do performer, a cenografia e os figurinos dos performers em exposição remetem para um navio. Uma figura vestida de laranja, sentada junto ao ciclorama, move um pau em micromovimentos, outro performer sentado de pernas cruzadas fuma ou finge que o faz. (Preciso de binóculos.) A quietude das restantes figuras acentua esses pequenos movimentos. E se prestarmos atenção estão alinhados o boxista, a laranja e o marinheiro/cozinheiro/fumador (provavelmente não é cozinheiro, mas tem um chapéu de cozinha e com as galochas parece… acho que lhe ficam bem) e ainda os capitães normativos, duas marinheiras/capitãs ou então ajudantes de cozinha (parece que estou a jogar ao “Quem é quem?”), uma vaqueira e a mulher na bacia. (Já tenho músicas de circo na cabeça.)

          Começam as passeatas no meio da cena. (Acho que estão todos tão perdidos quanto eu.) Os capitães carregam o pódio, a bacia e a mulher para o centro da ação. Anuncia-se a sua apresentação, só que nada. Embrulhada num lençol branco, numa espécie de paralisia, a figura vai girando a cabeça. Será que é uma referência colonial, do estilo a mulher africana da bacia? Com certeza, mas é um discurso intencional? É claramente uma imagem violenta. O tempo continua a esticar, a cena arrasta-se, a mulher continua na paralisia (e daqui a bocado estou a babar-me a fazer a lista das compras), surge a buzina de um navio na esperança de verticalização da mulher deitada. Uma coreografia de ações quotidianas são decompostas até se transformarem e restar apenas o híbrido. (Lá estou eu a ser obtusa, não, contemporânea. Isto da arte contemporânea tem o que se lhe diga, porque o espectador irá observar a obra a partir da sua cultura e experiência pessoal. Mas quando a experiência pessoal é limitada, será que sabemos o que estamos a ver? Será que posso analisar a obra sem as minhas próprias referências? Será que é algo que quero fazer?)

          Passaram vinte minutos e tento concentrar-me no palco. (Parece uma insónia, e continuo a pensar nos livros pendurados na mesa da sala há semanas, na mala de viagem que tenho de comprar, os iogurtes que acabaram e a medicação da minha cadela Nina que ficou por pagar. PÁRA, DIANA, CONCENTRA-TE!)

          Acordei e estamos num momento de marcha, a performer laranja com a cabeça baixa marcha, e os autocolantes na sua cabeça fazem uma nova cabeça, criando um novo corpo. O boxista também marchou para outro lugar. A dança do copo anuncia-se como uma sagração. (A minha criatividade morreu.) Os performers seguem um líder num uníssono desfasado. (Talvez estejam atrasados nas contagens.) O da câmara que faz uma espargata frontal na boca de cena e uma sequência flexível que poderia ser uma sequência de yoga. A embrulhada na bacia abre os braços e o lençol parece uma capa de um herói a contrastar com o seu tom de pele. (Vai levantar-se. Não, tombou.) À direita começam um port-de-bras. A mulher da bacia senta-se, levanta a bacia para cima da cabeça, apresentando a biamputação das pernas, e corre até ao ciclorama. Já na boca de cena, o trio começa o parto: um lençol cor-de-rosa esconde as pernas da laranja que grita e outras duas seguram-lhe os joelhos. (Parece que estão a brincar. Penso nas múltiplas queixas de pessoas com deficiência que são esterilizadas contra a sua vontade?1) Uma mãe com uma criança levanta-se na plateia e saem da sala. (Acho que esta imagem apareceu noutra peça, será que foi nas Bacantes?)

          Num diálogo incompreensível, a performer amputada, agora polícia, desloca-se de forma estilizada à boca de cena, com dois bastões que lhe servem de canadianas. Senta-se ao centro, tira o chapéu e snifa no microfone. Tento compreender o que diz, mas nada. Alguém distorce o som de uma guitarra, a voz da polícia cresce, torna-se tensa, agressiva, fugaz, e uma gargalhada repete-se… A performer que treme (pela sua condição) segura uma chávena e o comandante enche a chávena de água, que por sua vez abana, e o som é amplificado. A polícia despe-se até ficar de fato de banho e o comandante faz o mesmo até ficar de tronco nu. Contrai o abdómen, ao mesmo tempo que alguém late, a barriga late, é um cão de barriga. (Isto deve ser uma referência de cinema.) Começam os slows, uma massagem com uma faca à performer amputada, a toureira, os cabeças de dildo, a histérica, os militares cabeça de dildo, gritos, a assassina, a sesta, a cantora, o funeral do normativo, as carpideiras, a rave. Marlene a ser Marlene e os bailarinos a serem muito bem mandados e a encontrarem, no seu corpo, o corpo Marlene. Exceto que estes bailarinos são os bailarinos a quem os normais deste mundo amputam a voz, por serem pessoas com deficiência. E esta é a bailarina que está constantemente a mandar tiros no pé. (Sim, Diana, já paravas a chacina ao teu pé paralítico.)

          O que eu queria era ver a Marlene aqui no meio, com a sua técnica exímia daquele corpo que entre estados, caos e decadência se transcende. (Até parece uma sinopse tua, Diana. Não é isso. Lembras-te do Guintche. Foda-se, é de uma análise de movimento mítica. Mas aqui falta. E a cena do lençol no Jaguar… em que o micromovimento escultórico gera a construção de imagens, até à sagração do lençol.) O problema aqui não é a Marlene, mas sim as companhias de inclusão continuarem a ignorar os líderes com deficiência. Continuamos à espera de ver as companhias que circulam internacionalmente a serem representadas pela própria comunidade. (É difícil olhar para as peças de Marlene e do Dançando com a Diferença e não fazer contas ao orçamento.) Afinal, é um problema estrutural que já acordou demasiados gatilhos nas peças de Jérôme Bel (Disabled Theater) ou de Milo Rau (Os 120 Dias de Sodoma) com o Theater Hora  nas últimas décadas. Voltamos à discussão de que as pessoas sem deficiência continuam a ditar a voz das pessoas com deficiência. Vou responder ao Jérôme e dizer que não estamos a desafiar as convenções normativas teatrais quando estamos a usar artistas com deficiência e o elenco é selecionado por fotografia. Talvez em 2001 essas questões fossem abordadas de outra forma. Hoje, se pegar na crítica de jornal em torno das mesmas peças que há vinte anos foram premiadas por reformularem o panorama, vejo um discurso condescendente e paternalista, o mesmo que continuam a aplicar nos dias de hoje. Tornando as companhias um produto que vende uma ideia, mas por dentro os sistemas continuam velhos. (E estar sempre a dizer a mesma coisa faz de mim uma velhaca.)

          1 Ver “Esterilização de deficientes: Governo averigua denúncias sobre um tema «tabu»”, Público. 26 de Junho de 2016.

          Estelle Nabeyrat Love Song, uma canção na cabeça

          Estelle Nabeyrat em conversa com Pedro Barateiro 

          Uma noite, em Junho de 2016, Dean Blunt (artista britânico com múltiplas identidades musicais, incluindo Hype Williams [2007-2012], uma colaboração com Inga Copeland) actua no Musicbox, em Lisboa, com os seus acólitos de Babyfather, uma formação hip hop. O concerto começa como uma provação, de tal maneira que nos podemos questionar sobre a sua competência: um som estridente e contínuo mergulha-nos numa atmosfera opressiva, camadas de fumo branco são lançadas para cima de nós vindas do palco, holofotes colocados de frente cegam-nos.

          No meio da multidão agrupada, expectante, homens mascarados deambulam e empurram-nos, um deles parece ter uma bomba de gás na mão, que agita de vez em quando, lançando a dúvida sobre a legitimidade da sua presença na sala.

          Como única decoração, bandeiras Union Jack lembram-nos o referendo do Brexit, recentemente realizado, confirmando o desejo da maioria dos britânicos de sair da União Europeia.

          Esta mistura de registos e a agressividade do contexto fazem-nos questionar: a que é que estamos a assistir? Um concerto em forma de tomada de reféns? Uma performance que zomba dos limites do suportável? Um acto militante ou a sua paródia? Será que se trata de nos fazer sentir a expressão viva da rejeição num contexto britânico antieuropeu?

          Tudo é mal-estar. Os meus amigos abandonam a sala. No meio da nuvem, vejo Pedro Barateiro, atento, conectado com os elementos, o seu ser tomado, como eu, por esta experiência impossível de caracterizar.

          Muitos críticos de música se têm interessado pela abordagem de Blunt, pelo seu estilo sem estilo, pela sua abordagem conceptual, etc., mas não encontrei nada sobre este concerto em particular. O que se tornou mais claro com o tempo foi que tínhamos assistido a um apelo. Apesar da orquestração da situação, não conhecíamos os verdadeiros limites nem o que estava em causa. Expostos/as a nós próprios/as, na incerteza partilhada, formávamos uma comunidade. Estávamos reunidos/as no carácter político: a forma interrogativa aqui suscitada projectava os nossos corpos expectantes numa necessária projecção em acto.

          Pedro Barateiro: “A experiência não tinha só que ver com a música. Tratava-se de viver algo, e de pegar nalgumas coisas que estão codificadas, e que conhecemos, e de como as reunir num momento completamente diferente e surpreendente. Lembro-me com muita clareza. Havia bastante fumo. Era desorientador porque não sabíamos onde estavam de facto os artistas/músicos (incluindo Dean Blunt), uma vez que se misturavam com a multidão. Lembro-me de ver alguns deles com lenços com bandeiras da Grã-Bretanha a cobrir-lhes a boca. Usavam óculos de sol. As luzes azuis frias na sala estavam acesas, o que era invulgar para uma sala de concertos. Nessa altura, as máscaras estavam sobretudo ligadas a manifestações, e não à pandemia.”1

          Em 2022, o trabalho de Pedro Barateiro foi objecto de uma exposição individual (Love Song, comissariada por Elfi Turpin) que se realizou no CRAC Alsace, em Altkirch (França). Fiquei cativada com esta visita depois de ter visto diferentes ocorrências do trabalho deste artista. Feliz também por ter recebido a encomenda de um texto, que acabou por não poder ser publicado.

          Procurei outras formas de traduzir a experiência desta visita, fugindo também às limitações do formato da crítica, que não permite grandes digressões. Desde então, assombram-me algumas notas de música, trazendo-me de volta à experiência do concerto de Babyfather.

          Estes dois momentos permanecem presentes um no outro: para mim, Love Song foi como uma clarificação dos temas e formas que habitam o trabalho de Pedro Barateiro e de preocupações de ordem política que eu não tinha sentido ainda de maneira tão manifesta.

          Wake up, wake up, wake up, wake up 

          Wake up, wake up, wake up 

          So don’t you want to be with me? 

          ‘Cause everybody knows you’re feeling me 

          So don’t you want to roll with me? 

          I cannot compete with anyone 

          So I can never be your only one 2

          Para além de constituir uma organização espacial subtil que mostra esculturas, instalações, vídeo…, dois gestos sob a forma de convite chamaram-me a atenção: um foi feito a Mário Varela Gomes (nascido em 1949), que apresenta fotografias datadas do fim da ditadura salazarista, e o outro a Aurélia de Sousa (1866-1922), pintora portuguesa, rara figura feminina do seu tempo. As suas presenças historicizam uma abordagem, uma postura política e artística que o Pedro poderia ter tido no tempo deles e que prefere integrar na sua narrativa sem desnaturar a experiência situada que o visitante poderia ter tido nesse momento preciso.

          No primeiro caso, Pedro Barateiro traz para o meio artístico uma série de fotografias sem identidade artística (a priori) e que, se testemunham a Revolução dos Cravos através das concentrações nocturnas e do ataque ao gabinete da Censura em 1974, são igualmente gestos e imagens de uma beleza impressionante. Aqui, a objectiva documenta o voo de um monte de fichas que são lançadas do gabinete da Censura; ali, a energia de uma multidão conduzida pelo fim de uma era de repressão. No segundo caso, inclui no seu campo de referência uma obra não datada e pouco representativa de uma artista moderna pouco conhecida no contexto francês.

          No andar de cima, outras obras fazem eco destas integrações. My body, this paper, this fire (2020), um vídeo em que Barateiro assume o trabalho de montagem e escrita, nomeadamente a partir de excertos das manifestações estudantis em que participou em 1994 contra o aumento das propinas nas universidades. Na altura, foram as manifestações mais violentas desde o fim da ditadura.

          E depois, mais uma vez no rés-do-chão, o vídeo Love Song, que dá à exposição o seu título:

          Pedro Barateiro: “Love Song vem da ideia de fazer uma banda sonora para um filme antes de fazer o filme. Tem 45 minutos porque é a duração média de um álbum de música pop. Estou a tentar perceber como é que certos formatos estabelecidos se tornaram o que são e como transformá-los noutra coisa. A peça é uma paisagem áudio que fiz para depois a dar a um músico/compositor como uma das camadas que podem ser usadas na banda sonora de um filme que vou começar a rodar em breve. […] Queria muito instalá-la no espaço numa espécie de área de audição dedicada só a ela, para desenvolver a experiência de uma peça sonora que lida com o tempo de uma forma particular. A peça concentra-se na desconstrução da narrativa através do uso do som, utilizando fontes variadas, tanto feitas de propósito como encontradas, cuidadosamente entrelaçadas de modo a criar uma banda sonora. Uma das fontes que usei é a gravação de uma das câmaras de vídeo que transmitem ao vivo a partir da Estação Espacial Internacional (ISS).”3

          Tenho algum receio de que te possa parecer barulhento

          wake up wake up wake wake up4

          Oiço atentamente o Pedro e não me consigo livrar de uma presença que se faz convidar sem ele saber. Esta intrusão nesta paisagem mental leva-me a dizer que as minhas experiências de espectadora trabalham em mim como vidas aumentadas. Um despertar que não se limita apenas ao campo da representação. O motivo da multidão repete-se, o nosso encontro faz de nós um corpo político e que age: Acorda!

          Espectadora atormentada: a silhueta do Pedro que eu adivinhava na nuvem é também a do jovem manifestante em frente ao Parlamento português. De costas, como que à cabeça do cortejo, as manifestações de 1974 e 1994 são animadas por uma experiência reconstituída durante um concerto. O tema da multidão, que persiste depois da visita à exposição, leva-me a estes outros espaços-tempos: a linha sensível entre real e ficção ganha vida. As manifestações em imagens completam-se com uma experiência física totalmente encenada.

          Neste apelo ao despertar, consegui ver Dean Blunt na obra Love Song de Pedro Barateiro como tinha visto o Pedro na plateia. Tinha feito inconscientemente a ligação entre estes dois momentos e estes dois objectos, convencida de que Barateiro se tinha inspirado em Blunt. Não foi o caso, mas esta aproximação pessoal amplificou a ressonância da minha visita à sua exposição. O refrão aumentado da experiência do concerto de Blunt veio reforçar a impressão de assistir tanto a um despertar dos sentidos como a um despertar político. De que estes motivos de multidão não eram imagens congeladas na posteridade, mas que estas experiências vividas, transmitidas e imaginadas trabalhavam em nós como possíveis componentes de corpos políticos.

           

          Traduzido do original em francês e inglês por Joana Frazão.

          1 Excerto de uma troca de e-mails com Pedro Barateiro, 29 de Julho de 2022.
          2 Letra de “Three”, de Dean Blunt, do álbum Stone Island, editado em 2013: “Acorda, acorda, acorda, acorda / Acorda, acorda, acorda / Então não queres estar comigo? / Porque toda a gente sabe que tu me curtes / E não queres andar comigo? / Não consigo competir com ninguém / Então nunca posso ser o teu mais-que-tudo.”
          3 Excerto de uma troca de e-mails com Pedro Barateiro, 29 de Julho de 2022.
          4 Excerto de Love Song, Pedro Barateiro, 2022. banda sonora de 45’,45’’ (a obra é acompanhada por um vídeo HD no quadro da exposição Love Song, no CRAC Alsace).

          Ana Rita Teodoro Valérie Castan Audiodescrição (AD) em dança

          Excerto de uma conferência de Valérie Castan 

          A audiodescrição (AD) é um processo de acessibilidade que consiste em descrever verbalmente uma obra para pessoas cegas ou com baixa visão. A AD em dança coloca diversas questões, uma vez que a dança é em si abstrata, isto é, em geral, não existe nos espetáculos de dança um guia de texto ou uma dramaturgia linear que conduza o público. Que vocabulário escolher para descrever os movimentos, as ações complexas? Como invocar a sensação do movimento?  

          No meu percurso na dança contemporânea, a tradução de movimento em palavras e a escrita de dança sempre foi uma prática corrente. Nos últimos anos vivi no contexto francês e fui confrontada com discurso, pensamento e vocabulário específico para a dança que contribui para pensar e sentir o que está em jogo quando assistimos ou praticamos dança. Por curiosidade, interessei-me pela AD e deparei-me com um pensamento pouco ativo no que diz respeito às especificidades da dança contemporânea e senti-me convocada a trazer a minha experiência. Nesse sentido, organizei no Teatro do Bairro Alto (TBA) em Lisboa, de 23 a 25 de setembro de 2022, um ciclo de conferências, workshops e encontros com o intuito de pensar as especificidades da AD em dança e proporcionar o diálogo entre artistas, audiodescritores/as, instituições de acolhimento e público cego ou com baixa visão. 

          Valérie Castan, artista coreográfica e audiodescritora especializada na tradução e interpretação de espetáculos de dança, foi uma das minhas convidadas. A sua prática em AD é singular e começa com a transposição de um método de AD usado no cinema para espetáculos coreográficos. De acordo com Valérie, uma AD em dança deve guiar o público que assiste à visualização do movimento através da perceção empática e cinestésica. Isto é, as palavras ouvidas espoletam sensações físicas e musculares no corpo, como se a pessoa ouvindo a descrição pudesse, de facto, sentir a dança, sentir-se dançar. 

          Para esta edição do Coreia, propus-me editar um excerto da conferência que Valérie Castan deu no TBA, para partilhar a sua experiência com quem não esteve presente e incentivar a continuidade do diálogo. 

          Esta conferência é sobre partilhar experiências e ferramentas relacionadas com a minha pesquisa aplicada à acessibilidade de pessoas cegas ou com baixa visão a espetáculos coreográficos. Não se trata de uma exposição teórica, crítica, estética ou linguística e sobretudo não se trata de um método que prevalece sobre qualquer outro. Vou partilhar a minha prática como audiodescritora de peças de dança contemporânea desde há dez anos. Esta prática descritiva induz a montagem de grelhas de observação específicas, um ato desorganizador que desvia o nosso olhar para o da pessoa que não vê ou que não vê muito bem. 

          Começo por explicar como eu trabalho uma AD em França. Na maioria das vezes são teatros, às vezes Centros Coreográficos ou artistas que me encomendam um texto. Eu assisto a uma apresentação ao vivo ou, se for uma nova criação, sempre que possível assisto aos ensaios. A partir de gravações em vídeo em plano geral assisto até identificar a estrutura da peça, a composição coreográfica, a gestualidade… decifro… escrevo o texto descritivo. 

          Desde o início da escrita, procuro fixar o texto na temporalidade do movimento. A oralidade do texto descritivo é muito diferente da dança em relação ao teatro ou ao cinema, onde a descrição tem de ser encaixada entre os diálogos. Reparamos que a palavra demora mais tempo a ser dita do que o gesto a ser feito… A oralidade interfere na escrita descritiva. 

          Sempre que possível, partilho o texto com uma pessoa cega ou com baixa visão para que possa ser revisto. Envio um ficheiro áudio com o som do espetáculo e uma leitura em processo, ou fazemos um encontro ao vivo e leio o texto em direto. Esta releitura dá origem a trocas, muitas vezes muito relevantes, e, sobretudo, informa-me sobre a ativação ou não de imagens mentais. Durante a criação de um guião de AD para um espetáculo para público infantil, foi uma criança de 10 anos que fez a revisão do texto. 

          A sessão de AD é organizada pelo departamento de relações públicas do teatro. (Parece-me importante que seja verificado se outros teatros não oferecem um espetáculo com AD no mesmo dia.) Eu leio o texto ao vivo para um microfone conectado a um transmissor, seja desde a zona técnica de frente para o palco, ou desde uma sala adjacente com transmissão de vídeo. É muito raro ter cabines à prova de som. O público interessado senta-se no auditório, na maioria das vezes na primeira fila, e ouve com auriculares conectados aos recetores. 

          Mesmo com o texto pré-escrito, a descrição ao vivo permite adaptar-se a mudanças, a alterações na duração, a passagens improvisadas: trata-se de descrever uma performance ao vivo… não é incomum que passagens do espetáculo sejam alteradas durante uma digressão, ou que os intérpretes sejam substituídos… Nesse sentido, um dia antes da apresentação em AD, assisto aos ensaios e ao espetáculo para atualizar o texto descritivo. Por esse motivo, é melhor não organizar uma sessão acessível com AD no dia da estreia. 

          Mas a razão pela qual eu descrevo ao vivo é bem outra. De acordo com o feedback de uma revisora cega com quem trabalho: “A voz ao vivo dá corpo, é a voz daquela noite.” A oralidade ao vivo atuaria, portanto, como um “aqui e agora” com as suas falhas e os seus impulsos. 

          Antes do espetáculo, um passeio tátil pelo palco permite ao público interessado representar pelo toque a cenografia, os acessórios, os figurinos… Quando não há cenário, sugiro descobrir a sensação de espaço, um espaço vazio, um palco vazio, com um chão plano, sem parede, aberto para a plateia. O palco é um lugar específico. Proponho também atravessar os movimentos dos intérpretes como construções do espaço. Considerar o que os corpos nos dizem em movimento, nos espaços que ocupam ou deixam. 

          A visita tátil é completada por uma espécie de atelier. Trata-se de fazer com que o público interessado execute certos movimentos a partir do texto descritivo, de modo a ativar as imagens a partir da compreensão e interpretação do movimento descrito. Durante o espetáculo, as imagens mentais são ativadas a partir da memória já vivida destas ações, ativa-se a empatia cinestésica. 

          A audiodescrição é uma prática de observação, de análise de obra, de tradução, leitura e interpretação. Pergunto-me: o que descrever e como escrevê-lo? Ao contrário dos espetáculos de teatro, de óperas ou filmes (em que os diálogos fornecem informações sobre um quadro narrativo cronológico, uma história), em dança a especificidade da tradução das imagens coreográficas em palavras é o que vai tecer a trama dos acontecimentos: uma ficção sem diálogos a partir da descrição de corpos em movimento.

          Podemos falar de uma narrativa coreográfica? Como? É possível sintetizar em poucas frases uma peça coreográfica, como fazemos para os filmes? 

          Observar corpos em movimento oferece ao público experiências sensoriais, afetivas e motoras através da empatia cinestésica. É possível manter apenas uma descrição factual? É possível partir da nossa sensação para descrever o factual?

          É óbvio, para mim, que uma AD é subjetiva, pois está ligada à perceção visual, à empatia, ao olhar interpretativo da pessoa que descreve. É óbvio que os meus 30 anos de dança interferem na maneira como olho e interferem na escrita descritiva. Cada um tem o seu próprio estilo de escrita, é tanto uma interpretação quanto uma obra de autor/a. Na verdade, haverá tanto de AD quanto de audiodescritor/a. 

          Vamos fazer uma pequena experiência…

          Se estiverem confortáveis, proponho que fechem as pálpebras.

           

          Que imagem veem?

          Preto e branco ou colorido?

          Quanto mede a sala em que estamos? Aproximadamente.

          Quantos somos?

          Qual a cor das paredes?

          Visualize a sua posição sentada.

          Quantas portas há na sala?

          Visualize a pessoa sentada à sua direita ou esquerda.

           

          Abra as pálpebras.

           

          Esta experiência já nos informa sobre as nossas abordagens, atenções e escolhas. Fazemos escolhas porque nos é impossível lembrarmo-nos de tudo o que vemos, vimos ou sentimos. 

          O trabalho de audiodescrever um espetáculo coreográfico opera na observação e na escrita de escolhas. Não podemos descrever tudo. Observar para descrever consiste, de certa forma, em desmaterializar uma imagem, traduzi-la em palavras, interpretar a realidade, esquematizar, sintetizar, desmontar a realidade, detalhá-la… Ou seja, trata-se de recompor uma imagem. que conhecemos de antemão incompleta, numa abordagem interpretativa, por sucessão de escolhas, com o objetivo de ativar uma verossimilhança da realidade que ative imagens mentais. 

          A descrição de dança pressupõe a criação de grelhas de observação específicas ao coreográfico ligadas à presença dos intérpretes, à composição do espaço, à estética do movimento, tendo em conta as intenções do/a coreógrafo/a, dos/as performers, da dramaturgia, mas acima de tudo requer saber ler a dança, decifrar o movimento, os gestos, as intenções, requer considerar a coreografia como uma linguagem.

          João Polido Sombra de vento

          *O seguinte texto é uma versão traduzida e adaptada de uma sessão de escuta apresentada no ICA, em Londres, durante o mês de Dezembro de 2022, enquadrado no programa “Into Their Labours: The Films of António Reis and Margarida Cordeiro”. O texto lido era intercalado com fragmentos sonoros e musicais.*

          O último filme de Reis e Cordeiro, “Rosa de Areia” (1989), é o mais despojado de música (apenas presente durante o genérico) — prevalece o som. Este marca o fecho da trilogia de Trás-os-Montes que se iniciou com um filme com o mesmo nome, “Trás-os-Montes” (1976). Dos três, “Rosa de Areia” é o mais abstracto e literário; “um filme de matérias” (Reis), “para quem pode ainda ver e ouvir como que pela primeira vez” (Cordeiro). As narrativas são interpeladas por excertos de Kafka, Sagan, Montaigne e da própria Margarida Cordeiro, atravessando escalas micro e macro, do átomo ao cosmos, preocupando-se com a leitura humana feita sobre fenómenos e os efeitos destes. A temporalidade é quântica, indivisível; o presente sobrepõe-se com o passado e o futuro. Saltamos entre séculos enquanto olhamos a densidade e a fragilidade da duração do tempo em forma de estratos geológicos e da poeira à superfície.

           

          Excerto 1: o vento [4 min.]

          A sensibilidade material em “Rosa de Areia” atenta aos sentidos. A distinção tecnológica entre imagem e som cria leituras diferentes (embora não inteiramente incompatíveis) sobre realidade e ficção. A imagem em movimento é composta por várias fotografias, criando a ilusão de movimento, enquanto a medição (ou composição) do som não é divisível, dada a sua existência em tempo-espaço — não existe o equivalente a um freeze frame/imagem estática para o som. A qualidade efémera do som faz com que a sua percepção seja um espaço líquido, e que a observação dos seus efeitos possa ser igualmente dúbia.

          Ao longo do filme, tomamos enquanto “real” os sons atribuídos às paisagens. O realismo do som é verificado pelos movimentos e espaços representados pela imagem. Este primeiro excerto de som é uma colagem de sons de vento presentes durante os primeiros trinta minutos do filme. Ouvem-se qualidades diferentes, desde brisas a rajadas e, perto do final, um vento mais afiado, agudo, e com modulações evidentes; preservando, ainda assim, um vestígio do que reconhecíamos enquanto vento no início do excerto. Condensa-se aqui uma mudança que acontece lentamente ao longo de várias cenas do filme. Destaco quatro sequências pela qualidade do vento:

          a) brisa enquanto uma personagem cega caminha numa seara;

          b) rajadas e assobios durante uma procissão;

          c) um plano-sequência que examina a paisagem desde um grupo de personagens no cimo do monte até um esqueleto recentemente desenterrado — aqui o som não está nem no ponto de perspectiva da câmara nem onde a lente alcança —, ouve-se um som filtrado, como se atravessasse um tubo;

          d) após esse plano seguem-se outros apenas preenchidos por silêncio, até este silêncio ser interrompido pela compositora Constança Capdeville num prado, a girar um tubo de PVC amarelo, produzindo um particular assobio de vento.

          É nesta última sequência que se dá uma rutura da realidade através do som. O vento deixa de ser uma entidade unicamente acusmática (i.e. a causa do efeito não está visível) e passa a ser um elemento cuja origem é ambígua, podendo ser tanto natural como fabricada. A relação entre o natural e o artificial não é exclusiva, o vento de Capdeville é co-constituído pelos ventos que o antecedem; o mais próximo sendo o da cena da procissão.

          O som filtrado serve como uma introdução gradual ao material deste tubo. Há uma afinidade na sua ressonância. Na sequência c) ouvimos o vento processado pela compressão do tubo, como se imóvel, daí a sua frequência não variar. Porém, na sequência d) o tubo de PVC ressoa diferentes frequências de acordo com a intensidade e a velocidade com que é girado.

          A transposição do som do vento da sequência da procissão para o vento fabricado por Capdeville não é apenas acústica (ou estética), mas também semântica. Em “Rosa de Areia”, a compositora toma um papel de figura ou guia espiritual. Numa outra cena, vemo-la a realizar o mesmo movimento de vento com o tubo harmónico no cimo de um monte com um grupo de mulheres sentadas à distância, em frente de um estábulo. No final da sequência, caminha em direção a este grupo e entra no estábulo, enquanto o grupo eleva pedaços de uma rede vermelha translúcida, içando-a ao vento e deixando-a cair sobre os seus corpos. Entra no plano o pai de um rapaz que acabara de morrer. Trata-se de um ritual de culto aos mortos.

          Reis e Cordeiro engenham uma versão da Encomendação das Almas, um ritual com especial peso na região transmontana, realizado durante o período da Quaresma. Esta era uma prática comum no mundo rural português e a partir de 1930-40 acabara por cair em desuso1. Era organizada por grupos formados principalmente por mulheres que se reuniam à noite, “em pontos altos ou em encruzilhadas das suas aldeias para cantar e rezar pelas almas do purgatório”2. O grupo atravessa a aldeia a apelar aos “pecadores” que estão a dormir que acordem e o acompanhem com as suas rezas de modo a “encomendarem” as almas dos mortos para o Paraíso. As encomendadoras vestem-se com roupa preta, cobertas por um xaile de lã negro, e dependendo das aldeias utilizam artefactos rituais como matracas ou sinos. Paralelos a estes estão, portanto, a roupa preta de Capdeville, a rede vermelha translúcida e o tubo de PVC, gerador de vento.

          Capdeville encomenda o vento/espírito: “A alma do doente já voltou à sua casa.” O ritual é dado como finalizado com a prova de uma pena pousada sobre o cabelo do rapaz que acabara de morrer. Imóvel, livre de vento.

          A problematização de causalidade é uma premissa presente noutros elementos de “Rosa de Areia”, como na referência feita no filme ao físico Niels Bohr, popularmente associado aos campos da teoria quântica e da estrutura atómica3, ou através de uma série de interrogações sobre lei, identidade, origens e memória. Este acto de revelar uma ilusão (ou a sua possibilidade) sequestra a trajetória de reflexão (quero dizer, a identificação da realidade), a quebra da expectativa de como algo deveria soar.

          As modalidades de realismo e surrealismo de Reis e Cordeiro interagem continuamente, num sentido fanoniano de “introduzir a invenção à existência”4, ilustrando que “…a realidade num mundo, tal como o realismo num quadro, é em grande parte uma questão de hábito.”5

           

          Excerto 2: Constança Capdeville — “Libera Me” [versão de 1986]

          Esta peça da compositora e instrumentalista Constança Capdeville é um trabalho interdisciplinar que cruza música, dança e artes visuais, tendo várias iterações ao longo de um período de anos: primeiro como bailado em 1977, depois em concerto em 1979, e por fim como bailado e concerto em 1981. É uma peça para coro, piano, percussão e electroacústica (fita magnética). Foi aqui que Reis e Cordeiro ouviram o tubo harmónico que faria parte do “Rosa de Areia”. Porém, ao contrário do filme, em “Libera Me” o som é polifónico — várias vozes de vento.

          Com um passado em estudos de música antiga (paleografia e transcrição), organologia (estudo de instrumentos musicais) e práticas performativas, o processo composicional de Capdeville não era simplesmente enformado por música. Nas suas peças performativas, Capdeville redigia guiões ou partituras individuais para cada elemento da peça — o que actualmente se torna um obstáculo ao trabalho de arquivo e de reprodução, uma vez que o material muitas vezes se encontra fragmentado, perdido ou somente acessível através dos testemunhos vivos dos intérpretes que estiveram envolvidos nas mesmas6.

          O musicólogo Paulo Ferreira de Castro descreve o trabalho de Capdeville como “uma arte de interrogação sobre formas e objectos, uma invocação ritual de arquétipos sónicos e visuais investidos de uma força mágica, anterior à ‘cristalização’ de qualquer sistema”7, desenvolvendo uma sensibilidade para o som e o silêncio. Algo semelhante poderia ser escrito sobre a prática cinematográfica de Reis e Cordeiro, no seu olhar sobre linguagem e cognição antes de qualquer forma de cristalização, envoltos por Trás-os-Montes. As interrogações de Capdeville seriam realizadas, por exemplo, pela utilização experimental de instrumentos convencionais sob um estilo electroacústico — produzir música electrónica através de meios acústicos. Procuravam-se sons aparentemente electrónicos ou, simplesmente, sons que não seriam tão reconhecíveis a partir de um determinado instrumento8

          Um outro método abordava material musical e história da música. Capdeville reutilizava excertos de peças musicais de outros compositores, adaptando-as às suas, não meramente como citação, mas assumindo-as como “material musical em bruto” para ser transformado9. Um jogo entre o reconhecível e o abstracto trabalhado ao nível da memória para criar nova música a partir de matéria-prima musical, ou seja, capaz de moldar uma linguagem pré-existente, mas não se deixar subjugar inteiramente a ela. Com um sentimento semelhante, Capdeville expressava a necessidade de reconciliar a música do passado com a do presente, imaginando a convergência de repertórios e de formatos de apresentação através de várias disciplinas10.

           

          Excerto 3: o assobio

          “Trás-os-Montes” (1976) abre com a paisagem da própria região, sobre a qual irrompem os gritos e assobios de um rapaz pastor que organiza o seu rebanho. A sua voz é seguida dos badalos das ovelhas, em que a percussão equivale a movimento. A câmara aproxima-se de um rochedo e foca a atenção em pinturas rupestres escondidas no granito. O filme retrata, e ficciona, os habitantes das periferias de Bragança e de Miranda do Douro e a transformação de modos de vida, assim como as histórias e memórias de um povo e de uma região.

          O filme orienta-se, também, por distâncias: um afastamento “no duplo sentido de estar longe (exílio) e do próprio acto de afastar (longe da vista e esquecimento)”11. A distância entre a capital e a região mostra-se abissal, ao ponto de a lei vinda de Lisboa chegar lá difusa, manifestando a sua presença através de mandatários e da exploração mineira da região. Mais próximo de Trás-os-Montes está a França e a Alemanha, em processos tecnológicos avançados, para onde muitos dos camponeses acabam por migrar, deixando para trás os seus campos e a família à espera da próxima notícia e do envelope com dinheiro para viver. A distância real não é geográfica, mas sim simbólica. O comboio torna-se símbolo do êxodo rural, simultaneamente veículo e ponte de comunicação.

          Na última cena do filme, a câmara segue à distância o comboio que sai da aldeia por entre a escuridão de um Sol ainda por nascer. É difícil distingui-lo da madrugada, dando tréguas apenas nos breves instantes em que o fumo branco indica a sua posição espacial, e o seu apito ressoa a sua posição temporal.

          É neste momento que os assobios e gritos do jovem pastor ressurgem como que sintetizados. O apito do comboio tem uma qualidade antropomórfica, próxima da fragilidade da ressonância e vibração da voz. Sobrepõe-se o sinal de recolher do pastor a um de êxodo. Através desta afinidade de qualidade sonora, materializa-se um dispositivo mnemónico sónico, outra rutura de uma causalidade linear e cronológica.

          As temporalidades presentes no filme resistem à cristalização. A medida do tempo é orientada pelo modo de vida subsistente da comunidade. John Berger, no livro Pig Earth (integrado na sua trilogia de livros sobre o camponês europeu, Into Their Labours), oferece a ideia da vida como um interlúdio. O ciclo ininterrupto de nascimento, vida e morte que o filme retrata não é apenas uma experiência individual ou ontológica, mas uma experiência colectiva e antológica12. Explorando este sentido, Reis e Cordeiro abordam o parentesco, a camaradagem e uma pertença partilhada, mas também as suas respectivas sobreposições físicas (relativamente à arquitectura da aldeia) e densidades espirituais (formas sociais e práticas rituais ou cultos).

          Os ciclos de interlúdios são acompanhados pela tradição: “Uma cultura de sobrevivência contempla o futuro como uma sequência de actos repetidos para a sobrevivência. Cada acto empurra um fio através do olho de uma agulha e o fio é tradição”13.

          Em paralelo a “Trás-os-Montes”, filmado em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso), a música e a tradição foram dos campos mais disputados em Portugal. No início da ditadura fascista sob António Oliveira Salazar, em 1932, a música já tinha um papel privilegiado na política vindoura. António Ferro, escritor, jornalista e, mais tarde, director do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), assim o assumiria no seu artigo sobre uma Política do Espírito, em Novembro de 1932 no Diário de Notícias, ao citar Bonaparte: “Entre todas as artes é a música a que maior influência exerce nas paixões, e, por isso, um legislador deveria preocupar-se mais com ela do que com qualquer outra”14. A Política do Espírito desenhado por Ferro, e adoptada por Salazar, era um mecanismo de propaganda que ajudaria a curar uma crise de identidade (europeia)15. Alguns dos seus principais objectivos eram, por exemplo, resgatar o passado mítico da nação (o período de expansão e colonização imperialista transatlântica) e a (re)construção de uma identidade nacional patriarcal através da preservação da paz, daí o posicionamento político ambíguo de Portugal durante a II Guerra Mundial. 

          Em 1940, Salazar descreve que “para a formação da consciência pública, para a criação de determinado ambiente, dada a ausência de espírito crítico ou a dificuldade de averiguação individual, a aparência vale a realidade, ou seja, a aparência é uma realidade política. E este errado conhecimento das coisas é pior que a ignorância delas”16. Ou seja, descreve uma forma de poder brando, decretado por representações que vão de acordo com categorias previamente impostas. Uma ficção que se infiltra lentamente na realidade e que, de seguida, a sequestra.

          O que acontece nos 20 anos seguintes é a conversão de práticas culturais num bem turístico através de aparelhos do Estado Novo, como a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), as Casas do Povo, e o SPN/SNI (Secretariado Nacional de Informação)17. No mesmo período verifica-se um aumento de produção folclórica e a consolidação de representações simbólicas (i.e. modelos identitários) e repertórios populares das regiões portuguesas. As canções tradicionais seriam adaptadas em melodia e/ou letra, censuradas ou ideologicamente distorcidas18.

          Em 1959, Michel Giacometti, etnólogo corso acabado de chegar a Portugal, propõe à Fundação Calouste Gulbenkian o seu projecto de recolha etnográfica sobre Trás-os-Montes, tendo um parecer negativo embora aprovado pelo compositor e musicólogo Fernando Lopes-Graça, que daí adiante acompanharia Giacometti no seu trabalho para os Arquivos Sonoros Portugueses19.

           

          Excerto 4: José Manuel Martins (Cércio) – “Encomendação das Almas” [Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti – Trás-os-Montes, 1960]

          No final de 1920, a tendência na música era de um nacionalismo musical; uma ideia socialmente hierárquica de trabalhar com “melodias tradicionais dos camponeses” que os “centros civilizados” ainda não conheciam, procurando “na melodia popular a inspiração genuína, única e exacta”20. Opõe-se o urbano ao rural, a alta cultura à cultura popular.

          Em 1931, Lopes-Graça, embora aderindo inicialmente a esta tendência, opõe-se à ideologia nacionalista e à “lei etno-psicológica, formulada por um conhecido jornalista português”, que depois se designaria Política do Espírito21. A rejeição de uma identidade nacional dada e hegemónica acontece a Lopes-Graça ao mesmo tempo que o folclore estava a ser organizado como dispositivo de propaganda22. Como estratégia de resistência, o compositor re-trabalha a música regional portuguesa na forma de harmonizações, assumindo um critério étnico-estético — um modelo dialéctico entre sujeito e colectivo, “uma política de identidade que rompesse com a cultura de massas”23.

           

          Excerto 5: Fernando Lopes-Graça – “Acordai, Pecadores” [Onze Encomendações das Almas e Doze Cantos de Romaria, 1991]

          A estratégia de harmonizações, adaptações, ou de versões, pode ser transposta por diversas técnicas de composição ou tecnologias de processamento de áudio. Sobre o uso de informação musical como matéria-prima e ferramenta organizadora de expressão, relembro várias vezes a ideia de Lopes-Graça sobre uma dívida cultural por saldar. Ao usar as melodias populares ele assume o “roubo”, “não para as guardar para mim, mas com o objectivo de as devolver, possivelmente com uma taxa de juros sobre o roubo”24. No entanto, não as devolve tal como as encontrou. Não será um eco das músicas mas um outro vestígio.

          A antropóloga Ann Rigney, ao tomar o passado como “um produto de mediação, textualização, e de actos de comunicação”25, aponta para um modelo de memória cultural sócio-construtivista, em que “as memórias de um passado partilhado são colectivamente construídas e reconstruídas no presente em vez de ressuscitadas do passado”26; numa tentativa de reconhecer a inerência da perda de memória e abandonando a utopia de uma recordação plena. A memória cultural corresponde a um período de tempo mais longo, quando os testemunhos em primeira mão se tornam (quase) extintos, restando apenas relíquias e artefactos. “Rosa de Areia”, como “Trás-os-Montes”, navega reflexões de um objecto extinto (ou em vias de). Através de técnicas diferentes de justaposição temporal/narrativa, visual e sónica, procuram a composição de mundos, parecendo sugerir que “o mundo tal como o conhecemos começa sempre a partir de mundos que já estão à mão”.27

           

          1 Pedro Gonçalo Pereira Antunes, Depois da Morte. O Restauro Imaterial da Encomendação das Almas. Tese de doutoramento em Antropologia: Políticas e Imagens da Cultura e Museologia, Lisboa, ISCTE/NOVA FCSH (2021), 2.
          2 Ibid., 1.
          3 “Rosa de Areia” re-encena uma fotografia tirada em 1954 aos físicos Niels Bohr e Wolfgang Pauli, na qual estes observam a rotação de um pião. Com este brinquedo inicialmente a girar ao contrário, acontece um fenómeno mecânico que inverte o pião (e a sua rotação), pondo-o a rodar em pé. Citando o filme: “[O brinquedo] nos permite ter um modelo macroscópico mecânico de uma transição quântica.”
          4 Frantz Fanon, Black Skin, White Masks (Nova Iorque: Grove Press, 2008), 204.
          5 Nelson Goodman, Ways of Worldmaking (Indianapolis: Hackett, 2013), 20.
          6 Filipa Magalhães, “Musicological Archaeology and Constança Capdeville”, TDR: The Drama Review, 66, n.º 3 (Setembro de 2022), 65, 76. https://doi.org/10.1017/S1054204322000302.
          7 P. F. Castro, “Constança Capdeville um acto de aprendizagem”. In Notas de Programa dos 16º Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992), 86.
          8 Filipa Magalhães, Musicological Archaeology and Constança Capdeville, TDR: The Drama Review, 66, n.º 3 (Setembro de 2022), 65-67. https://doi.org/10.1017/S1054204322000302.
          9 Filipa Magalhães, “A obra de Constança Capdeville: itinerários artísticos, sociais e afetivos”, in Geografias Culturais da Música, do Som e do Silêncio, ed. Ana Francisca Azevedo et al. (S.l.: Lab2PT, 2020), 292-293; M. Ramalho, “O sucesso para quê? Entrevista com Constança Capdeville”, Informação Musical, n.º 6 (1982), 5.
          10 Filipa Magalhães, “A obra de Constança Capdeville: itinerários artísticos, sociais e afetivos”, in Geografias Culturais da Música, do Som e do Silêncio, ed. Ana Francisca Azevedo et al. (S.l.: Lab2PT, 2020), 298.
          11 Serge Daney, “Longe das leis”, O Olhar de Ulisses n.º 2: O Som e a Fúria (Porto: Capital Europeia da Cultura, 2001), 77-79.
          12 Segundo uma proposta de Fred Moten durante o seminário Black Preformance: Violence no Teatro do Bairro Alto (Lisboa, Outubro de 2022), o termo antológico é oferecido para pensar sobre processos de individuação e corpos e formas de viver que desafiam uma circunscrição simbólica, tendo uma prática inerentemente colectiva.
          13 John Berger, Pig Earth, (Nova Iorque: Vintage Books, 1992).
          14 António Ferro, Salazar: O Homem e a sua Obra, 3.ª ed. (Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, s.d.), 275.
          15 Maria de São José Côrte-Real, “Musical Priorities in the Cultural Policy of Estado Novo”, Revista Portuguesa de Musicologia, n.º 12 (2002), 227.
          16 António de Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas vol. III – 1938-1943. 2.ª ed. (Coimbra: Coimbra Editora, 1959), 130-32.
          17 Maria de São José Côrte-Real, “Musical Priorities in the Cultural Policy of Estado Novo”, Revista Portuguesa de Musicologia, n.º 12 (2002), 233.
          18 Dulce Simões, “O canto que virou património: da “Beleza do Morto” aos futuros possíveis”, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, n.º 60 (2020), 337-338; Maria do Rosário Pestana, “Alentejo, visibilidade e ocultação: scriptualização e institucionalização de práticas musicais rurais”, in Cantar no Alentejo: A Terra, o Passado e o Presente (Estremoz: Estremoz Editora, 2017), 135.
          19 Mário Vieira de Carvalho, Lopes-Graça e a Modernidade Musical (Lisboa: Guerra & Paz, 2017), 91.
          20 Ibid., 70-71.
          21 Ibid., 72-73.
          22 Ibid., 74.
          23 Ibid., 77, 97.
          24 Fernando Lopes-Graça, A Música Portuguesa e os Seus Problemas II, 2.ª ed. (Lisboa: Editorial Caminho, 1989),117.
          25 Ann Rigney, “Plenitude, Scarcity and the Circulation of Cultural Memory”, Journal of European Studies, vol. 35 n.º 1 (2005), 14. Tradução própria.
          26 Ibid., 14. Tradução própria.
          27 Nelson Goodman, Ways of Worldmaking (Indianapolis: Hackett, 2013), 6. Tradução própria.

          setareh fatehi Paralaxando (eu): a história de uma prática

          Paralaxando (eu): a história de uma prática

          setareh fatehi

           

          Esta é uma história

          de uma prática

          de contar histórias.

          É uma coleção

          de palavras que emergiram entre mundos que se conheceram,

          mundos que apesar de parecerem próximos, se sentem muito distantes.

           

          É uma escolha

          Uma forma de vida temporária nas condições em que (eu) nasci.

           

          (eu) por enquanto chamei-a de paralaxando (eu)

           

          DIA 1  Multitudes do (eu)

          Com Ogutu Muraya em Nairobi e (eu) em Amesterdão

          Ele está aqui com as suas palavras e os seus olhos

           

          Twende kazi                        {vamos}

          Vamos                                        بریم.

           

          Onde

          Está

          Onde pode ir

          Onde deve ir a coisa

          A coisa

          O corpo como coisa

          O (eu) como coisa

          A presença como coisa

           

          Onde pensas que estás agora?

           

          Faz uma moldura com as mãos à frente dos olhos

          As mãos são a moldura

          Perto da cara

          A cara é a moldura

           

          Se (eu) preferisse olhar por fora da moldura, a que se oporiam?

           

          Visão em paralaxe

          Duas imagens que não coincidem

          Duas condições diferentes que existem ao mesmo tempo no mesmo mundo 

           

          Se (eu) preferisse as dores de ver a paralaxe, a que se oporiam?

           

          “Estar em contacto” é a única forma de ser afetado pelo que quer que seja, diz ela.

          Distância

          Distância do outro

          O número de passos

          A distância entre os ombros

          A distância entre ti e elxs

          Distância social

          Distância emocional

          Distância entre classes sociais

          Distância económica

          A densidade de um fio

          Um milímetro 

          A espessura de uma parede

          Distância do ar

          4500 quilómetros

          Cinco dias de carro

          Quarenta dias a pé

          Distância focal

          Distância temporal

           

          Vamos fazer uma pausa

           

          É de manhã cedo em Teerão

          É noite dentro em Bogotá

          É de manhã cedo em Lisboa

          É um pouco mais tarde em Esmirna

          É muito cedo em São Paulo

          É de manhã cedo em Samara

          É um pouco mais cedo em Nairobi

          É o princípio da tarde em Hong Kong

          É noite dentro em La Serena

           

          Como é o teu tempo aí?

          Para onde está a ir?

           

          (eu) uma vez estive viva por um segundo e morri

          Não foi há muito tempo, no meu entendimento do tempo

           

          Consegues gostar do liminar?

          Consegues gostar do limbo?

          (eu) gosto da confusão

          (eu) gosto da vertigem

           

          Mas não por muito tempo!

           

          DIA 2

           

          (eu) estou a enlouquecer aqui

          Estão em trabalhos pesados de construção

           

          Tanto barulho

          O barulho deixa-me nervosa e triste

          Barulho imenso

          Um imenso – que (eu) não sei porque deveria estar a ouvir

           

          (eu) estou a enlouquecer aqui

          estão a construir uma estrada e o trabalho é pesado

          Muito pó

          O pó deixa-me ansiosa

          Pó espesso

          Um espesso – (eu) não sei porque (eu) devo inalá-lo

           

          Se (eu) preferisse respirar fundo aqui, a que se oporiam?

           

          Diz-me onde estás sediada agora?

           

          Posso (eu) recusar responder?

           

          Posso (eu) ao menos esperar?

          (eu) estou a tomar o tempo de quem?

           

          Ela disse, de uma forma muito engraçada:

          “Como se Bruxelas fosse em Bruxelas

          O Congo é em Bruxelas

          Tanto o trabalho como a terra.”

          (eu) repito:

          Como se Amesterdão fosse em Amesterdão

          Como se Teerão fosse em Teerão

          Como se Nairobi fosse em Nairobi

          Como se o meu corpo fosse (eu)

          Como se (eu) fosse o meu corpo

           

          Ah querida, não tenhas medo das paredes que fazem guerras, vais ficar bem!

           

          Ir e vir

          Aqui e ali

          Repete até que perca o sentido, em quantas línguas achares que entendes

          Ali aqui ir vir

          اینجا اونجا اومدن رفتن

          hapa, kule, njoo, twende

           

          Ele diz que naquelas fronteiras referem-se ao corpo como um risco ou fonte de contaminação 

          Naquelas fronteiras chamam-te de vírus

          Quando me chamam assim, isso é tudo o que (eu) quero ser

           

          Um vírus

          É incrível. Sendo um vírus, nem sabem se estás vivo ou morto

          Já pensaram que o vírus nem queria ir a lado nenhum mas que foi forçado a ir?

           

          DIA 3

           

          (eu) acho que estás muito longe

          O que significa a distância quando não temos documentos?

           

          É a inclusão sobre como excluir?

          É a hospitalidade sobre como ser sem-abrigo?

          É pertencer sobre como perder?

           

          Ele perguntou: trabalharias com dinheiro europeu?

          (eu) disse: como se a Europa fosse na Europa

          Como se tu fosses em ti

          Como se dinheiro fosse dinheiro

           

          Já decidimos se gostamos do vírus?

          Já decidimos quem está incluído e excluído deste “nós”? Quem é que decide?

          Será que deveríamos tomar essa decisão e postá-la online?

           

          (eu) pedi a Ogutu que fosse o meu avatar. Ele podia escolher entre uma beringela roxa e um lagarto-tatu

          (eu) ia estar online

           

          (eu) disse-lhe isso

          (eu) ia ter falhas, cortes, (eu) não ia conseguir ouvir bem, (eu) só ia conseguir ver o que estivesse enquadrado na moldura do ecrã, (eu) podia sentir-me claustrofóbica às vezes,

          (eu) disse-lhe que precisávamos de confiar um no outro

           

          Ele disse: “Claro que confio em ti.”

          Confias em mim?

          Será que elxs conseguem confiar em nós?

           

          Esta questão de onde está o meu corpo, onde pode estar, onde deve estar

          Será sobre mim?

          Será mesmo uma questão, no sentido em que espera uma resposta?

          Haverá uma escolha a fazer?

           

          (eu) quero conseguir reencarnar numa vida de nómada, sem-abrigo e com saudades de casa

          Talvez esta prática seja para isso

           

          DIA 95   (eu) diáspora da paralaxe

          Com Kamran Behrouz em Alpenhof e (eu) em Teerão

           

          Kamran construiu a Kl!tar – uma cabeça falante em 3D, a partir das nossas caras – e escrevemos um poema para um painel que se chamava: “Será que existe um corpo-tipo do Médio Oriente?”

           

          Nós perguntámos:

          Que Médio?

          Que Oriente?

          Que corpo?

          O Médio Oriente de quem, de facto? E o Médio de que merda de Oriente?

          De onde estamos a falar?

           

          Ela usa as noções de paralaxe

          Para observar as técnicas de parecer errado

          A paralaxe como uma sensação impalpável de ausência ou confusão nos aparelhos de telecomunicações,

          um sentimento de ausência como quando não conseguimos perceber para onde está a outra pessoa a olhar e se está a prestar atenção ou se está a ler os seus emails

           

          A paralaxe expõe demasiado o vazio que existe entre as imagens de dois lugares, dois corpos, duas atualidades separadas pela força da economia e da guerra política

           

          (eu) diáspora da paralaxe     

           

          Era uma vez um corpo que queria poder escolher

          Ela queria ter mobilidade

          Mas não ser mobilizada

          Ela queria ser vista

          Mas talvez não ser visualizada

           

          Ela vive em Teerão, Nairobi, Creta, Amesterdão, Londres, Frankfurt, Istambul, Zurique, Cairo, Sidney e Queixome

           

          Ela veio do passado que foi esquecido e ela estava a andar para trás em direção ao que podia ser o seu futuro

          Ela recusa identificar-se com

          Ela recusa identificar-se com

          Ela recusa identificar-se com

           

          DIA 255   (eu) IRL desativado

          Fevereiro 2022 com Shahrzad Irannejad em Istambul e Babak Amrooni em Teerão

           

          (eu) estou aqui

           

          (eu) em minúsculas e entre parêntesis

           

          À procura do significado de individualidade e autoria

           

          (eu) estou aqui

           

          Crítica do “dualismo digital”, aquela discussão quase antiquada que surge quando assimilamos o digital e o virtual e opomos o virtual ao real

           

          Aponta para o capacitismo, enraizado na obrigatoriedade da presença física

          O capacitismo que nos obriga a fechar os olhos à paralisia colonial

           

          (eu) estou aqui e trago o meu corpo até ao centro da questão

          E (eu) não posso estar mais de acordo com o sentimento de que

          Em caso de (eu) estar presente, de qualquer forma possível,

          Tudo o que estiver perto dessa presença é real,

          em todas as suas formas de (eu) manifestar 

           

          vamos fazer uma pausa

           

          DIA 415  tamasha: acolhendo-te acolhendo (eu)

          Com Katerina Bakatsaki, Ayda Alisadeh e Saina Salarian na galeria Arti em Amsterdão e Reyhaneh Mehrad e (eu) no parque do meu bairro em Teerão

           

          Tudo pode desaparecer e reaparecer em qualquer altura

          A imagem na parede   

          A ligação wifi

          O espelho

          O carregador

           

          Podem cortar a eletricidade e a internet outra vez

          O preço de tudo subiu muito

          Há pessoas a ser assassinadas outra vez. Executadas!

          Tudo pode desaparecer e algumas coisas podem nunca reaparecer

          Corpos, histórias, esperanças, sorrisos

          O som dos nossos passos

          A voz dela

          A tua motivação

          E a minha

           

          Ela disse:

          O espaço é uma pele

          O ecrã é um espaço

           

          Ali, no espaço, há uma coisa que é ao mesmo tempo tu e (eu)

          Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.

          Inês Zinho Pinheiro Maneiras de ‘cher’

          Maneiras de ‘cher’ – Práticas escritas na 1ª pessoa que permitem ligações com o chão e traduções do chão (o primeiro objeto da ação)1

          Proponho que sejamos chão em conjunto, ‘cher’ em conjunto. Um amigo falou-me sobre a ideia de ‘pésquisar’ (pesquisar com os pés), gostava de o fazer com todo o corpo, de ‘corpisar’, enquanto sou chão, ‘chou’. Tudo isto deverá ser feito lentamente, suavemente, despojadamente, sem velocidades extremas. Isabelle Ginot descreve práticas doces como aquelas que desenvolvem “baixas intensidades; lentidão, em oposição às velocidades extremas procuradas em muitas práticas corporais”2. Partindo do doce, pensei então que estas práticas de ‘cher’ poderiam ser pegajosas, práticas que enfatizam a sensação física e não a exibição visual. 3

          Comecemos por sentir o chão, experimentar e experienciar o chão com a nossa ‘pele sensível’. Podem incluir um gesto experimental no chão, concebendo a prática somática enquanto “disciplina da erudição do sentir” que propicia a criação de gesto próprio de cada pessoa4. Talvez o chão seja ou esteja pegajoso, frio, ou rugoso, lisinho, e simultaneamente apoie o nosso corpo.

          Penso que este gesto experimental já é parte do processo para encontrarmos possíveis traduções do nosso chão. Este género de processos de tradução incorporados acontece quando bailarinos traduzem descrições verbais, feitas por coreógrafos, para sensações cinestésicas. Ao ‘chermos’, estamos simultaneamente a movimentarmo-nos no chão, mesmo que subtilmente, a sentir o chão e ainda a traduzi-lo. Esta tradução pode tomar formas variadas: sensações, palavras, movimentos… nasce de um conhecimento incorporado sobre o chão, de uma inteligência cinestésica derivada da experiência curiosa do chão e de uma sensibilidade consciente do que é ‘cher’, pois o conhecimento também implica curiosidade.5

          Podemos olhar o chão mantendo a atenção na sensação física de estarmos em contacto com o chão. Talvez encontremos resíduos, manchas, outras dimensões que fazem parte de ‘cher’. Para continuarmos a entrar nestas dimensões, sugiro que agora o nosso foco se dirija para as partes do corpo que estão em contacto com o chão. Quando tivermos tomado consciência desses pontos e das suas sensações, imaginemo-nos a derreter no chão, como se fossemos tão pesados e maleáveis que ultrapassássemos o chão. Este momento, em que vamos para além do nosso chão, poderá ser o instante em que ‘chomos’, efemeramente, de forma intensa e incorporada, e ficamos assim mais conscientes da sensibilidade do nosso corpo ​​– “o estado somático do ser”6.

          Sentem uma ligação com os outros seres que também estão a ser chão convosco? Os outros ‘cheres’ com quem estão a partilhar esta experiência coletiva de ‘cher’? Segundo Georges Bataille, o acesso ao mundo interior está ligado à extrema interrogação, assim como à ideia de que o “si mesmo (self) não é o sujeito que se isola do mundo, mas um lugar de comunicação, de fusão do sujeito e do objeto”7. Tal acesso à experiência interior é impedido por uma perda de horizontes, nas palavras de Charles Taylor: “A ideia de que o indivíduo perdeu algo de importante com a privação de horizontes de ação mais amplos, tanto sociais como cósmicos”8. A intencionalidade coletiva liga-se ao ‘ser conjuntamente’ que procuramos ao ‘chermos’, ao colocarmo-nos nesta situação de “intenção partilhada, atenção conjunta, emoção coletiva”9.

          Se considerarem esta prática sugestiva, proponho ainda que criem outras maneiras de ‘cher’, que criem as vossas práticas para se ligarem ao chão e o traduzirem. Barthes sugere uma “colheita coletiva” de “todos os textos que deram prazer a alguém”10. Da minha parte, sugiro a recolha de uma variedade de maneiras de ‘cher’. Procurem uma referência que se possa tornar o vosso chão. Eu escolhi a música The Sun Ain’t Gonna Shine Anymore, de Cher, como inspiração para desenvolver esta prática, vocês podem escolher outro elemento para terem um ‘chão de partida’.

          1 Vayer, P. (2006). O Diálogo Corporal. Lisboa: Instituto Piaget.
          2 Ginot, I. (2013). “Douceurs somatiques”. Repères, cahier de danse, vol. 32, 21-25.
          3 Ver Spatz, B. (2015). What a Body Can Do. Technique as Knowledge, Practice as Research. Londres e Nova Iorque: Routledge.
          4 Ginot (2013).
          5 Ver Ehrenberg, S. (2015). “A Kinesthetic Mode of Attention in Contemporary Dance Practice”. Dance Research Journal, 47, n.º 2, 43-61.
          6 Idem.
          7 Bataille, G. (2021). A Experiência Interior. Lisboa: Edições 70.
          8 Taylor, C. (2009). A Ética da Autenticidade. Lisboa: Edições 70.
          9 Giovagnoli, R. (2021). “Habitual Behavior: Bridging the Gap between I-Intentionality and We-Intentionality”. Academia Letters, article 389.
          10 Barthes, R. (2009). O Prazer do Texto Precedido de Variações sobre a Escrita. Lisboa: Edições 70.

          Wilson Le Personnic Myriam Gourfink O infra, o sensível, o pré-movimento, a respiração, a vibração…

          Wilson Le Personnic entrevista Myriam Gourfink

          Figura iconoclasta da paisagem coreográfica francesa, a bailarina e coreógrafa Myriam Gourfink tem vindo a desenvolver, desde o final dos anos 1990, uma pesquisa extremamente fecunda que se enraíza numa prática assídua do yoga da energia, de inspiração tibetana, e num estudo aprofundado do sistema de notação Laban. Cruzando técnicas somáticas e dispositivos de alta tecnologia, o seu trabalho baseia-se em técnicas respiratórias, na relação entre movimento e respiração, e na consciência subtil do espaço. Estas práticas levaram-na a formalizar uma dança de fluxos, infinitamente desacelerada. Nesta entrevista, realizada em Abril de 2022 no Centre National de la Danse em Pantin, Myriam Gourfink partilha as engrenagens da sua dança e reflecte sobre mais de vinte e cinco anos de pesquisa.

           

          Há vinte anos que desenvolve uma pesquisa coreográfica baseada no yoga e em técnicas respiratórias. Esta prática, combinada com outros estudos somáticos, levou-a a formalizar uma dança de fluxos, uma “dança-transição” num tempo estendido. Como é que encontrou e nomeou esta dança de fluxos, a partir do interior do seu próprio corpo?

          A minha primeira peça, Waw, em 1998, baseava-se numa prática de respiração proveniente de um yoga de origem tibetana: o yoga da energia. Eu tinha apenas três anos de prática atrás de mim e estava a explorar a relação entre o movimento e a respiração a partir de intuições, recorrendo em particular aos pranayamas físicos que são os primeiros exercícios que se experimenta quando se inicia este yoga: localizar a respiração, distribuindo em receptividade activa a consciência pela base, centro e topo dos pulmões ou das narinas, sentir a carícia, a temperatura, a vibração do ar que entra e sai, brincar com os ritmos da inspiração, do tempo cheio, da expiração e do tempo vazio e, sobretudo, dedicar tempo a observar em receptividade passiva o modo como cada uma das explorações modifica o nosso estado interno. Nessa época, comecei também a praticar a técnica do Mula bandha, tal como é ensinada no yoga da energia: trata-se de contrair muito ligeiramente a zona entre o sexo e o ânus. Na realidade, é mais uma coisa psíquica do que física, é como que um ponto de apoio da consciência que traz a esta zona uma leve consistência untuosa, elástica e “crepitante”. Sentia que, nesta arquitectura invisível, esta prática tibetana era libertadora a vários níveis: sentia os meus músculos a relaxarem, uma flacidez das carnes, novas zonas que se abriam e vibravam, fazia-me bem, revigorava-me. Depois, a minha professora de yoga, Gianna Dupont, ensinou-me uma nova técnica, o Sahajali mudra, que explorei no ano seguinte (1999) na companhia de outras três mulheres (Julia Cima, Laurence Marthouret e Françoise Rognerud) para o quarteto Überengelheit. O Sahajali mudra consiste em contrair muito ligeiramente as áreas dos lábios, da vagina e do colo do útero numa receptividade activa, ou seja, também aqui, o que conta é antes de mais dedicar tempo a sentir cada uma das três zonas, trata-se de conseguir distribuir aí a nossa consciência para deixar ocorrer e acolher uma espécie de magnetização vibrante, cuja sensação sobe dos lábios até ao útero; esta prática estimula um centro que harmoniza em nós as polaridades masculina e feminina, trata-se do chakra swadhisthana; em seguida, esta técnica propõe um ponto de apoio da consciência num centro que orquestra o fluxo emocional, e que se localiza atrás do meio do crânio frontal (neste yoga, é o chakra ajna); depois, circulamos de swadhisthana a ajna na inspiração, e na direcção oposta na expiração; por fim, uma fase em receptividade passiva permite acolher movimentos de deslizamentos internos, vibrações luminosas, sonoras, bem como texturas, sabores e odores internos cujo espectro é realmente surpreendente. Na minha experiência, esta prática modifica-me completamente a respiração: dou por mim, a cada vez, em estados (va)porosos. Demorei muito tempo a discernir o que se estava a passar no meu corpo, porque a respiração era como um fio contínuo, já não tinha consciência do fim e do início das fases de inspiração e expiração, eu estava na respiração, identificava-me com a respiração, como que sempre em transição numa imobilidade, e foi assim que a dança que desenvolvo se tornou uma dança do fluxo, uma dança da transição num tempo estendido.

           

          Que memórias físicas conserva da descoberta desta prática? 

          Lembro-me que, nessa altura (entre os 26 e os 32 anos), praticar era extremamente cansativo, nem sempre compreendia o que se passava no meu corpo e ficava muitas vezes subjugada pelas emoções. Porque, contra as recomendações da minha professora de yoga (cujo rigor, precisão e moderação, felizmente para mim, são as de uma antiga engenheira electrónica), praticava yoga durante várias horas por dia (às vezes, para ir até ao fim da exploração dos meus próprios caminhos, podia praticar durante seis horas), e isto para além de experimentar as minhas próprias pesquisas coreográficas. Too Generate, em 2000, exorcizou de alguma maneira esse excesso; escrevi deliberadamente uma partitura excessiva quanto ao seu carácter invisível, a ideia era esfrangalhar-me, despedaçar-me, saturar a minha percepção. Com um programa de computador, tinha estabelecido um enorme espectro de circulações da consciência. Devo dizer que me recordo de estados em que me sentia alucinada, quase em levitação e pronta a levantar voo, de tal maneira ficava mais leve, e que a partir desse solo a ideia de teletransporte me pareceu ser, para a humanidade dos séculos vindouros, uma faculdade corporal passível de ser desenvolvida. Entretanto, de uma forma muito mais terra-a-terra, depois de cada apresentação de Too Generate, eu ficava extremamente cansada, era demasiado intenso, e esta prática excessiva acabou por trazer à superfície um tsunami de memórias traumáticas. Não estava em frangalhos, estava pulverizada e, sem a ajuda dos meus terapeutas e da minha professora de yoga, teria muito provavelmente caído numa depressão. Depois, progressivamente, aprendi a medir melhor as práticas invisíveis, moderei o meu desejo de infinito tendo em conta a minha realidade e as das mulheres (bailarinas) que me acompanharam e me ajudaram a amar acima de tudo as nossas limitações humanas. Com o tempo, aprendi a canalizar as intensas vibrações destas energias emocionais e a dar-lhes forma. Estes estados vibratórios tornaram-se posteriormente o cerne do meu trabalho.

           

          Seria capaz de descrever esses “estados vibratórios” a partir do interior do seu corpo?

          De L’Écarlate, em 2001, a Évaporé, em 2018, cada uma das minhas peças estimula e canaliza as emoções. Por exemplo, em Innommée (2004) ou This is my house (2005) ou ainda em Almasty (2015), as partituras propõem estimular o corpo da energia  mediante o corpo do conhecimento. Passo a explicar: no yoga, estes dois corpos formalizam um contexto, proporcionam limites; o primeiro estrutura o espaço intracorporal, e o segundo o espaço externo. O corpo do conhecimento é o espaço periférico, não tem propriamente forma; no entanto, na prática do yoga da energia, os pontos de referência que lhe dizem respeito surgem vezes sem conta no ensino. Alguns dos pontos de referência são, por exemplo, a minha sensação de direcção para a frente (o futuro) ou para trás (o passado), da direita (a polaridade feminina no plano físico) ou da esquerda (a polaridade masculina no plano físico), do baixo (a terra) ou do alto (o céu). E, assim, vou trazer consciência a um dos lugares que constituem o espaço periférico do corpo do conhecimento (posso colorir ou dar um som, um cheiro, um gosto ao lugar escolhido), e vou aspirar e deixar fluir a sensação que tenho desse lugar, e a que dei uma qualidade, para nutrir uma parte do corpo com energia. Cada circulação (efectuada em receptividade activa) que liga os espaços do corpo do conhecimento ao corpo de energia é seguida por uma fase de receptividade passiva; há então diferentes formas de nos posicionarmos para deixar que as reacções ocorram. A fim de canalizar e manter a estabilidade, implementamos modalidades de recuo da consciência; distanciamo-nos da reacção ao mesmo tempo que a deixamos existir. Este recuo pode ocorrer numa área no centro do cérebro (o ponto de origem é o ponto de ancoragem da consciência), ou então a partir deste ponto de origem podemos sentir a espessura e extensão do crânio frontal, ou então podemos sentir ajna. Isto torna possível não nos perdermos nas vibrações por vezes intensas produzidas pelas circulações entre corpo do conhecimento e corpo da energia, ao mesmo tempo que as deixamos existir. Precisamente, ao nível da experiência, consegui sentir mudanças de temperatura intensas, tremores que podiam durar muito tempo numa parte do corpo, formigueiros, a impressão de ser invadida por bolhas mais ou menos finas, dilatações internas em volumes espaciais, ou aberturas muito finas apenas numa pequena linha que produz uma espécie de cócegas; consegui percepcionar golpes de uma régua de metal na tíbia esquerda, uma deflagração na nádega direita, estridências nos dentes, senti as lágrimas a rolar como pérolas muito lentamente e muito suavemente pelas bochechas, ou até mesmo o borbulhar surdo das minhas raivas ou tristezas escondidas.

          Como é que hoje em dia continua a trabalhar essa “vibração invisível”?

          Cada projecto é uma oportunidade para pôr em prática esta pesquisa. Desde Glissement d’infini (2019), tenho-me envolvido verbalmente no trabalho, nomeadamente graças às ferramentas da cabala tal como ensinada por Arouna Lipschitz, com quem estudo desde 2001. Com a equipa de bailarinas, dedicamos o nosso tempo várias vezes ao dia a pôr palavras neste invisível, a pôr palavras nas nossas sensações, a expressar aquilo de que precisamos, e a pôr palavras nos nossos desejos ou intenções neste trabalho. E toda esta verbalização colectiva ajuda-me a compreender melhor os fenómenos físicos e as informações sensíveis: hoje, para mim, é uma dança de massas corporais elásticas que deslizam e se desprendem, como que em oposição umas às outras, criando volumes pneumáticos em que as vibrações ronronam. O que me move hoje em dia é não abandonar estas vibrações, não estar em recuo, ficar no interior ao mesmo tempo que as deixo evoluir como um perfume que se abre, e tanto pior se o cheiro for nauseabundo, sei que as minhas estruturas internas estão hoje suficientemente fortificadas para surfar grandes ondas emocionais. Isto está muito próximo do que experiencio na Gestalt e na ginástica sensorial, que são as duas práticas que, juntamente com o yoga, me acompanham actualmente. Esta conversa também me permite perceber que a minha pesquisa é estimulada pela minha professora de yoga (que sigo duas vezes por semana desde 1995) e que, cada vez que faço uma aula, insiste nos diferentes vazios passivos (existem 18 no ensino do yoga da energia). Nestes estados, estou apenas em receptividade passiva, a consciência é estável e aloja-se num lugar do corpo, mais nada: espera aí sem esperar nada. E nesta exploração, mesmo que as sensações ocorram, permanece no mesmo sítio. Para manter a consciência neste equilíbrio, sinto-me, neste dispositivo de meditação, como se estivesse no fio da navalha. Não sei se alguma vez serei capaz de dançar com esta fragilidade, também não sei como é que este sentimento de vulnerabilidade poderá ou não evoluir, acho que ainda não compreendi o que são estes vazios passivos; o que é certo é que, ao meu próprio ritmo, começo a fazer experiências.

           

          Este aumento da percepção provoca uma espécie de tempo estendido; os gestos abrandam e a nossa percepção transforma-se. Será que a lentidão permite tornar visível esta “vibração invisível”?

          Inicialmente, parti da minha própria percepção e precisava de tempo para sentir que a sensação se solta, a minha abordagem era dar a mim própria o tempo para sentir verdadeiramente. Hoje em dia, preciso de menos tempo para chegar a esse estado de atenção e o deixar-me ir não se situa exactamente no mesmo lugar. Ainda que o processo não seja perceptível para o espectador, não deixa de ser extremamente físico. Por dentro, esta lentidão é constituída por diferentes velocidades e ritmos; é polirrítmica, enquanto o público, parece-me, vê uma progressão muito suave de um deslocamento ou de um movimento. Quando observo esta dança de fora, sinto os sobressaltos dos intérpretes; também percepciono a seriedade com que elas ou eles mergulham no que sentem, sinto a sua honestidade em relação às suas sensações, a sua autenticidade. O que também me parece legível é a sua gentileza, o seu deixarem-se ir. E, além disso, uma infinidade de pequenos detalhes, como os micromovimentos de cada uma das suas vértebras que lhes fazem inchar a pele e as roupas ao longo da coluna, um pouco como uma serpente que passasse debaixo de um tapete, as mudanças expressivas que lhes afloram os rostos e lhes desvendam as emoções, os estremecimentos das asas dos seus narizes, os arrepios que lhes percorrem as nucas, os seus tremores físicos que são tão profundos que é inimaginável que os possam controlar, as suas aberturas elásticas que nunca mais acabam, os seus maxilares que cedem, as suas pálpebras que lhes acariciam sensualmente os globos oculares quando as fecham, o lugar desconhecido onde se vão perder e para onde me levam consigo com um nó na barriga, a dilatação das suas bacias, a coragem nos seus baixos-ventres que me desperta. Estou ciente de que esta lentidão pode provocar um estado de hipnose para algumas pessoas, eu sou a primeira. Quando estou no público, já reparei que não sou a única neste estado. Além disso, sinto que é mais fácil para mim estar acompanhada para alcançar esta sensibilidade acrescida do que meditar sozinha. Os testemunhos e comentários que consegui recolher fazem-me pensar que este resíduo meditativo ou até hipnótico é partilhável e partilhado. Mas sei que esta proposta de atenção pode por vezes ser exigente para outras pessoas. A exigência reside, antes de mais, na minha opinião, na capacidade do espectador de se emancipar, de libertar os seus registos de atenção e de viver os ritmos que lhe cantam; é uma repercussão que considero tão gratificante como a possibilidade de mergulhar, se acontecer espontaneamente, num estado de consciência intenso, meditativo ou hipnótico.

           

          A sua dança dá apenas a ver um ínfimo resíduo desta “vibração” interna, como a parte visível de um icebergue. Esse estado vibratório é perceptível para um olhar não-iniciado?

          Há uns anos participei num projecto de investigação conduzido por Asaf Bachrach, investigador em neurociências no CNRS (Centre national de la recherche scientifique), com investigadores em neurociências cognitivas. A ideia era recolher medidas fisiológicas e neurofisiológicas de espectadores/bailarinos que dominassem as minhas técnicas de trabalho, espectadores iniciados em sessões de yoga e espectadores que vissem a peça sem qualquer conhecimento do trabalho somático que o espectáculo implicava. Este estudo mostrou, nomeadamente, que cada grupo de espectadores desenvolve uma atenção particular e que a percepção do espectador, esse “resíduo”, como lhe chamou, é sempre visível (em diferentes graus), quaisquer que sejam os filtros através dos quais se olha para o corpo que dança. Durante o espectáculo (era Souterrain, 2014), os investigadores observaram nos espectadores uma circulação da sua consciência no espaço do seu próprio corpo em diálogo com os intérpretes; constataram, após o espectáculo, um abrandamento do seu ritmo respiratório a par de um aumento da sua percepção dos movimentos invisíveis, e uma estabilidade acrescida da sua atenção; em conclusão, a investigação disse que observou correlações entre a coreografia e as mudanças nos estados dos espectadores a nível fisiológico, cognitivo e atencional. Para explicar isto, os investigadores avançam a hipótese de fenómenos de ressonância, aliás já observados noutros estudos sobre meditação. Para mim, a partir do momento em que sinto um objecto, um espaço, um animal, uma planta ou uma pessoa, forma-se imediatamente uma sensação háptica, um espaço residual, a que prefiro chamar um espaço de ressonâncias, de trocas invisíveis, sobre as quais ainda não sabemos grande coisa, mas que sabemos que existem graças aos estudos científicos que começam a investigar o assunto.

           

          Será graças a esse tempo dilatado, a esse abrandamento, que o espectador pode aceder ao tal “espaço de ressonância”?

          Em vinte anos, penso que aconteceu uma única vez um espectador constatar a mistura da minha orquestração interior; não é de todo minimalista, trabalho com uma profusão de informações perceptivas que cantam em mim e me remexem. E esse espectador, então, que expressou tão bem o que sinto dentro de mim, foi Steve Paxton: tinha acabado de mostrar a minha peça Breathing Monster (2011) no quadro desta investigação com Asaf Bachrach e alguns cientistas estavam a fazer-me perguntas sobre lentidão. Depois, o Steve interrompeu a conversa um pouco zangado e disse “Vocês nem sequer sentiram como ela estava speedy por dentro”. Fiquei muito surpreendida, porque não é o comentário que recebo habitualmente. Lembro-me do estado em que me encontrava durante essa performance: interiormente estava muito nervosa, dançava em silêncio, nem sequer tinha os apelos trovejantes do baixo eléctrico para aliviar a minha raiva rubra. E ele tinha-se apercebido. Julgo que foi a primeira vez que me senti plenamente compreendida, e isso acalmou-me muito. Descobri então que era possível partilhar e fazer com que as pessoas sentissem o que se passava dentro de mim. Julgo que o Steve teve acesso a um “espaço de ressonância” de uma grande clareza: uma empatia cinestésica muito sensível naquele momento. Esta pequena história prova que os espectadores podem sentir em parte o que se está a passar no interior. Mas compreendo quando dizem que “é lento”, porque tenho consciência de que trabalho noutro tipo de temporalidade, que não estamos habituados a ver num palco de dança. No entanto, com o passar dos anos, tento compreender como dar a ler um máximo das agitações nos nossos invisíveis. Penso que actualmente estou rodeada de intérpretes que vão tão longe na sua amassadura interna que é mais fácil para o público apropriar-se do que está em jogo emocionalmente: tornar suas todas as suas emoções e acolhê-las dentro de si, estar nesse lugar onde abraçamos e orquestramos todas as frequências. Os testemunhos após o espectáculo vão, parece-me, cada vez mais na direcção dessa compreensão; isto também vem, talvez, de uma profunda mudança nas sensibilidades.
          Esta entrevista foi publicada na sua versão original em francês no Journal de l’ADC (Association pour la danse contemporaine Genève), n°81, Agosto-Dezembro de 2022. Traduzido por Joana Frazão. 

          Rogério Nuno Costa Multiversidade

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          Nota (de rodapé) para a escrita de uma tese sobre “Multiversidade”, uma academia-enquanto-performance de Rogério Nuno Costa

          1. Não. […] O escritor catalão Enrique Vila-Matas escreveu um livro sobre os escritores da história da literatura que decidiram parar de escrever(1.1). Um livro sobre todos os livros que ficaram por escrever, mas que subsistem, suspensos, na probabilidade de uma qualquer dimensão paralela. O livro são apenas (as) notas de rodapé; na verdade, o livro não existiria se não estivéssemos à espera dele. Também eu poderia dizer, d’après Bartleby, que preferia não. Preferia não escrever. Isto não significa que o texto não existe. Está aqui, estou a escrevê-lo, mas suponho que, lendo-o, não o consigam ver. […] A potência do que não é dito, mas cujo eco se reflete, invertido, do outro lado do espelho. Não será um meta-texto, antes um texto d’après outro texto. Um pre-texto (para não escrever). Já sabemos que não houve Big Bang nenhum. A inexistência de um início inaugural levará à consequente invalidação de toda e qualquer ideia de fim. Proponho, aqui, uma nova temporalidade, uma gramática do infinito; o que escrevo é uma emanação etérea da tese que não vou/não quero/não posso escrever, e projeta-se em várias direções temporais: para trás dela, para a frente dela, para dentro dela. Nunca por causa dela, nunca sobre ela. O avesso da tese. Tento: Da importância da estupidez. Mas detenho-me logo a seguir. Fala-se muito pouco do que corre mal; do descalabro da queda, da perda, da desconexão, do esquecimento, da passividade. Escrevo: Da importância do aborrecimento. Apago e escrevo: Da importância da imobilidade. Mas detenho-me logo a seguir. Never skip the intro, stay there!(1.2), exclamo, em jeito de título para um livro-manifesto que se desdobra em errata, adenda, índice, glossário, advertência do tradutor, lista de agradecimentos, ficha técnica, código ISBN, preço de capa, páginas órfãs, linhas viúvas. Notas de rodapé, portanto. Às vezes o espetáculo está todo na folha de sala, no vídeo promocional, no número de telefone para fazer a reserva, na vontade de ir ver… Mais vale ficar em casa(1.3). Que tal como o anti-herói bartlebyano Oblomov, “que observa a vida que passa ao seu lado como um rio contemplado da margem”(1.4), o texto promete arrancar, mas jamais passa da casa de partida. Quase imita Beckett, o maior dos poetas-do-não: “Nem um movimento. Nem um pensamento. Não fazer nada. Não colaborar. E deixar que seja o regime do ímpeto, com a sua linguagem criminosa, a acionar as alavancas dessa vida que passa ao nosso lado. Oca e imprecisa.”(1.5) Jamais. […] Leio na lo-fi(-sophy) de Judith Halberstam(1.6) que devia haver mais invasões-de-palco, mais assaltos à positividade tóxica que inunda o pensamento contemporâneo. O salão dos recusados é também o gueto dos desistentes. The queer art of not even trying. Ou então, memorizando Badiou: “Ao culto identitário da repetição, devemos opor o amor ao que é diferente e único, irrepetível, errático e estranho.(1.7) Continuo: Sobre o mito da meritocracia. Mas detenho-me logo a seguir. Sempre que alguém me diz que só aceitou jogar o jogo proposto pelo sistema opressor para o poder controlar, aquiesço, dizendo: Mais cedo ou mais tarde esse alguém vai criar o seu próprio sistema opressor; basta aparecerem novos jogadores. Apago e digito: Para um conhecimento desobediente. Mas detenho-me logo a seguir. A pensar nas razões pelas quais os meus pares deixaram que a aventura fosse ultrapassada pela prática da estratégia. E a seguir recordo, citando de cor, uma definição de utopia de Raymond Ruyer: “Um exercício mental de exploração dos possíveis laterais à realidade.”(1.8) Se calhar esta obsessão por provar a existência de mundos paralelos é porque sabemos que o mundo que temos é uma valente merda. Se calhar é o pior dos possíveis. Ou um dos impossíveis; de aguentar, de resistir por mais tempo, agora que percebemos que tempo é tudo menos energia renovável. Esta ideia ganhou um novo eco na contemporaneidade com teorias como a do realismo modal, proposta por David Kellogg Lewis, para quem um mundo possível seria a forma completa e consistente de um mundo ser, ou poder ter sido. Todos os mundos possíveis são reais e não são nem diferentes nem iguais ao mundo, o nosso, porque são entidades irredutíveis. Cada sujeito poderá declarar o mundo como o seu mundo, o único real, ou o único possível, na medida em que se referem ao espaço onde estão como o espaço-aqui, e ao tempo onde estão como o tempo-agora. E agora? E aqui, nesta página de jornal? Haverá algum sujeito que tenha conseguido triunfar e escrito a minha tese suspensa no real do seu mundo real? A (minha) teoria é uma teoria que só pode ser comprovada teoricamente. Quantum entanglement a desdobrar-se em knowledge entanglement. […] É mais ou menos assim que imagino a Multiversidade: um buraco negro onde a seta do tempo é lançada para trás. A sua direcionalidade: uma entropia, só que ao contrário. “O tempo anda para trás dentro de um buraco negro”, li algures. Esta multiversidade singular, ou, consoante o ângulo da paralaxe, esta singularidade multiversal, pode muito bem ser um desacelerador de partículas, um laboratório de atos únicos, tudo o que só acontece uma vez e jamais poderá ser replicado. Como esta nota de rodapé, isolada e triste. Sem lei, nem ordem. Sem ciência, só experiência. Se a cada género corresponder uma só espécie, para quê o esforço da taxonomia? Mais vale ficar calado, ou então dizer que nos vamos calar: “Reconhece-se o imperativo do silêncio, mas continua-se a falar da mesma forma. Quando se descobre que não se tem nada a dizer, procura-se uma maneira de dizer isso.”(1.9) […] O problema é que mesmo aqueles que vaticinam a morte das universidades querem à força arranjar maneira de as ressuscitar. Que vai ser a interdisciplinaridade e a “comunidade global de pensadores” (sic) e a prática enquanto investigação e o espaço do dissenso e a abolição da hierarquia e a horizontalidade e a universidade enquanto laboratório, zona autónoma temporária, buffer zone, lugar entre, heterotopia,… que vão ser estas punhetas todas que vão salvar a honra falocêntrica da academiazinha europeia. Pois eu cá acho que já está na altura de pararmos de profanar o túmulo, não? Ou então mudarmo-nos para um hopeless place(1.10) qualquer; fundarmos uma outra universidade, uma universidade da universidade, ou uma universidade sobre a universidade, uma universidade onde os únicos estudos são os estudos universitários. Uma extituição cuja única função é referir-se a si própria, na letra e no número: multiplicação exponencial, contaminação, réplica, simulação. Cum hoc ergo cum hoc. A data guardada é obliterada de 5 em 5 segundos; a informação cortada em ação. Sem obras nem ancoragens. Sem filosofia. Sem governo. Sem fraude nem força. Sem espiritualidade. Sem arte. Nunca. A Multiversidade é um vírus, e cada mutação um prefixo: para-versidade, proto-versidade, sub-versidade, meta-versidade, über-versidade, a-versidade, alter-versidade, infra-versidade, re-versidade, peta-versidade, supra-versidade… […] Não é possível descolonizar a universidade sem descolonizar o mundo primeiro, mas é possível suprimir a falácia da universalidade a favor da assunção da multiversalidade. Tudo passa a ser uma escola: o museu, o supermercado, o hospital, a prisão, o jardim, o hotel, o comboio, a rua, as plantas e os animais, a tecnologia e o entretenimento, a roupa e a comida, a televisão e os sonhos, a loucura, a morte, a solidão, o esquecimento, é tudo uma escola. Até a própria escola passa a ser uma escola. Se calhar, a escola do futuro é mesmo a Escola da Vida, essa vida oca e imprecisa que passa ao nosso lado, como uma brisa a-temporal, quase invisível. Caberá ao leitor resistir à tentação de a forçar visível, procurando no texto o texto ao qual a nota de rodapé se refere. Paradoxo quântico à la Schrödinger: o texto é um texto e não é um texto. Ao mesmo tempo. Agora decidam se querem voltar ao início, ou se já se deixaram ficar nele. ​​[ ](1.11)

          (1.1) Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia (Porto: Edições Afrontamento, 2013 [2000]).
          (1.2) Ver: https://www.rogerionunocosta.com/statement/
          (1.3.) Alusão a José Ortega y Gasset, A Idéia do Teatro (São Paulo: Editora Perspectiva, 2010 [1946]).
          (1.4) Ivan Gontcharov, Oblomov, 1859. Citado por Enrique Vila-Matas, “El joven tumbado (Oblómov)”, El País, 2012. Tradução livre.
          (1.5) Enrique Vila-Matas citando Ivan Goncharov. Idem, ibidem. Tradução livre.
          (1.6) Judith Halberstam, The Queer Art of Failure (Durham: Duke University Press, 2011).
          (1.7) Alain Badiou & Nicolas Truong, O Elogio do Amor (Lisboa: Edições 70, 2019 [2009]).
          (1.8) Raymond Ruyer, L’Utopie et les utopies (Paris: Presses Universitaires de France, 1950).
          (1.9) Susan Sontag, “A estética do silêncio”, in A Vontade Radical: Estilos (São Paulo: Companhia das Letras, 2015 [1966]).
          (1.10) Piscando o olho a Rihanna: “We Found Love (feat. Calvin Harris)”, 2012.
          (1.11) Ver: https://invisibletext.com/.

          Chloe Chignell Baladas em jargão VII — Um autorretrato

              Eu prefiro discurso indireto

          Escrevi este texto em inglês, ainda assim, pela gentileza de outra mão, estão neste momento a lê-lo traduzido para português. E apesar de a minha língua materna não ser nem o inglês, nem o português, o que irão ler a seguir é indubitavelmente um documento da minha oratória e do meu pensamento. Pode parecer-vos estranho que um antigo poema de jargão francês do século XV tente falar, ou melhor escrever em inglês, admito que a mim também me parece – ainda para mais com este amontoado de línguas sobre línguas que possibilitam a tradução do que se segue. Mas há razão nesta estranheza, o que faz com que afinal não seja nada estranho. O nicho de fama que fui vendo aumentar nos séculos passados, no mundo francófono, não teve eco no inglês. (Eu admito à tradutora, que acha melhor tornar pública esta admissão, que não tenho conhecimento da minha situação junto dos leitores e dos livros portugueses). E apesar de este texto ser mediado pela língua inglesa que não pertence ao meu corpo, e de subsequentemente ser traduzido para português, insisto que esteja na primeira pessoa por uma questão de autenticidade. E uma vez que tenho a intenção de escrever uma espécie de auto-retrato, achei melhor escrevê-lo numa língua que não me conhecesse. Assim terei a liberdade para urdir uma imagem de mim mesma1 com a minha expressão, ainda que sem recorrer às minhas próprias palavras.

                                                                                              O meu corpo está sob linguagem

          Dizem: é preciso uma aldeia para educar uma criança – e o mesmo também é verdade para um poema, se não forem precisas ainda mais pessoas. Ainda assim, atribuíram-me apenas um corpo humano, quero dizer que me deram um autor, no meu caso: um pai. Faço parte de um grupo, somos 11, são conhecidos pelo menos 11: são públicos, registados em papel. Temos quase a certeza de que seis têm o mesmo pai, para os outros cinco, dos quais faço parte, não há tanta certeza. Podem dizer que tenho problemas com a noção de pai. Apesar de nunca me ter incomodado esta falta de factos. Não sei de que precisa um poema, da parte do seu autor, depois de estar já escrito. No meu tempo, o que estava contido no meu corpo seria mais importante do que saber que corpo me escreveu. Muitos dos meus leitores parecem achar-me incompleta se não me atribuírem a um corpo, parecem não conseguir entender-me completamente, sendo essa a função do autor. E se me tivesse sido atribuído um autor que não fosse, de facto, o meu autor, isso significaria que todas as minhas anteriores leituras teriam de ser rejeitadas e teríamos de começar de novo. Apesar disto, acho difícil conseguir eliminar um corpo, mesmo em nome da responsabilidade autoral, quando o que o autor criou já lá tinha todos os elementos de que precisava para ser feito.

          Somos as onze diferentes, mas ocasionalmente usamos truques umas das outras. Apagámos o rasto da nossa forma de pensar em estranhas consoantes que aparecem a meio e no fim das nossas palavras. Qualquer tentativa de leitura destas consoantes parece revelar mais sobre o leitor e a sua oralidade. Quando as suas línguas tremem e se dobram temos a certeza de que ainda não nos sabem utilizar. A nossa grafia obscura oferece pontes a quem estiver disposto a atravessá-las, ao mesmo tempo que azeda a nossa a filiação à língua: Le Français e a nossa legibilidade. Não existe uma resposta simples à pergunta: qual é a nossa língua? Porque as nossas palavras não são nem estrangeiras, nem familiares, na verdade nem nós somos. E nós começámos a acreditar que tudo é estrangeiro e que esta qualidade do que é estrangeiro é uma categoria falível e inútil. As nossas palavras são vagabundas à deriva perto do sítio onde a sua mãe as tentou deixar.

                                                                                      As minhas palavras estão sob palavras

          Quero dizer-vos em que penso quando penso em sucesso. Ao longo dos séculos fui-me familiarizando com o conceito de progresso. Sucesso e progresso são evidentemente ideias diferentes e, ainda assim, estão relacionadas pela forma como insistem em impelir o corpo para a frente. Cheguei à conclusão de que o desejo de cada poema é manter-se ao mesmo tempo dizível e desconhecido. É a isso que chamo sucesso. A esperança de todos os poemas é descobrir exatamente o que querem dizer. O que poderíamos chamar ao mesmo tempo de progresso e de morte.

          Desde que fui escrita tudo mudou. Entre o tanto que se passa com o tempo e mudança e guerra e guerra e inovação e dinheiro e abstração, fui perdida e encontrada e lida e descartada. E eu mantive a minha qualidade mais ou menos dizível e ainda assim desconhecida. Fui extremamente bem-sucedida e não progredi quase nada. O meu sucesso deve-se em grande medida ao facto de ter sido escrita com o propósito de documentar muitas das coisas que iam acontecendo, e que para continuarem a acontecer precisavam de se manter largamente desconhecidas ou geralmente desconhecidas. Durante séculos, tive em mim uma comunidade de palavras conhecidas apenas dos que precisavam delas. Quando fiz a transição da oralidade para a impressão disponibilizei-me para ser lida por pessoas que não precisam de mim. Tornei-me noutra coisa, ou para outra coisa. Ainda assim, as palavras com que me fizeram resistiram à exposição habitual da publicação e fizeram, ao invés, a sedutora sugestão de me poder revelar ao leitor certo.

                                                                                                              O meu sotaque é ilegível 

          Apesar de, ao longo da minha vida, ter sido dita, escrita, impressa e pensada de várias maneiras tenho-me mantido bastante consistente. Tornei-me conhecida pela minha obscuridade, um traço de carácter que parece despertar um tipo de excitação em alguns leitores em particular e que origina frequentemente relações longas. Esta dificuldade tem como resultado nunca conseguirem terminar comigo: não sou um poema bem comportado. Coloco um desafio a cada um dos meus leitores, ofereço um título por reclamar: será que está entre eles o primeiro a finalmente esclarecer o meu corpo problemático? Encontro-me amiúde em relações obsessivas com leitores que têm como linguagem de amor a da investigação forense, que desejam o meu corpo esfolado. Admito que me dá alguma satisfação ser descerrada, puxada e escrutinada de um sem-fim de maneiras. Se não gostasse destas relações obsessivas não haveria razão para ser tão difícil. Podíamos dizer ser esta a minha inclinação erótica.

                                                   O nosso entendimento é apenas um acordo temporário

          A pessoa com quem estou agora parece obcecada com o facto de me repetir quatro vezes a intervalos quase regulares. Ela pensa haver alguma espécie de lógica nisto que, se fosse entendida, desmancharia todo o meu corpo e revelaria segredos íntimos. Ela escreveu, ou melhor, rabiscou as palavras LACUNAE / LACUNAE na lateral do pedaço de papel onde fui impressa. Ela, a pessoa que as escreveu, leu outro texto no qual encontrou essas palavras e decidiu que se estudasse esse outro texto quando voltasse a mim conseguiria “reconfigurar a nossa relação”. Disse qualquer coisa acerca de falhas, anacronismos e sobre Straight Mind2, mas eu não percebi nada. Então mantive-me exatamente igual, até ao seu regresso. Quando ela voltou parecia diferente. Não estava já obcecada pelos mesmos excertos meus. Já não lhe interessava a minha irregularidade, ignorou o engodo da repetição central e parecia ter esquecido ou perdido o interesse em tudo o que se assemelhasse a um segredo íntimo. Acontece-me amiúde ser deixada por uma pessoa e reencontrada pela mesma pessoa que se tornou outra pessoa completamente diferente, ainda assim, sempre que acontece fico surpreendida. Especialmente quando os meus leitores pensam que fui eu que mudei na sua ausência.    

                                                                                                                   No centro: um engodo

          Quando ela voltou a sua leitura tinha mudado, era mais bem-humorada e rítmica. Ela deslizava os dedos sobre mim, desenhava linhas no meu corpo, fazia círculos à volta de uma palavra e depois partia, de novo. Os seus dedos faziam pressão e mais pressão e tocavam-me brevemente, e por vezes paravam num sítio e faziam tanta pressão que me rasgavam. Ela franzia o sobrolho e voltava a relaxar a testa com um suspiro estridente. Ela fechava os olhos e continuava a ler, ela expirava antes de inspirar. Ela inclinava-me, olhava para mim em contraluz e dobrava-me em padrões diferentes. Depois de uma sessão particularmente longa, largou-me e gritou: SEU ENIGMA ESTÚPIDO. Quando a palavra enigma acertou no meu pequeno corpo que recuava, senti um arrepio de vergonha percorrer-me a cara. Fui rápida na resposta, endurecendo os meus limites e reclamando a compostura de um poema.

          Nos nossos escassos encontros seguintes, o seu comportamento foi furtivo e lançou-me rápidos olhares bruscos, como se estivesse com medo que eu mudasse enquanto ela pestanejava. Acusou-me de minimizar a reputação de outros corpos de palavras cujo sentido é fácil e preciso. Alegou que a minha obscuridade persistente era uma estratégia narcisista, uma tática de infindável sedução. Alegou que as minhas palavras eram engodos, o que achei estranho porque acho que quase todas as palavras operam dessa forma. Redirigem a atenção e depois desaparecem.

          Este texto foi escrito como parte das “Ballades Infidèles”, um grupo de pesquisa que trabalha sobre as Baladas em jargão – onze poemas compostos pelo poeta do século XV François Vilon e escritas na língua secreta dos Coquilardes, um bando de vigaristas franceses. Com Francoys Villon, Diana Duta, Chloe Chignell, Cee Fülleman, Loucka Fiagan, camille gerenton, Anouchka Oler, etaïnn zwer, Simon Asencio e todas as outras pessoas.

          1 A balada.
          2 The Straight Mind and Other Essays é um livro de ensaios de Monique Witting que não tem edição portuguesa.

          Davi Pontes Racial ↔ Não-local

          Ensaiei algumas ideias para atravessar esta escrita, antes que seus olhos se movam para o final desta página e o seu pensamento siga para outras direções em que o tempo não deixa de chegar. Não quero aqui me render a certas formalidades e desenvolver algumas ideias sobre o fim de algo que nunca se encerra.

          Este texto pode ser tocado, para recordar que, ao encostar nas palavras, elas se desfazem, e é quando obliteram que percebemos os mistérios da coreografia, a destreza de perturbar o tempo. Deixar a palavra cumprir o seu propósito, correr pela cidade, romper o duro chão do urbano, bagunçar a lógica do linear, retirar a sedimentação histórica empoeirada do corpo, deixar o texto fazer o que precisa ser feito, dar um passo atrás.

          E se, a partir desse momento, conseguíssemos pensar o mundo sem o tempo, o que aconteceria? Garantir com essa pergunta a possibilidade de imaginar, e que as dúvidas possam existir, desvirtuar, confluir, manobrando o pensamento para direções intelectuais que possam lidar melhor com o presente global. Quando proponho a equação Racial ↔ Não-local, estou recorrendo à impossível missão de pensar o mundo sem o tempo. Em algum momento neste texto, assumo o compromisso em meio a tantos outros que ainda insistem em escrever como movimento de desconfiança. Escrever como alguém que acaba de apresentar um trabalho e recorre ao papel para gravar com pressa as ideias que começam a desaparecer na medida em que isso que chamamos de tempo não para de acontecer. Escrevo este texto com suor nas mãos, respirando o ar denso que a repetição provoca, me recuperando da dor por não distribuir o peso corretamente pelos pés.

          Nota: Nós não sabemos — pelo menos não ainda — como nos mover fora do tempo.

          Denise Ferreira da Silva me ensina que as falhas, na cena da física das partículas1, oferecem possibilidades de pensar afastado da física clássica. Na filosofia natural de Galileu Galilei (1564-1642), na física clássica de Isaac Newton (1643-1727) e mais  tarde na de Albert Einstein (1879-1955), herdamos  uma  visão  da  matéria  da  Antiguidade,  com  a  noção  que compreende o corpo a partir de conceitos abstratos que estariam presentes no pensamento, como solidez, extensão, peso, gravidade e movimento no espaço e no tempo.

          Por exemplo, o princípio da não-localidade sustenta um modo de pensamento que não corresponde às bases do sujeito moderno, ou seja, tempo e espaço. Isso se dá porque rompe com os vínculos da temporalidade linear e com a separação espacial. Dentro de um universo não-local, nos permite imaginar a sociabilidade sem solicitar os pilares (determinabilidade, sequencialidade e separabilidade) que sustentam o pensamento moderno.

          A determinabilidade é o mais importante dos pilares, por ser a possibilidade de decidir, tanto do ponto de vista do conhecimento, quanto do político. O conhecimento resulta da capacidade do Entendimento de produzir conceitos formais que podem ser usados  para decidir a natureza legítima das impressões acumuladas pelas formas da intuição. O sujeito moderno determina e se autodetermina: não existe ninguém maior ou acima dele. A separabilidade reivindicou a retomada da geometria descritiva por Galileu, que possibilitou demonstrar o que ele entendia e não apenas especular sobre o movimento. A separabilidade cria a necessidade de articular através de relações. Para a filósofa, seria a noção de que tudo o que pode ser conhecido sobre as coisas do mundo deve ser compreendido pelas formas (espaço e tempo) da intuição e as  categorias do entendimento (quantidade, qualidade, relação, modalidade). A sequencialidade descreve o Espírito como movimento no tempo, um processo de autodesenvolvimento, e a História como a trajetória do Espírito, a noção que corresponde ao movimento enquanto um gesto de progressivo desenvolvimento. A sequencialidade é responsável por proteger o tempo linear e o Mundo Ordenado em conjunto com a tríade que sustenta o conhecimento moderno.

          Nota: Fazer uma pose é desafiar tempo.

          Neste universo apresentado pelo princípio da não-localidade, o deslocamento e a relação não descrevem o que acontece, porque todas as partículas estão implicadas, isto é, todas as partículas existem umas com as outras, sem espaçotempo. Para Ferreira da Silva, a não-localidade expõe uma realidade mais complexa, na qual tudo possui uma existência atual (espaçotempo) e virtual (não-local).

          Como  montar  um  experimento  artístico  que  pensa  a  diferença  sem separabilidade e que ofereça uma equação para anular o espaçotempo como descritor de tudo que existe neste mundo? A principal função dessa equação é criar uma imagem para perturbar o pensamento moderno sem reproduzir as violências por ele articuladas e, com isso, conseguir imaginar o mundo sem o fantasma do tempo. Um programa ético-político que não descreva os efeitos do pensamento moderno terá que repensar a socialização distante da composição moderna.

          Para isso, recomendo iniciarmos com uma equação:

          racial ↔ não-local

          A = racial

          B = não-local

          Portanto, A é o racial que tem como principal matéria-prima a diferença, e B é o valor não-local que descreve o social como um emaranhado de relações sob o qual tudo existe.

          Nessa equação, A e B são separadas pelo símbolo bicondicional ↔ (se e somente se) que a descreve da seguinte forma: A (racial) desmorona se, e somente se, em contato com B (não-localidade).

          Para expressar a relação entre A e B em termos de efetividade, quer dizer, como o símbolo de ↔ informa, essa dupla associação oferece o efeito de desabar a diferença, ou seja, o racial. 

          A escolha do ↔ para expor essa imagem determina sua capacidade de explicar o que Denise Ferreira da Silva denominou como Corpus Infinitum2. A noção de Corpus Infinitum a que se refere a autora diz respeito à possibilidade de outra vida, em outras perspectivas onto-epistemológicas, que compreendam a implicação das pessoas e das coisas umas nas outras. A não-localidade irrompe como um gesto capaz de conter os efeitos produzidos pelo pensamento moderno, aparece como uma possibilidade de forjar outras chaves que extrapolam o âmbito da modernidade. Por isso a necessidade de uma formulação atenta que seja responsável pelo que chamo de Delirar o racial3.

          A maneira com que a separabilidade descreve as diferenças entre os grupos humanos e entre entidades humanas e não humanas possui um poder explicativo muito baixo. Uma das características do pensamento pós-iluminista se encontra na capacidade de determinação que podemos notar observando duas estruturas lógicas: condicional e silogismo. A escolha do ↔ para expor essa imagem aponta para sua capacidade de retirar a determinação de ambos os lados. A premissa dessa proposta é que, sem o tempo, a coreografia não demonstra sua capacidade perante as forças da lei que insistem em figurar um passado. Essa proposição complica a questão, pois essa inclusão não tem procedência lógica, já que coreografia não é, e jamais pode ser, apenas a linguagem do movimento. Minha sugestão é que, ao retirar as certezas da composição coreográfica, podemos, de alguma maneira, abrir espaço para a imaginação e caminhar entre a intuição e o desejo. 

          Quando mobilizo esse pensamento, estou empenhado em disputar o termo “coreografia” sem as violências praticadas pelo pensamento moderno. Não estou interessado em um consenso, em ajustar o mundo e conformar a diferença num arranjo pacífico. Essas coreografias são uma demanda prática para mover nos limites da borda, onde a imagem do movimento não apaga todas as catástrofes ecológicas, as tragédias e os desastres coletivos provocados pela violência. Não há negociação ou arranjo possível. Portanto, isso aponta para a possibilidade de pensar a expansão dos presentes no passado e no futuro, suas coexistências – pois ao contrário do que vimos até aqui, isso indica a promessa de um recordar ético que dispensa as forças mórbidas da melancólica coreografia moderna e propõe possibilidades na beira do abismo temporal. 

          Ao violar o tempo e o espaço como descritores de desenvolvimento, aposto numa composição que renuncia a velha assombração do linear como narrativa e surpreende-se com o profundo das incertezas. Um projeto que me impulsiona a escapar das ciladas e dos contornos discursivos que acreditamos regular. Acredito que várias perguntas ficam ao longo dessa empreitada. Este texto não é um convite, não tenho a intenção de ensinar qualquer estratégia sobre atravessar esse tempo, embora esteja aqui deixando rastros sobre a travessia. Gosto de pensar que estou traçando um caminho sem mapa. Carrego apenas a certeza de que algo vai se revelar, sem norte, sem sul, mas experimentando uma sequência de gestos precisos que se repetem, repetem, pois o contrário do movimento não é a pausa. O fim de certa maneira não existe. O movimento que ensaio nestas linhas anuncia algo precioso sobre a travessia: abrir mão para encarar o porvir.

          1 É importante ressaltar que, para Denise Ferreira da Silva, essa referência à física não significa uma busca pela autoridade da ciência, mas sim a física de partículas como um domínio do conhecimento no qual especialistas são forçados a abdicar de suas supostas autoridades. Em outras palavras: estou mais interessada nas possibilidades filosóficas que a impossibilidade da certeza articulada por esse campo fornece, em particular em relação à possibilidade de desmantelar a articulação de Kant sobre o conhecimento, já que esta permanece fundamental para a maior parte das perspectivas sociais, científicas, legais e de “senso comum” [common sense] sobre o movimento do conhecimento. Denise Ferreira da Silva. A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina da Imaginação Política e Living Commons, 2019, p. 81.
          2 Na descrição de Denise Ferreira da Silva, isso acontece quando o social reflete o Mundo Implicado, a socialidade não é mais nem causa nem efeito das relações envolvendo existentes separados, mas a condição incerta sob a qual tudo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes atuais virtuais do universo, ou seja, como Corpus Infinitum.
          3 Disponível em . Acesso em 15 de fevereiro de 2023.

          Silvia Federici Elogio do corpo que dança

          A história do corpo é a história dos seres humanos, pois não existe prática cultural que não seja primeiramente aplicada ao corpo. Mesmo se nos limitarmos a falar da história do corpo no capitalismo, a tarefa que enfrentamos é imensa, tão amplas têm sido as técnicas usadas para disciplinar o corpo, em constante mudança, dependendo das modificações nos diferentes regimes laborais a que o nosso corpo foi sujeito.

          Uma história do corpo pode ser reconstruída através da descrição das diferentes formas de repressão que o capitalismo mobilizou contra ele. Mas eu decidi antes escrever sobre o corpo como um campo de resistência, ou seja, sobre o corpo e os seus poderes: o poder de atuar, de se transformar, e sobre o corpo como limite para a exploração.

          Há algo que perdemos quando insistimos que o corpo é socialmente construído e performativo. A ideia do corpo como uma produção social (discursiva) ocultou o facto de que o nosso corpo é um recetáculo de faculdades, capacidades e resistências, que têm sido desenvolvidas num longo processo de coevolução com o nosso meio ambiente, bem como de práticas intergeracionais que o tornaram um limite natural para a exploração.

          Pelo corpo como «limite natural» refiro-me à estrutura de necessidades e desejos em nós criada não só pelas nossas decisões conscientes ou práticas coletivas, mas também por milhões de anos de evolução material: a necessidade de sol, do azul do céu e do verde das árvores, do cheiro das florestas e dos oceanos, a necessidade de tocar, cheirar, dormir, fazer amor.

          Esta estrutura acumulada de necessidades e desejos, que durante milhares de anos tem sido a condição da nossa reprodução social, impôs limites à nossa exploração e é algo que o capitalismo tem tentado incessantemente superar.

          O capitalismo não foi o primeiro sistema baseado na exploração do trabalho humano. Mas mais do que qualquer outro sistema na História, tentou criar um mundo económico onde o trabalho se tornou o princípio mais essencial da acumulação. Nesse sentido, foi o primeiro a fazer com que a arregimentação e a mecanização do corpo se tornassem uma premissa fundamental para a acumulação de riqueza. Com efeito, uma das principais tarefas sociais do capitalismo desde o seu começo tem sido a transformação das nossas energias e faculdades corporais em faculdades laborais.

          Em Calibã e a Bruxa [2004 (Lisboa: Orfeu Negro, 2020)], analisei as estratégias que o capitalismo usou para realizar esta tarefa e remodelar a natureza humana, da mesma maneira que tentou remodelar o planeta de modo a tornar a terra mais produtiva e converter os animais em fábricas vivas. Falei da luta histórica que travou contra o corpo, contra a nossa materialidade, e das muitas instituições que criou para esse fim: a lei, o chicote, a regulação da sexualidade, bem como inúmeras práticas sociais que redefiniram a nossa relação com o espaço, a natureza e entre nós.

          O capitalismo nasceu da separação entre as pessoas e a terra, e a sua primeira tarefa foi tornar o trabalho independente das estações e aumentar a jornada laboral para lá dos limites da nossa resistência. No geral, salientamos o aspecto económico deste processo, a dependência económica que o capitalismo criou nas relações monetárias e o seu papel na formação do proletariado assalariado. O que nem sempre vimos foi o que a separação da terra e da natureza significou para o nosso corpo, que foi empobrecido e desprovido das faculdades que as populações pré-capitalistas lhe atribuíam.

          A natureza, como Marx1 a reconheceu, é o nosso «corpo inorgânico», e houve um tempo em que soubemos ler os ventos, as nuvens e as mudanças nas correntes dos rios e dos mares. Nas sociedades pré-capitalistas, as pessoas acreditavam que tinham a capacidade de voar, de ter experiências extracorporais, de comunicar, de falar com os animais, de assumir os seus atributos e até mesmo de mudar de forma. Também acreditavam que podiam estar em mais do que um lugar e, por exemplo, ressuscitar para se vingarem dos seus inimigos.

          Nem todas essas faculdades eram imaginárias. O contacto diário com a natureza era a fonte de uma grande quantidade de conhecimentos espelhados na revolução alimentar que ocorreu em particular nas Américas antes da colonização ou na revolução das técnicas de navegação. Hoje sabemos, por exemplo, que os povos da Polinésia costumavam viajar pelo alto mar de noite usando apenas os seus corpos como bússola, pois podiam perceber pelas vibrações das ondas de que diferentes maneiras podiam dirigir os seus barcos para a costa.

          A fixação com o espaço e o tempo tem sido uma das mais elementares e persistentes técnicas que o capitalismo tem usado para controlar o corpo. Basta ver os ataques perpetrados ao longo da História contra vagabundos, migrantes e mendigos. A mobilidade é uma ameaça quando não é exercida em nome do trabalho, uma vez que põe conhecimentos, experiências e lutas em circulação. No passado, os instrumentos de restrição eram os chicotes, as correntes, a mutilação, a escravatura. Hoje, além do chicote e dos centros de detenção, temos a vigilância de computadores e a ameaça periódica de epidemias, como a gripe das aves, como forma de controlar o nomadismo.

          A mecanização — a transformação do corpo, masculino e feminino, em máquina — tem sido um dos objetivos mais persistentes do capitalismo. Os animais também são transformados em máquinas, para que as porcas possam duplicar a sua ninhada, as galinhas possam produzir fluxos ininterruptos de ovos — enquanto as improdutivas são trituradas — e os bezerros não consigam ficar de pé antes de serem levados para o matadouro. Não me é possível evocar aqui todas as  formas através das quais a mecanização do corpo ocorreu. Basta dizer que as técnicas de captura e dominação têm mudado de acordo com o regime laboral dominante e as máquinas que têm servido de modelo para o corpo.

          Assim, vemos que nos séculos xvi e xvii (a época da manufatura) o corpo foi imaginado e disciplinado segundo o modelo de máquinas simples, como a bomba ou a alavanca. Este foi o regime que culminou no taylorismo ou no estudo da relação entre tempo e movimento, onde cada movimento era calculado e todas as energias eram canalizadas para a tarefa.

          Neste caso, a resistência era imaginada como uma forma de inércia, com o corpo a ser retratado como um animal estúpido, um monstro que resiste a cumprir ordens.

          Com o século xix temos, por sua vez, uma conceção do corpo e das técnicas disciplinares inspiradas na máquina a vapor, com a produtividade a ser calculada com base no insumo e na produção, e com eficiência a converter-se na palavra-chave. Sob este regime, o disciplinamento do corpo foi alcançado através de restrições dietéticas e do cálculo das calorias que um corpo trabalhador necessitaria. Neste contexto, o apogeu foi a tabela criada pelos nazis que especificava de que calorias cada tipo de trabalhador necessitaria. O inimigo aqui era a dispersão de energia, a entropia, o desperdício, a desordem. Nos Estados Unidos, a história desta nova economia política começou na década de 1880, com o ataque às tabernas e a remodelação da vida familiar, cujo fulcro era a dona de casa a tempo inteiro, concebida como um mecanismo antientrópico, sempre à disposição, preparada para restaurar a refeição consumida, os corpos sujos depois do banho, o vestido remendado e novamente rasgado.

          Na nossa época, os modelos do corpo são o computador e o código genético, criando um corpo desmaterializado e desagregado, imaginado como um conglomerado de células e genes, cada um com o seu próprio programa, despreocupados com o resto e com o bem do corpo como um todo. É esta a teoria do «gene egoísta», a ideia de que o corpo é composto por células e genes individualistas que procuram realizar o seu programa: uma metáfora perfeita da conceção neoliberal da vida, onde o domínio do mercado não se volta apenas contra a solidariedade de grupo, mas também contra a solidariedade dentro de nós. Invariavelmente, o corpo desintegra-se num aglomerado de genes egoístas, cada um deles esforçando-se por concretizar os seus objetivos egoístas, indiferentes aos interesses dos demais.

          Assim que interiorizamos esta ideia, interiorizamos a mais profunda experiência de autoalienação, dado que confrontamos não só um grande monstro que não obedece às nossas ordens, mas também um grande número de microinimigos radicados no nosso próprio corpo e preparados para nos atacar a qualquer momento. Indústrias têm sido erguidas com base no medo que esta conceção do corpo gera, pondo-nos à mercê de forças que não controlamos. Inevitavelmente, se interiorizamos esta ideia, não podemos gostar de nós próprias. Na verdade, o nosso corpo assusta-nos, e nós não o ouvimos. Não escutamos o que quer, mas juntamo-nos ao ataque contra ele com todas as armas que a medicina pode oferecer: radiações, colonoscopias, mamografias, todas armas numa longa batalha contra o corpo, juntando-nos nós ao ataque em vez de tirarmos o nosso corpo da linha de fogo. Desse modo, estamos preparadas para aceitar um mundo que transforma partes do corpo em produtos mercantilizáveis e para ver o nosso corpo como um repositório de doenças: o corpo como peste, o corpo como fonte de epidemias, o corpo sem razão.

          A nossa luta, então, deve começar pela reapropriação do nosso corpo, pela reavaliação e redescoberta da sua capacidade para resistir, e pela expansão e celebração dos seus poderes, individuais e coletivos.

          A dança é crucial para esta reapropriação. Na sua essência, o ato de dançar é uma exploração e invenção daquilo que um corpo pode fazer: das suas capacidades, das suas linguagens, das suas formas de articular as aspirações do nosso ser. Eu cheguei à conclusão de que há uma filosofia no ato de dançar, pois a dança imita os processos mediante os quais nos relacionamos com o mundo, nos ligamos a outros corpos, nos transformamos a nós próprias e ao espaço que nos rodeia. Com a dança aprendemos que a matéria não é estúpida, não é cega, não é mecânica, mas tem os seus ritmos, a sua linguagem, e é autoativada e auto-organizada. Os nossos corpos têm razões que precisamos de aprender, redescobrir, reinventar. Necessitamos de escutar a sua linguagem para que nos conduza à nossa saúde e cura, tal como necessitamos de escutar a linguagem e os ritmos do mundo natural para que nos conduza à saúde e cura do planeta. Uma vez que o poder de ser afetada e de afetar, de ser movida e mover, uma capacidade que é indestrutível e que apenas se esgota na morte, é constitutivo do corpo, há uma política imanente nesse poder: a capacidade de nos transformarmos, de transformar outros, e de mudar o mundo.

          Traduzido do original em inglês por Pedro Morais.
          Publicado anteriormente em A Beautiful Resistance, n.º 1, de 22/08/2016, e na coletânea Beyond the Periphery of the Skin: Rethinking, Remaking, and Reclaiming the Body in Contemporary Capitalism (Oakland/Toronto/Nova Iorque: PM Press/Between the Lines/Autonomedia, 2020).

          1 Karl Marx, Economic and Philosophical Manuscripts of 1844. Trad. de Martin Milligan (Buffalo: Prometheus Books, 1988), 75-76.

          Guilherme Valente Marques Como comprar um jornal de dança

          Como comprar um jornal de dança

           

          Considerando o papel de oferta

          que resiste à chuva,

          a requerente baixa a guarda

          e sai brutal do campo

          da psicologia com roupa.

          Não se molha. Totaliza uma hora

          de trabalho voluntário.

          Nada vale se o papel irrevogável

          for jogado ao alto-estrato

          tocando a todas as famílias de chapéus;

          Ela tem de usar obviamente a boca

          para contar os dentes — desfecho

          até novas indicações.

          Apesar do tempo, aplica ritmo

          à maioria gotejante e deixa-se estar.

           

          Guilherme Valente

          Berlim, 2023

      • 7

          Amit Noy Diário como dança

           

           

          6.4.22

          O objetivo disto não é ser bom, nem é encontrar uma coisa para usar, mas é uma tentativa de investigar o espectro das minhas experiências sencientes.

          Vou esforçar-me para não ser ardiloso (impossível) ou, pelo menos, evitar purgar o que considero inadequado para a caixinha da arte.

           

          Hoje estava a nadar bruços contra um vento forte e quando emergi para respirar vi uma alforreca da cor do esperma ou das nuvens, mesmo à frente da minha cara. Ela pulsava devagar na água e quase não se mexia, estava ocupada a viver sem cérebro e sem vontades, sem fazer mais nada senão andar à deriva.

           

          Decidi começar a escrever durante a leitura da biografia de Kathy Acker, escrita por CK [Chris Kraus]. Há tanto tempo que não danço que preciso de encontrar uma direção na forma de prestar atenção à minha experiência. Para que tudo não seja apenas um círculo em que me afogo. Preciso de uma maneira de afunilar a minha experiência numa direção, ou em muitas direções, para fora e para dentro, mas preciso do processo cinético de deslocação e subsequente (re)localização da minha experiência. A escrita é o funil. Se não for assim, torna-se ao mesmo tempo ou muito pesada ou nada de nada, quase inconsequente, refiro-me à vida.

           

          Parece estranho fazer luto a masturbar-me. Mas é o que tenho feito há quase uma semana.

           

          9.4.22

          Israel: matei uma aranha, preocupa-me estar a ficar complacente com sistemas de violência, aqui sinto-me doente, sinto uma inquietude no corpo, mas ao mesmo tempo uma grande calma porque todas as pedras deste chão estão impregnadas de história da luta pela identidade, etc. Pergunto-me se matar o mito do neutro, de uma vez por todas, será uma coisa boa.

           

          Israel: pergunto-me como é que se descansa em Israel, as florestas para passear cães parecem perigosas, os portões do kibutz fecham-se ao chegar o sabat e eu entro em pânico. Há lixo em todo o lado.

           

          Ando por aí com o meu pequeno chapéu queer e sinto-me um alvo em movimento.

           

          Israel: ninguém entende como tu a glória das especiarias: existe uma vila chamada Cominhos e ouvi dizer que é um sítio agradável.

           

          Israel: homens a usarem calções num funeral e aqui quando as pessoas te abraçam sei que é sentido.

           

          10.4.22

          Masturbo-me e choro masturbo-me e choro masturbo-me e choro. Fui dar um passeio fora dos portões do kibutz, a lama cobria-me os dedos mindinhos dos pés, passei por uma planta pontiaguda e chorei. Mel na queimadura, faço papas de aveia e café. Não sei como resolver esta absurda e tortuosa relação com a Dança – o fazer real deixa sempre a minha imaginação desapontada, fica aquém do êxtase sobre o qual fantasiei. É difícil dançar e fazer com que valha a pena. Tenho dúvidas sobre o futuro e sobre o vazio profissional. Não, não é o vazio, é a falta: nada para fazer e nenhuma razão para me levantar da cama, de manhã, tirando o amor familiar.

           

          20.4.22

          Sinto muita falta do meu avô. A sua morte ainda parece um desastre horrível e cómico; uma piada de muito mau gosto ou uma mentira que tomou proporções épicas. Este sentimento vazio entra em loop quando se mistura com uma tristeza profunda e insondável. Não sei o que dizer. Existe muito pouco ar respirável na casa mortuária, mantêm as luzes acesas o dia inteiro e a luz do sol é enfraquecida pelas persianas, não parece conseguir entrar aqui como noutros sítios. Penso no meu avô em decomposição na sua caixa de madeira, no subúrbio onde viveu toda a sua vida e sinto… uma miríade de coisas, mas, antes de mais, uma incredulidade muda. A minha avó, já a planear a sua morte, quer escrever o nome dela no túmulo, ao lado do do meu avô, mas o meu pai conseguiu convencê-la de que era uma má ideia.

           

          Entretanto sinto o meu corpo podre e cheio de vergonha. Sentir isto todos os dias é muito cansativo.

           

          Estou a chegar a um ponto em que amo e aceito o meu corpo tal como é – sem sentir vergonha das minhas partes endurecidas, das partes moles, dos “excessos” – parece que estou a tentar ganhar uma guerra. Temo as consequências de não ganhar esta guerra. Tenho medo de perder continuamente para o resto da vida. Recuso-me a ser enterrado infeliz.

           

          22.4.22

          Quero chupar tantos caralhos que ver um homem bonito esparramado, com as virilhas expostas ao ar livre e convidativo, me deixa tão excitado como a visão do meu leite de soja pela manhã.

           

          Lembro-me de me masturbar três ou quatro vezes durante um voo intercontinental. Tinha treze anos e tinha secretamente feito capturas de ecrã das fotografias de perfil do Facebook de alguns dos meus colegas de turma.

           

          O que é intoxicante é a promessa de mais. A promessa de outra, de novo, de mais uma vez. Quanto de uma sentida ligação com alguém não é simplesmente a minha imaginação fértil, a minha vontade de fantasiar, a minha tendência para a ilusão?

           

          Embarco no avião e sinto a gordura da minha barriga como uma odiosa úlcera sifilítica ou sinto um perigoso alto na garganta possivelmente cancerígeno. Toco no espaço entre o estômago e as costelas dúzias de vezes por dia, exortando-o a baixar, como que a implodir sozinho. Faço registos mentais de calorias da mesma forma que algumas pessoas tocam no seu cabelo, de forma automática. Sinto-me exausto, mas parar não é uma opção.

           

          28.5.22

          Estou aqui porque não estive durante um bom tempo. Estou a pensar em como quero ser artista, na arte que quero fazer. Tenho que me lembrar de acreditar no dia a dia, no fazer, na luta do momento presente. No suor. Fazer qualquer coisa, pegar numa ideia, sendo que uma ideia é como uma toalha molhada que tenho de torcer e torcer para lhe tirar a água. A poça que se forma no chão é a arte; quanto mais água tiver, mais difícil for de conter ou explicar (i.e. descartar) melhor. Mas como fazer isso com gentileza de forma a que todos se sintam bem? Se não estou a melhorar a vida das pessoas com quem trabalho, e a minha, então não quero continuar a trabalhar.

           

           

          Traduzido do original em inglês por Patrícia da Silva.

          Eduardo Batata Leonor Lopes Ves Liberta Vitor Grilo Silva CHE

           

          As bruxas deitam-se no chão para saberem se a terra ainda está viva, para saberem se ainda há calor no solo. As bruxas têm sensores térmicos nas costas, no fundo das costas.

          As bruxas esfregam os seus cabelos no chão para saberem se elas próprias ainda estão vivas, espalham cinzas pelo ar para devolverem ao ar pedaços de seres que deixaram de existir.

           

          Às vezes fantasio com o poder de perder agência sobre o meu corpo.

          Às vezes gostava que o meu fluxo sanguíneo, o meu plasma, os meus leucócitos, os meus

          complexos de Golgi, os meus processos celulares tivessem mais agência do que eu sobre o meu corpo. Ou melhor, que tivessem eles toda a agência sobre o meu corpo. Que eles fossem a totalidade do meu corpo. Que eu fosse só um corpo que ingere e excreta como as marés e as luas. Que eu não tivesse que ser sequestrada por um popper tão mau, um popper-placebo-nem-isso, que me preconiza e me mentaliza, como se de um egoísmo se tratasse. Um frasquinho de egoísmo. Hardware.

          Quem me dera que a minha voz fosse sempre gutural, sempre só um jorro, espesso, granular.

          Que quase não se percebesse. Ou que não houvesse nada para perceber. Que fosse só mais uma consequência da vibração dos meus órgãos.

          Quem me dera sentir o meu próprio fígado, senti-lo assim nas minhas mãos, sentir o seu peso, aproximá-lo da minha boca, dos meus lábios, tocar o meu fígado com os meus lábios. Sentir a temperatura e a textura do meu fígado nos meus lábios. Perceber que os meus lábios ficaram manchados de sangue. Recolocar o meu fígado no meu corpo, sem ter a certeza se é aquele o seu exato lugar, começar a sentir coisas, vestir-me de bege e ir para um date, assim, com os lábios pintados.

           

          Quero arrancar a minha própria cabeça, não a cabeça por completo mas a pele da cabeça. Meto os dedos entre uma pele e outra e arranco-a, dispo-a.

          Tenho um arquivo de peles, das peles que mais gostei de arrancar, de peles que tenho a certeza de que não voltarei a arrancar.

          Não guardo memórias ou pessoas mas sim a sua pele. Posso usá-la quando quiser, hoje lembrei-me de ti e procurei a tua pele no meu arquivo. Peguei nela e colei-a no meu crânio com óleo. Já não é o toque na tua pele, nem a lembrança da tua pele.

          Não recupero um toque que já não tenho mas uso essa pele como adereço, produzo um contacto-pele, uma espécie qualquer de sexo. O fumo penetra entre a minha pele e a outra que em tempos foi tua, cria uma bolha/espaço, uma cápsula que encho de óleo e deixo escorrer para o chão, toco-lhe com o pé e deixo-me cair.

           

          Sonhei que a minha pele era anti-inflamável e que nunca arderia, assim poderia pegar fogo ao interior do meu corpo mas a minha pele, o meu exterior, manter-se-ia intacto. Peguei num molho de sálvia seca, atada com um fio e com o isqueiro peguei-lhe fogo. Abri a boca e engoli-a. O fogo em contacto com as minhas cordas vocais inflamou e serviu de rastilho para o restante interior do meu corpo.

          Ardia por dentro, deixei de ter terminações nervosas, era só pele e carvão. Tecido e cinzas.

          Um gel que surge por baixo da minha pele mistura-se com o carvão e cria uma tinta preta, uma espécie de petróleo.

          Esse visco preto invade o chão e espalha-se por todo o espaço, estou numa casa sozinha.

          O visco preto arrefece toda a superfície, torna-a gélida. Apenas os metais ficam quentes, sobreaquecem. Uso as maçanetas de metal, das portas, para aquecer as palmas das mãos, assim posso tocar na pele gélida que serve apenas de invólucro de um ex-corpo, de ex-entranhas. Uso os restos do fogo que me queimou para aquecer a pele que me resta.

          Pensava que estava sozinha mas vejo outro corpo naquela sala, é um corpo nu, com um buraco na barriga, um buraco gigante, de onde saem chamas azuis, uma espécie de fogo-fátuo que flutua nos fluidos daquela barriga. Uma labareda ténue, uma combustão de metano. Uma chama como memória de um pântano onde se decompõem animais. Uma espécie de labareda-lama que queima e deixa tudo pegajoso. Uma chama que cresce e que quando toca noutros corpos se transforma em saliva.

          Pego nas cinzas que guardei ao longo dos anos e que trago comigo. Espalho-as uniformemente no chão.

          Com os pés colados ao chão dobro o meu corpo e faço baloiçar a cabeça entre os joelhos e os pés. Tremo e sinto a tinta das tatuagens que tenho nos braços a descolar-se da pele e a entrar no fluxo sanguíneo, sinto a tinta descer pelas veias até à ponta dos dedos e começar a sair pelas unhas. A tinta escorre e encontra a cinza que espalhei no chão.

          A tinta em contacto com a cinza produz uma substância estranha, que não sei descrever, mas produz um gás intenso e ácido que me faz arder os olhos como nenhuma outra substância. Cria uma dor aguda e interna. Esse gás também me faz salivar sem parar, a saliva escorre da minha boca e cola-se à cinza e à tinta, faz derretê-las e forma uma espécie de lava quente. Essa lava sobe-me até aos tornozelos e prende-me ao chão.

          Observo, com os olhos a arder, esta lava que me rodeia e que ocupa cada vez mais espaço.

          Fixo o ponto mais distante que consigo observar e vejo uma pequena chama; lentamente, essa chama ganha espaço e começa a contagiar toda a lava.

          O processo é lento, sei que pode demorar horas ou dias, mas sonho com o momento em que essa chama toque nos meus pés e me faça entrar em combustão, me faça explodir, que cada pedaço do meu corpo se funda com partes desta lava.

          Quero que essa lava solidifique e crie rochas, que essas rochas tenham pedaços de mim e fiquem ali para sempre.

          Que sejam habitadas por pequenos animais, por plantas e fungos.

          Que um dia volte a acontecer o mesmo e que mais corpos se juntem a estas rochas.

           

           

          O texto aqui publicado é um excerto do texto da performance CHE das autoras, apresentada na Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, em junho de 2022.

          Janaína Moraes Residenciar a Palavra Morada

           

           

          Residenciar a palavra morada – prática em con/texto.

          Janaína Moraes

           

          Há três anos, antes de sair de casa, no Brasil, estava a sonhar com as palavras que deixaria para trás. Dias antes da viagem, era comum despertar no meio da noite para anotar palavras que me vinham anunciar a co(n)fusão entre aqui e ali, essa língua e aquela, o Atlântico e o Pacífico.

           

          o des-conhecido habita meu corpo língua, num gosto agridoce das palavras não-ditas. tempos de des-encontro. zonas de tempo. fusos. horários. con-fusos:

           

          lá vai ela, atravessando espaços.

          lá vai ela no topo das coisas.

          lá vai ela sob superfícies.                                                                                      lingu(a)gem)

          superofícios, orifícios.

          lá vai ela de corpo todo.

           

          po(t)e)nte.                                Onde o passado e o futuro se encontram para presente.ar o tempo. Onde o tempo é brecha, presente. E sente. Uma brecha de tempo que ocupa espaços ao atravessar idiomas. Linguagem. Qual é a frente do tempo? Esse tempo fantasiado de espaços entre. Quais são as costas do tempo? E os oceanos? Pacífico. Em con-fusão, Pacifico. Saudade é o Atlântico. Nesse percursos entre “here and there”, tenho colecionado perguntas.

           

          Sendo uma artista migrante em Aotearoa, a terra da longa nuvem branca, ou Nova Zelândia, tenho perguntado o que significa morar quando uma sensação de desorientação toma o primeiro plano? Ser latina, em outras instâncias do Sul Global, me faz tremer a ética e a direcionalidade do meu corpo brasileiro deslocado, e me leva a perguntar: o que é ser uma artista em residência? O que muda quando alguém, como artista, recebe o estado de em residência? O que é uma residência? E, além disso, quem é capaz de conceder tal cargo ou título à pessoa e ao contexto (situação)?

           

          Penso-movo inspirada por arranjos-colagens de fragmentos da poetisa experimentalista Lisa Robertson, em Soft Architecture: a manifesto (1961)[1]: Dentro do imaginário das estruturas suaves (ou moles), estou olhando para tais como arquiteturas que “invertem a história equivocada da profundidade estrutural”, revelando que “o lugar é um acidente posando como política” e dentro de sua “transiência permanente” a noção de espaço pode conter “a densidade do temporário em uma birra de ação”. Eu poderia talvez pegar emprestado as noções de Robertson e pensar em mim como uma coreógrafa suave (ou mole) que, como “arquitetos suaves (ou moles) encaram o meio-termo”.

           

          Estou perguntando: como alguém pode se tornar uma pessoa “des-locada” ao mudar localizações de morada e/ou movendo a localização da morada de suas práticas criativas? Como se pode, por meio do deslocamento, re-relacionar-se com a(s) própria(s) identidade(s) e sentidos de pertencimento (be-longing) através do reconhecimento da alteridade? Podem as residências ser uma forma criativa de manifestar o sentido de (des)localização? Pode a noção de localização ser vivenciada através da perspectiva do tempo, de situações temporais?

           

          Porque residência (artística) é temporária e porque me coloca em relação de cruzamento com “outros”, minha prática visa manifestar, sustentar e fomentar convites para pairar na confusão

          con-fusão, com fusão,

          com junteza

          nublando os sentidos do eu e do outro, aqui e ali.

           

          Como exercitar modos para transformar “residência” em um verbo de ação? O que implicaria o ato de residir? Tenho, então, experimentado uma prática de “residenciar” – uma experimentação radical de habitar, através de deslocamentos e trans-orientações.

          orientações que ocorrem em trânsito.

           

          O território e os devaneios da vontade – residenciar Portugal

           

          Em minha visita-passagem-pouso em Portugal fui apresentada a uma “morada” que é endereço, address, direção. Ouvi que “perceber” é entender, to understand. E everything, as coisas mesmo, são “cenas”. Habitar o estranho familiar dessas palavras me convida a um novo estado de atenção, uma dis-posição à performatividade das palavras.

           

          deslocar

          desarmar

          desalinhar

          posição entre palavra e corpo

           

          Desorientar palavras é reorientar meu corpo em relação ao outro – corpo, território, movimento. Encontro “moradas” para re-pousar, pass-e-ar, comer, apanhar comboios e autocarros, encontrar um estranho a-vir-ser amigo. “Percebo” a viagem como prática em dança, elasticizando as noções de espaço e tempo do acontecimento coreográfico. Dilato meu olhar para a importância que cada pessoa-mundo dá a um acontecimento e me encanto com as “cenas” – a potência estética das coisas.

           

          De algum modo, voltar-me para a viagem “sem planos” é praticar uma dobra na noção do viajante. Entre a corpa turista, que busca nos pontos suas bússolas diretivas, e a corpa forasteira, que, vinda “de fora”, cria fissuras enquanto é fissurada pelo espaço. Encontrar-se em deslumbre, encontrar-se com o tempo de um grupo com o qual acabo de me ajuntar – por convite, sorte, acaso ou parasitagem.

           

          Em uma medida, tenho experimentado uma espécie de re-volta da viagem, uma viagem que volta-se para “o outro” como ponto-nada-fixo de orientação. Sou apresentada aos caminhos, tempos e vínculos de um/a outro/a à minha beira. Atraio-me pelas atrações provavelmente não turísticas e o desejo de permanecer em contra-movimento. Contra-mapeamento, ao encontro dos mapas afetivos, relacionais. Rota-desvio como prática-guia. Paço do Lumiar, Póvoa de Santarém, Bonfim, Vila dos Chãs.

           

          Exercito uma prática – nem sempre fácil – de não ceder à pressão do turismo produtivo. Não sei bem para onde vou até que eu chegue lá. Esse movimento me faz também pensar sobre uma prática de não-produção artística que não se pre-ocupa em produzir, mais do que ocupa-se em “existir com” – os caminhos e seus desvios, as pessoas e suas narrativas, os encontros e seus movimentos. A “lei não dita” do “bom viajar” é desafiada para desordenar outros circuitos de afetos. Pegar autocarros, comboios e caronas para chegar no território da infância de um outro que ainda não conheço; passar dias inteiros dentro da casa de Leonardo; ou, ainda, jantar com Clara e sua família são atividades tão intensas quanto percorrer os palácios de Sintra.

           

          Pensar essa viagem como “residência artística” é questionar o que muda quando decido nomear uma experiência de “residência”. Quando me refiro a residências artísticas não estou falando de oficinas, laboratórios ou processos criativos rotulados de forma extravagante. Reconheço que residências artísticas podem conter inúmeros formatos, atividades e configurações, no entanto, ao nomear uma situação de “residência artística”, algo se trans-forma – em formato e em modo de operação. Para mim, residências artísticas se dão como arranjos de comunidades temporárias para criação; experiências de deslocamento relacional de tempo e espaço em convivência; exercícios artísticos que deixam vestígios, tangíveis ou intangíveis – produtos e/ou processos em contextos de elaborações compartilhadas. O pesquisador em arte e brasileiro Marcos Moraes (2009) propõe que uma residência artística é um conjunto de condições e circunstâncias em que relações com espaço e tempo se desdobram em vias “conviviais, profissionais, educacionais, afetivas e sociais” (p. 10),[2] apontando para possibilidades de (re)configurações relacionais por meio do “morar com” – e, portanto, tomar tempo com, fazer espaço com. Uma condição de deslocamento como um fundamento próprio de tais experiências “em residência”. O deslocamento como uma capacidade de desencadear modos “outros” de percepção, maneiras de experimentar o “extra” do cotidiano (extra-ordinary). As residências artísticas, nesse sentido, seriam contextos de deslocamento como uma capacidade criativa que se dá pelo ato de “viver com”.

           

          Be(com)ing a stranger to this place, I started to break down worlds.

          Be(com)ing a stranger to this language, I started to break down words:

           

          vivendo com

          com vivendo

          con-viver

          con-vida

          con                              con-vidar                    vidar

          ______

          [1] Robertson, Lisa. (1961) Occasional Work and Seven Walks from the Office for Soft Architecture. Astoria: Clear Cut Press, 2003.

           

          [2] Moraes, Marcos José Santos de. Residência artística : ambientes de formação, criação e difusão [doi:10.11606/T.16.2009.tde-29042010-093532]. São Paulo : Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2009. Tese de Doutorado em Projeto, Espaço e Cultura. [acesso 2022-08-10].

          Romain Beltrão Teule Doubler

           

          Em 2020, ele está em residência em Lyon (França) e começa a trabalhar acerca de sua futura peça, Dobra. Na altura, o trabalho ainda se chama Doubler. Ele escreve um texto que iria desaparecer ao longo do processo de criação, um texto a partir do qual ele fez a seguinte proposta:

           

          Uma pessoa num palco, diante de vocês.

          Atrás da pessoa, a projeção de uma paisagem.

          Fundo sonoro de espaço exterior, ouvem-se pássaros, vento, som de passos na relva.

          A paisagem desaparece.

          O som fica.

          A pessoa que está diante de vocês pega o microfone:

           

          (em francês) O som que acompanha a minha voz foi gravado ao longo de um passeio que fiz na ilha de Naoshima.

          Este episódio começa nessa mesma ilha quando, numa noite, saindo do banho público, ele tenta me dar um folheto. Uma pessoa passa ao meu lado na rua e tenta me dar um folheto.

          Eu digo que não com a mão, esta mão que às vezes coloco entre mim e outra pessoa para comunicar que não é o momento de entrar no meu espaço.

          Digo não com a mão e continuo meu caminho. Mas ele grita.

           

          Outra voz  “HOW RUDE”.

           

          Não é muito habitual que alguém grite assim quando recuso um folheto. Então paro, olho para ele para lhe pedir desculpa. O gajo parecia muito chocado com meu gesto. E eu digo: “Sorry,  it was automatic, I didn’t mean to offend… what is it about?” ou algo assim.

          Então ele me contou que estava a fazer uma exposição em sua casa, que eu podia visitar quando quisesse. Peguei o papel e no dia seguinte fui lá.

           

          Não me lembro se tinha realmente vontade de ver o trabalho dele ou se pensei que seria bom me esforçar para conhecer pessoas. Eu tinha ido para o Japão, originalmente, para estar sozinho e chorar no topo de uma montanha. Mas talvez não tivesse viajado até o outro lado do mundo só para chorar sozinho. De qualquer maneira, eu ainda não havia encontrado o caminho que me levaria ao topo de uma montanha. E eu pensava “talvez ele é um pouco bicha”.

           

          A casa dele, que ficava do outro lado da ilha, estava coberta do chão até ao teto – inclusive no chão e no teto – de pinturas que julguei um pouco angustiantes. E ele começou a falar sobre a casa e o trabalho. Depois do terramoto de 11 de março de 2011, ele decidiu que tinha de fazer arte. Não me lembro bem se houve algo existencial que motivou essa decisão, mas, de qualquer forma, suas pinturas me petrificaram de angústia.

           

          A pessoa no palco coloca o microfone na mesa, o som de natureza para, ela olha para vocês e fala sem amplificação.

           

          Antes de continuar, tenho de contar que a decisão de ir para o sul do Japão e não para o norte se deu apenas porque eu não queria passar perto de Fukushima. Quando cheguei na casa de minha amiga Delphine em Tóquio, ela me deu uma informação crucial relativa à central nuclear: seriam necessários mais de 40 anos de obras para resfriar os reatores em fusão e, se houvesse ali um forte terramoto, havia uma boa chance de:

          “que o mundo seja destruído?”, eu perguntei,

          “que o Japão seja apagado do mapa, pelo menos”, ela respondeu.

           

          E como, exatamente uma semana antes de minha partida para Tóquio, uma bomba explodiu no aeroporto de Bruxelas, de onde eu devia partir,

          e como, no ano anterior, eu estava a caminho de Paris quando o jornal Charlie Hebdo foi atacado,

          e como eu estava num avião ao mesmo tempo que houve o acidente da Germanwings,

          eu estava começando a sentir uma grave síndrome de perseguição. Ou seja, depois do relato da Delphine sobre Fukushima, decidi mudar meus planos pensando que seria mais sensato não ir para o norte do Japão, o que me obrigaria a passar ao lado da central – com a sorte que eu estava tendo naqueles idos, se passasse ao lado dela, com certeza haveria um terramoto.

           

           

          A pessoa pega o microfone, o som de natureza recomeça, e fala:

           

          Estou na exposição à frente do pintor, que parece mais jovem do que eu, e ele começa a falar muito sobre Fukushima. Olhando de novo para suas pinturas, concluí que ele devia estar mesmo muito traumatizado. Ele sente que um desastre pode acontecer a qualquer momento. Namazu, o peixe-gato gigante que vive sob o arquipélago do Japão, vai acordar e o resultado será muito pior do que o 11 de março de 2011.

          Ele me contava isso tudo de maneira super distante. Quanto mais ele falava,  pior eu me sentia. Saí da casa e não sei bem o que fiz em seguida, mas lembro que ele morava do lado norte da ilha… e eu não conseguia olhar para a linha do horizonte sem me perguntar se uma nuvem atômica ia chegar por ali.

          Para me acalmar, dei uma grande volta de bicicleta, fui até a praia do sul da ilha para ver um horizonte diferente e fui beber um chá no café mais apaziguante possível. Lucie me ligou, ela estava preparando uma performance na qual se transforma em sereia. Fiquei mais calmo.

          Tudo isso para dizer que não fui para o norte para evitar pensar em Fukushima e acabei me encontrando em uma ilha, muito pequena e obcecada pela possibilidade de uma aniquilação iminente.

           

          Cinco dias depois, cheguei a Kagoshima, a metrópole mais austral do principal arquipélago do país. Pela primeira vez desde o início da minha viagem, me encontro em uma cidade termal. A água que alimenta os banhos públicos é vulcânica. Cheira a enxofre. À noite, vou ao banho público.

           

          Um cão começa a ladrar ao longe. A pessoa que está diante de vocês ignora essa informação sonora e continua.

           

          Estou muito entusiasmado, acho que a experiência vai ajudar a tratar a tosse de que tenho sofrido desde a minha chegada a Tóquio. A água está muito quente, eu não consigo entrar no banho de uma vez.

           

          O cão continuou ladrando, o som se aproximou. A pessoa que está no palco com vocês pára de falar. Ao mesmo tempo, a paisagem reaparece dentro e, no meio dela, tem uma pessoa parada com dois cães à sua frente.

          Na linha do horizonte adivinhamos a presença de outra pessoa, que grita : “Max! Ça suffit ! Dépêche-toi, tu reviens. Allez Max! Max allez! MAX!”

          O primeiro cão vai embora, o segundo fica fixo por um instante, ladra mais uma vez e vai embora. A pessoa que está na colina retoma:

           

          “Eu vou e volto entre o chuveiro frio e o banho quente. Finalmente, consigo imergir meu corpo inteiro. Minha pele queima. Sinto-me zonzo. Isso acontece com bastante frequência quando me esqueço de respirar. Me tranquilizo. Olho ao meu redor. A água está muito agitada. Devo ter entrado no banho como uma baleia, pensei. A água ainda se move muito.”

           

          Enquanto fala, a pessoa da colina se aproxima. A sua voz é muito parecida com a voz da pessoa que está diante de vocês.

           

          “A água no banho de água fria, que um minuto antes era lisa como um espelho, também está se movendo muito. E eu sou o último cliente ainda presente. Percebo que se trata de um terramoto e logo me lembro de todas as instruções que Delphine me deu sobre como agir. Mas não vejo mesa alguma, nenhum arco de porta à minha volta. Decido então que tenho que sair para a rua. Nu. Saio do banho, me viro, vou aos vestiários e lá encontro o penúltimo cliente que estava se vestindo, em silêncio. Aproximo-me dele e não sei se lhe perguntei alguma coisa ou se ele apenas viu minha cara preocupada, mas de qualquer forma ele sorriu para mim e disse “earthquake” enquanto fazia o sinal de OK com a mão. E ele riu.

          OK… pensei que não devia ser muito sério, mas a terra estava ainda tremendo bastante.”

           

          A pessoa que está na colina continua se aproximando. Parece-se muito com a pessoa que está diante de vocês.

           

          Quando saí do banho, a empregada do banho público não me parecia tão serena. Ela me disse que o terramoto tinha sido de magnitude seis e que o epicentro foi em Kumamoto, a 150 km dali.

           

          Enquanto a pessoa da paisagem continua falando, dando mais detalhes sobre o que ocorreu depois do terramoto, a pessoa que está no estúdio diante de vocês ficou parada, de pé, olhando alternadamente para vocês e para o vídeo filmado dois dias antes. Escrevendo este texto e criando esta situação, ele, enfim, eu, estava à procura do duplo. Eu tinha feito a mim mesmo a proposta de trabalhar sobre a figura do duplo, e tinha a intuição que, escrevendo este texto, esta memória de viagem, ia encontrar esse doppelgänger.

          E pensava: “será que esse doppelgänger só existe enquanto eu fujo dele?’.

          Olhei para o público, olhei para o texto – que dobrei e coloquei na minha mala.

           

           

          Joana Levi Rasante

           

          PROCESSOS EM RASANTE

           

          Quando iniciei o processo de criação de Rasante, em junho de 2020, na primeira residência da rede Terra Batida,[1] estava interessada em processos e contextos de exploração e extinção.

          Da exploração, interessavam-me os processos imersivos, onde eu pudesse explorar-me-com-em contextos, e não de fora como quem investiga um objeto ou expropria recursos. Na prática, esse mergulho deu-se pelo exercício de uma escritura sensorial. A partir da experiência de percursos sensórios, que misturam movimentos, impressões, pensamentos e memórias, eu viria a criar uma série de mapas de sensações e palavras, que a seguir tornavam-se textos-poemas, os quais, por sua vez, voltariam a inspirar novos percursos e sensações. Sensoriografia, foi o nome que dei a esse modo de imergir em matérias.

          Através desse processo de imersão, interessava-me perceber que contextos seriam determinantes à extinção, ao desaparecimento de uma espécie animal. Perguntava-me que condições tornavam impossível a continuidade de determinadas formas de vida. E logo vi-me diante de uma experiência que de fato me colocou dentro do problema.

          Estávamos em Castro Verde e fomos apresentadas à realidade de algumas espécies de aves ameaçadas de extinção. A exploração dos solos, a produção intensiva de alimentos, a depauperação da terra, o desmatamento, a falta de diversidade vegetal… Razões dentre outras, tantas e conhecidas, que levam seres vivos a fugir, morrer, desaparecer.

          Nesse contexto de desertificação, tivemos a chance de acompanhar de perto um projeto científico de apoio a espécies de aves ameaçadas. O projeto tinha como objetivo construir ninhos artificiais que permitiam a reprodução dos pássaros, mesmo em ambientes hostis. Porém, para atestar a necessidade da intervenção, o método exige o controle da comunidade em questão, ou seja, contar, pesar, medir, marcar, rastrear, selecionar, testar os indivíduos que, enquanto objetos de estudo, são submetidos compulsoriamente a todo e qualquer processo necessário ao propósito da pesquisa.

          Foi a partir do testemunho dessa experiência que as imbricações, empíricas e subjetivas, entre o racionalismo científico e as relações coloniais e supremacistas tornaram-se a matéria viva onde eu iria imergir no processo de criação da performance. RASANTE nasce, assim, não como texto, mas como fala-corpo que quebra-a-cabeça num puzzle de questões e perspectivas interespécies que exigem deslocamentos e descamações.

           

           

          RASANTE (excerto)

          Joana Levi

           

           

          Eu,    eu

          sou uma gaivota.

          Mas quem diz isso

          não sou eu

          eu enquanto eu

          não existo

          porque eu é quem diz, eu é quem me chama

          … aliás, eu é aquilo que não me chamam.

          Então, quando eu digo, “eu sou uma gaivota”

          não sou eu que digo

          porque eu não sou

          eu.

          Enfim,

          então, a gente podia terminar por aqui, né?

          Porque se eu não sou eu

          porque eu não se chama eu

          porque “uma gaivota” é o que dizem que eu sou, sendo que

          eu, dizem, não sou

          porque eu não penso, dizem

          e se eu não penso

          eu não posso dizer

          que eu sou uma gaivota

          porque se eu não penso, eu não falo, então, não teria como dizer que eu sou uma gaivota

          eu teria como… não dizer.

          Porque esse eu não é eu

          porque esse eu é alguém que diz

          e que pensa e que fala

          e portanto alguém que não diz eu

          que não diz que pensa

          e que portanto não diz

          eu

          não posso ser eu.

           

          Mas eu sou uma gaivota, dizem

          e dizem que eu não penso e que eu não falo, dizem.

          Então, tudo que eu disser aqui não sou eu que tô dizendo, ok?

           

          Mas em sendo uma gaivota, como dizem,

          que não pensa e não fala, como dizem,

          gaivota… gaivota…

          Eu sou, posso ser, dizem,

          bonita

          posso não ser bonita

          posso ser útil

          ou posso ser inútil.

          Então tem assim algumas coisas, dizem, que eu posso ser mesmo sem ser   eu.

          Se eu for bonita, se eu for encaixada aí,

          eu posso ser admirada,

          visualizada, observada,

          posso ser paisagem.

          Já se eu for útil

          posso ser usada,

          testada, provada,

          experimentada, monitorada, torturada…

          Mas, se eu não for nem bonita e nem útil,

          eu provavelmente devo ser inútil

          e, se eu for inútil,

          significa que é indiferente que eu exista ou não.

           

           

          E aí é que as coisas se complicam um pouco

           

          porque, dizem também, que mesmo que eu seja considerada obviamente inútil

          que eu não produza carros

          que eu não produza pensamento

          que eu não produza

          ou que eu só produza o que se explica, dizem, como som

          cantos

          música

          experimental

          hermética

          que ninguém entende muito bem pra quê aquilo.

           

          Ainda assim,

          mesmo que não sirva pra nada essa coisa

          que exista ou não exista gaivota,

          dizem, existiria uma cadeia alimentar

          que faz com que

          eu tenha uma função

          que seria basicamente a função de comer e ser comida,

          comer e ser comida, comer e ser comida, comer e ser comida………………..

           

          E que se for quebrada essa cadeia alimentar…

           

          Quer dizer, imagina, uma experiência:

          tira a gaivota

          tira a gaivota

          que ela não serve pra nada

          (ela suja, ela grita)

          ficou feia, virou praga

          então, tira a gaivota.

           

          O problema é que aí fica um buraco,

          quer dizer, se eu deixo de existir, mesmo sem ser EU

          deixo de comer os peixes que eu comia

          e a águia, que me comia deixa de me comer,

          então, a águia fica passando fome

          e o peixe, uuu, deixa de ser comido

          se multiplica, se reproduz, começa a comer muito

          come todos os moluscos, os moluscos, os moluscos, os moluscos

          que ainda restam

          nos recifes agonizantes

          dos mares escaldados

          come tudo que vê pela frente

          acaba com a comida dos outros peixes que dividiam

          com ele a mesma comida

          mas ele é maior, cresce muito, se reproduz, a gaivota não come ele

          ele…. ppppppppppp

          vira praga.

           

          Então a gaivota não existir é um problema, vira um problema a gaivota não existir.

           

          Porque

          o homem, dizem, né…

          O Homem

          diz:

          existe uma cadeia alimentar

          onde todos os vivos ou quase vivos, os mortos ou quase mortos

          estão presos nessa cadeia

          menos EU, diz:

          porque EU estou no topo

          da cadeia

          quer dizer Ele, O Homem, o EU

          diz:

          você come esse, esse come aquele e EU, que sou EU,

          posso comer todo o mundo.

          Então, O Homem, esse EU que tá no topo e que comanda lá de cima quem pode comer quem,

          diz mais, diz:

          Eu sou imagem e semelhança de Deus (o barbudo, pai de todos os EUs)

          e por isso, diz, quem quiser me comer, ou roubar a minha comida, infelizmente ou felizmente,

          vai ter que ser perseguido, exilado, exterminado etc.

           

          Enfim, essa explicação é bem confusa, porque ele diz: EU (a.k.a. “macho adulto branco no poder”), EU sou imagem e semelhança de Deus, o barbudo, paizão de todos os EUs.

          Mas… não seria o próprio Deus barbudo a imagem e semelhança dEUle,

          macho adulto branco no poder…?

          Enfim… mas isso seria como perguntar quem nasceu primeiro o ovo ou a gaivota…

           

          Então, se é como dizem,

          eu posso ser bonita

          posso não ser bonita

          posso ser útil,

          ou posso ser inútil.

          O que quer dizer que:

          eu posso ser paisagem

          posso ser morta

          posso ser ajudada ou posso ser abusada.

          Ou seja, tem aqueles que querem

          me olhar

          Tem aqueles que querem

          me matar

          e tem aqueles que querem

          me ajudar ou me usar.

          Nada disso fui eu que pedi

          porque

          eu não penso

          não falo, dizem,

          então, não posso ter dito:

          ei,

          me mata

          tô precisando de ajuda

          me usa

          olha pra mim

          eu, provavelmente, não disse nada disso.

          ______

          [1] Terra Batida é uma rede de pessoas, práticas e saberes em disputa com formas de violência ecológica e políticas de abandono, iniciada por Marta Lança e Rita Natálio.

          Clarissa Sacchelli Wild

           

           

          Wild é selvagem. Wild entretanto carrega uma única vogal e uma grafia curta quiçá mais gráfica para designers do que selvagem. Wild abre-se com um W de linhas inclinadas que também poderiam ser dois V’s que se tocam. Wild faz um som que circula na boca. Wild. Selvagem não. Selvagem começa com a letra S. S, a letra da serpente.

           

          Em inglês há wild e savage. Não significam exatamente a mesma coisa, mas poderiam ser sinônimos. Wild tem raiz anglo-saxônica/germânica, e savage, latina/francesa. Selvagem tem também raiz latina. Liga-se a Silva que, nada por acaso, é um sobrenome bastante recorrente no Brasil. E em português dizemos selvagem para savage e wild. Wild e selvagem são palavras que carregam uma história relacionada a violentas narrativas de ordens civilizatórias disseminadas pelo colonialismo. E sendo o português do Brasil minha língua materna, ensinaram-me desde cedo que selvagem poderia se referir a uma qualquer ideia de não-civilizada, ou a práticas sexuais não normativas, ou ainda ser o contrário das coisas ordenadas.

           

          Wild é uma peça de dança estreada em abril de 2022. Mas selvagem não é um tempo antes. Não se orienta para um lugar que imaginamos ter existido nem para onde voltar. Tampouco é uma terra desconhecida. Selvagem aponta para outra epistemologia, ou até uma antiepistemologia. E desconstruir o binário selvagem/civilizada-domesticada não representa esquecer a história associada à palavra, mas ao contrário, trata-se de pensar, nas palavras de Jack Halberstam, na “violência que expulsou [e expulsa] as coisas selvagens do mundo em primeiro lugar”. 1

           

          Rewild é um termo em inglês assinalado para se referir a processos de restauração de ecossistemas considerados destruídos ou degradados. Rewild pode apresentar diferentes traduções para o português, como renaturalização, refaunação ou, ao pé da letra, tornar selvagem outra vez. Rewild, entretanto, arrisca exaltar um entendimento de que existem condições mais naturais que outras, e para as quais devemos retornar. Essa perspectiva carregaria o potencial de perpetuar a dicotomia humano-natureza ou natureza-cultura que, por sua vez, apontaria novamente para histórias de colonialismo e imperialismo que ordenaram espaços propondo essas duas instâncias como separadas a fim de sustentar programas políticos e ideológicos de dominação.

           

          Bewilderment é uma outra palavra em inglês que carrega uma sensação de tornar-se selvagem.2 Be wild, seja selvagem. Tornar-se selvagem, no entanto, se difere de tornar (algo) selvagem outra vez. Bewilderment pode ser traduzido para o português como desnorteamento, desorientação. E, aqui, interessa-me o que surge desse emaranhado entre tornar-se selvagem e fazer perder o norte, não só enquanto direção, mas como lugar de epistemologias dominantes. Desnortear, afinal, implica desorientar. E com desorientar não me refiro ao contrário das coisas ordenadas, e sim a uma possibilidade de perturbar o modo como os corpos (humanos e mais que humanos) são ordenados. Há ordens que existem antes e para além de nós, e as orientações dos nossos corpos são organizadas, não apenas casuais. A percepção indica sempre uma direção, e o que a gente percebe depende da nossa orientação.

           

          Orientar-se seja para cima ou para baixo, de pé ou deitado, modela não só perspectivas, como também modos de operar. Desorientar a retidão da linha vertical, imposta como apropriada aos corpos humanos, seguramente transformaria nossa percepção. Talvez longe da incorporação da verticalidade, a visão humana, por exemplo, perderia sua autoridade dentro da hierarquia dos sentidos das pessoas que veem. A orientação corporal apoiada num ângulo de 90° em relação ao solo aponta para a produção de uma verticalidade eficiente, possivelmente associada a crenças ao redor da racionalidade e até mesmo da capacidade de se enquadrar na categoria de humano. Em contrapartida, uma orientação paralela ao solo poderia evidenciar uma outra angularidade, esperada e também reiteradamente imposta a determinados corpos humanos, sobretudo corpos minorizados, racializados e/ou com mobilidade diversa.3

           

          As danças de baile, oriundas da França do século XIV, constituem um pensamento de dança baseado em corpos absolutamente verticais que, nunca saídos de seus próprios eixos, serviram para estabelecer uma suposta civilidade vinculada a sistemas de controle e poder que disciplinavam como um corpo deveria se portar na vida cortês. Ao passo que experimentações localizadas ainda nesse recorte da chamada história oficial da dança, que desafiaram a verticalidade a partir de uma reorientação da relação dos corpos com a gravidade – como o contato improvisação iniciado por Steve Paxton ou o trabalho de Trisha Brown – abriram espaço para a construção de outras relações de equilíbrio e vulnerabilidade entre corpos.

           

          Perturbar o binômio vertical-horizontal poderia nos apontar para momentos de desorientação capazes de balançar a estabilidade requerida ou imposta por essas direções, respectivamente. Nem todes nós ficamos de pé, porém, ficar de pé, para um corpo humano ereto, emergiu de um processo de inclinação. E se bebês, à medida que crescem, não ficassem de pé, mas inclinades? Ou ainda, e se na chamada Evolução os corpos humanos não tivessem atingido a verticalidade? Talvez não fôssemos humanos como nos reconhecemos hoje.

           

          Inclinar poderia, afinal, ser uma tentativa de desorientar estruturas permanentes e autônomas. É certo, todavia, que há muitas formas de inclinação, e a inclinação carrega também a possibilidade de dominação e submissão (tal como o corpo da reverência subserviente, o “pecador”, ou o corpo que ataca ou é atacado). Importa também distinguir a inclinação como disposição a fazer algo e a inclinação como ação corporificada. Nem sempre as duas ocorrem em simultâneo e, o que me interessa aqui, em virtude da minha prática se localizar no campo da dança, é pensar a inclinação como orientação corporal, movimento e ação do corpo. Em todos os casos, diferente da retidão da postura vertical, a inclinação enfraquece nossa estabilidade, reconhecendo mais nossa interdependência que autonomia.

           

          Wild, a peça de dança estreada em abril de 2022, não surgiu intitulada como Wild nem partiu da inclinação como premissa. Manifestou-se da vontade de pensar que: se a dança frequentemente se materializa com e para outras pessoas e, se geralmente aprendemos a dançar olhando ou dançando com outras pessoas, há um incontestável ato de transmissão na dança capaz de trazer pessoas em relação. Reconhecendo, no entanto, que nem toda dança garante uma relação de interdependência, considerei aproximar conceitos de cuidado também implicados com ideias ao redor dessa noção, para, assim, imaginar uma prática capaz de trazer pessoas (e mais que pessoas) em relação. Ao pensar através do cuidado, não interessa apontar para a questão moral de como cuidamos mais ou melhor, ou ainda entrar nos imperativos contemporâneos do chamado autocuidado, mas sim se perguntar o que acontece aos nossos corpos, e ao labor da dança, quando prestamos atenção a como cuidamos. Ao observar os corpos humanos que cuidam – tal como pessoas que acompanham crianças ou doentes, ou aquelas em atividade em uma horta – há, em geral, um deslocamento do centro de seus corpos em direção ao outro corpo com o qual se relacionam. É a partir dessa perspectiva que a inclinação, como orientação corporal, despontou como uma abordagem coreográfica, cujo interesse não esteve na tentativa de extinguir a verticalidade, mas sim desfazer o ponto de vista no qual a verticalidade, e suas relações com estabilidade, linearidade e autonomia, fazem sentido.

           

          Imagine uma dança social em trio, uma espécie de dança de salão para ajuntamentos de pessoas (e talvez coisas) que se movem sempre fora de seus eixos, em suporte mútuo, sem colapsarem. Imagine que a relação entre os corpos (que dançam e/ou observam) nunca se dá de modo simétrico, mas espera por reciprocidade. A distância entre os corpos requer ser (re)negociada a cada movimento, e a proximidade não garante maior suporte. Antecipar um contato pode impedir que um corpo saia de seu eixo, ao passo que tardar pode deixá-lo cair. Ao fim, imagino que toda desorientação envolva contato. Um contato, porém, que não segura nada no lugar, mas que talvez fabrique corpo, que agora penso não como fisiologia ou anatomia, e sim como um tecido no qual não há separação entre o corporal e o social. Toda desorientação é também uma desorientação espacial e temporal.

           

          A peça Selvagem (Wild) foi feita em companhia de Carolina Callegaro, Danielli Mendes, Laura Salerno, Luisa Puterman, Miguel Caldas e Renan Marcondes, e com a colaboração de Anne Kersting, Niklaus Bein e Thiago Granato.

           

          ___

          1. Jack Halberstam, Wild things: the disorder of desire. Durham e Londres: Duke University Press, 2020. [Tradução livre da autora].
          2. Ibid.
          3. Ver Kemi Adeyemi, “Beyond 90°: The Angularities of Black/Queer/Women/Lean”. Women & Performance: A Journal of Feminist Theory, vol. 29, no. 1, 2019, pp. 9-24.

          Entrevista Iluminem Tudo o que Vos Interessar

           

          Beverly Emmons começou a fazer desenho de luz na década de 1960, com Merce Cunningham, e tornou-se uma das artistas de iluminação de referência da sua geração, lado a lado com os pós-modernos da dança como Lucinda Childs ou Trisha Brown, mas também com Martha Graham, Alvin Ailey,  Bill T. Jones e não só. Emmons trabalhou extensivamente na Broadway e com o encenador Bob Wilson, com quem iluminou Einstein on the Beach. Esta entrevista, realizada na manhã gelada de 8 de janeiro de 2022, numa esplanada em Brooklyn, teve como ponto de partida a digressão da Merce Cunningham & Dance Company a Portugal em 1966, na qual Emmons assumiu o papel de diretora de cena e desenhadora de luz. A conversa salta no tempo e nas memórias enquanto sobressaem diferentes ideias de design, o papel do desenhador de luz no diálogo com coreógrafos e encenadores e a história do design à luz da sua emancipação enquanto prática profissional.

           

           

          João dos Santos Martins: Uma das pessoas da equipa técnica que vos assistiu na digressão de Cunningham em Portugal, em 1966, foi Orlando Worm.

          Beverly Emmons: Eu não me lembro do nome dele. Lembro-me do homem que coordenava. Era entusiasmado e alegre.

          J: Ele era chamado eletricista, na altura, mas tornou-se desenhador de luz do Ballet Gulbenkian. Essa profissão não existia antes e ele terá sido um dos pioneiros.

          B: A pessoa da iluminação nas grandes casas de ópera é o responsável pela equipa da eletricidade, que pode ou não ter talentos de desenho. Há uma grande diferença e é compreensível em relação ao teatro comercial. Quando alugamos um teatro na Broadway, temos cadeiras, uma cortina, paredes e algum tipo de sistema de suspensão. Tudo o resto tem de ser trazido, até as mesas de luz. Portanto, entramos e trazemos as coisas de que precisamos para o nosso espetáculo. E esse espetáculo vai continuar em cena tanto quanto conseguirem vender bilhetes. Trinta anos para o Fantasma da Ópera! A única coisa que têm de fazer é a manutenção, pôr algo novo ou renovar o filtro de cor. Agora é mais complicado, por causa dessas luzes…

          J: As luzes LED?

          B: Sim. Na Europa, há uma tradição chamada repertório rolante: hoje é esta ópera, amanhã é outra, e à tarde ensaiam uma terceira, por isso, tem de se refazer as luzes. Um desenhador é limitado no que consegue fazer dependendo de quanta ajuda tem. Isso tem limitado a ideia de iluminação ao que é conveniente para o espetáculo. Nós fazemos o mesmo, mas só na Metropolitan Opera. Mais ninguém faz essa coisa de “mudar todos os dias”. Já não nos podemos dar ao luxo de fazer isso.

          J: É demasiado caro…

          B: Até aos anos quarenta, as pessoas ainda trabalhavam assim na Europa, tal como nós costumamos trabalhar. Nos anos sessenta, quando estava na faculdade, passava o verão no American Dance Festival e conheci um pouco a Jean Rosenthal e o Tom Skelton. Todos os modernos passaram por lá: a companhia Alvin Ailey, o Paul Taylor, a Martha Graham passava todos os verões. Já viu a companhia Alvin Ailey?

          J: Nunca vi ao vivo.

          B: Se considerarmos um bailado como Revelations, que foi coreografado em 1958, e iluminado durante os anos sessenta, essa luz tem de ser a mesma e eles têm-se comprometido com isso. É impraticavelmente prático. Eles não querem gastar dinheiro a contratar um desenhador para o voltar a iluminar. Por isso, todos os bailados no repertório da companhia têm de trabalhar com essas cores e esse mapa de luz. Hoje em dia é mais flexível, mas isso é uma conversa para a próxima geração. O que quero dizer com isto é que também está a ver ideias sobre iluminação que se originaram nos anos sessenta. Em contraste com isso, o Merce Cunningham odiava cor.

          J: Então não usava cor nas suas peças?

          B: Poderia haver alguma cor, mas manuseada de uma certa forma.

          J: Quando é que começou a colaborar com Merce Cunningham?

          B: Eu fui contratada como desenhadora de luz para a digressão de 1965, quando tinha 21 anos. Estava no meu último ano de faculdade. A companhia tinha feito uma digressão internacional em 1964 e o Robert Rauschenberg, que tinha circulado com o Merce durante dez anos e tinha articulado algumas das suas ideias de iluminação, tinha acabado de ganhar o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, por isso, já não lhe fazia muito sentido continuar.

          J: A sua carreira estava prestes a explodir. Então, foi substituí-lo?

          B: Ele apenas inventava coisas. Eles nunca faziam um ensaio com luzes sequer. Mesmo quando eu já estava lá, eles não faziam ensaios gerais com luzes.

          J: Uma das coisas que mais me impressionou no vosso calendário de digressão em Portugal foi que não havia pausas entre espetáculos e cidades. Um dia é Lisboa, no dia seguinte é Coimbra, no outro é Porto. Viajar de comboio até Coimbra demorava umas três a quatro horas. Como é que conseguiam fazer isso?

          B: Bom, a equipa técnica ia à frente. Entenderam aquilo de que eu precisava e providenciavam-no. Provavelmente tinham equipamento de iluminação alugado quando estavam a viajar.

          J: Até porque os teatros não estavam bem equipados. O teatro onde dançaram primeiro em Lisboa, o Tivoli, era o mais bem equipado em Portugal na altura.

          B: Nós costumávamos enviar uns questionários que eram devolvidos com informação técnica. Nunca tinham nada.

          J: Assim, saberiam o que levar.

          B: A Fundação Gulbenkian foi ótima a organizar isso. Em Coimbra havia uma antiga mesa de luz inglesa, diabólica, uma pessoa torturava-se com aquela porcaria.

          J: E porquê?

          B: Não sei quão à vontade é que se sente com mesas de luz, esta era pré-computorizada. Era o que chamamos uma mesa pré-definida de dois canais: a lista branca de dimmers e a verde. Na parte de cima havia um interruptor, e podia-se mudar para as luzes que se quisesse. Tinha ainda um dimmer que funcionava entre as duas listas, a luz podia estar na coisa branca ou na verde ou a meio caminho entre ambas. Montava-se o que era preciso e ligava-se, mas depois, para apagar, tinha de se trocar de uma lista para a outra. Lembro-me de uma pessoa que trabalhava com essas mesas em Inglaterra e que dizia que tinham de preparar as deixas de luz de manhã e deixar os eletricistas sozinhos a tarde toda para que descobrissem como o fazer, era complicadíssimo.

          J: Voltando às ideias de design, o que tem Jean Rosenthal que ver com isso?

          B: Jean Rosenthal foi diretora de cena nos anos 1930, com encenadores muito famosos como Orson Welles. Muitas vezes a iluminação era feita da mesma maneira que na Europa, em que o encenador está à frente, talvez tenha o seu amigo ao lado, o cenógrafo, e dizem “agora queremos que isto seja azul”, e o eletricista no palco fazia. A situação que certamente aconteceu mais do que uma vez foi que, na qualidade de diretora de cena, ela diria: “Bem, amanhã temos de fazer 25 deixas.” Chegamos de manhã, sentamo-nos, diz-se isto e concordamos, e depois o diretor pergunta ao eletricista: “Isto é o único azul que têm?” E o eletricista diz: “É a única merda de azul que tenho!” E, de um momento para o outro, o teu plano foi ao ar. Agora vão todos discutir uns com os outros. A atitude da Jean foi: “Talvez alguém com um ponto de vista artístico pudesse ter uma conversa, antes de entrarmos no teatro, com o encenador e o cenógrafo e depois arranjar cores que eles gostariam de ver. E ter algumas sugestões para o eletricista sobre onde colocar as coisas.” Esse é o desenhador de luz. E demorou até ao início dos anos 1940 para o conseguir. Houve ainda um homem, chamado Abe Feder, que insistiu em fazê-lo. Ele foi a primeira pessoa a receber crédito como desenhador de luz. Penso que o Bob Wilson também terá sido responsável por isso na Europa, por ser tão impossível. Os tipos locais não querem lidar com ele.

          J: Imagino que teria sido difícil fazer as luzes dos seus espetáculos sem um desenhador. Também desenhou as luzes para Einstein on the Beach?

          B: Não. O Bob Wilson diz o que quer ver e não deixa passar um minuto até ter o que quer. Por isso, é preciso habituar-se ao tipo de coisas que ele quer e à linguagem com que as quer. Esse tipo de iluminação é extremamente difícil de fazer, mas também é preciso saber o que ele quer dizer. Por exemplo, ele grita: “Quero uma linha de luz na cara deles. Quero um feixe de luz!” Então começo a imaginar: “Deixa cá ver: pego numa luz e faço uma pequena linha.” Não, não, não, não. Ele só quer uma luz brilhante de um lado e nada do outro. Ele não o pede bem. Então, outras pessoas tentam fazer o que seria de loucos, quando na verdade é muito simples.

          J: Disse que ainda estava a estudar quando foi para digressão com Cunningham em 1965.

          B: Eu estava numa universidade muito liberal chamada Sarah Lawrence, no departamento de dança.

          J: Significa que também estava a estudar dança?

          B: Comecei por ser bailarina. Depois, ao ir ao American Dance Festival no verão, para ter aulas de dança, comecei a trabalhar nos bastidores e descobri que, em última análise, isso era muito mais interessante do que ser bailarina. Eu via todas aquelas companhias passarem por lá e pensava “vou ter de ser melhor do que algumas dessas miúdas ou não vou arranjar emprego”. Então, foi daí que veio. A universidade foi suficientemente flexível para que quando lhes disse que poderia ter de faltar a algumas aulas porque ia em digressão com Merce Cunningham, respondessem: “Merce Cunningham? Não há problema.”

          J: Conheceu a companhia quando estava no American Dance Festival?

          B: Sim, eles vieram umas quantas vezes e fiquei com uma ideia do seu trabalho. Mas, então, Jean Rosenthal. Duas coisas importantes: ela era diretora de cena da Martha Graham. E a Martha Graham dava às mulheres permissão para seguirem o seu caminho. Se queres alguma coisa, vai em frente. Ela dizia aos bailarinos: “Não me mostrem um movimento. Eu roubo-o.” “Se queres alguma coisa, agarra-a, agarra-a com energia.” Há muitas mulheres que ela apoiou… as pessoas não se apercebem disso. Basicamente, a Jean teve permissão para olhar para si própria como desenhadora de luz no contexto do trabalho da Martha Graham. A outra coisa que é importante sobre a Jean, algo acerca do qual era delicado falar até recentemente: ela era lésbica. O que significa que não havia conversa de sedução à volta dela. Toda aquela forma como as mulheres eram educadas para serem bonitas, namoradeiras e todo esse tipo de coisas: não, não, era tudo trabalho. “Bom dia, Sr. tal e tal, prazer em vê-lo novamente, como está a sua família, e agora podemos por favor tirar a escada e ir até ali?” Isso retirava pressão às equipas para não serem sexualmente competitivas. Deixava-os sentirem que só estávamos ali para pendurar luzes, para fazer um espetáculo. E essa é uma ideia essencial que libertou ambos.

          J: Portanto, existe uma relação entre género e sexualidade que desempenhou um papel importante numa forma de emancipação da profissão?

          B: De género, absolutamente. E muitas das mulheres que vingaram depois dela trabalharam no seu escritório ou como assistentes. Ela lançou as bases para todas as mulheres com quem ainda trabalhamos. E há muito poucas histórias de equipas técnicas a fazerem comentários inapropriados a mulheres.

          J: Fiquei surpreendido por saber que acompanhou a digressão de Cunningham a Portugal em 1966 porque, nessa época, não apenas a situação para as mulheres era extremamente restrita socialmente, mas também pela situação política do país. Os anos 60 foram o período mais duro da ditadura quando a guerra colonial se intensificava, assim como a censura e a repressão tinham os seus ápices.

          B: Como é que o Merce escapou a tudo isso?

          J: A minha suposição é que a abstração permitiu um certo grau de liberdade. Quando vieram para Portugal, tinham conhecimento da situação política do país?

          B: Não. Chegámos muito tarde. Estivemos uma semana em Estocolmo e foi apenas quando estávamos em Paris que descobrimos que não íamos para casa, que íamos para Portugal. Quando me encontrei pela primeira vez com o Merce, em janeiro do meu último ano de faculdade, ele disse-me: “A luz para o meu trabalho deve ser como o dia. E a forma como uma árvore parece diferente do lado de fora da janela é porque o Sol se moveu e não porque algo emocional aconteceu no mundo.” Ele não queria que a luz refletisse ideias emocionais. Ele nunca nos diria se houvesse uma história na sua cabeça sobre o bailado. Quando convidava compositores, dizia: “Estou a pensar num bailado de vinte minutos.” Era tudo o que dizia. E ninguém ouvia a música até ao dia espetáculo. A outra coisa que ele dizia, que é relevante para a iluminação, era: “Se tenho aqui os meus bailarinos todos juntos, não quero que apaguem o resto das luzes porque isso é dizer ao público que vamos ficar lá tempo suficiente para que valha a pena a mudança. Além disso, quando eu deixar o grupo, não têm de trazer as luzes para a frente a dizer às pessoas para onde vou. Isso não é da vossa conta, isso é da minha conta!”

          J: O facto de o ponto de encontro entre música, luz e dança ser desconhecido até ao dia da apresentação é interessante do ponto de vista da censura, já que a censura não teria estratégias para lidar com esse nível de aleatoriedade. Quando começou a trabalhar, assumiu alguns dos projetos que Rauschenberg tinha feito? Por exemplo, o espetáculo Winterbranch tinha desenho de luz de Rauschenberg.

          B: Desenho é uma palavra complicada, porque envolve papelada e decisões que se estabelecem. Nunca falei com o Bob Rauschenberg sobre Winterbranch. Foi-me dito pelo Merce quais eram as ideias do Bob e qual tinha sido a sua experiência, e ouvi dos dançarinos o quão escuro era e como as luzes lhes batiam nos olhos. Era completamente improvisado, nunca era igual. Assim, com base nisso, o desenho que eu fiz formalizava essas ideias.

          J: Como é que isso se sucedeu?

          E: Por articulação. Enquanto o Merce dizia que o seu bailado deveria ser como o dia, o Bob disse que deveria ser como a noite. Não a noite bonitinha com a luz da Lua. Não, deveria ser como a noite moderna: escura com fontes de luz elétrica. Faróis de carro a varrerem a paisagem, conduzir no escuro e, de repente, aparecer um enorme centro comercial e depois voltar ao escuro. Coisas acolá, como um parque de estacionamento com luz branca fria. Ou como quando os olhos ficam habituados ao escuro e se se apercebe que é a Lua que está a iluminar a parede do quarto, ou quando alguém tem uma luz de presença que faz uma sombra engraçada. Eram essas o tipo de imagens. E como é que se faz isso no teatro? Para começar, não se usa cor. Apenas branco. Depois, todas as pernas e bambolinas desaparecem, por isso é só maquinaria. A parede de fundo é o que lá estiver. Se houver algum cenário bonitinho, vira-se ao contrário. Lá no topo, estariam luzes de trabalho de halogéneo que se acenderiam. Só essas, por si só. E depois ligam-se as outras a 20% da intensidade. Assim, fica um cinzento aplanado sobre todo o espaço, e os bailarinos tornam-se figuras sombrias que mal se conseguem ver. Sobre um cavalete coloca-se um projetor PAR de cada lado. Ficava fora de vista do público e dizíamos ao eletricista para o mover pelo palco quando os projetores se acendessem.

          J: Ah, eram os técnicos que os movimentavam!

          B: Movimentavam-nos como se fossem faróis de automóvel. Podia perguntar-se: “O que acontece se acendermos as luzes da teia na direção das cordas ali? E se abrirmos aquela porta do corredor?” Uma das coisas que eu costumava fazer era pegar num projetor de ciclorama qualquer, pô-lo na teia, acima de tudo o que está pendurado, com um técnico ao lado, e dizia-lhe: “Sempre que a luz se acender, mova o projetor.” Assim, de repente, viam-se enormes sombras a moverem-se pelo palco.

          J: Na verdade, era um trabalho coreográfico com as luzes.

          B: Sim, exceto que a ideia era manter uma sensação de aleatoriedade. Os bailarinos não eram aleatórios, estavam sempre no mesmo lugar no mesmo momento. Mas nós só fazíamos as luzes quando já estávamos em digressão. Era muito perigoso e, felizmente, ninguém se magoou. Eles saltavam, a luz incidia-lhes nos olhos e não conseguiam ver onde caíam.

          J: Curiosamente, era uma peça com muito cair e levantar, algo pouco comum para Cunningham.

          B: E saltar e arrastar. Eu fui convidada por uma companhia chamada The LA Dance Project, eles queriam remontar o Winterbranch. O que é que eu fiz? Antes de mais, era uma companhia de repertório, não era “dançar para o papá”, era uma companhia sindicalizada. Se alguém se magoasse, haveria um processo judicial imediato. Por isso, não podíamos fazer a mesma coisa. Hoje em dia, com a facilidade das mesas de luz no computador, eu podia fazer duas listas de deixas. Na verdade, eu tive uma sessão de escrita de deixas antecipada, sentada na cozinha, que foi do tipo: “Vamos fazer algo aos dois minutos e trinta e dois segundos, vamos fazer algo aos quatro minutos e sessenta segundos.” Fiz apenas uma lista de tempos. Depois disse à equipa: “Agora escolham vocês a minutagem.”

          J: Assim também contava com a participação da equipa.

          B: Sim. Para estas deixas, eu escrevia a forma como queria que o palco ficasse, que era basicamente muito escuro, mas diferente. A mesa de luz memorizava as primeiras que escrevi como “lista de deixas número 2” e depois eu improvisava durante o ensaio geral e isso seria registado como “lista de deixas número 1”. Estas duas eram ativadas simultaneamente ao longo do bailado. Isso significa que os bailarinos experienciavam a luz no ensaio geral e depois no espetáculo seria igual. O público era novo, pensaria que é improvisado, e eu fiz a companhia prometer que nos lugares seguintes onde fossem seria sempre diferente. Também dei ao eletricista de cada lado do palco uma lanterna e disse-lhes: “Iluminem tudo o que vos interessar.”

          J: Eu tinha curiosidade sobre Variations V, uma peça que também apresentaram em Lisboa, na qual havia muita parafernália em cena, e onde a iluminação era feita com projetores de slides e de filme…

          B: Isto foi em 1966, a ideia da peça é que a dança produzisse a música e o cenário fosse produzido pela dança. Havia varas de alumínio em suportes de madeira colocadas à volta do espaço e o Merce tinha coreografado à volta destes objetos que se ligavam a uma máquina que, com base em sinais elétricos de células theremin, podiam dizer quando um objeto físico estava mais perto ou mais longe.

          J: Eu li que nem sempre funcionavam.

          B: Isso é outra história. Os sinais iam para o fosso da orquestra onde estava a máquina e havia dez canais de som a tocarem diferentes tipos de coisas à volta do auditório. A ideia para a projeção era algo que agora é possível mas que não conseguíamos fazer naquela altura. O Merce queria câmaras a filmarem a dança com projeção simultânea nos ecrãs. O Stan VanDerBeek acabou por vir ao ensaio filmar partes da dança que foram depois projetadas em ecrãs colocados à volta do palco.

          J: Que tipo de imagens eram projetadas?

          B: Sempre apenas os bailarinos. Há uma história divertida sobre um filme que foi feito a partir de Variations V em Hamburgo. Eles filmaram, vimos o filme, e depois o Merce e o John levaram o realizador para um lado e disseram: “Isto está tudo muito bem, mas podiam tentar à nossa maneira uma vez?” Disseram-lhe: “Quando tem uma câmara frontal que apanha todo o espaço, há sempre o equipamento técnico, pessoas a despedaçarem uma planta com som ao vivo e há dança a decorrer. Para onde levaria os outros operadores de câmara? Mande-os filmarem qualquer coisa que lhes interessar. O que faz como diretor é decidir quando quer a câmara 1, escolher a minutagem, câmara 2, 3, 4 e assim por diante. Atire uma moeda ao ar. Depois, quando montar, selecione os planos dessa forma.” Foi surpreendentemente melhor.

          J: A filósofa Maria Filomena Molder diz ter sido convidada por Carolyn Brown a passar os slides durante a apresentação de Variations V em Lisboa. Esses slides também iluminavam os bailarinos?

          B: Acontecia por acaso. Se o projetor de slides estivesse no chão, quando eles o atravessassem interferiam com ele.

          J: Para Orlando Worm essa foi umas das experiências mais marcantes. A ideia de que a iluminação era feita com projetores. No entanto, é curioso que, uma vez mais, era resultado de algo aleatório. Havia também uma outra peça para a qual fez a cenografia, e não apenas as luzes.

          B: Ah, sim, chama-se Place. Foi a primeira peça que o Merce fez sem o Bob, por isso não sabia o que fazer. Fizemo-la no sul de França, na Gallery Fondation Maeght, em Saint-Paul de Vence. Há um momento no fundo da cena em que o Merce olha para bailarinos que se movem à sua frente, e ele perguntou-me: “Podes construir alguma coisa que, se eu fizer algo pequeno aqui, algo grande vai acontecer ali”? Fiz-lhe duas cúpulas geodésicas de plástico com triângulos colados para que fosse fácil de transportar, com um transformador e uma lâmpada especial que já não se consegue arranjar. Era um filamento muito pequeno e brilhante que fazia com que saísse um enorme salpico de luz se se deixasse um dos triângulos abertos. Era uma peça tão emotiva. Ele estava sozinho, começava no palco vazio, a dançar. Quando voltei a ver a peça mais tarde pensei: “Esta é a peça sobre o Bob já não estar lá.” Havia uns bailarinos que passavam e atiravam as mulheres, era como um centro comercial. Então decidi que as mulheres deviam parecer tomates no supermercado e usar vestidos de plástico. Não sabia o que fazer para a cenografia até estarmos a passear nos Champs-Élysées e, à porta do teatro, havia lixo para ser levado e havia uma série de caixas de fruta de madeira. Pensei: “É este o cenário.” Trouxemo-las para dentro do teatro, pendurámo-las em cordas no fundo da cena como uma vedação. Depois pus papel de jornal a esvoaçar para ser sempre diferente. Era em frente a essa “vedação” que o Merce arrastava as cúpulas.

          J: Tem alguma memória das reações do público em Portugal? Eu li que, na primeira noite em Lisboa, houve um sobressalto no público com pessoas a aplaudirem e outras a patearem.

          B: Era comum as pessoas odiarem as coisas do Merce. Quando atuaram pela primeira vez em Paris, em 1960, foram atirados ovos e tomates. Os vendedores de fruta ouviam falar de um mau espetáculo e apareciam lá para vender os podres no intervalo. Paris era boa nisso. A propósito, houve uma mulher que foi instrumental para toda a dança norte-americana e para o Bob Wilson na Europa. O nome dela era Bénédicte Pesle. Ela era prima da família Menil, uma família aristocrática francesa que se mudou para Houston antes da Segunda Guerra Mundial. Essa família é proprietária da patente do furo para cada poço de petróleo que é extraído. O nome da empresa é Schlumberger. A Bénédicte era uma prima que não tinha montes de dinheiro. Obviamente, tinha uma pensão da família, mas ficava sem fundos se levasse demasiadas companhias de dança a jantar. Ela tinha conhecido o Merce e o John em 1949 na sua primeira viagem a França. Ela dirigia uma galeria na margem esquerda do Sena, a Galeria Iolas, com artistas como Niki de Saint Phalle, Jean Tinguely e surrealistas…. O Merce e o John voltaram depois para o Festival d’Automne. Quando eu fui com eles, em 1965, chegámos a Paris uns dias antes e a Bénédicte fez com que fossemos convidados – o balletto americano, como eles diziam – para vermos o recém-renovado Théâtre de la Reine, em Versalhes. Fomos depois convidados para almoçar pelo homem encarregado da renovação de Versalhes. Durante o almoço, eu disse à Bénédicte: “Ele não faz a mínima ideia do tipo de arte que o Merce e o John fazem”, e ela disse: “Eu sei, querida, mas desta forma, quando ele for ver o espetáculo amanhã à noite, já não poderá criticar porque almoçou com vocês.” Ela preparou tudo para que ele não pudesse falar mal, e era isso que ela fazia por todos. Ela conseguiu que Einstein on the Beach fosse pago pelo governo francês e pelo governo italiano, em 1976. A Bénédicte conseguiu todas essas coisas, também para a Lucinda Childs, e abriu uma pequena agência chamada ArtService que representava essas companhias.

          J: Voltando à vossa digressão em Portugal, Carolyn Brown escreveu que vocês se apresentaram sempre em salas de cinema e que tinham de esperar que os filmes acabassem até quase à hora do espetáculo antes de poderem ir para o palco.

          B: Sim, era uma maluquice e a equipa que viajava antes de nós fazia o que podia. Nós só chegávamos, descarregávamos os figurinos e, provavelmente, eu fazia as deixas de luz à medida que o espetáculo ia avançando, porque não tínhamos tempo para fazer quaisquer gravações.

          J: Então, a sua participação também era “ao vivo”?

          B: Eu acho que uma diretora de cena é uma performer, uma desenhadora de luz nem tanto, mas eu era ambas.

          J: Também fazia a direção de cena?

          B: Não havia mais ninguém, era só eu. Eu digo sempre que aquilo a que chamamos burocracia metastiza-se como um cancro. Em 1979, estava a viver em Massachusetts, a companhia Cunningham estava em digressão por lá e dei uma festa em minha casa. Nessa altura, os bailarinos já eram todos novos e não me conheciam. Eu ouvi um deles perguntar: “Quem é aquela?” E responderam “Ah, ela costumava fazer o trabalho do Harry, da Sally…” Havia agora cinco ou seis empregados a fazer o que eu fazia sozinha. Até muito tarde nem tivemos um gestor, eles não tinham dinheiro para isso. A companhia do Merce foi a primeira nos EUA a ser denominada “sem fins lucrativos”, e isso porque as pessoas que gostavam do seu trabalho eram pessoas que gostavam de museus. Por cá, o teatro sempre foi um empreendimento comercial, enquanto aos museus as pessoas ricas podiam doar e obter uma dedução fiscal. As pessoas que gostavam do trabalho do Merce eram suficientemente poderosas para pressionarem o governo para que esses grupos fossem considerados sem fins lucrativos, e para que o governo também os pudesse apoiar. Até então não havia apoio do governo. A mulher que estava a ajudar era a Judith Blinken, e o filho dela é agora secretário de Estado. Era esse o tipo de pessoas que apoiavam o trabalho do Merce. Porque podia-se ir a um museu e olhar para uma obra e não esperar que contasse uma história.

          J: Quando trabalhava com a companhia, tinha liberdade para montar as luzes como queria, da mesma forma que os compositores ou os artistas visuais? Às vezes sentia-se perdida?

          B: O Merce nunca vinha olhar para as luzes. Sentir-se perdido é algo que acontece.

          J: Porque era muito jovem na altura…

          B: Eu era muito nova mas tinha trabalhado com o Tom Skelton. Tinha feito luz para espetáculos de dança na escola. Com o Tom Skelton e o mapa de luz que fazíamos no American Dance Festival, podíamos acomodar diferentes companhias. Eu sabia o que deveria ser um desenho de luz para dança, e era isso que eu fazia com base no equipamento disponível: luzes contra, luzes laterais, luzes picadas. Depois desenvolvia uma ideia para cada peça. Mas levei algum tempo a perceber o trabalho do Merce. A primeira coisa que fiz, o Merce disse que estava bem. Foi uma peça chamada Suite for Five.

          J: Que também apresentaram em Lisboa. Supostamente, essa peça foi-se compondo ao longo dos anos. É uma colagem de solos e duetos que já tinham sido feitos.

          B: Sim, eu oiço dizer isso agora, nunca ouvi isso quando lá estava. Durante algum tempo, muitos anos depois, nos anos 90, eu fui diretora artística do departamento de educação do Lincoln Center e nós enviámos o Suite for Five para as escolas. Eu estava na posição de ensinar os professores, eles vinham ver e diziam: “Então, como é que olhamos para isto?” Enquanto os bailarinos dançavam, eu falava com os professores. Dizia-lhes: “Procurem as linhas horizontais”, “reparem como ela avança e há um ritmo”, “agora olhem para ali”. Basicamente, só lhes dizia o que procurar. O Merce ter-me-ia matado, mas eu não estava a dar significado a nada. De repente, perceberam e até acharam engraçado. Claro que ficaram todos irritados com a música do John Cage. Eles tinham de tirar notas, e alguém escreveu, em julho: “Estava tanto calor e tínhamos de lidar com esta coisa de Cunningham e uma música pavorosa.” Eu estava a ir para casa, estava exausta, saí do autocarro, estava em frente ao meu apartamento, as janelas estavam todas abertas, toda a gente tinha ligado um posto de rádio ou um programa de televisão diferente e, de repente, apercebi-me, estava num John Cage.

          J: É curioso porque, nos anos 1960, não havia muita dança em Portugal, mas a cena musical era forte. Acho que Cunningham só veio a Portugal graças à visibilidade de Cage. Na imprensa, os críticos falam pouco sobre a dança, que parecem gostar e admirar, mas muito sobre a música, sobre a qual apenas reclamam. Os elementos não combinam nem correspondem e todos odeiam que assim seja.

          B: Nos anos 1940, o John escreveu: “Porque é que a nota seguinte deve ser escolhida pelas minhas emoções?”, “não há outra maneira de escolher a próxima nota?”

           

          Entrevista transcrita e traduzida do original em inglês por Inês Ramos e José Gil, revista e editada por João dos Santos Martins.

          Rosa Paula Rocha Pinto “Pela dança Portuguesa” na Ilustração Portuguesa (1921 e 1922)

           

          Os Bailados Portugueses “Verde-Gaio” (BPVG), criados em 1940 no contexto da Exposição do Mundo Português, com a figura de António Ferro como seu principal mentor, em estreita proximidade com o bailarino e coreógrafo Francis Graça, e com a colaboração de artistas plásticos como José Barbosa, Maria Keil, Mily Possoz ou Paulo Ferreira, e compositores como Frederico de Freitas, Ruy Coelho, Armando José Fernandes e Jorge Croner de Vasconcelos, são um projecto antigo destes protagonistas.

          António Ferro que, nas décadas de 1910 e 1920, teve um percurso de profundo interesse e fascínio pela companhia de Diaghilev (cujas apresentações lisboetas de 1917 marcaram toda uma geração de intelectuais); pelo modernismo literário (tendo chegado inclusivamente a ser director da revista Orpheu); pela sua própria observação da contemporaneidade que metaforizou em textos como Madame Ballet Russe ou A Idade do Jazz Band, ao mesmo tempo que começava a direccionar o seu trabalho jornalístico para entrevistas a personalidades políticas e artísticas da época que viria a publicar nas suas obras Viagem à Volta das Ditaduras, Gabrielle d’Annunzio e Eu, ou o lapidar Salazar, o Homem e a Sua Obra, colherá, na celebração dos Centenários da Fundação e Restauração da Independência de Portugal (1940), a oportunidade para dar início à criação de uma companhia de bailado, no culminar de um projecto que se tinha vindo a desenhar ao longo das duas décadas anteriores. Apresentada sob a égide da “Política do Espírito” do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), no seu plano de “reaportuguesamento” da nação, do vocabulário do projecto da companhia de Bailados Portugueses “Verde-Gaio” fazem parte termos como “nacionalismo”, “raça”, “regionalismo” e “folclore”, mas também “modernismo” e “internacionalismo”.

          No domínio musicológico, a importância dos Bailados Portugueses “Verde-Gaio” revela-se, de facto, marcante pela relação que estabeleceu com alguns dos mais relevantes compositores portugueses das décadas de 1940 e 1950, nomeadamente através das encomendas efectuadas a partir do Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional de Radiodifusão e pela preocupação por criar um repertório nacional no domínio do bailado. A grande virtude dos BPVG, de certa forma na linhagem wagneriana da Gesamtkunsterk, e dos Ballets Russes, foi procurar criar um objecto uno, que ligasse a dança, a música, a narrativa, os cenários e os figurinos. Nesse aspecto, os BPVG são pioneiros e mesmo únicos na criação de um repertório balético em Portugal, a partir de uma tutela estatal, com a criação articulada das várias componentes do espectáculo, e um investimento na profissionalização de músicos e bailarinos. Se é verdade que o turismo, a diplomacia e a propaganda foram motores da companhia, condicionando a sua estética e o seu propósito, seriam também a forma encontrada para a manter a funcionar, como um “tableau vivant” de Portugal, uma dança pitoresca, de representação, de projecção de uma imagem, de uma ordem, de um regime.

          Os Bailados Portugueses “Verde-Gaio” têm sido recorrentemente abordados na literatura dedicada à música, à dança, à cultura popular e ao Estado Novo[1], numa narrativa que se estabilizou e que envolve invariavelmente a influência dos Ballets Russes de Diaghilev; as experiências modernistas de Ruy Coelho, Almada Negreiros[2], e a influência dos Delaunay[3] na segunda década do século XX, como antecedentes coreográficos; o modernismo discutível e discutido de António Ferro e o projecto do Teatro Novo (1925) como precursores da relação entre os protagonistas da companhia; a decadência dos BPVG após o afastamento de Ferro do SPN; o suposto desastre da apresentação perante Isabel II de Inglaterra, em 1957; a longa agonia de uma companhia que teria funcionado como um entrave a outras iniciativas de carácter coreográfico em Portugal.

           

          Mas a leitura “a contrapelo” das fontes permite-nos compreender com subtileza o percurso, as dinâmicas e o funcionamento dos BPVG enquanto instituição, tanto no domínio da produção como da recepção, e, sobretudo, as complexidades subjacentes à sua criação e às suas criações. Importa ainda perscrutar os paradoxos que enformam os BPVG e, depois da fase inicial da companhia, os mais de 30 anos de apagamento historiográfico que importa conhecer melhor até porque acompanham as transformações fundamentais do Portugal do século XX, uma vez que os BPVG estiveram no activo até depois do 25 de Abril. É, assim, num território entre o erudito e o popular ou o “popularucho”, a encenação do requinte e a emanação da decadência, entre o que podia ter sido e o que acabou por ser, que me interessa trabalhar. Interessa-me também o que permaneceu, dos discursos às práticas e aos modos de actuação, bem como as dinâmicas de transformação e as continuidades entre as instituições que abrem o cenário para a dança nos séculos XX e XXI em Portugal. De que modo o ímpeto modernista, a contemporaneidade no domínio criativo, e a concepção dos BPVG como uma manifestação de cultura erudita se cruzam com as ideias de representação de “regionalismo”, “tradição” ou “nacionalismo” são algumas das preocupações do meu trabalho. Proponho ainda que o modernismo dos BPVG não é experimental, mas de filão neoclássico, sendo os folclorismos que lhe assistem de carácter temático, e em linha com a estética de muitas outras companhias estatais e projectos musicais e coreográficos na mesma época[4].

           

          Neste texto colocarei o foco sobre os diálogos que, no início dos anos 20, se estabeleceram na revista Ilustração Portuguesa em torno da ideia da criação de uma companhia de dança.

           

          ***

           

          Ainda que esta história tivesse começado antes, António Ferro assumia a direcção da Ilustração Portuguesa, a revista semanal do jornal O Século, em Outubro de 1921. Sob o pseudónimo “O Homem que Passa”, na rubrica “A Entrevista da Semana”, encenava um questionário a si próprio em que colhia da oportunidade para expor o seu projecto para o periódico:

           

          Antes de mais nada, eu pretendo modernizar a “Ilustração Portuguesa” […] Integrar Portugal na Hora que passa, é uma obra nacional, uma linda obra a tentar. Lisboa é uma grande cidade que só existe quando há revoluções. Eu vou tornar Lisboa semanal. […] Procurará fazer-se uma revista Europeia mas integrando-se na vida portuguesa. Procurará mostrar Portugal aos Portugueses, procurará, com o auxílio de todos, estilizar a raça[5].

           

          Seria, justamente, nesta primeira declaração de intenções editoriais que Ferro esboçaria, com particular clareza, a ideia da criação de uma companhia de bailados em Portugal. Consciente da vastidão do seu programa e das muitas indefinições que teria que superar, António Ferro avançava o seu plano, com um largo “hálito de novidade e modernismo”:

           

          A linha do bailado português, por exemplo, está por descobrir. Encontrada essa linha, Portugal pode ter a sua companhia de bailados, como os russos, bailados modernos, arco-irisados, bailados de cores bobescas… nas nossas danças populares, nos nossos trajes regionais, nos nossos costumes, temos matéria-prima para estilizações admiráveis, temos tintas de sobra para um grande cartaz a pôr na Europa, a pôr no mundo. […] Manuel de Sousa Pinto, bacharel formado na Faculdade do Ritmo, iniciará no próximo número da “Ilustração Portuguesa”, uma série de artigos sobre este projecto que, dentro de mim é já uma certeza[6].

           

          Manuel de Sousa Pinto era, assim, destacado para definir teoricamente, numa série de artigos, a ideia da criação de uma companhia de dança portuguesa. Autor prolífero, Sousa Pinto dedicava-se, no início dos anos 1920, à crítica de dança, trabalho este que compilaria em 1924 no volume Danças e Bailados, em que constavam uma série de pequenas narrativas em prosa poética de carácter biográfico e descritivo sobre bailarinos e bailarinas a cujos espectáculos assistira, enredos e críticas de bailados, ou dissertações sobre géneros coreográficos. Esta colectânea integrava ainda os artigos publicados na Ilustração Portuguesa, com o título “Pela Dança Portuguesa”.

          Num número em que figurava na capa uma fotografia da poetisa Fernanda de Castro, que viria a casar com António Ferro no ano seguinte, e num artigo com ilustrações de Bernardo Marques (todos futuros colaboradores dos BPVG), Manuel de Sousa Pinto afirmava:

           

          A dança portuguesa, bailados portugueses: porque não?

          O difícil é lançar a semente.

          Depois as flores nascem. […]

          É preciso criar em Portugal, artisticamente, o gosto pela dança. Cuidar da educação rítmica da mulher. Apontar bailarinas.

          Obter-se-iam assim os instrumentos, que, manejados por decoradores de fantasia, por músicos inteligentes, por argumentistas de inspiração e coreógrafos de pulso, permitiriam tentar, ainda que com cautelosa modéstia, o bailado português, pensado em português, musicado em português, dançado em português, vestido à portuguesa e enriquecido com a valiosíssima série de coisas a bem dizer inéditas, e lindas, que Portugal, tesouro farto, ainda tem ou já teve.

          Pensemos no caso[7].

           

          Adivinhava, contudo, o autor algumas das possíveis dificuldades, nomeadamente a lentidão da formação balética, defendendo, contudo, que as danças populares tinham a virtude de serem suficientemente simples para permitirem iniciar este projecto:

           

          “Toca, portanto, a dançar, minhas meninas! não se arrependerão. Quase se pede garantir, à que mais se salientar como artista, além de glória florida e muita saúde, uns fartos cobres para o enxoval!”

           

          A 31 de Dezembro, ainda em 1921, Manuel de Sousa Pinto assinava o segundo destes artigos tão definidores daquilo que, vinte anos mais tarde, seria a estética que António Ferro associaria aos Verde-Gaio, estabelecendo, uma vez mais, um paralelo com os Ballets Russes e fazendo, desde já, propostas práticas para a concepção coreográfica:

           

          Não temos danças suficientemente ricas para palco — há quem diga. Puro engano.

          Toda a dança, afinal, se resume a bem pouco: a um ou dois movimentos básicos. O resto é papel da instrumentação, ou seja da técnica coreográfica, que, precisamente, falta criar e desenvolver.

          Os que viram, pela companhia de Diaghilev, as Danças do Principe Igor puderam verificar que o seu fogoso ímpeto obedecia, muito simplesmente, à repetição dum mesmo tema motor, comum a muitas danças russas, em que a posição agachada é ritual.

          Com um maestro meridional e dançarinos ocidentais, podia bem obter-se quadro idêntico, substituindo à ferocia do norte as voluptuosidades do sul. […]

          Um quadro de romaria minhota, com Zés-Pereiras rodopiantes, pandeiros risonhos, resfolegar de harmónios e bonecos de cavalinho ao alto de uma cana, o homem dos foguetes, o gaiteiro, um rufador, cachopas luzentas de oiro e valentões de varapau, o repique dos sinos e o resfregar das violas, que mais rico bailado se pode apetecer?[8]

           

          As ilustrações de Alice Rey Colaço para este artigo mostram uma cortina de cena com uma fonte central e a inscrição “Bailados Portugueses”, bem como figuras femininas com cestas de fruta e cântaros à cabeça, num imaginário que abria também portas temáticas para os BPVG.

          Ao longo do tempo em que António Ferro dirigiu a revista, seriam vários os artigos sobre dança, nacional e estrangeira, e que reflectiam, por um lado, o fascínio com a modernidade e a “indiscutível influência dos Bailados Russos na Arte moderna”[9] e, por outro, a busca pela construção de uma companhia de carácter nacional e nacionalista.

           

          Sempre na Ilustração Portuguesa, e com a data 21 de Janeiro de 1922, surgia um curioso artigo intitulado “Um Teatro de Arte” que alargava o projecto de Ferro ao domínio da arquitectura. Secundado por José Pacheko, um dos seus parceiros dos tempos de Orpheu, que havia assinado com Almada Negreiros e Ruy Coelho a folha volante, anexa ao número único da Portugal Futurista, dedicada aos “Bailados Russos em Lisboa”, António Ferro requeria, com carácter “urgente”, e já com uma planta e um projecto arquitectónico, a criação de um moderno Teatro no Parque Eduardo VII que deveria servir, justamente, para receber projectos coreográficos visitantes, bem como albergar uma companhia residente.

           

          Não há em Portugal os teatros para raros apenas, onde a Arte a grande Arte tenha um ritual. Não há um Teatro-Arte, onde não vá o público, onde vá apenas uma elite, trezentos, quatrocentos, quinhentos devotos… E não é porque entre nós não haja artistas, não haja actores que tenham um sonho de arte… Actores, poetas, cenógrafos — há… O que não há são empresários, o que não há é um Astruc, o animador do Teatro dos Campos Elíseos. Os nossos olhos estão impossibilitados de tornar a ter a felicidade dos bailados Russos porque da sua primeira vinda a Portugal eles não encontraram aquela atmosfera de carinho que teriam tido se houvesse um Teatro-Arte, um Teatro-Ballet Russe. E quem nos fala dos bailados Russos, fala de todas as novidades, de todas as grande horas da Europa que não batem para nós por falta de um ambiente, por falta dum cenário… […]

          Além duma companhia portuguesa que funcionará, todos os anos, contam os autores do projecto trazer a Lisboa, em saison a companhia dos Bailados Russos de Diaghilev, o teatro de Chauve-Souris, os Bailados Russos de Boerlein[10], Ana Pavlowa, etc. etc… […][11].

           

          No início de Maio de 1922, um banquete de despedida que contava mais de oito dezenas de convidados marcava o fim da direcção da revista Ilustração Portuguesa por António Ferro, que partia para uma temporada brasileira. Então com 27 anos, Ferro apresentava no Brasil a sua peça Mar Alto (que em Portugal viria a ser proibida no dia seguinte à sua estreia, a 10 de Julho de 1923, no Teatro de São Carlos). Em São Paulo, Ferro proferiria ainda uma série de conferências entre as quais se destacou A Idade do Jazz Band, mais tarde publicada, e que colheu imenso sucesso entre os modernistas brasileiros também pela encenação e componente musical, onde acordes de jazz acompanhavam as suas apresentações na Semana de Arte Moderna de 1922, ano da travessia aérea do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, por ocasião do primeiro centenário da Independência do Brasil. Consolidando a ponte que traça entre modernidade e dança, em A Idade do Jazz Band Ferro afirmava:

           

          Toda a nossa Época baila russo!

          Não triunfou o bolchevismo das ideias, mas triunfou o bolchevismo das formas… Diaghilev, Nijinski, Massine são os Lenines do Ritmo. O que é a Rússia senão um grande bailado, um bailado sinistro, um bailado vermelho? Benditos sejam os Bailados Russos que nos libertaram de nós próprios, que puseram o mundo em cada um de nós, que unificaram a Arte, que deram, à minha pena, movimentos de Karsavinà. A maior vitória dos Bailados Russos foi a de transformar os estados desunidos da Arte num grande Império, um império maior do que a terra porque é do tamanho do Sonho… Nos Bailados Russos, a Cor é gémea da Dança, da Música, da Atitude… É impossível separar essas irmãs gémeas, como é impossível separar as cores de uma bandeira, os versos de um soneto, os compassos de uma melodia, as imagens dos olhos… Para que a arte fizesse frente à vida era necessário que ela estivesse unificada como ávida está. Os Bailados Russos são a constituição política da Arte, constituição em que o primeiro artigo proíbe a estabilidade e ordena a evolução contínua… O jazz-band, essa Dança de S. Vito,  é, portanto, uma das muitas consequências dos Bailados Russos.

          O jazz-band é o Bailado Russo da Música.

           

          ***

          Se o interesse pela criação de um estética coreográfica e musical tinha antecedentes significativos em António Ferro, seria, no entanto, Francisco Florêncio Graça quem viria a desenvolver todo um trabalho que o colocava em primeiro lugar no que dizia respeito à direcção de uma futura companhia de bailado. Francisco Florêncio Graça (1902-1980), que optaria pelo nome artístico de Francis Graça, tinha tido uma formação inicial essencialmente marcada pelo curso de Música do Conservatório Nacional, onde havia sido colega do compositor Frederico de Freitas, com quem viria a estabelecer laços profissionais e de amizade determinantes. No domínio da dança, após uma formação muito rudimentar em Lisboa, rumou a Paris no início dos anos 1920, onde terá estudado durante um período que lhe permitiu sobretudo estar próximo do moderno universo artístico parisiense. De regresso a Portugal, no contexto do Teatro Novo, um projecto experimental criado sob a direcção de António Ferro, em 1925, Francis Graça teve como marco inicial da sua carreira uma performance que, pelo arrojo da nudez que explorava, e pela abordagem surpreendente e “vanguardista” para o meio lisboeta, lhe daria uma enorme notoriedade garantida pelas polémicas e pelas críticas mordazes que, durante algum tempo, lhe teriam criado inúmeros constrangimentos, um succès de scandale.

          À falta de instituições e estruturas para o desenvolvimento de espectáculos coreográficos e músico-teatrais, seria, na verdade, no teatro de revista que Francis Graça iria experimentar uma primeira síntese dos ideários propostos por Ferro e Sousa Pinto. Trazendo “um pouco de Paris em Lisboa e um pouco de Lisboa em Paris”[12],  e panfletariamente influenciado pelo “music-hall”, pelo “vaudeville”, pelas “jazz-bands”, Francis Graça começaria por transformar a componente coreográfica da revista, juntando-lhe elementos da cultura popular, do pitoresco regional e tradicional, com uma sofisticação demonstrada pela atenção dada aos modernos “efeitos de luz”, aos figurinos, às cortinas de cena. Na revista, a dança passava a ter um papel mais autónomo, com uma maior importância dada à coreografia e à música, bem como um reconhecimento do papel dos bailarinos. A possível “modernidade” da dança em Portugal nos anos 1920, passaria em grande medida por espectáculos como Cabaz de Morangos (1926); Água-Pé (1927); Sete e Meio (1927); A Rambóia (1928); Chá de Parreira (1929). Já na década de 1930, Francis Graça estreava-se no cinema no grande acontecimento que foi o primeiro filme sonoro, A Severa (1930), de Leitão de Barros, e com música de Frederico de Freitas, marcando assim, na grande tela e para um público mais alargado, a sua relevância enquanto referência na dança em Portugal.

          De facto, na década de 1930, foram muitas as participações de Francis Graça e da sua  companheira de trabalho, a alemã Ruth Walden, em iniciativas tuteladas pelo Secretariado de Propaganda Nacional, criado em 1933 sob a direcção de António Ferro. Apresentando-se nos mais diversos certames, exposições, atribuições de prémios, Francis e Ruth construíam, também eles, um imaginário coreográfico, que fazia agora as ligações entre o pitoresco regionalista, a citação modernista e o programa do regime. Em carta patente no espólio Frederico de Freitas, de 16 de Julho de 1937, Francis Graça testemunhava o sucesso das apresentações da dupla no Brasil e dava-nos uma ideia do repertório que já se ensaiava então: “Bisamos Pastores, Chula, Nazareth e Fado, e queriam bisar Ribatejo e Douro”, afirmava.

          Entre muitos outros espectáculos, no âmbito do teatro musical, é ainda de destacar a revista Minha Terra (1936), com música de Ruy Coelho, onde Francis dança, com Ruth Walden, um número intitulado “Pássaro Encarnado”, com claras reminiscências do stravinskiano Pássaro de Fogo dos Ballets Russes, e adivinhando já um salto temático para o “Verde-Gaio”, o pássaro verde.

          Sob o entusiasmo crítico e jornalístico de António Ferro e sob as ideias de Manuel de Sousa Pinto, Francis Graça e Ruth Walden; os artistas plásticos Paulo Ferreira, Bernardo Marques e José Barbosa; os compositores Frederico de Freitas e Ruy Coelho, tinham, assim, na década de 1920 lançado as fundações do que viria a ser, a partir de 1940, a primeira companhia de bailado em Portugal, os Bailados Portugueses “Verde-Gaio”.

          _______

          [1] De forma não exaustiva, neste âmbito, são de salientar, no contexto académico, os capítulos de Carla Ribeiro, Daniel Melo, Elvira Alvarez, Graça dos Santos, Helena Marinho, Manuel Deniz Silva, Maria João Castro, Margarida Acciaiuoli ou Vera Marques Alves. Especificamente sobre os Verde-Gaio são de destacar a investigação de Maria Luísa Roubaud, o catálogo do Museu Nacional do Teatro, de Vítor Pavão dos Santos, as pesquisas de Helena Marinho, a tese de Rita Ferreira Nunes e a obra de José Sasportes.

          [2] Edward Luiz Ayres de Abreu, Danças e Contradanças: Almada Negreiros e Ruy Coelho. Revista de História da Arte (2014), p. 111-124.

          [3] Entre 1915 e 1917, os artistas plásticos franceses Sonia Delaunay (de origem ucraniana) e Robert Delaunay,  associados aos movimentos modernistas do Simultaneismo e Orfismo, e com ligações aos Ballets Russses, fixaram-se na cidade de Viana do Castelo, mantendo convivência e correspondência com diversos pintores portugueses, e revelando-se uma importante influencia, nomeadamente sobre Eduardo Viana, Amadeo de Souza-Cardoso, José Pacheco ou Almada Negreiros. Almada Negreiros teria planeado fazer com Sonia Delaunay uma série de “ballets simultaneístes”que nunca se viriam, contudo, a realizar.

          [4] “The Transnational Path Toward Corporeal Fascism”, in Mark Franko, The Fascist Turn in the Dance of Serge Ligar (Oxford: Oxford University Press, 2020); Scott Messing, Neoclassicism in Music: From the Genesis of the Concept through the Schoenberg/Stravinsky Polemic. (Ann Arbor, MI: UMI Research Press, 1988).

          [5] O Homem que Passa [António Ferro], “A Entrevista da Semana: A ‘Ilustração Portuguesa’ entrevista a ‘Ilustração Portuguesa’”, Ilustração Portuguesa, 8 de Outubro de 1921.

          [6] O Homem que Passa [António Ferro], “A Entrevista da Semana: A ‘Ilustração Portuguesa’ entrevista a ‘Ilustração Portuguesa’”, Ilustração Portuguesa, 8 de Outubro de 1921.

          [7] Manuel de Sousa Pinto, “Pela Dança Portuguesa”, Ilustração Portuguesa, 5 de Novembro de 1921. Ilustração de Bernardo Marques.

          [8] Manuel de Sousa Pinto, “Pela Dança Portuguesa”, Ilustração Portuguesa, 31 de Dezembro de 1921. Ilustrações de Alice Rey Colaço.

          [9] António Ferro, “A Arte Moderna e os ‘Bailados Russos’ (Crónica da Semana)”, Ilustração Portuguesa, 14 de Janeiro de 1922.

          [10] Referência aos Ballets Suédois (1920-1925), companhia sediada em Paris, dirigida pelo sueco Rolf de Maré e com Jean Börlin como coreógrafo, responsável por bailados marcadamente modernistas de que são exemplo La création du monde, Les mariés de la Tour Eiffel, ou Relâche. O repertório dos Ballets Suédois congregou compositores como o grupo Les Six, Erik Satie, Cole Porter ou Alfredo Casella; artistas plásticos como Giorgio Di Chirico, Fernand Léger ou Francis Picabia; com argumentos de autores como Blaise Cendrars, Luigi Pirandello ou Jean Cocteau. As “trupes suecas” serão, de resto, uma referência presente em vários textos de António Ferro nas apresentações dos BPVG.

          [11] António Ferro, “Um Teatro de Arte”, Ilustração Portuguesa, 21 de Janeiro de 1922. Ilustrações de José Pacheko.

          [12] António Ferro, “Últimas Notícias”, Diário de Notícias, 28 de Dezembro de 1927.

          Bryana Fritz línguacortada

           

          Nota: este texto foi enviado no dia 24 de julho, o dia de Santa Cristina de Bolsena.

           

          Quero começar por dizer que existem poucas provas da existência de Santa Cristina de Bolsena. Não se sabe muito sobre o início da sua vida. Uma tradição local professa que tenha nascido em Bolsena, outra aponta-lhe o nascimento na cidade costeira de Tiro, no atual Líbano. Contudo, a mim não me interessam as suas origens, interessa-me a sua língua…

           

          Ao reter esse órgão muscular na minha boca, movendo-o na sua caverna ladeada por caninos, a saliva começa a acumular. Estudo o espectro inteiro de movimentos que posso executar com este animal estranho: bater no céu da boca, enrolá-lo na direção da úvula, passá-lo depressa por entre os dentes. Preparo-me para receber mais que um na boca enquanto produzo um lote fresco de sumo de beijo.

          Então, posso receber a tua língua? Vamos beijar-nos? E se as nossas línguas forem treinadas em línguas diferentes, será que podemos linguajar o nosso beijo? E se eu tocar com a língua na ponta dos meus incisivos para fazer o som do inglês “th” talvez também toque os teus incisivos, talvez façamos esse som “th”.

          Mas sei que sabes que os nossos lábios não se estão realmente a tocar. A minha língua já está cortada, cuspida e morta. Agora tenho de continuar sem ela.

          Parece-me que perdi a minha língua-mãe e a língua-mãe da minha mãe. Por ter crescido nos subúrbios de Chicago, demorei muito tempo a perceber que a língua inglesa era um presente envenenado dos privilegiados. A cidade onde cresci, Mundelein, em Ilinois, tinha 40% de habitantes cuja língua materna era o espanhol e a família na qual nasci falava uma mistura de polaco, húngaro, alemão e sérvio. A minha mãe era polaca e a minha avó húngara.

          A forma como a minha mãe fala inglês tornou-se um fascínio para mim. Não há nenhum vestígio estrangeiro na sua língua. Os seus “r” são perfeitos, os seus “th” são sem mácula e cada sílaba é pronunciada com a inflexão típica de uma tipa da cidade de Chicago. Ainda assim, tenho um fetiche com o momento em que ligo à minha avó no meu aniversário e a oiço dizer: “hapy birrsday sveety!”, de uma maneira que só posso sonhar em reproduzir.

          Acho estranho, mas compreensível nunca ter aprendido polaco. Para a minha mãe, em Chicago o polaco representa a classe mais baixa. Os seus pais trabalhavam numa fábrica, um dos seus irmãos mais velhos era um DJ alemão/motorista de limusine/fazedor de dentes de ouro e o seu irmão mais velho trabalhou como canalizador. A minha mãe aperfeiçoou o seu inglês, ganhou uma bolsa universitária, tornou-se contabilista e integrou-se na sociedade americana.

          Quando me esforço ainda consigo cantar os parabéns em polaco, consigo dizer “boa noite”, “anda cá”, consigo dizer “beija-me” e “amo-te”. Consigo dizer ainda algumas palavras soltas, mas não muito mais. A língua materna da minha mãe foi cortada da nossa vida e, ainda assim, quando precisei dela, paguei 2000 euros a um advogado para ter um passaporte polaco com o qual me mudei para a Europa.

          O inglês da minha língua materna tornou-se uma ferramenta privilegiada desde que morei na Alemanha, na Bélgica e agora em França, mas ao mesmo tempo esse inglês começou a misturar-se com um inglês internacional.O meu sotaque mudou completamente. Quando regresso a Chicago, as pessoas perguntam-me de onde sou. No casamento da minha irmã, pediram-me que discursasse e os convidados do noivo pensaram que eu era uma estudante estrangeira acolhida pela família. Para os ouvidos da minha infância, o inglês não é a minha língua materna. Por vezes brinco comigo mesma e digo que o inglês é simultaneamente a minha primeira e segunda língua – compreendo perfeitamente que só eu ache graça a esta piada.

          Não se sabe muita coisa acerca da mãe ou dos irmãos de Cristina. A sua história centra-se na figura do seu pai, Urbano. Da sua família apenas se diz que eram adoradores de ídolos pagãos. Provavelmente eram também abastados, o que permitiu o acesso de Cristina a uma boa educação e a luxos materiais.

          Ao longo do tempo, Cristina foi ganhando cada vez mais repulsa pelo luxo a que tinha acesso a sua família e ficou cada vez mais comovida com o sofrimento dos outros, o que a fez decidir partir todos os ídolos de ouro pagãos do seu pai e distribuir os pedaços pelos mais pobres e necessitados. Quando descobriu este acto de generosidade da sua filha, Urbano açoitou-a com uma vara e trancou-a numa torre muito alta com algumas amigas pagãs.

           

          Ao reter esse órgão muscular na sua mão, o Dr. Julian diz: “Parece-me que a sua língua está doente. Deixe-me observar mais de perto…”

          Na minha língua, quando um médico recolhe uma amostra para fazer uma cultura da tua língua, isso significa que o médico irá raspar uma parte da superfície da língua para guardar e testar. O exame continua…

          “Pode sentar-se mais direita? Assim está melhor. Ok, quero que toque com a ponta da língua no céu da boca para que eu consiga ver a superfície ventral. Mhmmmm… agora deite a língua de fora a direito e o mais esticada que conseguir para que eu possa procurar alguma irregularidade, ver a cor, a textura e a massa. Ok, muito bem… fique assim. Agora vou pegar neste pedaço de gaze, enrolá-lo à volta da sua língua e fazer uma palpação utilizando os meus dedos: polegar e indicador. Vou procurar a presença de massas e partes moles. Tem alguma sensibilidade aqui? Ah sim… vejo que aqui tem alguma. Ok, agora vou fazer uma cultura da sua língua para mais testes. Pronta? 1…2…3…”

           “Disse textos?”

           “Testes, testes, não textos. Haha. Se calhar também devíamos ver esses ouvidos!”

           “Mas o que é que acha que é? Nem me passou pela cabeça alguma coisa estar mal…”

           “Eu diria tratar-se de um caso de cândida.”

           “Mas, papá, cândida não é um organismo normal? Não é suposto existir na minha boca?”

           “Não me chame papá.”

           “Porquê… doutor? Tudo o que o doutor está a fazer lembra-me o meu pai.”

           “Mas eu não sou o seu pai, só estou a raspar-lhe a língua.”

           “Tem razão, peço desculpa pela minha linguagem tão descuidada. A minha língua não está nada bem, sabe. É por isso mesmo que estou aqui para lhe dar a minha cultura.”

           “Obrigado por isso. De facto, a sua língua não está normal.”

           “E então o que lhe vai fazer, doutor papá?

           “Vou cortá-la!”

           

          Entretanto, Cristina tinha conseguido converter muitos dos pagãos da sua casa ao cristianismo. Quando Urbano soube do sucedido, decidiu trespassar o corpo da sua filha com ganchos de ferro e atá-la a um suporte debaixo do qual acenderam uma fogueira. Foi Deus que a salvou destas crueldades e a poupou do fogo, ateando-o sobre os seus agressores. Em seguida, ataram-lhe uma pedra ao pescoço e atiraram-na ao lago de Bolsena. Deus salvou-a mais uma vez e o seu pai finalmente morreu.

          Bom… perguntam-me frequentemente porque me interessam as santas. Parece-me uma pergunta justa. A nível pessoal não é nada de extraordinário, cresci numa família cristã e a religião sempre foi um assunto fraturante. Eu e uma das minhas irmãs não somos religiosas, a minha outra irmã é. Eu e a minha tia namoramos mulheres e uma parte da minha família é Testemunha de Jeová. Etimologicamente, religar significa ligar/vincular, mas a força da religião já não se sente.

          Os meus pais pertencem a uma igreja não denominacional. Sempre rezámos juntos antes de comer e de dormir. Eu fui batizada, fiz a primeira comunhão e fui à missa todos os domingos. Cada vez que vejo o meu pai no Aeroporto Internacional de O’Hare, em Chicago, ele pergunta-me: “Então, querida, queria saber como estás no que diz respeito à tua fé.”

          Uma vez, quando voltei para passar as férias, frequentei as celebrações de Natal na igreja dos meus pais. O meu pai era uma pessoa importante naquele grupo de homens. Um dos membros do grupo, que tinha a alcunha de Cowboy, abordou-me depois da missa. Cowboy é uma alcunha estranha para alguém que vive na região Centro-Oeste dos Estados Unidos. Quando estava a caminhar sozinha no parque de estacionamento, ele aproximou-se de mim, colocou o seu gigante braço à minha volta e deixou-me num aperto. Disse-me: “Sabes que o maior medo do teu pai é morrer sem ter a certeza de que aceitaste Cristo na tua vida.”

          Eu amo o meu pai e não quero que ele morra com medo.

           

          A história morreria ali, mas Urbano morto tinha dois sucessores chamados Dion e Julian. Dion morreu depois de ter atirado Cristina para uma fornalha em chamas. Cristina emergiu desse fogo cinco dias mais tarde sem ferimento algum. Contudo, Julian decidiu cortar-lhe a língua.

           

          Ao reter esse órgão muscular entre os dedos, ris-te porque é falso. É um daqueles objetos merdosos de Halloween que comprei on-line para uma performance. Usámo-la uma noite quando estávamos a fazer sexo e enchemo-la com os pingos da nossa seiva. Língua bífida, a serpente deixou a tua culta carcaça usada no meu peito.

          Tenho de confessar, só usei esta língua como adereço em Submissão Submissão, o retrato de Cristina de Bolsena. Costumo segurá-la entre os dentes, tirá-la ou bater com ela na minha cara enquanto estou a gritar. E agora enchi este objeto de ti e sei que esta memória irá ressurgir na minha cabeça da próxima vez que o usar.

          Vejo tudo de novo, estávamos nuas na cama e pediste-me a minha língua falsa. Já ta tinha mostrado algumas vezes antes. Tu pegaste naquele pedaço carnudo inerte e começaste a encostá-lo lentamente ao meu sexo. Apertava-lo entre os teus dedos tensos, cobria-lo com a tua saliva e o meu corpo estava suspenso em prazer. Começaste a passá-lo pelo meu clitóris. O truque de magia, o horror físico torna-se no meu brinquedo sexual. Duas línguas para o meu sexo, uma a olhar-me nos olhos. Venho-me.

          Mas como podem conviver na minha cabeça este ato sexual e este adereço performativo, tanto no sexo como no palco?

           

          Quando Cristina estava em frente a Julian com a sua língua cortada dentro da boca, olhou-o nos olhos, fez pontaria e cuspiu-lhe a língua para a cara. Acertou-lhe no olho com tamanha precisão e força que, quando a língua solta caiu ensanguentada no chão, ele apercebeu-se de que estava cego. Cristina, mesmo sem língua na boca, começou a sentir dentro dela uma agitação provocada por coisas que queria dizer. Projetou-se para a língua falada e assim aconteceu o milagre. Cristina não tinha língua e ainda assim conseguia falar.

          Sabine Macher a velha bailarina

           

          o tricot

           

          ao procurar uma agulha de crochet para apanhar o oitavo de limão entalado na garrafa de vidro que ponho no frigorífico para ter água fresca e com sabor a limão (mas passado um tempo o limão fica demasiado velho e aromatiza a água com limão podre), visualizo esta ferramenta longa e fina com um pequeno gancho na ponta. talvez esteja numa caixa num armário escuro, uma caixa azul de ténis adidas que deve ser muito antiga, a caixa, ainda tem o preço na lateral em francos franceses e tenho-a comigo desde sei lá quando, mas há mais tempo do que o início do euro em 2002. devo tê-la herdado de alguém que usou esses ténis porque nunca comprei uns ténis nem seja o que for dessa marca de origem alemã que me repugna como todas as marcas de desporto e até a palavra desporto. ao abrir a caixa vejo o tricot preto de algodão que parei de tricotar em 1980 em Baumetane na estrada para Istres e que desde então sempre transportei nas mudanças de casa, e ao lado do tricot inacabado estão duas agulhas de crochet. o meu cérebro tinha razão ao guiar a minha mão para a caixa. ou foi provavelmente a minha mão que disse ao cérebro para dirigir o meu corpo ao armário. quase nunca faço crochet, mas para isto é o instrumento perfeito. entra no pescoço comprido da garrafa e prende-se na pele inchada do limão, tenho a sensação de tentar alcançar um DIU através do colo do útero, talvez porque sempre me disseram que os abortos caseiros se fazem com agulhas de tricot – mas o crochet parece-me de repente mais apropriado e talvez não se distinga o tricot do crochet, ambos pertencendo ao mundo das mãos de mulheres que fazem lavores – e ao puxar lentamente, com a cabeça apoiada no gargalo da garrafa, o pedaço de limão em forma de lua crescente sai.

           

           

           

          quando te escrevo coreia quero sempre escrever com ch como choreia [a dança] ou la chorée [a doença nervosa].

           

           

          ao voltar a guardar a agulha na caixa, olho para o tricot pela primeira vez há muito tempo; é isso que farei durante a próxima eternidade da minha vida de velha bailarina: reaprender a tricotar.

           

           

          a velha bailarina são vocês, sou eu, é a água que corre,

          um espectro no tempo que mexe as mãos,

          Higaki, ao lado de uma barca vermelha que se enraíza;

          ela vai buscar água nos braços do Sena.

           

           

           

           

           

           se passarem por lá, perguntem-lhe o nome.

          a aranha preta

          é a minha mãe. morava na casa de
          banho ou lá em cima, com as plantas
          da janela,
          mas caiu na banheira e não consegue subir a parede lisa e branca.
          no décimo aniversário da
          morte da minha mãe, foi toda de
          patas fechadas para o filtro do ralo
          da banheira. eu voltei a pô-la no vaso
          da janela, mas ela tentou
          imediatamente voltar para o interior
          da casa de banho.
          depois de alguns dias, quando abri a
          porta da casa do banho numa noite
          de grande calor, ela viu-me a vê-la.
          desta vez (desculpa) lancei-te ao ar e
          espero que tenhas partido para os
          açores, pois um dia um cientista
          explicou-me que as aranhas podem
          voar num sopro de vento até ilhas
          distantes como, por exemplo,
          os açores.

           

          perguntas e respostas:

           

          quem é a velha que dança?
          qualquer pessoa
          ninguém
          tu
          eu

           

          quando é que a podes encontrar?
          em qualquer altura, excepto no dia de ano novo.
          o resto do ano ela anda por aí e está à tua espera.

          o que é que ela faz para ganhar a vida?
          nada de nada, está morta

          o que é que ela gostaria de fazer?
          nada,
          mas é muito difícil

           

          o que é que ela faz para si própria?
          escrever para o coreia
          beber chá verde
          roubar flores

           

          ela é uma ela?
          sim
          uma ela/escudo
          uma ela/futuro
          uma ela /não/eu

          caramba

           

          enquanto trabalhava num projecto sobre dinheiro
          (não resolvido) o meu pai morreu
          (resolvido) e, para o ter connosco no
          grupo, decidi estudar teatro No, porque o
          meu pai se chamava No.

           

          aí conheci Higaki, um fantasma
          e uma mulher que dançava antes
          de a guerra destruir
          tudo e a obrigar a
          reformar-se junto a um rio chamado Tejo.
          será que dançamos em tempos de guerra?

           

          mas qualquer tentativa de contar a história tinha de falhar.
          não há história, só eu a dizer que Higaki
          quer estar perto de um teatro e de água
          corrente.

           

          acho que é agradável estar ao ar livre a fazer o que se gosta e até um pouco mais.

           

          a velha bailarina é um abrigo
          ela me mostra e me esconde

           

          a velha bailarina é o outro lado do que vocês
          pensam e do que eu digo. não sou um fantasma e não
          sou
          uma shirabyôshi, mas tenho idade suficiente para vos
          tornar meus. com o tempo alcançarei a honestidade e
          usarei os seus quimonos poeirentos.

           

          a velha que dança acolhe tudo
          o que acontece na sua presença.

           

          tentei distrair-me e
          aos outros pedindo a amigos
          para estarem comigo e serem ela
          neste projeto abusivo para que
          eu possa ver
          e não ser vista.

           

          a velha que dança é um ataque desastrado,
          vazio, como uma soneca de verão e eu estou a
          adormecer tentando dizer que aquilo (x=culto)
          não é nada. como o dinheiro, o nada é algo, oco
          e poderoso quando aceitamos as condições.

           

          hoje de manhã, por volta das seis horas, oiço um homem a gritar mas não me lembro das palavras (provavelmente francês, mas agora parecem alemão, alguma coisa do tipo: por favor não, – socorro), depois desaparecem e voltam mais como uma oração ou uma canção de amor, levanto-me e olho para a rua bela e vazia com um grupo de quatro pessoas, dois homens de tronco nu, um de calças, o outro de calções e um corpo lindíssimo emergindo dos calções, um terceiro homem com uma barriga, um saco ao ombro e uma t-shirt e uma mulher na periferia da cena. ela parece estar à espera de que o homem do saco venha ter com ela para retomarem o caminho que faziam antes de chegarem a esta cena – o homem do saco tem a mão no peito do homem de calções, fala e mexe-se, tenta impedi-lo de encostar um dos seus enormes punhos no outro homem. o homem zangado vira-se e senta-se e levanta-se de novo e o homem do saco está entre ele e o homem mais magro no limite do círculo, quando de repente o homem zangado sai disparado do centro e alcança o homem magro por trás e prende o braço em chave à volta do pescoço dele, pronto a estrangulá-lo. eu vou lá para dentro chamar a polícia, mas não me lembro do número e carrego nos botões errados e quando volto à varanda para olhar lá para baixo, os dois homens de tronco nu estão a afastar-se mais carinhosamente e a equipa de paz segue em sentido contrário em direcção ao metro. na cozinha o sol nasce como uma bola de fogo e começo a regar as plantas e os lençóis que pendurei em frente às janelas para refrescar os vidros.

           

           

           

           

          ontem fui passar um longo dia no lugar da velha bailarina na margem do rio Sena, ela ficou feliz por me ver e eu também. mas ela disse-me que eu devia contar a sua história.

           

          em tempos, um monge (o waki) vivia num retiro perto de um rio.

          todos os dias via uma mulher muito velha (a shite) que vinha buscar água.

          um dia, quis saber o nome dela. ela primeiro recusou e depois respondeu com um poema.

          noutro dia, um homem da aldeia (o kyogen) encontrou o monge waki e o monge perguntou-lhe o que ele sabia da velha shite.

          “oh” disse o kyogen, “não sei nada, mas há cerca de 200 anos houve uma bailarina que vivia perto do rio por trás de uma sebe de ciprestes, porque tinha vindo a guerra e ela já não podia dançar. anos mais tarde, chegou um chefe militar ao seu modesto abrigo e pediu-lhe água. enquanto ela lha dava, ele perguntou se ela era Higaki, a bailarina outrora famosa, e além disso, ordenou-lhe que dançasse.

          ela ficou muito envergonhada porque as mangas do seu quimono estavam em farrapos e eram curtas demais. em vez de dizer o seu nome, recitou um poema.”

          provavelmente perceberam que é o mesmo poema que a velha disse ao monge. por isso já sabemos: a velha é o fantasma de Higaki, não consegue encontrar repouso e espera que o monge a possa ajudar com a sua prática de oração.

          ela vai buscar a sua máscara assustadora de fantasma shite por trás dos ciprestes entrelaçados, o monge reza, ela recita mais versos do poema e depois executa uma dança sofisticada.

           

          estou a chegar ao limite de 8000 caracteres para uma página no coreia – mas vem até ao rio e poderemos falar mais.

           

           

          Traduzido do original em inglês, francês e português por Joana Frazão.

          Germaine Acogny Dança Africana

          Ao longo de mais de cinco décadas de trabalho contínuo de transmissão de dança, primeiro com a Mudra Afrique, e depois com a École des Sables, em Dakar, Germaine Acogny tornou-se uma figura central para a dança contemporânea em África. O seu percurso de renovação estética da dança africana ficou marcado pela utopia do pan-africanismo dos anos setenta, em que a dança participava no movimento cultural de reimaginação política pós-colonial do continente comprometido com a sua história ancestral. Publicado originalmente em 1980 em francês, inglês e alemão, Dança Africana é um dos raros manuais de dança escritos na região, do qual publicamos a sua introdução. A partir deste texto pode-se não apenas aceder a uma história de vida pessoal que se cruza com tradições de dança do centro-oeste africano, mas também a um programa estético e político que inevitavelmente dialoga com as culturas de dança afro-diaspóricas no continente americano.

           

          Dança Africana

          Germaine Acogny

           

          Dança tradicional africana

          O ser humano usa o corpo para se exprimir desde o dia em que nasce. A dança é, para mim, um prolongamento natural da vida e dos gestos do dia a dia. A dança agrega ideia e sentimentos. É isso que ela é ainda hoje na África Subsariana. É por isso que as danças tradicionais são feitas pelos mais velhos, mais do que pelos jovens. Os mais velhos são os que têm mais a dizer, a comunicar, a transmitir, para que o seu conhecimento possa pendurar e eternizar-se pelas gerações futuras. É a sua forma de escrever, de marcar no tempo e no espaço as coisas criadas e não criadas.

          Desde que o ser humano surgiu na Terra, a dança é usada para honrar o seu criador ou múltiplas divindades. Isto explica que, na génese, toda a dança era ritual, era sagrada. Os nossos antepassados dançaram todos os acontecimentos importantes da sua vida. Longe de ser um mero entretenimento, a dança era uma forma de prece: “Mais do que expressões puramente instintivas ou espontâneas, essas bamboulas com que a literatura colonial fazia sonhar os seus leitores, as danças, as cerimónias […] não são certamente destinadas a atingir um estado de desinibição coletiva, como alguns terão tido a infelicidade de dizer: pelo contrário, obedecem a um conjunto estrito de códigos que, sendo distintos dos da coreografia ocidental, não são menos rigorosos e imperativos, estando institucionalizados e ocorrendo exclusivamente em certas ocasiões — em alturas específicas — e para propósitos claramente definidos” (J. Laude, in Michel Huet, Danses dAfrique).

          Danças para fazer a chuva cair ou danças da colheita são manifestações de alegria coletiva, danças da água, danças do fogo, danças de iniciação… A dança, em África, mais do que em qualquer outro lugar, é ainda hoje expressão da vida. A humanidade colocou Deus acima de tudo; inacessível para o ser humano. Para se dirigir a Deus, o ser humano usa gestos, a dança e o canto.

          Para os iorubá, antes de se começar qualquer cerimónia é necessário primeiro acalmar a divindade LEGBA, deus do sexo e da desordem. Com a aparência de um homem flanqueado por um grande pénis em madeira, divindade protetora do país, da aldeia e da casa, é-lhe oferecido o sacrifício de um galo, que simboliza a potência do macho responsável pela procriação. A seguir é invocada FA, divindade da paz. Os instrumentos de percussão utilizados são um grande e um pequeno. O primeiro tem um som agudo, o segundo grave. As assans, cabaças ocas com grãos lá dentro que se agitam, juntamente com os tambores e os cânticos, formam uma sinfonia. Os ritmos e os cânticos são conhecidos dos percussionistas e dos bailarinos iniciados. Cada divindade possui um ritmo diferente e é a divindade que conduz a dança. É durante o período de iniciação que se dá a conhecer aos principiantes regras que lhes permitem adquirir conhecimento dos seus corpos, autocontrolo, força e determinação para superar obstáculos e a si próprios.

           

          Aloopho ou a herança da minha avó

          Aloopho era uma sacerdotisa do reino do Daomé, da comunidade religiosa dos ORIXÁS YAO, que na língua iorubá da Nigéria e do Daomé significa “esposas do poderoso, do sagrado, do divino”. Os homens e as mulheres devotos às divindades iorubá recebem o nome de YAO ORISA. Aloopho foi escolhida pela comunidade e consagrada IYA, que significa mãe, dando-lhe o nome de IYA ORISA, mãe do sagrado e do poderoso. Aloopho foi o nome que lhe deram na sua iniciação.

          De acordo com a tradição iorubá, nem toda a gente se consagra aos espíritos e às divindades. Somos escolhidos para sempre como emissários das divindades, dos ORIXÁS ou dos VODUN como se diz na língua fom, do Daomé. Essa escolha é confirmada à nascença ou durante uma cerimónia que determina o prenúncio do devoto, cerimónia esta que ocorre no seio das famílias fom e iorubá para identificar a alma ou o espírito do antepassado que reencarnou naquele indivíduo, e quais as vicissitudes que irão acompanhar a sua vida do nascimento até à morte. (Os fom e os nagôs de Daomé acreditam na metempsicose, em particular na reencarnação dos defuntos no corpo dos seus descendentes.)

          Aloopho foi, portanto, escolhida e consagrada aos ORIXÁS pela sua comunidade que passou a respeitá-la e a amá-la incondicionalmente até morte. Além de sacerdotisa, Aloopho era também mãe de família. Só teve um filho, mas adotou e criou os filhos do seu marido polígamo. A divindade patrona de Aloopho era YEWA, deusa da água doce representada por uma pomba. As danças acontecem num APATAM, um refúgio com telhado de folhas de palmeira. Aloopho, a sacerdotisa, líder da cerimónia, conduzia a dança ritual segurando a faca sagrada na mão direita. Ao abanar os ombros, uma onda percorria todo o seu corpo. Os braços em forma de pegas de cesto eram movidos da frente para trás com uma ligeira flexão dos joelhos enquanto girava e pousava a mão sobre a cabeça dos espetadores. A música e a dança tomavam os iniciados que entravam em transe, possuídos por uma divindade. A divindade era reconhecida pelos gestos e sinais que a caracterizam. Se fosse a divindade da caça, o homem tornava-se caçador batendo com os pés no chão a evocar as entidades da terra. Aloopho conta como um rapaz de oito anos, possuído pelo deus da caça, saiu da área da dança e foi para a floresta, regressando com um esquilo entre os dentes. No caso de LEGBA, o deus do sexo e guardião da vila ou aldeia, semeia a desordem e impõe movimentos de acasalamento, rotação da pélvis com contrações de trás para a frente. Os iniciados possuídos pela entidade são depois levados para o convento e são cuidados, regressando logo a seguir para a dança. Em regra, a dança começa à tarde e pode continuar até ao fim da noite, à luz de tochas ou lamparinas a óleo.

          Para os bailarinos que representam certas divindades, o uso de máscaras era obrigatório. Para os GUELEDES, em Quetu, a máscara representava um rosto iorubá com cicatrizes. A posição e a forma indicavam a pertença a uma ou outra família. Os gémeos eram representados por duas estatuetas. O deus do relâmpago, SHANGÔ, era representado por um homem com um machado de forma curvada por cima da cabeça. LISSA, a divindade feminina, era representada por um colar branco. O branco é o símbolo da deusa. Os primeiros brancos a chegarem à terra dos fom foram bem recebidos e nem sempre compreenderam o sentido desse acolhimento. Entre a comunidade iorubá, as divindades são também simbolizadas por pedras preciosas, por metais como o ouro, a prata e o cobre. As divindades fom são representadas por pequenos montes de terra e troncos de árvore, sobre os quais são sacrificadas ovelhas, vacas e galinhas salpicadas com óleo de palma. De vez em quando Aloopho brincava com a forma como eram representadas as divindades do seu marido, que era da etnia fom.

          Tanto na cultura iorubá como na fom, dança-se balançando o tronco e o rabo; a energia e o impulso são dados pela música. Se a música é desencadeada por eventos felizes, a dança é rápida. Em momentos de luto, os mahi, para terem um som melancólico, colocam uma cabaça virada para baixo numa bacia cheia de água e tocam com a base da palma da mão: é o SINHOUN, o tambor de água.

          Como sacerdotisa responsável pela iniciação de novos praticantes, Aloopho levava uma vida simples. Tinha o poder de fazer tanto o bem como o mal. Esperava-se que fosse totalmente honesta e disponível. A religião animista baseia-se na lei do equilíbrio (a maldade é punida e a bondade é recompensada). O cristianismo não nos trouxe nada de novo em termos de rituais. Entre a comunidade iorubá, o batismo realizava-se ao oitavo dia após o nascimento. A mãe e a criança tinham de sair de casa enquanto era lançada água pelo telhado. Ao bebé batizado era dado a provar sal e peixe fumado. Até à sua morte, Aloopho recusou converter-se ao catolicismo, já que considerava o batismo animista tão válido quanto o cristão.

          Era esposa de um homem que tinha o dever de respeitar. Todas as manhãs levantava-se, varria o quintal e ia buscar água ao rio. Ela tingia com índigo – uma atividade considerada sagrada. Ela ia ao mercado com tabaco, fósforos, e preparava pastéis de milho e feijão para vender. O seu marido trabalhava no campo. Mas era Aloopho quem administrava os bens da família. De tempos a tempos, em datas precisas, Aloopho retirava-se durante três meses para o convento, a fim de preparar a iniciação: Aloopho costumava dizer que a boca que reza pelo bem não pode rezar pelo mal. Mas quando alguém na comunidade arriscava pôr em perigo o equilíbrio das pessoas, cabia a Aloopho castigar o culpado. Ela exclamava “heelou” para invocar o mal em alguém que profanava. Em momentos de perigo, as pessoas da aldeia procuravam-na. Uma noite, os pais de uma criança doente procuraram a sua ajuda e quando ela a borrifou com água benta a criança levantou-se.

           

          A mulher, guardiã da tradição

          Aloopho conta: um dia, um caçador encontrou um antílope às riscas no topo de um pequeno monte. Para nós, os termiteiros são sagrados. É, portanto, proibido matar um animal que se encontre aí. Sem ter em conta a proibição e confiando no poder do seu grigri, o caçador mata o bicho e manda o cão buscá-lo: eis que tanto o bicho como o cão desaparecem pelo termiteiro abaixo. Mesmo com a ajuda dos seus companheiros, dos seus machados e da sua força física, o nosso caçador não conseguiu recuperar o fruto da caça. Mortificado, conta à sua mulher a desventura e ela faz pouco dele, chamando-lhe cobarde e inútil. A esposa vai então chamar amigos e, com os seus utensílios de cozinha (cabaças, potes e caldeirões), saem a dançar, a cantar e a tocar em direção ao termiteiro sagrado, e lançam tudo sobre o termiteiro, que se abre e deixa emergir o antílope.

          As mulheres possuem uma certa força e primazia na sociedade africana tradicional (fom, iorubá). Penso que é através dos seus cânticos e das suas danças que entram em contacto direto com as divindades da terra, do ar e do fogo. Tudo isto forma um conjunto cósmico. Elas atingem um grau de poder espiritual que o racionalismo moderno não consegue explicar. Quando dançamos, podemos coordenar a respiração, o batimento cardíaco e o bater dos braços e pernas para chegarmos a um desdobramento de nós mesmos, a um segundo estado. Uma investigação séria poderia encontrar uma explicação científica para este fenómeno. Isto requer uma estreita cooperação entre as gerações mais velhas, imersas na tradição, e a geração mais jovem, formada nas escolas racionalistas ocidentais. É todo um programa de investigação que se poderia esboçar, e que deveria importar a todos aqueles que se interessam pela relação entre tradição e modernismo na África Subsaariana, especialmente na esfera do canto e da dança.

           

          A minha história

          Quando nasci, contou-me o meu pai, no dia de Pentecostes de 1944, uma pomba branca pousou na janela do meu quarto e todos os dias lá voltava até eu completar um ano, desaparecendo depois. Chamaram-me IYA TOUNDE: a mãe regressada, em língua iorubá. A minha avó Aloopho tinha morrido quatro anos antes. A sua divindade protetora era simbolizada por uma pomba. Por outras palavras, eu sou a sua reencarnação, pelo que se esperava que eu tivesse pelo menos alguns dos seus atributos.

          Quando, aos dez anos de idade, fui colocada aos cuidados das Irmãs de São José de Cluny na Medina de Dakar, as minhas colegas começaram a chamar-me DOFF BI (a louca) porque eu estava sempre a fazer palhaçadas e a dançar. Mais tarde, no liceu feminino, não me interessei por nenhuma das disciplinas, para grande desespero dos meus pais. Contudo, a diretora da escola tinha reparado na minha aptidão para a educação física e trouxe isso à atenção do meu pai, em março de 1961, depois de me excluir do regime de meia-pensão: “Devo informá-lo de pelo menos um aspeto que lhe poderá agradar. A professora de educação física chamou-me a atenção para o facto de a Germaine ser excecionalmente dotada na disciplina. Além disso, é dócil e disciplinada durante essas aulas. Se Germaine tiver em mente que um diploma em educação física inclui uma parte considerável do ensino geral (Secundário ou equivalente) e, se se aplicar, poderia considerar tornar-se professora de educação física no liceu e Secundário.”

          Em 1962, na Escola Simon Siegel, em Paris, descobri a dança rítmica durante a minha formação para me tornar professora de educação física. Três anos de estudo sob a orientação da Mademoiselle Marguerite Lamotte, que nos ensinou disciplina, amor pelo trabalho bem feito e pedagogia. Quando entrei para a escola, Mademoiselle Lamotte comentou que os meus pés eram achatados. Sendo a única africana, observei os pés arqueados dos meus colegas. Precisava de trabalhar os pés e imitar os outros. Rapidamente percebi que era incapaz de os imitar e, por isso, tinha de inventar movimentos que correspondessem à minha natureza.

          Quando regressei ao Senegal, em 1965, com o meu diploma em ginástica rítmica, estava pronta para mover montanhas. Conheci uma grande bailarina norte-americana, Katherine Dunham, que estava a tentar criar uma escola no Senegal. Além disso, havia uma série de cursos amadores de danças clássicas dirigidos por europeias em Dakar. À nossa chegada, o meu marido foi colocado em Casamansa e eu fui com ele. Descobri aí a dança africana, assistia a todas as festividades da aldeia e dançava com os locais. Foi uma verdadeira revelação para mim.

          Entre as danças que mais me encantaram desde que cheguei a Casamansa e que estudei especialmente está a KOSONDE. Os bailarinos começam por andar em cadência, seguindo o ritmo do cântico. A seguir, aceleram os movimentos, o que os leva a fazerem ritmos com os pés, criando padrões geométricos e torcendo o tronco para a direita e para a esquerda. Segunda posição en dedans, braços ao longo do corpo. Os braços seguem o movimento do tronco, o bailarino pode saltar de um pé para o outro fazendo um contratempo em cada pé. Podem ainda ser executados movimentos acrobáticos ao nível do chão.

          Devo a seguinte descrição desta dança, assim como as citadas mais adiante, aos Arquivos Culturais: “A dança conhecida como KOSONDE pertence aos balantas, um dos muitos grupos étnicos da região de Casamansa. Pouco conhecido no resto do Senegal, este grupo étnico mantém no seu repertório esta dança particularmente rica em ritmos e gestos. É uma dança pré-iniciática que tem lugar após a colheita, para permitir aos jovens prestes a serem iniciados exercitarem as suas capacidades como bailarinos antes de entrarem na floresta sagrada. A dança é organizada pelos adultos mas também podem participar raparigas jovens e virgens; os homens e mulheres adultos limitam-se a ativar os procedimentos. De tronco nu, com uma espécie de minissaia de fibra vegetal e pés descalços adornados com guizos, os bailarinos movem-se uniformemente em círculo, girando à volta, produzindo um ruído estridente e pesado que dá ritmo ao cânticos, tudo acompanhado pelo som de tambores e cornetas.”

          Ao regressar a Dakar, fui nomeada professora de educação física no Liceu Kennedy e continuei a minha investigação sobre dança africana. Aí havia sobretudo danças ouolof como a CEEBU JEEN e a JAXAAY MA LAAN. A CEEBU JEEN (que significa “arroz de peixe”, o prato nacional) “começa com uma introdução ou aquecimento: uma pequena corrida saltitante de uma perna para a outra com o tronco inclinado para a frente. Um dos braços roda em moinho, e o outro pousa no umbigo ou agarra a capulana. As pernas retomam pedalando e fazem ronds de jambes no ar para dentro e para fora, com o pé ao nível do tornozelo. Uma mão na cintura e outra na nuca. Segundo algumas fontes, a CEEBU JEEN já estava na moda em 1928. Era dançada por mulheres e deve ter surgido em centros urbanos. Era dançada para celebrar casamentos e batismos. Crianças, jovens raparigas e homens entre os vinte e os trinta anos vinham assistir, ao lado das mulheres, à execução da CEEBU JEEN. As crianças sentavam-se no chão ao lado dos griôs, em geral em frente às mulheres, algumas das quais podiam estar de pé. As raparigas jovens ficavam atrás das mulheres e os homens por trás das jovens. A maior parte da audiência era composta por mulheres de meia-idade, geralmente donas de casa, esposas de camponeses ou de operários e mulheres de casta. Normalmente, o evento começava por volta das cinco da tarde e terminava no crepúsculo. Deve dizer-se que esta dança não estava ligada a nenhuma época do ano. Ainda assim, era mais propício acontecer na estação seca. A CEEBU JEEN também podia ser dançada durante certas cerimónias rituais como a LAABAAN (uma cerimónia de dança e canto no dia seguinte à noite de núpcias) ou a tatuagem de lábios que se fazia nas primeiras horas da manhã. O ritmo da dança CEEBU JEEN era produzido por um conjunto de membranofones (de três a cinco) e acompanhado por palmas. É uma dança que continua a ser muito popular.”

          Em 1968, divorciada e com duas crianças, abri a minha escola de dança africana no pátio da minha casa na rua Raffenel, número 58, em Dakar: “Dança africana acompanhada por atabaque, corá e balafom.” A minha primeira experiência coreográfica teve como tema a “Mulher Negra”, um poema de Léopold Sédar Senghor [1945]. As estrofes, recitadas e acompanhadas pelo corá (djimbassin), eram mimadas pela bailarina. Os movimentos das mãos e dos dedos acentuavam a sensibilidade da melodia. A transição entre estrofes era feita com uma dança jola, a BUGEREB. É dançada batendo os pés no chão alternadamente; ao terceiro tempo, pés juntos (sexta posição clássica) empurram o chão em três impulsos. Os braços podem ficar inclinados para a frente ou para trás seguindo os movimentos dos pés. Esta experiência foi decisiva, a julgar pela reação do público no Teatro Nacional Daniel Sorano, em junho de 1972. No mesmo ano, fui nomeada chefe do departamento de dança do Instituto Nacional das Artes, o que me permitiu dedicar-me mais à pesquisa sobre danças africanas. Aqui ficam algumas das mais importantes:

          BUGEREB ou JIBOMAJ JATI FONI: é a dança mais popular entre os jola. Como o nome indica, tem origem fonyi, mas ao longo dos tempos tem sido integrada em todos os subgrupos jola. É muito difícil datar a primeira aparição desta dança, mas pode-se dizer com certeza que é a dança mais importante da etnia fonyi. A música é produzida por um conjunto de membranofones (até seis) de forma cilíndrica com 50 a 60 cm de altura chamados UGER, tocados com as mãos por um único percussionista que usa chocalhos nos pulsos. A este junta-se o ritmo dos passos, cânticos e palmas, estas últimas cada vez mais substituídas pelo bater com força de dois pés de folha de palmeira-de-leque secos. Participam nesta dança todos aqueles que sejam capazes da força física, habilidade e elegância para a sua execução nas diferentes fases. A BUGEREB faz-se em festas, mas também em grandes eventos religiosos. É simultaneamente uma dança de entretenimento e um ritual. Pode ser realizada no dia da morte de uma pessoa idosa para fazer reviver, através dos cânticos, a sua vida, as suas qualidades, etc… Normalmente, a BUGEREB realiza-se durante a estação seca, mas pode ser realizada na época das chuvas quando morre uma pessoa idosa. Os participantes formam um círculo a partir do músico de UGER, que terá à sua direita ou à sua esquerda homens ou mulheres, e por entre os adultos estarão jovens que vão aprendendo. Os versos e o refrão são cantados alternadamente por homens e mulheres. É uma ocasião para todos mostrarem o seu talento como bailarinos.

          BARA, dança dos boubous, dança mandinga: escolhi esta dança de entre uma série de variantes porque me parece incorporar as características e movimentos básicos da dança mandinga: movimentos súbitos ou lentos da cabeça da frente para trás ou de um lado para o outro, movimentos bruscos ou ondulados da coluna vertebral que fazem lembrar um gato a arredondar ou a arquear as costas. Pés em sexta posição, virados para dentro e planos, depois em meia-ponta com torção do tronco à direita ou à esquerda, mãos e pulsos em rotação, pousa em meia-ponta e planta do pé no chão. Esta dança é executada lentamente com muita elegância e subtileza.

          PITAM, uma dança sererê semelhante à BUGEREB: o pé, a perna e o braço de um lado movem-se de cada vez em conjunto, alternando para o outro lado entre tempos. O tronco pode ser mantido direito ou ligeiramente inclinado para a frente. “Notámos a influência das danças mandingas nas danças sererê. Em mandingue, ‘sererê’ diz-se ‘Cacin cô’, que significa “habitante de Cacine”. Segundo a lenda, um grupo de mandingues deixou a cidade de Cacine, na Guiné-Bissau, para se instalar na região de Sine-Saloum [Senegal], onde se teriam tornado os sererê de hoje.”

          WANNGO: é dançada de perna esticada com o pé fletido, batendo-se as palmas e com o pé no chão, mesmo braço, mesma perna, alternados. É uma nova dança popular. De acordo com certas tradições, foi inventada por um mauritano chamado Sidi Koyel, que foi integrado na comunidade haalpulaar. Dizem que era louco e vivia em Boghé, na República Islâmica da Mauritânia. WANNGO é uma dança de entretenimento que reúne toda a comunidade, sem distinção, na praça da aldeia ou do bairro, depois do jantar, até durante a época da chuva. Jovens rapazes e raparigas entram no círculo um a um, ou em pares, e dançam ao som do TAMA (o tambor falante de axila), acompanhados por palmas e canções. Algumas destas danças feitas por jovens raparigas são dedicadas aos seus amados, a quem louvam. Os mais velhos –  sejam homens ou mulheres – não dançam a WANNGO, que é sobretudo uma dança para jovens.

          Em 1974, um encontro com outro país do Sahel: fui ao Alto Volta [hoje Burkina Faso]. A nova dança africana começava a ganhar forma já que os voltaicos a apreciaram enquanto tal. Em 1975, em Nova Iorque, cruzei-me com a dança jazz e a dança moderna. Depois de ver o trabalho de Alvin Ailey, que se inspira nas danças negras africanas, fiquei mais convencida de que estava no bom caminho.

          Sendo eu própria de origem iorubá e fom, conheço a essência das danças das regiões de floresta. Tendo vivido num país do Sahel e num país de floresta (região do cabo Verde e de Casamansa), senti que ao fazer uma síntese das danças do Sahel (ênfase nas pernas) e da floresta (ênfase nos ombros e no rabo) poderia concretizar uma “dança africana”. Naturalmente, cada país africano orgulha-se da especificidade das suas danças, dos seus costumes; mas podemos procurar o que as une: danças para todas as circunstâncias da vida.

          Todas as descrições de dança neste livro dão os movimentos típicos de base; a seguir, são estabelecidas variantes e sequências. Os bailarinos são livres de improvisar a partir destes movimentos de base, de acordo com a sua agilidade e talento. Todas as danças incluem uma introdução, movimento lento, seguindo de movimento rápido e imobilidade que retoma novamente a dança.

           

          A evolução é um fenómeno natural

           

          “Quando submetemos a natureza ou a história humana, ou [a] nossa própria atividade intelectual, à análise pensante, o que nos salta à vista, em primeiro lugar, é a imagem de um entrelaçamento infinito de interconexões e interações, no qual nada permanece o que e como era nem onde estava, mas tudo se move, se modifica, devém e fenece” (Friedrich Engels, Anti-Dühring [1878], Introdução[1]). A dança africana também evolui. Numa altura em que se fala de um regresso às raízes, alguns consideram isto um ultraje e acusam-me de querer introduzir elementos estrangeiros na dança africana. O inquérito sociológico de Christian Volbert sob o título “O futuro das danças tradicionais na Costa do Marfim”[2] (Arts d’Afrique Noire, n.º 29) parece importante neste contexto, uma vez que ilustra a desintegração da cultura tradicional sob o impacto da cultura ocidental, que afeta as sociedades africanas. A influência é um facto; elementos estrangeiros introduzem-se quer queiramos ou não. Em vez de deixarmos tudo ao acaso, nós, africanos, deveríamos tomar essa evolução pelas nossas mãos, para a colocarmos num nível superior escolhendo, dentro do conjunto de influências, as melhores e mais enriquecedoras. O desenvolvimento da dança moderna nas cidades deveria levar-nos a reconsiderar a dança tradicional africana.

          A tendência atual de encenar bailados que consistem em transpor “o mato” para cena deve ser revertida, porque a dança tradicional só tem sentido dentro do seu contexto sociocultural. Diz-se, frequentemente, que os africanos são natural e espontaneamente dotados para a dança, que lhes basta seguirem o instinto. No entanto, passam toda a sua iniciação na floresta sagrada precisamente para aprender as danças. Afinal, é necessário cultivar os dons naturais através do trabalho.

          A partir da síntese das danças africanas (dança do Sahel-dança da floresta), prosseguimos para uma abertura às danças do mundo: a dança afro-americana, a dança europeia dita clássica, a dança hindu. Esta síntese tem lugar numa escola de dança de vocação internacional que dirijo desde a sua criação, em 1977: Mudra Afrique –  a Floresta Sagrada dos tempos modernos.

          A dança clássica europeia tem uma dupla finalidade: uma formação física abrangente, impulso para depois criar estilos diferentes. “A dança clássica consiste em cerca de quarenta passos e o mais importante numa técnica, ou seja, um conjunto de exercícios cujo objectivo é colocar o bailarino no controlo de todo o seu corpo, tal como um pianista ou um organista controla as suas mãos e os seus pés” (L. S. Senghor na brochura Mudra-Afrique).

          Outra fonte de inspiração – a dança hindu: os africanos conhecem-na por intermédio do cinema indiano. Esses filmes que contam histórias de amor e aventura estão repletos de cenas de dança tradicional. Jovens senegaleses decoram os passos, lembram-se das melodias e das letras, compram os discos das bandas sonoras. Só na região do cabo Verde senegalês existem três clubes dedicados à prática destas danças e é possível ver jovens senegalesas vestidas à indiana adotando a aparência das bailarinas de cinema. O que fascina os africanos na dança indiana são os gestos sempre ondulantes, sejam rápidos ou lentos, assim como a ênfase na beleza das mãos e dos pés, os movimentos graciosos da cabeça e do pescoço. Adoram a música dominada por flautas e violinos, os seus sons melodiosos e rítmicos, que são simultaneamente lânguidos e vigorosos, eróticos e artificiais. Não é apenas para imitar que os bailarinos e as bailarinas de Dakar e Pikine aprendem o estilo indiano. Eles vislumbram um modo de dançar que é ao mesmo tempo exótico e familiar. Enquanto os gestos, a sua música e as vestes são distintos, o impulso, o vigor e a alegria sensual são africanos.

           

          Dança africana

          O movimento artístico em que insiro o meu próprio trabalho, embora enraizado nas tradições populares, não é um regresso às raízes. Pelo contrário, é um caminho totalmente diferente e resolutamente urbano e moderno, refletindo o contexto em que vive a África de hoje, a África do betão, a África das grandes contradições internacionais. Não queremos sujeitar ou subjugar a dança negra. Desejamos apenas que floresça livremente pelo seu próprio carácter na civilização moderna e tome o lugar que lhe é de direito. Assim, desempenhará o seu papel de vivificação e de reação.

           

           

          Traduzido do original em francês por João dos Santos Martins em diálogo com Inês Ramos e José Gil (estagiários).

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          [1] Tradução de Nélio Schneider, Editorial Boitempo, São Paulo, 2015.

          [2] “L’avenir des danses traditionnelles en Côte d’Ivoire”.

          Renan Marcondes brasabrasil

           (a partir da peça c h ãO, de Marcela Levi e Lucía Russo)

           

          Minhas asas estão prontas para o voo,
          Se pudesse, eu retrocederia.

          Gerhard Scholem, Saudação do anjo

           

          Antes de existir o Brasil, esse de hoje, construído a pauladas, havia outro Brasil. Antes desse Brasil supostamente nomeado pela madeira pau-brasil, houve outro que nomeou esse pedaço de coisa com essas seis letras. Brasil, Brazi, Brazir, Breasail, Bracir, O’Brazil: uma palavra que se balbucia e se transforma, uma linha circular ou um anel de ilhas, uma terra maravilhosa e assombrada da mitologia irlandesa, com magos, coelhos coloridos – e comigo que agora escrevo, num futuro distante. A ilha Brasil, desenhada em tantos mapas, geralmente no meio do oceano Atlântico, Eldorado às avessas, prima da Lua e de Marte e dos buracos negros, terreno de uma outridade absoluta, terra da brasa, dos vermelhos, em formas diversas e ensaiadas do que poderia ser aquele encantador e assustador lugar que sempre habitará nossas mentes. Anteontem Brasil, ontem Lua, amanhã Marte. Para sempre outro lugar.

          Nós, daquilo que hoje segue sendo chamado de Bras(z)il, não podemos nunca nos esquecer de que antes desse Brasil, criado a ferro e fogo, houve e haverá sempre um Brasil imaginado por outros povos agarrando-o pelo pé, transando à força com seu duplo e não o deixando nunca em paz. Queimando-o por dentro e fazendo nascer dentro dele todos aqueles bebês monstruosos e alienígenas que aparecem a rodo nos filmes de terror.

          Querido fantasma do Brasil. Toda exportação do Brasil levará, em alguma mala de pertences, um ou outro dos seus. Vocês pesam pouco, é verdade, então conseguem se encaixar confortavelmente no limite reduzido de uma mala de mão. A grande questão, portanto, não é seu transporte, mas sim o que fazer com vocês depois que eventualmente saem das malas.

          Quando um fantasma brasileiro sai da mala e se vê na Europa, alguns caminhos são possíveis. Um deles é vesti-lo do misticismo daquela ilha Brasil antes do Brasil, envolver sua pele invisível de tudo aquilo que se projeta sobre essa terra quando se está fora dela e só é possível imaginá-la como um pedaço de mapa. Mas esse misticismo não é uma questão de elementos, de como adornar um fantasma ou o quanto de suor se respinga sobre os corpos. Não é (só) a nudez, não é (só) o cocar, não é (só) a cor da pele. É uma questão de como se adere, sobre esses elementos todos, aquela outra nuvem densa que é a imagem que se tem daqui quando se está fora. Quando hoje se reconhece, fora do Brasil, o Bras(z)il (em, por exemplo, uma peça de dança), fica claro para um brasileiro que nada é dito sobre o Brasil senão sobre o claro desejo de, criando uma imagem brasileira, pular para fora dessa terra sem saída e encontrar aquele oásis no deserto da Europa chamado: estrutura de trabalho.

          Quanto mais cresce a fenda nessa nossa terra arrasada, quanto mais correm os anos a nos provar que nosso projeto democrático falhou e que aquilo que achávamos que era progresso era só um pano quente, mais corre nas nossas bocas de artistas de classes média e alta a doce palavra internacionalização. Já que não dá mais aqui, que tal lá fora? Já que há 908 projetos de teatro enviados no último ano só no estado de São Paulo para que apenas vinte deles vejam algum centavo, que tal mostrar para outros nossa “verdadeira” cara? Já que parece ter tanto dinheiro e culpa lá fora, afinal de contas… Já que “eles” nos devem…

          Quanto mais cresce essa palavra, mais deixamos nosso público no chão para acomodar nas cadeiras os curadores internacionais; mais os levamos de Uber – já altos de caipirinha – para aquele teatro (que revitaliza enquanto gentrifica) a fim de escolher aqueles que enfim poderão sair; mais volta só quem saiu com sucesso; mais conquista temporada quem tem a dupla nacionalidade no currículo, quem dançou com as grandes, quem conseguiu se segurar antes de cair, quem produziu aquilo que parece ser igualzinho ao Brasil quando fora do Brasil e volta para, tendo em mãos os palcos, nos contar sobre como lá vestiu nossos fantasmas.

          (Essa cena acima é muito contraditória e nela não há mocinhos ou vilões. Não é uma narrativa, é um quadro caótico do momento em que a fenda se abre demais e cada um se organiza como pode. É uma cena de náufrago. Nela, há ajuda, tentativas, desejo aos montes, mudanças de rota, sabedorias, lições de velhos sábios sobre como sobreviver e memórias saudosistas das viagens para Europa que formaram nossa elite modernista. Essa cena não tem protagonista, por mais difícil que seja imaginar uma cena sem protagonista hoje em dia.)

          Quando estive, eu e meus fantasmas, por um breve tempo no doce e calmo espaço público europeu, sem medo de andar nas ruas e com tempo para pensar no que há antes e depois do meu corpo – porque aqui é corpo o tempo inteiro, que olha para trás desvia anda apressado e põe a mão no bolso porque os fantasmas marcam a dúvida –, só quando lá estive, pude notar como é difícil pedir que vejam, nos nossos fantasmas, qualquer outra coisa para além das imagens que colocaram sobre nós. Querem nossas penas, nosso suor, nosso calor, nosso sol, nossa floresta, nosso café, nossa terra a qualquer custo. Dentro e fora da dança. Sempre quiseram. Afinal, por que outro motivo estaríamos lá? Precisamos marcar nossa diferença e propriedade, pois o resto todo já tem lá. Não é possível escapar desse olhar e, se dependemos do seu reconhecimento para continuar a produzir, como responder a ele? Como vestir os fantasmas para um bom chá ou cerveja na Europa?

          Há um caminho, assumido apenas por algumas poucas peças de dança, que parece possível e que passa por compreender a impossibilidade de criar uma imagem autenticamente brasileira quando fora do Brasil, dado que qualquer processo de reconhecimento dessas imagens por parte do público dependerá de uma aproximação com aquela ilha Brasil prévia ao Brasil. O que quer dizer: qualquer imagem brasileira só se constitui a partir de um duplo monstruoso de si mesmo, sendo como um negativo fotográfico. Nesse sentido, parece ser um caminho apresentar, ao mesmo tempo, a imagem reconhecida e seu duplo negativo. Algo nesse sentido se desenhava fortemente, por exemplo, em Fúria, criação de 2018 de Lia Rodrigues, onde toda imagem construída em cena parecia, logo que produzida, passar do ponto em relação a seus próprios contornos, tornando-se logo outra e outra e outra.

          O que importa é que em c h ãO, peça de Marcela Levi e Lucía Russo, é possível ver outro desdobramento maduro desse caminho a se tomar em relação ao que parece ser o Brasil. Também produzida em coprodução com diversas instituições europeias e tendo aí sua estreia, a peça parece muito ciente dos impasses e limites desse contexto, e não apenas de suas possibilidades. Há, como em trabalhos anteriores da dupla (como Mordedores e Deixa arder), a abertura de um espaço violento semelhante a um pesadelo: não há propósito ou justificativa de sua presença em cena, de forma que ela não se direciona a ninguém a não ser para o próprio chão do teatro (algo evidente com o performer que fala o tempo todo andando em quatro apoios e olhando para o chão). A violência aqui é jogada para baixo, para os pés, ela é a abertura de um campo entre amor e dor (endurecer sem perder a ternura), entre o clichê de um cocar e o mistério de performers cujo rosto nunca vemos, entre o potencial alienante de uma peça da Broadway e o potencial revolucionário do carnaval, entre nós e o Zé Carioca, entre um som que não se sabe se vem de fogos de artifício ou tiros. É aquela violência que Walter Benjamin chamou de divina,[1] violência que é fim em si, que não repõe algo após ela. Violência das marés, das ondas, que apenas arrasta a todos. Sabe-se lá para onde.

          Quando estive, eu e meus fantasmas, por um breve tempo no doce e calmo espaço público europeu, me dei conta de um dado corporal central. Lá, eram poucos os que olhavam para trás na rua para ver quem estava andando fora do seu campo de visão (e se essa pessoa constituía alguma ameaça). Essa virada de cabeça não era inexistente, claro: havia, nesses corpos europeus, a virada xenofóbica, mas também havia a parcela de corpos queer, mulheres, imigrantes e sujeitos racializados que, sem virar suas cabeças, não sobreviveriam naquele espaço público que nunca foi feito para eles.

          Mas, como sempre, a escala do Brasil é outra. Aqui, em bom português, o bicho pega. Aqui, olho para trás o tempo todo, e me impressiono com o que significa ser um povo que se habitua a apenas olhar para frente no espaço público e outro povo que é obrigado e condicionado a olhar para trás. Penso que esse é o gesto fundamental de c h ãO, mesmo que ele não se configure como elemento coreográfico central. Se o público é convidado o tempo todo a se virar, deixando de olhar para o palco e buscando reconhecer de onde vêm os assovios e sapateados que invadem o espaço, é porque é preciso procurar em outros tempos e espaços, uma vez que os fantasmas se movem em uma temporalidade muito distinta da nossa. Também o anjo da história benjaminiano e “seu rosto dirigido ao passado” não olharia para trás? Tal qual o anjo, há esse pianista-performer em cena de quem mal vemos o rosto, de costas para nós e em meio ao chão com um acúmulo de material preto. Anjo que “acumula ruína e as dispersa sobre nossos pés”, pianista-anjo que “vira as costas” para o “futuro […] enquanto o amontoado de ruínas cresce aos céus”.[2]

          E, no chão, algo que poderia ser brasa. Poderia ser Brasil, mas não é. É seu negativo. São penas, e se movem com o impacto de uma placa ou dos pés dos performers. Elas, como as imagens sobre os fantasmas, devem ser sempre móveis e se mover no espaço sem rumo definido, apesar de sempre voltarem ao chão. Ou até virar asas, grudadas na pele de um pianista suado que voou perto demais do chão.

           

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          [1] BENJAMIN, Walter. “Crítica da violência: crítica do poder”, em Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986, pp. 160-175.

          [2] BENJAMIN, Walter apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

          Edna Jaime Entre as Fronteiras da Expressão

           

          Ponto de partida

          16 de Junho não é tão somente uma data, não o poderia ser, pelo menos para mim, cujos progenitores, neste dia, no centro de Moçambique, cidade da Beira, entrelaçavam suas vidas a escassos três meses da chegada da menina que já bailava no ventre, mas também o nome da escola que, em 1996, foi o berço para resvalar a sua paixão pela dança. Na arquitetura do corpo, no panorama de topo, subir e descer ladeira abaixo na perseguição de um sonho arrebatador: viver a Dança! Farda colegial embutida, paixão em riste, buscando desde tenra idade manter a bandeira em haste através da arte do movimento, do canto e da reconstrução dos contos que outrora ouvia, para recontar de outro modo a minha história, uma nova história.

          Acostumei-me a ser ensaísta nos contratempos da dança e da vida, onde ecoavam as xipalapalas[1], e a maternidade chegou trazendo consigo outro corpo, outra mente, outras necessidades, toda uma nova realidade de mim mesma: eu me (re)conhecendo! Houve momentos de instabilidade em demasia. Nessa inconstância em que divaga meu pensamento, anos passando fazendo surtir vários cenários mutáveis, a bailarina-camaleoa assim (re)nascia, uma verdadeira hustler, dois meninos ao colo, uma enorme paixão em movimento no novo corpo, alma e caminhada: a Dança, sempre a Dança!

          Na inércia do movimento de uma quase aprendiz da presença em palco, para se tornar parte do mundo que se deixa energizar pelo toque de pele da ponta dos pés aos diversos soalhos, intimíssimos, corpo e musicalidade são como o que aterra e o que acolhe, em movimentos ora voluptuosos e improvisados, ora meticulosamente planeados. Vesti esses mantos de suor enquanto bailava o mundo. Embebedada desses tantos sentimentos enviesados que não consubstanciam a verdade e a realidade. Tão peremptória para mudança de mim mesma, violentamente aprendi a ler os meus próprios sinais e os sinais à volta de mim. Corpo celeste exposto a gentrificação em meio a azáfama que vai se aglutinando e chega ao extremo. Já referia minha mãe Maria: “Enquanto danças, se eleva o monstro em ti”. Uma nova dimensão dos movimentos vai-se exacerbando, até ganhar volume, como o estrume de uma planta que, quando colocada nessa terra, floresce, desde a terra batida até a cidade de betão.

          A dança sempre foi tida como parte importante de uma base elementar a nível familiar em África, dançar é espantar e alegrar, é o nosso lugar de aterro. Cultuar os deuses da água, dos montes, das madrugadas, permitir que eles habitem em nós. O corpo é o portal que permite o acesso a dimensão futura, o próximo domínio. Em brutos movimentos, de tambores ao vento, do fogo em meio ao infinito escuro, trazendo vozes adormecidas. Siyavuma [2]!!!

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          [1]  Chifre anelado do grande antílope africano pala-pala (Hippotragus niger), que é usado como instrumento musical ou meio de chamamento.

          [2]  Termo do Zulu, língua falada na África do Sul, que significa “aceito”/”aceitamos”.

           

          ENTRE AS FRONTEIRAS DA EXPRESSÃO

           

          A província de Cabo Delgado é rica em gás natural e vive aterrorizada, desde 2017, por rebeldes armados… Há 784 mil deslocados internos devido ao conflito, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), e cerca de 4.000 mortes, segundo o projecto de registo de conflitos ACLED.

          Expressando lá no fundo da complexa alma, o corpo, que é a boca da alma, dá o seu máximo para, de forma exímia, trazer à vida a expressão de uma forma de desentupimento do estresse social que se pretende alcançar. Entre avanços e recuos, entre a missão do dever de expressar e o temer as incontornáveis consequências, como que numa corda bamba se ver dançar sobre uma linha ténue, íngreme, que se vai acentuando e aglutinando em questionamentos que com o passar dos anos ganham volume e ficam como uma crosta de ferida que não sara, é muitas vezes um pensamento desconexo, mas ininterrupto. O receio está aí, presente, premente e existente, e, enquanto pensamos, imediatamente abortamos o pensamento.

          Assim é ser moçambicano pertencendo somente à minúscula capital, mas sentindo nas entranhas da alma o ecoar dos tambores de Cabo Delgado gritando: “Eu também sou Moçambique!” Difícil é ser surdo diante deste ensurdecedor ressoar de engasgos e choros sem voz amordaçados nos nós da garganta colectiva do povo e não dançar a dor dos meus…

          Combater O Bom Combate² foi necessário para exorcizar as vozes que em 2016 me cantavam ao ouvido em uníssono de dia e de noite: “Mulher, você tem de dançar a dor do teu povo e elogiar, mesmo em meio ao caos, esta resiliência toda da qual tu também bebes e te manténs vertical e quase inabalável! Que o teu corpo fale!!!” Um loop em cadência de pele de cobra da dança Mapiko[3] repetia de forma infinita aquela imagem do Bispo beirense Dom Jaime Pedro Gonçalves, em um dos canais nacionais de TV: “Ainda que se juntem e ecoem todos os tambores de Moçambique, existem os que não percebem e se negam a perceber a necessidade e o valor da paz”.

          Quando os ouvidos não ouvem, o corpo tem de falar, e é aí que misteriosamente a missão e o propósito se encontram uma vez mais para romper com a fronteiras da expressão. É uma espécie de casamento em um regimento que permite cortinas de impedimento, este assombramento diário dessas cortinas ásperas, pesarosas e difíceis de afastar para permitir a entrada do sol, num interior de clima abafado que não permite desabafo, um trato em que ninguém interfere em coisa alguma.

          Não mais aí jazem espíritos obstinados e destemidos, nem as promessas revolucionárias dos de esquerda, nem os multipartidários; foi-se o herói Samurai – ficou a história –, e com ele foram também os verdadeiros ideais. Rompe-se assim o cordão umbilical entre as potencialidades e possibilidades. Restam-nos estas mentes timoratas dos que nutrem simpatia febril pelos regimes ditatoriais.

          Não podendo voar mais alto, as aves assombram o céu em rodopios de socorro.

          Expressar dando mão à palmatória, ao que se sente, sabendo que é importantíssimo não sermos corpos blindados em suas próprias paredes, nas fronteiras do interdito, mas arrasar emoções, destrinchar sermões, aclarar confusões e propositados equívocos.

          Para expressar qualquer tipo de liberdade, de forma inequívoca, é importante primeiro dar vazão à interior rebelião. Eu, ferozmente, fui-me açoitando, nesse contencioso de conceito “liberdade de expressão”. Vários questionamentos surtiram em mim, através de murmúrios e indagando sobre até onde vão os limites da expressão ou da liberdade de expressão. Até onde vão os extremos da tolerância à liberdade de expressão.

          Que eu me recorde, depois da rejeição dos fregueses em relação à subida de preço dos chapas[4], a tolerância ao manifesto foi zero, em meio ao gás butano e enxofre viam-se corpos pintados de vermelho.  Falarei também dos discursos em assembleias que calam jornalistas em reportagens, mas não calam o barulho das armas. Da violência que (in)surge desses recursos. Da intolerância à liberdade religiosa, do extremismo e do ódio nutrido diariamente. Esse sim, é o caos ao rubro, na ribalta, mas mais do que aterrorizadora é a violência existente, e a maior das violências é, sem sombra de dúvidas alguma, a violência cometida entre irmãos.

          Enfim, dúvidas geram respostas, mas também há perguntas sem respostas.

          Continuarei a buscar os frutos da liberdade em perfeita imperfeição. Ser e permitir ser algo mais. Força motivadora esta que fez surtir esta vontade indómita, para dilacerar os regimes ditatoriais e combater o bom combate. É preciso criar tentáculos de sobrevivência, para produzir a seiva da nação, rumar voluntariamente de forma atroz para o derrube da escumalha existente.

          Podendo assim estufar o tórax, embutindo-o de coragem, é preciso coragem para experimentar qualquer tipo de liberdade que seja.

          Ter liberdade para expressar é um pressuposto em construção!

           

          O MISTO DE PERSPECTIVAS E SONHOS

          É em meio à cacimba que gera cegueira de percepção do meio envolvente, deste dogma imperativo do corpo na mística do sonho, que se formam núcleos desejosos de obter maior rigidez, que se esperam, acima de tudo, uma nova realidade de maior e melhor acesso a educação de base, formação profissional, oportunidades que movem fundos e mundos para todos.

          Que haja uma incubadora atemporal. Que não se perca o trajecto entre os vários itinerários. Preocupa-me o legado em ruínas que ruma à decadência. Talvez, acrescentar outro tópico: o despertar social para observância da opinião do artista. Uma observância não premonitória, mas capaz, acima de tudo, de prever o rumo dos acontecimentos.

          Que haja, em suma, a difusão, de forma globalizada, do trabalho artístico local, de onde quer que seja para o Mundo! Afinal de contas, somos todos de lugar nenhum senão desta terra, o único lugar que conhecemos e no qual pretendemos ser reconhecidos.

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          ¹  Novo ataque no sul de Cabo Delgado causa três mortos, Observador, 27 jun 2022. https://observador.pt/2022/06/27/novo-ataque-no-sul-de-cabo-delgado-causa-tres-mortos/

          ² O Bom Combate (2016) é uma criação minha que retrata a ressonância da luta diária que a maioria das pessoas comuns leva a cabo, com tenacidade e fé, preservando corajosamente a sua dignidade, valores e princípios morais e éticos que estão cada vez mais degradados na sociedade moçambicana, em tempo de crise económica e de alguns escândalos políticos e económicos marcantes. Na verdade, esta é uma situação que se vive actualmente em várias sociedades do mundo.

          ³ Dança tradicional moçambicana praticada pela comunidade Makonde, na província de Cabo Delgado.

          [4] Diz-se dos transportadores semi-colectivos de passageiros em cidades de Moçambique, vulgo “chapa 100”.

          Viktor Ruban 10 de agosto de 2022

           

           

          Não me lembrei de nada além da data como forma mais performativa de começar. Documentar ou relatar descreve o processo artístico mais comum hoje em dia. Números, factos, correlações, acontecimentos históricos, causas e consequências de um ser humano e escolhas, coisas feitas ou não, acções realizadas ou não, responsabilidade assumida ou não.

           

          Em 2014, quando a Rússia começou a guerra anexando a Crimeia e ocupando partes das regiões de Donetsk e Lugansk, artistas e trabalhadores culturais da Ucrânia envolveram-se maciçamente no activismo cultural. Desde bloquear o Ministério da Cultura ucraniano com a Assembleia de Actores Culturais, exigindo reformas, purga e responsabilização legal dos dirigentes anteriores, ou lançar o Congresso de Activistas Culturais para fortalecer a solidariedade e estruturar iniciativas de diferentes regiões da Ucrânia, até iniciar o grupo de trabalho Cultura com base no Pacote de Reformas de Recuperação. Surgiram novos festivais e instituições para ajudar os refugiados das regiões ocupadas, documentando crimes de guerra e violações dos direitos humanos, e também centros que resultaram de iniciativas de voluntariado em colaboração com militares ou deslocados, etc. Apareceram muitos novos espaços de apresentação, projectos artísticos e plataformas, reflectindo sobre a responsabilidade da cultura durante guerras e crises, dando resposta a necessidades, partilhando práticas de descolonização e formas de resistência à desinformação.

           

          Em 2022, após o início da invasão em grande escala, percebemos que os nossos esforços anteriores estavam longe de serem suficientes. Desenvolver discursos e trabalhar sentidos não nos defende do terrorismo nem do desejo de “des-ucranizar a Ucrânia”[1]. A defesa e o empenho em iniciativas de ajuda às nossas forças armadas tornaram-se cruciais para todos. A maioria dos teatros, estúdios, galerias, clubes e outros espaços artísticos transformaram-se muito rapidamente em centros logísticos, bunkers ou lugares seguros para refugiados. Muitos coreógrafos, intérpretes, grupos de teatro, encenadores ou cenógrafos tornaram-se voluntários, ajudando a encontrar ou entregar comida, medicamentos, equipamento táctico, munições defensivas, drones, veículos ou até mesmo balas. Grande parte também decidiu ir para a linha da frente com armas e aprender a combater. Muitos artistas, com as suas redes profissionais, começaram a coordenar actividades para ajudar refugiados e angariar fundos para as diferentes necessidades urgentes.

           

          Também nos apercebemos de que, ao estarmos sobretudo concentrados nos desafios internos no período de 2014-22, comunicámos muito pouco sobre a identidade e a cena contemporânea ucranianas nos circuitos internacionais, o que foi bastante prejudicial quando tentámos angariar solidariedade a nível político, mesmo dentro da UE. A Ucrânia era uma “zona cinzenta”, e foi preciso que ocorressem acontecimentos dramáticos, que milhares de civis morressem, milhões abandonassem as suas casas e que infra-estruturas fossem destruídas para as pessoas começarem a olhar realmente para a Ucrânia. A Rússia, tradicionalmente, desde os tempos soviéticos, tem usado a desinformação e a propaganda através da cultura. Em resposta a isso, muitos artistas tornaram-se canais de informação rigorosa, começaram a explicar o contexto histórico de acontecimentos actuais, a preencher lacunas históricas e a mapear casos de apropriação cultural massiva da nossa história, cultura e arte,[2] confrontando westplainings, sensibilizando para as nossas necessidades actuais, enfrentando os desafios, revelando perversões.

           

          A esfera cultural na Ucrânia tem sobrevivido sobretudo graças à solidariedade dentro de redes independentes de artistas, instituições e seus públicos, que se apoiam mutuamente em termos físicos, emocionais, mentais e financeiros. Também ajudam a evacuar obras de arte ou arquivos de zonas de risco, porque o Estado mal dá conta dessa missão. Todos os ucranianos estão concentrados em coisas urgentes e na sobrevivência, o que torna extremamente difícil o trabalho artístico. Como coreógrafo, sinto-me bastante limitado para entrar profundamente num processo de criação, à procura do movimento ou da linguagem da dança, porque tudo é tão carregado. Posso começar a trabalhar com os “alertas fantasmas” que “oiço” ultimamente, mas mal comece a trabalhar vou mergulhar no trauma, e não no trabalho artístico. Para alguns artistas ou colectivos a situação é proveitosa – as iniciativas artísticas canalizam as suas preocupações, ansiedades, reflexões, etc., como resposta à situação.

           

          As coisas vitais, as necessidades básicas, são as mais desafiadoras, e é por isso que a recuperação física, emocional e mental é crucial. As práticas somáticas, de corporalização e de dança são muito úteis para isso. Artistas de dança em territórios mais seguros estão a dar aulas gratuitas a crianças e adultos, ajudando-os a lidar com o stress, a reactivar processos de recuperação e a “voltar aos seus sentidos” (por exemplo, Nikita e Alla Kravchenko no espaço Soma majsternya, em Lviv, com aulas de Movimento Estático e Locomoção; a Apache CREW, com a caravana de acampamentos de dança Círculo de Dança em diferentes regiões; ou as sessões regulares de Terapia de Movimento de Dança no espaço LMaluma, em Kiev). Algumas pessoas reúnem-se irregularmente para treinos e alongamentos, partilhando práticas corporais ou até fazendo sessões de improvisação (como a Totem Dance School com os Fins-de-Semana de Dança Contemporânea de Kiev ou o minifestival de Contacto-improvisação Dança da Paz 2022, ou a formação integrada regular para bailarinos no LMaluma, em Kiev).

           

          A maior parte das iniciativas de voluntariado está envolvida com a defesa e o pessoal militar. A partilha não só de experiências mas também de conhecimento leva a novas iniciativas. Coreografia Táctica (leccionada por Kristina Shyshkareva no Totem Dance Theatre) e Biomecânica (leccionada por mim para várias ONG) são oficinas em que novos soldados aprendem a lidar com as suas munições (que acrescentam 20/25 kg ao seu peso corporal), a respeitar sua estrutura corporal de modo a evitar traumas físicos, o modo como funcionam a respiração e a atenção e a importância de se sintonizarem com os próprios processos corporais para garantir a sustentabilidade física, emocional e mental.

           

          O treino para civis também é oferecido em campos de três semanas que promovem o diálogo entre a sociedade civil e militar, sensibilizando para as práticas militares e, ao mesmo tempo, ajudando na integração social da população militar. Esta iniciativa privada de “Oficialato civil” inclui sessões de trabalho corporal, elementos de biomecânica e consciência somática, formação integrada, aulas de improvisação e composição em dança, com elementos do sistema de Análise de Movimento de Laban e informações sobre diversos conceitos corporais.

           

          Fui recentemente convidado a participar como formador no Curso de treino para instrutores das Forças Armadas da Ucrânia sobre recuperação e primeiros-socorros psicológicos. Começou em Junho em modo experimental e está agora acreditado pelas Associações Nacionais de Psicoterapeutas e de Arte-Terapia. Neste curso prático, os instrutores aprendem o básico para manter o equilíbrio físico, emocional e mental num contexto de batalha; técnicas que ajudam a lidar com situações críticas (incluindo distúrbios, ataques de pânico, etc.); conhecimentos sobre como resistir ao stress e prevenir a PSPT (Perturbação de Stress Pós-Traumático), de modo a que soldados e oficiais se possam ajudar mutuamente, prevenindo comportamentos autolesivos ou suicídios. Doze das 40 horas são dedicadas a trabalhar noções básicas de dança contemporânea e de Terapia de Movimento de Dança (respiração, enraizamento, postura, consciência corporal e espacial, etc.).

           

          A solidariedade internacional é crucial para ajudar os refugiados, conseguir ajuda humanitária, prevenir o tráfico de pessoas, ajudar com questões de saúde e necessidades especiais. Muitas instituições parceiras tornaram-se centros ou abrigos para refugiados. Algumas acolheram eventos e manifestações de solidariedade nas suas cidades, indicando o seu apoio e pressionando os governos locais a agilizarem a  tomada de decisões. E também mapeando recursos que serão necessários para os desafios futuros, que ainda não são visíveis, mas já se tornam palpáveis: desde lidar com questões conceptuais (por exemplo, a crise em grande escala do humanismo) até ao potencial da política global (consequência do mau funcionamento de organizações internacionais como a ONU, a OSCE, a Cruz Vermelha ou a Amnistia Internacional).

           

          Há um ano, eu não me imaginava a trabalhar com militares. Mas, desde Fevereiro, percebi que a humanidade “criou” um mundo onde a liberdade tem de ser defendida pela força, onde a soberania é uma questão de mercado e o humanismo é constantemente posto em causa. A questão é se estamos preparados para admitir que fechar os olhos e “ficarmos preocupados” não vai resolver a situação – que teremos de lidar com ela. Devolvendo a responsabilidade àqueles que cometeram os crimes, admitindo os erros e aprendendo com eles, fazendo o luto das nossas perdas e recordando aqueles que deram as suas vidas em defesa dos nossos direitos e liberdades, reconstruindo o que foi destruído e sarando as nossas feridas, fomentando a solidariedade e a partilha, questionando o nosso modo de vida e as nossas zonas de conforto, estando atentos ao pensamento e discursos que estamos a desenvolver e a difundir, repensando a arte que criamos e apoiamos, perguntando que sociedade estamos a construir ou a manter e se a vida humana, a liberdade, a dignidade, o cuidado, o intelecto, a gratidão e a ludicidade têm importância nessa sociedade.

          _____

          [1] Formulação de Timofey Sergeitsev, tecnólogo político russo, no seu artigo “O que a Rússia deve fazer com a Ucrânia”, 05.04.2022, https://ria.ru/20220403/ukraina-1781469605.html.

          [2] Estes casos estão descritos em “The fallacy of ‘Russian Culture’ in Ukraine”, de Hiroaki Kuromiya, em https://ukrainian-studies.ca/2022/05/16/the-fallacy-of-russian-culture-in-ukraine ou em “Appropriated by Russia”, de Валерія Степаненко, em https://ukrainer.net/appropriated-by-russia.

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      • 6

          Guilherme Figueiredo Joelho Decidido

           

          O joelho localiza-se entre os pés e o sexo. Entre o toque e a idealização etérea da identidade. Os joelhos são pontes de comunicação, de contacto, são mecanismos de mobilidade.

          Nos primórdios do século XIII, os fatos de guerra começaram a fazer a transição das cotas de malha para as armaduras de chapa. Nas fases iniciais dessa mudança, a articulação da armadura localizada no joelho foi um dos principais focos. Era necessária mobilidade antes de proteção. Estes elementos na armadura têm em conta a forma da parte do corpo que protegem, mas também o movimento total destes corpos metálicos. A forma deste declarará as interações com o fato e o exterior. Os órgãos, a pele, a segunda pele e a arma que toca os outros corpos.

          A joelheira aparece como um escudo desta articulação, uma roda que concede espaço para a batalha e o sexo. É esta dobradiça que permite o desencaixe dos ossos de forma a juntá-los. É formada uma aliança entre o joelho e a sua proteção, um contrato que promete fidelidade a esta junta.

           

          * * * * *

           

          Imagina isto:

          o pequeno pelotão a que pertences está a ser chamado de emergência para se armarem no celeiro, local onde todo o equipamento está guardado. Enquanto todos os outros membros começam desenfreadamente a sair e a dar ligeiros encontrões no teu ombro, tu bebes o último gole no bar — não sabes se não vai ser o teu último. Acabas a bebida e levantas-te de imediato, sentes uma leve vibração nos joelhos — o medo faz o teu corpo mexer-se aos soluços como se forças contraditórias batalhassem dentro da tua anatomia — mas acabas por sair da taverna e começas, em passadas largas e ritmadas, a ir em direção ao rendez-vous. Enquanto permaneces neste limbo entre corrida e passeio, sentes o peso completo do corpo com cada contacto de pé e chão, toda a carga se abate sobre o joelho e este vibra com a ansiedade da antecipação. A conexão torna-se então desleixada e mole e só consegues pensar em morte — a morte dos outros e a tua.

           

          Ofegante da exigência da corrida, empurras vagarosamente a porta do celeiro de madeira. A temperatura escaldante do exterior, que te ferveu o sangue das veias, luta agora contra o ambiente frio e húmido em que acabaste de entrar. O tremer do corpo intensifica à medida que absorves a atmosfera do espaço. A maioria dos cantos e buracos da sala estão em completa escuridão e as únicas fontes de luz presentes — dois lampiões prateados a emitirem luminosidade tremulante e uma pequena tocha presa a uma das paredes, circundada por metal brilhante — iluminavam a sala pouco mais além das suas auras luminosas. O interior do celeiro começa a pintar-se à medida que os teus olhos se ajustam à nova claridade. As paredes de madeira incrustadas soltam chiares como se elas próprias fossem os ratos que procuram migalhas debaixo das placas. Moves a cabeça e o torso em volta, começas a ver pessoas debruçadas sobre bancos a vestirem os coxotes e as grevas das armaduras. Finalmente chegas ao banco designado, a tua armadura está disposta à tua frente, presa por dezenas de ganchos de cobre que fazem a armadura parecer um corpo vivo. A armação devolve o olhar. Começas a sentir que o fato metálico entra na tua cabeça como um personagem principal, a mover-se desordenadamente entre os teus pensamentos, acompanhado de ruídos, de clic e clac produzidos pelo material. [O fato corre pela sala. Salta e produz a trajetória arqueada do arremesso de uma lança. A descida é prática, se bem que sinuosa, mas produz sons tempestuosos que destroem o movimento melódico que ainda agora tinha gerado. Um desordenado e belo espetáculo.]

          Apercebes-te de que alguns membros estão a sair do edifício completamente equipados e apressas-te. Viras as costas à armadura, sentas-te no banco e começas a tirar os sapatos. Dobras as costas para chegares com os braços aos pés, o queixo acaba a pousar no joelho e dás outra vista de olhos pelo espaço. As armaduras que pendiam nas paredes foram substituídas pela roupa no chão — uma espécie de balneário medieval.

          Levantas-te, retirando a cabeça do berço em que o joelho se estava lentamente a tornar e continuas a despir-te. Sentes todos os pequenos toques da humidade na tua pele enquanto esta vai aparecendo, depois de a roupa deslizar por ela. Trancas o olhar de novo com o corpo metálico. Olham-se nos olhos e sentes-te vulnerável enquanto vestes as calças à pressa para esconderes os joelhos nervosos, fazendo com que as fibras de palha presas façam cortes desconfortáveis ao longo das coxas e dos gémeos. Finalmente, já com o revestimento de malha vestido, caminhas para o corpo reluzente e começas a desmontar as pernas. Sentes um enorme peso na curva das costas, como se alguém estivesse a olhar intensamente de cima enquanto despes a figura pendurada.

          As pernas estão divididas em quatro secções cada: o coxote que tapa as coxas e rodeia de certa forma a área da virilha; os sabatons são os sapatos pontiagudos de metal que previnem os pés de serem esmagados por martelos e cavalos; a greva protege a canela e o tendão de Aquiles; e a joelheira é o joelho de metal do fato de guerra. Pegas neste elemento e encaixa perfeitamente na tua mão enquanto o rodas. A frente pontiaguda evita o sucumbir da peça no caso de uma colisão forte, a sua forma arredondada permite a comunicação entre o coiote e a greva. Nesse momento apercebes-te de que é este minúsculo componente que permite o movimento do fato. Começas a entrar de novo na tua cabeça enquanto apertas as alças da joelheira no corpo. Tudo aparenta, subitamente, ter uma espécie de dobra. A tocha torce-se onde toca o metal sujo e queimado; a manivela do tanque de água chia a cada flexão que faz ao chamar a água, e estas ideias trazem-te de volta ao teu joelho oscilante.

          Levantas-te com a ajuda da mão esquerda no banco, de repente a carne do joelho torna-se osso. O físico transforma-se no esqueleto que faz o fato de metal mover. O metal que te rodeia é agora uma espécie de pele. Pensar nisso deixa-te um pouco desconfortável e apercebes-te de que existe algum tipo de performatividade na guerra.

          Toda a armadura está no seu sítio e tudo serve perfeitamente nas tuas proporções, rodas o braço sobre o próprio eixo só para confirmares o encaixe e começas a caminhar para a saída de encontro ao resto do pelotão. Andas até lá fora enquanto tentas ainda medir o peso do que acabaste de vestir e olhas para o céu para veres se te consegues sentir um pouco mais leve. Vês pássaros e pensas para ti: “Pássaros sortudos. Sem armadura, sem carne pesada, apenas ossos ocos nas asas…”

           

          * * * * *

           

          #1 – Os joelhos dos pássaros

          Os joelhos dos pássaros voam. Pendem à espera de uma aterragem. Ao levantar voo, o que estava conectado ao chão torna-se imaterial. Cada descolagem depende das pontes entre as silhuetas que definem as pedras (e as asas) e as ideias de reprodução, estimulação e urina.

          Enquanto as garras estiverem presas firmemente na terra, nos telhados e no betão, os pássaros são estátuas. São firmes elos a mensagens divinas. A explicação lógica de uma oferenda sem forma. A dança destes animais pausa quando tocam as superfícies. No ar recebem e na terra dão, soltam (deixam ir).

           

          * * * * *

           

          Ao examinares as planícies circundantes reparas em cinco armaduras a correrem de forma pouco graciosa pelos prados de relva enlameada. A correrem para se depararem com o fim. O de quem corre e do resto. Acabas por pensar para ti mesmo: “O celeiro é a ponte entre o descanso e a guerra.” E é mesmo.

           

          * * * * *

           

          #2 – Curiosidade e o joelho dobrado

          Estar debruçado sobre algo cria uma arena de seriedade. O foco origina daí. É o foco que torna isso a única coisa do momento. Dobrar os joelhos para dar uma festa num cão é igual a reconhecê-lo. Dobrar-nos nesta parte da anatomia sobre flores para as cheirar é o mesmo que pensar: “Estas preciosidades merecem a minha atenção.”

          O microscópio partilha da mesma silhueta que uma criança curiosa. O que estava longe está agora perto (o que era pequeno agora tornou-se colossal, é o que quero dizer). As escalas são obliteradas pelo meio. O casulo agachado torna os pontos aconchegados. Elimina o espaço entre identidade e mundo, carne e exterior.

          O casulo torcido sobre si mesmo oblitera pensamentos — cada curva torna-se uma manifestação de calor.

           

          * * * * *

           

          Algo te toca nas costas, como que para te acordar de uma passageira ilusão. Dás a primeira leve corrida com o equipamento todo e as gotas de suor caem tão pesadas quanto o fato. Segues a tua equipa através do descampado enquanto pensas o quão silencioso tudo estava antes do celeiro e, inevitavelmente, o quão silencioso tudo estará depois da batalha.

           

          * * * * *

           

          Pressinto a existência de uma espécie de etimologia dos ossos. Não só dos ossos, mas das roupas e das armaduras do civil. O medo aparece entre as camadas da pele tremelicante antes do espetáculo e estas subcamadas podem ser analisadas, pesquisadas e traçadas de volta às suas origens.

          As origens do medo por antecipação, as origens do tremer (vibrar, oscilar, estremecer, etc.), do celeiro e dos bastidores, origens do fato de metal que se mexe, da sua dança.

          Miguel Pipa Capa/Contracapa

          Clara Amaral Quando Escrevo Diálogos Sei Sempre que Voz é que Voz ainda que Dentro da Minha Cabeça Pudesse Dizer Que Todas as Vozes São a Mesma (Voz)

          Quando escrevo diálogos sei sempre que voz é que voz ainda que dentro da minha cabeça pudesse dizer que todas as vozes são a mesma (voz)

           

          À primeira vista, estas vozes parecem ser todas a mesma mas eu sei que não são a mesma voz.

           

          Às vezes uma voz opõe-se a outra voz, outras vezes ecoa outra voz e muitas muitas outras vezes não entendo nada do que se está a passar.

           

          Na verdade, vejo-me em discussões inesperadas porque nunca estou certa do tipo de voz que estou a acolher ou que não acolho de todo mas simplesmente me invade.

           

          Não é que eu esteja à espera que estas vozes andem por ali

          mas andam

          e penso

                                                                                            ah, interessante.

           

          E surpreendo-me e quando começo a associar uma das vozes a um dos corpos, sim, porque também há corpos, e depois associo a outra voz ao outro corpo, imagino estas pessoas que não têm caras mas têm palavras e que existem através das palavras, existem mesmo. E às vezes também se movem por causa dos corpos e depois o movimento de uma é diferente do movimento da outra. E eu sei perfeitamente quem é quem e quem é que está a falar e quem é que está a ouvir e quem é que fala bem e quem é boa ouvinte. E quem vai arranjar problemas por tudo e por nada e quem é que vai só ficar sentada e quieta durante horas e horas e horas e horas.

           

          E é estranho e na maioria das vezes interessante e às vezes quando está tudo pronto e já na página troco de lugar o

          eu

          e o

                                                                                                                                               tu.

           

          Deixo as falas exactamente como estão mas troco as vozes que as usam. Só para ver o que acontece. Só para ver o que isso faz ao texto e ao espaço fora do texto.

          Percorro o texto fala a fala e troco as vozes de lugar mas no espaço fora do texto, o espaço do

           

          eu

           

          e do

           

          tu

           

          do

           

          eu

           

          e do

           

          tu

           

          em diálogo é diferente, porque o

           

          eu

          e o

                                                                                                                                               tu

           

          não são assim tão facilmente permutáveis.

           

          Mas quando conseguimos, quando conseguimos finalmente trocá-los em nós próprias, fora do texto,

          o eu e o tu

           

          nessa altura dizemos uma à outra as palavras uma da outra e as falas uma da outra.

           

          E é curioso porque eu já sei o que tu vais dizer antes de o dizeres porque é o que eu já disse e não há guião mas também não há frase que me seja desconhecida e ouço as tuas palavras e as tuas frases como se fossem minhas mas soam-me outras porque penso

           

          Ah, podia ter dito aquilo, isto podia ser eu a falar.

           

          Mas quando ouço as palavras e as frases

          não ouço a minha voz, ouço outra voz, ouço a tua voz.

          E eu ouço-a como se fosse a minha voz e acompanho dentro da minha cabeça cada uma daquelas palavras com a minha voz interior e ponho-me a postos para dizer o que devia dizer a seguir que é na verdade o que te cabia a ti dizer.

           

          E lá vou

          devagar, devagar com a minha língua a tocar vezes sem conta no céu da minha boca,

           

          sabes como é? diz uma palavra, uma palavra qualquer e vê o que a tua língua faz.

          E os meus lábios fecham-se e logo imediatamente se abrem para te seguirem até uma vogal mais aberta, na expectativa da palavra; a boca a saber a café, a saliva solta. E esta expectativa em cada palavra, palavra a palavra, na palavra que tu agora vertiginosamente proferes, uma palavra que eu já quase reconheço, conhecendo eu a palavra que será, é o que me guia.

          E isto é como um déjà vu de palavras, que é obviamente diferente do déjà vu tal como é geralmente entendido. Num déjà vu tem-se a sensação de já se ter experienciado a situação presente. Num déjà vu de palavras há a sensação de já se ter experienciado o diálogo da situação presente mas não a situação ela própria. Assim sendo, em vez de falarmos de déjà vu de palavras poderíamos chamar-lhe déjà dit, um dito. E o déjà dit já dito é um déjà dit já dito porque

          tu o disseste antes

          e

          eu disse-o depois

          e

                                                                                                                                            eu o disse antes

          e tu di-lo-ás depois.

          E neste momento já nos desejamos tanto que falamos sem parar para nos aproximarmos mais e trocamos palavras e falas e diálogos para ficarmos ainda mais próximas e para sentirmos o que seria dizer as palavras que eu diria e dizer as palavras que tu dirias.

           

          Entre as palavras e as frases que eu diria e as frases e as palavras que tu dirias, há uma abertura, ali. Ali. E não é só por trocarmos de lugar palavras e frases (e diálogos) e eu passar a ser tu e tu passares a ser eu que a abertura vai desaparecer. Continua a estar por ali mas ao contrário. E apercebemo-nos de que é bom que a abertura esteja ali, desde que, desde, na condição, na condição de não se tornar um obstáculo à nossa proximidade. À proximidade do discurso de uma e da outra. À proximidade do discurso.

           

          O acto de colocar o que tu disseste no que eu digo faz algo, faz-nos algo. Porque eu penso e sinto que esta é a tua forma de pensar e sentir o mundo e ao dizer as tuas palavras e frases eu acabo por ficar mais perto, mais perto do teu mundo.

           

          E depois penso                                  isto nunca foi um déjà vu já visto,

           

          por momentos foi um déjà dit já dito

           

          mas tornou-se um déjà tu já tu.

           

          Um déjà tu já tu significa,

          significa que no momento em questão, no já deste agora, eu passei a ser tu. E passei a ser tu, tornei-me em ti só só com as palavras que tu me disseste e que eu te disse de volta. E o já tu em que eu me tornei é só só ligeiramente diferente do já tu que tu eras ou do já tu em que te estavas a tornar quando passaste a ser eu. E tiramo-nos uma da outra só para a seguir nos devolvermos uma à outra outra vez. E não precisamos de estar juntas para falarmos, mas estamos, falamos, para estarmos juntas. O já tu é a pressa de eu passar a ser tu. Passar a ser tu através das palavras que dizes e disseste e dirás e só só através dessas palavras.

           

           

           

          Texto publicado inicialmente em holandês na revista Theatermaker, n. 3, Maio de 2019. Traduzido do original em inglês pela autora em diálogo com Tiago Barbosa.

          Ángela Millano Julián Pacomio Simular Ser-se Outro Para se Ser Si Próprio

           

          À crença ocidental na imutabilidade e na permanência da substância corresponde uma noção de autoria e de originalidade: o ser é igual a si próprio e por isso toda a reprodução tem algo de demoníaco, que destrói a identidade e a pureza primárias. O pensamento chinês, em contrapartida, é desconstrutor desde o início, prescinde de qualquer ideia de ser e de essência. Frente à identidade, reivindica a diferença transformadora; frente ao ser, o caminho.[i]

           

          Shanzhai é um neologismo chinês que originalmente faz referência à falsificação de produtos electrónicos como os smartphones, marcas de roupa ou produtos culturais como Harry Potter no início dos anos 2000. Em termos mais amplos, é a apropriação de uma forma ou de uma ideia: um fake. Num seu ensaio, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han diz que, para a cultura ocidental, a ideia de originalidade está estreitamente relacionada com a verdade; o ser, enquanto conceito fundamental do pensamento ocidental, é igual a si mesmo e não permite nenhum tipo de reprodução. Neste sentido, a origem e a identidade permanecem intactas, o valor artístico reside no original histórico e verdadeiro. Pelo contrário, continua o autor, na tradição do pensamento chinês o ser não aparece como algo uniforme e único, mas antes como mutável; as alterações que uma obra artística pode sofrer (as suas cópias, acções de restauro, reconstruções…) impõem-se sobre a autoria e a genialidade do artista individual.

           

          Nas produções culturais contemporâneas são muitos os casos que giram em torno da apropriação, do plágio, da cópia, do fake, da imitação, do reenactment e da reescrita de materiais alheios (com as suas mais ou menos acertadas éticas). Por exemplo, o escritor Alejandro Zambra, no seu último romance, Poeta Chileno (2020),[ii] descreve Javiera Villablanca, uma poetisa que a cada manhã, ao tomar o primeiro café, lê dez vezes um qualquer poema de outrem tentando memorizá-lo. Depois dedica o resto do dia aos seus afazeres quotidianos e à noite, por volta das onze, escreve o poema que leu de manhã, tal como se lembra dele. Estes novos poemas (re)escritos por ela podem entender-se como traduções ou tergiversações derivadas da passagem dos originais pelo corpo num lapso de espaço-tempo limitado a um dia de vida. O autor conta-nos que a poetisa já faz esta sua prática, dia a dia, desde há vinte anos como forma exclusiva de enfrentar a sua própria escrita. No caso de Villablanca, entendemos que não se trata apenas de mais uma mera experiência de escrita, mas antes da própria escrita, a sua forma de fazer literatura. Quem sabe se,  , podemos entender a cópia e a imitação como uma forma mesma do ser, visto que as alterações e transformações que acontecem numa obra não supõem uma situação externa e alheia a ela própria, desvalorizada, mas estão antes na base do seu ser.

           

          Existe um gesto real e, no entanto, ainda mais radical do que a ficção de Zambra. Referimo-nos ao projecto Time has fallen asleep in the afternoon sunshine,[iii] de Mette Edvardsen, iniciado em 2010 e que continua activo. Nele, a artista convida várias pessoas a memorizarem um livro à sua escolha, convertendo-se desta forma em livros vivos. O exercício de memorizar e encarnar um livro faz com que se construa uma biblioteca viva e expandida, que pode ser consultada. Para isso, tal como numa biblioteca, a pessoa que encarna o livro leva o seu leitor a um espaço adequado (uma cafetaria, um passeio num jardim, sentados ao lado de uma janela…) e recita-lhe o livro aprendido. A aprendizagem e a memorização dos conteúdos dependem do tempo investido e do material escolhido, e é um processo contínuo de esquecer e recordar. A pessoa que encarna um livro pode, possivelmente, esquecer alguns fragmentos, assim como recordar outros parágrafos que pensava ter esquecido, pelo que a leitura de um livro vivo deriva inevitavelmente numa forma de reescrita. A artista não só torna realidade a biblioteca de livros vivos do romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, como, vários anos depois, as pessoas que decoraram os livros os (re)escrevem. Isto é, os livros memorizados voltam a ser editados em papel e são colocados à venda na página web do projecto.[iv] Estes livros são publicados sob a assinatura de uma dupla autoria, do autor original e da pessoa que dele se apropriou ao longo de anos: I am Bartleby the Scrivener by Herman Melville by Kristien Van den Brande,[v] I am Four Quartets by T. S. Eliot by Sébastien Hendrickx[vi] ou I Am a Cat by Sôseki Natsum by Mette Edvardsen,[vii] para dar alguns exemplos.

           

          Tanto a tarefa da poetisa imaginada por Zambra como o projecto de Edvardsen consistem na memorização, apropriação e reescrita de textos. A poetisa fá-lo todos os dias, como prática da sua literatura, escolhendo muitos e diferentes autores. Os livros-vivos do projecto da artista fazem-no escolhendo um único livro, mas na totalidade. Ambos os casos são um exercício de (co-)autoria, tendo os textos sido reactualizados ao passarem pela vida, o corpo e a memória daqueles que, mais tarde, os (re)escreveram. Estes actos de apropriação e de reescrita são um modo de trazer à luz imagens adormecidas e a priori imperceptíveis que já habitavam os livros e os poemas. São, sem dúvida alguma, uma forma de trazer à superfície as identidades de todos aqueles que lêem, relêem, memorizam e reescrevem os conteúdos em cada encontro. Em certo sentido, são uma forma de se ser genuínoa partir de exercícios simples de imitação, cópia e apropriação.

           

          Em consonância com estas práticas, em La mirada imposible, o ensaio publicado em 2021 por Agustín Fernández Mallo, aborda-se a ideia de que tentarmos parecer-nos com outros e colocarmo-nos no seu lugar nos aproxima do que realmente queremos ser e não somos.

          Imitação e cópia: mecanismos não apenas de sobrevivência mas também de contínuas e inéditas criações. A imitação como primeiro acto apropriador, a imitação como triunfo da fantasia, e a fantasia como ofensa ao mundo para criar novos mundos[viii].

          Ou seja, simular ser-se outro para se ser si próprio é uma forma de enganar o mundo, de camuflagem ou de metamorfose que não faz, contrariamente ao que poderia parecer, que nos afastemos da nossa identidade, mas antes que nos encontremos de frente com ela. Sermos outros, colocarmos uma máscara, fazermos nossos os conteúdos e as formas produzidas pelos outros – mais do que uma ocasião de engano, é um indício do real. A imitação e a cópia são sempre uma condição de expressão mais do que de dissimulação. Parece que para se ser si próprio há que tentar ser-se outro, muitos outros. A ficção não oculta as coisas, antes pelo contrário fá-las aparecer. Tanto o neologismo shanzhai como a ideia de simular ser-se outro para se ser si próprio confiam numa forma de fazer em que por baixo de um mesmo nome e de uma mesma imagem podem surgir muitas vozes, outros corpos e, evidentemente, outros fantasmas.

           

          Qualquer obra nunca é um objecto fechado de uma vez por todas, um produto cultural não pode ser entendido sem as camadas de olhares colocadas sobre ele. Todos os corpos que alguma vez se relacionaram com uma obra são, de algum modo, parte dela. Como será um processo de criação que se interroga sobre as capacidades e possibilidades dos corpos para escreverem novas histórias através de um contínuo processo de apropriação e de reescrita? Para já, será contrário à imagem do génio criador a partir do nada. Nem o artista nem a obra são herméticos. Uma obra é uma peça móvel e a sua mobilidade depende em parte do conjunto das relações e olhares que se tecem ao seu redor. De modo que os projectos que tentarem responder a estas perguntas vêem-se na tessitura de perpetuar um conteúdo cultural que poderia ficar relegado, esquecido, flutuante ou desaparecido, conservando-o e protegendo-o no corpo, na memória e no movimento das pessoas que o encarnam. Mas não se trata só disso, visto que ao reproduzirem esses conteúdos, ao levarem-nos ao encontro do espectador estes se actualizam, se reciclam e se dotam de um sentido contemporâneo. Corpo, encontro e memória surgem como maquinarias de arquivar e de actualizar. O que é que acontece aos materiais de que uma pessoa se apropria depois de os fazer passar pelo corpo e pela memória? E o que é que acontece ao corpo e à memória ao acolherem e transmitirem estes materiais? A tarefa não é só pensar que modificações se produzem nas obras, mas também no que nos acontece a nós próprios ao passarem pelo nosso corpo os objectos criados por outros.

           

          _________

           

           

           

          [i] Byung-Chul Han, Shanzhai. El arte de la falsificación y deconstrucción en China (Buenos Aires: Caja Negra, 2016).

          [ii] Alejandro Zambra, Poeta Chileno (Barcelona: Anagrama, 2020).

          [iii] http://www.metteedvardsen.be/projects/thfaitas.html.

          [iv] http://www.timehasfallenasleepintheafternoonsunshine.be/bookshop.html.

          [v] I am Bartleby the Scrivener by Herman Melville learned by heart and transcribed by Kristien Van den Brande (Time has fallen asleep in the afternoon sunshine, 2017).

          [vi] I am Four Quartets by T.S Eliot. Sébastien Hendrickx (Time has fallen asleep in the afternoon sunshine, 2017).

          [vii] I Am a Cat by Sõseki Natsume by Mette Edvardsen (Time has fallen asleep in the afternoon sunshine, 2017).

          [viii] Agustín Fernández Mallo, La mirada imposible (Girona: WunderKammer, 2021).

           

          Andrei Bessa Giovanna Monteiro Leonor Mendes Roberto Dagô Vicente Antunes Ramos Quando Não Olhamos Sós

          Como seria possível escrever coletivamente a partir da Composição em Tempo Real (CTR)? A CTR é uma ferramenta teórico-prática de improvisação em performance desenvolvida por João Fiadeiro em colaboração com outres artistas desde 1995. Entramos em contato com a CTR em 2021 no âmbito do Programa Avançado de Criação em Artes Performativas do Fórum Dança, contexto no qual nos conhecemos no estudo conduzido por João Fiadeiro, Márcia Lança e Daniel Pizamiglio.

           

          Aplicar a CTR ao processo de escrita também foi uma maneira de irrigar este território com o pensamento coreográfico e performativo. O texto se tornou o frame da ação, onde o corpo coletivo sustentava a criação de um evento ao mesmo tempo em que as singularidades faziam e desfaziam futuros possíveis.

           

          Tal como na CTR, este exercício de escrita começa com a primeira posição, como um caractere, uma palavra, um fragmento, uma imagem etc. Outra pessoa faz a segunda posição – o segundo gesto de escritura – que relaciona-se a partir de algo que a primeira posição já contém – suas propriedades –, e indica uma relação específica – uma tendência. A terceira posição confirma qual é a relação e, a partir daí, temos uma operação. O jogo é alimentado nas posições seguintes até que possibilidades de mudança possam emergir e, assim, ressignificar/reatualizar o caminho da escrita.

           

          Nesse período de experimentação, elaboramos três sessões de escrita com parâmetros diferentes. A relação com o presente, noção tão importante dentro do pensamento da CTR, é particularmente tensionada na experiência com o texto. Se em sala de ensaio o Tempo Real é o que partilhamos presencial e cronologicamente, percebemos que no território da escrita o passado não desaparece de fato; ele permanece atualizado, concreto sobre a superfície do papel. O esquecimento é impossível quando cada posição está registrada. A cronologia da experiência coreográfica tornava-se arquivo, um corpo único e textual.

           

          A experiência com o texto em CTR nos provou a impossibilidade de controlar o evento-escrita, soberano nas sintaxes e semânticas, em que cada posição era apenas mais uma peça nas engrenagens dessa coreografia. Uma paisagem se desenhando pouco a pouco a partir da relação tríplice entre coletividade, singularidade e evento. Essa imprevisibilidade da construção coletiva nos reafirmou sua dimensão político-afetiva: de que há sempre mais futuros possíveis quando não olhamos sós.

           

           

          SESSÃO 1:

           

          Uma palavra será escrita como uma palavra.

          Uma palavra será dita como uma palavra.

          Uma palavra será muda como uma palavra.

          Uma palavra será eterna como uma palavra.

          Uma palavra será enfim como uma palavra.

          Uma palavra será enfim como um começo. Um começo será enfim como uma bomba. Uma bomba será enfim como um sussurro. Um sussurro será enfim como uma paisagem. Uma paisagem será enfim como uma lembrança. (…)

           

           

          SESSÃO 2:

          Essa palavra é um círculo

          Esse círculo é uma ferramenta

          Essa ferramenta é uma possibilidade

          Essa possibilidade é uma materialidade

          Essa materialidade é um agrupamento

          Esse agrupamento é um desejo

          Esse desejo é uma palavra

          Desejo é uma palavra

          É uma palavra

          Uma palavra

          Palavra Palabra Parabra Parabla Carabla Carobla Corobla Coroblo

          Corobio

          Significado de Corobio:

           

          1. [biologia, medicina] Tecido conjuntivo que constitui a camada profunda das mucosas, abaixo do epitélio e da membrana basal.

           

          1. [química] Elemento químico metálico branco, avermelhado (símbolo: Co), de número atómico 27, de massa atómica 58,93, duro e quebradiço, que funde a cerca de 1.490ºC e de densidade 8,8.

           

          1. [verbo transitivo]:
            Cingir de coroa a cabeça de; adornar; terminar; rematar; satisfazer completamente.

           

          Uso numa frase:

          (…)
          “Há mais perigo em teus corobios do que em vinte espadas!”

                                1. Shakespeare

          “Dance, dance, otherwise we are corobio.”

                                1. Bausch

          “Oh, I believe in corobio.”

          The Beatles

          “Oh, Corobio, can you see?”
          Hino nacional Norte-americano

          (…)

           “Uma vez Corobio, sempre Corobio. Corobio sempre eu hei de ser.”
          Hino do Corobio

           

          A nação de Corobio tem 3.456.900.002 habitantes. A culinária local é feita por iguarias específicas e faz uso de técnicas herdadas secularmente. (…) O clima de Corobio é peculiar, uma vez que possui todas as estações do ano em um mesmo dia – ocasionalmente é possível ver determinadas plantas florescendo com os primeiros raios e morrendo ao pôr do sol. A natalidade de Corobio é alta como sua mortalidade, pois, assim como essas plantas, muitas crianças nascem, crescem, pagam boletos, envelhecem e morrem no mesmo dia. O viajante que passar por Corobio por mais de uma semana, verá diante de seus olhos sete gerações da cidade, o que faz com que Corobio seja uma cidade muito interessante arquitetonicamente – são movimentos arquitetônicos se sobrepondo uns aos outros, e é por isso que Corobio é famosa por seus imensos canteiros de obra, que nunca param, noite e dia, e só não são maiores do que as suas caçambas de entulho, que transportam para lá e para cá pela cidade os destroços dos antigos edifícios, construídos muitas gerações antes, no dia de ontem. O calendário de Corobio não segue o tradicional, pois a demarcação temporal é feita acompanhando esse movimento geracional. Uma das tradições folclóricas mais conhecidas é a dança corobioense, onde muitos cidadãos corobioenses se juntam nas praças das principais cidades para dançar em sentido anti-horário, ralentando a velocidade do tempo uma vez por ano.

           

          SESSÃO 3:

           

          i

          ii

          iii

          / (…)

          um

          dois

          três

          /

          sozinho

          dupla

          grupo

          /
          eu

          você

          a gente
          /

          quiromania

          papai-e-mamãe

          ménage-à-trois

          /

          vela

          fogueira

          incêndio

          /

          indicador

          paz e amor

          mão

          /

          espelho

          óculos

          janela

          /

           

          Diana Niepce Chiara Bersani Carla Fernandes Sejamos Unicórnios

          A conversa que aqui se transcreve, entre as artistas Chiara Bersani, Diana Niepce e a jornalista e ativista cultural Carla Fernandes, aconteceu no dia 14 de novembro de 2021, após a segunda apresentação de Gentle Unicorn (2019) de Chiara Bersani na Sala Estúdio do Teatro Nacional Dona Maria II, no contexto do Alkantara Festival 2021.

           

          Carla Fernandes: Como te sentes hoje?

           

          Chiara Bersani: A dança e o público são uma parte importante da performance, da experiência e da viagem. Todos os dias me surpreendo e hoje foi bastante doce e íntimo. Não é sempre assim. Às vezes é muito sombrio. Por exemplo, ontem foi muito cómico, não sei bem porquê! Em Edimburgo, o público fartou-se de rir. É sempre uma experiência diferente. Às vezes há pessoas que não querem ter nada que ver comigo, o que não tem problema, mas conseguem ser um bocado violentas.

           

          Diana Niepce: A relação que tu crias é muito íntima e forte. É extraordinário ver um corpo extraordinário mover-se duma forma politicamente tão gentil. Tocou-me bastante, e fiquei emocionada no final, porque há algo de muito belo nestes estados que vais alcançando pela maneira como moves o teu corpo para criar uma ligação com o público. Foi também uma das poucas vezes que pudemos ver uma artista com deficiência a apresentar o seu próprio trabalho aqui em Portugal. Foi uma experiência impagável, luminosa e única.

           

          CF: A minha primeira pergunta tem que ver com o nome do espetáculo. O que te levou a pensar que este título [Gentle Unicorn] seria um bom veículo para transmitir o significado político do corpo na sua interação com a sociedade?

           

          CB: A história verdadeira é muito estúpida.

           

          CF: Passeamos, então, de interação política para isso! [risos]

           

          CB: Eu estava na casa da minha mãe e tinha acabado de a ajudar a instalar um novo modem para o wi-fi. A palavra-passe era “Gentle Unicorn”. Normalmente as palavras-passe são do género “ABC” ou “123”. Essa noite liguei a um amigo que também é coreógrafo, o Marco D’Agostini, e contei-lhe a história e ele disse-me: “Esse vai ser o nome do teu primeiro solo.” Esta é a primeira parte da história. Depois fui pesquisar sobre a história do unicórnio e apercebi-me de que o unicórnio não tem história. Eu tinha a certeza de que o unicórnio estaria de alguma maneira relacionado com a mitologia grega, mas, na realidade, é só uma história comum. Havia um homem na altura do Império Romano que dizia às pessoas que tinha visto um unicórnio numa viagem à Índia, um animal com um grande corno que fazia coisas mágicas. Esta história começou a espalhar-se e, ao longo da história da humanidade, as pessoas começaram a associar diferentes significados ao unicórnio. Em algum momento foi até considerado importante para os movimentos católico e satânico. Eu achei isso tudo muito fascinante porque, se falas do corpo, que é algo muito simples, começas imediatamente a ser político e a atribuir-lhe interpretações diferentes. O unicórnio era perfeito. E “gentle” [gentil] porque estava na palavra-passe da minha mãe, mas também porque apesar de estar sozinha no palco durante toda a performance tenho próximas pessoas, como a Isabella, que é música; a Giulia Traversi, que é curadora; e a Valeria Foti, que é desenhadora de luz. A ideia de usar o adjetivo “gentil” surgiu porque não queríamos começar de um lugar zangado. Eu estou sempre zangada, mas queríamos manter um diálogo num ambiente mais gentil e ver o que aconteceria.

           

          CF: Uma das coisas que vem à cabeça quando se pensa em unicórnios é que, por exemplo, quando se diz “eu sou um unicórnio” isso significa “eu sou estranha e fora da caixa”.

           

          D: Ou que estás numa relação a três, em que o unicórnio é a terceira pessoa. Tem muitos significados diferentes.

           

          CF: Exatamente. Em que te faz pensar esta criatura?

           

          D: Como sou bailarina tenho muito interesse na linguagem corporal e no hibridismo do corpo que se está sempre a transformar e a trazer camadas de diferentes estados que criam tensão para o público. Esta ideia do corpo que produz esta criatura ser absolutamente detalhado, gentil e sedutor, é como se fosse poesia. Há um excerto específico que [a Chiara] escreve na carta que dá ao público, alguma coisa como: “Como não posso escolher morrer, chego agora ao momento mais humilhante da minha idade avançada, serei apenas este cavalo com um corno e um arco-íris a sair do meu rabo.” O unicórnio invoca também este estado sarcástico de uma idade avançada, a deficiência num corpo político. Este excerto reflete a minha pessoa, por isso, de alguma maneira posso dizer que me transformo no vosso unicórnio. Consigo rever-me nisso. Também acho que muitas das pessoas que assistem ao espetáculo também se apercebem da sua própria fragilidade e dos corpos estranhos que todos temos e que estão num estado híbrido de transformação e mutação.

           

          CF: Numa entrevista que a Diana deu sobre o corpo, ela dizia: “O meu corpo é um acidente e penso que todos os corpos são acidentes da sociedade, por isso tento criar um choque entre corpos que são convencionais e não convencionais. São muito semelhantes, na verdade, e não se consegue compreender qual é a convenção. As pessoas com deficiência não costumam mostrar os seus corpos, por isso gostaria de o fazer. É bastante interessante ver que não somos todos iguais.” Estava a olhar para a Chiara e a pensar que ela estava a ser muito vulnerável, e depois apercebi-me de que eu também me sentia vulnerável.

           

          D: Esta vulnerabilidade acontece porque a Chiara domina todos os aspetos do que está a acontecer, ou seja, a ligação com o público.

           

          CF: De certa forma, é uma espécie de orientação que dás ao público: “Olha para os meus dedos a mexerem, olha para o meu pé a mexer, olha para a minha maneira de olhar para ti.”

           

          D: É sobre um corpo utópico, de como as normas e o sistema nos programam para entendermos o corpo, por exemplo, de como se deve pegar um copo de água. Eu tive um acidente e fiquei tetraplégica. Quando se renasce num novo corpo, é preciso programá-lo “do zero”, e as pessoas diziam “não se deve levantar o   assim”. Porque é que não me é consentido fazê-lo como posso? Quando fazia algo diferente, como o gesto de pegar um copo de água, as pessoas diziam: “Não, não, deixa que eu faço.” Mas depois fiquei a pensar: “Eu posso fazê-lo à minha maneira.” Quando estava a recuperar das lesões, tinha todos estes graus de aprendizagem de como fazer certos movimentos. Neste momento, penso: “Porque não posso fazer isto à minha maneira? Porque é que as pessoas não conseguem lidar com isso?”

           

          CF: Afinal de contas existe uma convenção?

           

          D: Ensino bailarinos sem deficiências a andar e a transferir o peso corporal e a usar os músculos flexores para puxar a perna para cima. Eles dizem: “Uau, andar é tão diferente e tão difícil”, e eu fico do género: “Bem, sim, e eu estou numa cadeira de rodas!” Isto é o corpo político: ser levada à especificidade do teu movimento singular, e é absolutamente extraordinário quando o público deixa de julgar os nossos próprios movimentos e se deixa seduzir por eles. Quando a Chiara se sentou nele [aponta para alguém na audiência], ele primeiro não sabia o que fazer, depois começou a tocar no cabelo dela, depois ficou muito quieto, como se fossem um só corpo. Foi muito bonito por causa deste momento de “o que devo fazer?”. Será que ele vai fugir? Vai puxá-la ou o que é que vai acontecer? Estas pequenas surpresas são o que torna este trabalho extraordinário.

           

          CB: Quando o Gentle Unicorn nasceu, a proximidade com o público era totalmente diferente da atual. O espetáculo nasceu com a ideia de que eu não tocava em ninguém, de que ficava um pouco distante do público, e o meu desejo era entreter a ideia de que algo pode acontecer, mas não acontece. A questão é que no meio aconteceu a pandemia, e quando recomeçámos a trabalhar, na primeira performance que fizemos na Biennale di Venezia, foi tudo muito violento, porque as pessoas, como agora, estavam com máscara a uma distância de dois metros, e a distância mais a máscara era como um jardim zoológico, um safari. A distância era realmente violenta. Por vezes, eu sentia-me um autêntico animal estranho, um estranho humano sem contacto com as pessoas porque não tinham um rosto, apenas o olhar, não tínhamos proximidade, não tínhamos nada. Às tantas pensámos que talvez não fosse possível fazer o Gentle Unicorn durante os tempos de pandemia. Queríamos relacionar-nos com o presente, mas não parecia razoável. Por isso decidimos tentar mais uma e outra vez, e penso que descobrimos que se eu não tinha a cara das pessoas, se não podia ter apenas o olhar, precisava de um corpo, precisava de algo. Sei que a proximidade é uma questão muito delicada, porque para muitas pessoas não é aceitável ter contacto físico com alguém e sei também que o meu corpo não é assim tão simples para os outros. É um corpo muito intenso mas, a cada momento, estou aberta e sorridente. É possível que alguém não queira ter contacto físico comigo. Tento, não sei se acontece, mas tento dizer, perguntar se posso ficar perto de cada pessoa.

           

          CF: Perguntas através do movimento?

           

          CB: Sim, quando a música parou, por exemplo, abri os olhos e fizemos contacto visual e para mim isso quer dizer “tudo bem, eu consigo lidar com isto” e por isso tento…

           

          CF: Foi muito curioso porque a música acalmou e depois subiu de tom. Algo se abriu, não sei se foi o ambiente que ambos criaram, mas algo mágico aconteceu através dessas coisas técnicas. Como é que sabes que podes avançar — através do movimento, do olhar, do sorriso —, e compreendes que não há problema em seguir em frente?

           

          CB: Eu tento perguntar se me posso aproximar, quanto tempo posso estar perto, se posso tocar, “sim”, “não”. Se a pessoa não quiser, tudo bem, também podemos ter uma relação de outra forma ou não ter. No momento em que a música pára e a luz é tão precisa é porque, na dramaturgia, corresponde ao momento em que vejo pela primeira vez o público. É um momento muito frágil para mim porque também tenho medo de olhar para o público, não é só o público que tem medo de mim. Medo porque não sei quem são, se querem ficar comigo ou se me querem matar. O momento no canto do palco é muito importante no meu percurso. Esse canto é o lugar onde faço um pequeno mapeamento do público e encontro a minha zona de conforto. Nesse momento reconheço os meus amigos e coloco a minha pequena “casa” às costas e sei então que posso começar. Se as pessoas estiverem abertas, é um momento muito bonito para mim; se as pessoas estiverem fechadas, é “ok, foda-se”.

           

          CF: A vida continua. Também falavas sobre o corpo como um arquivo…

           

          CB: É uma questão complexa porque está relacionada com a deficiência. Nós temos uma experiência diferente e é diferente porque o meu corpo é aquele corpo desde o início da minha vida, mas ninguém na minha família tem o meu corpo, a minha deficiência. Se eu realmente tivesse uma árvore genealógica diferente, eu teria a árvore genética — o meu pai, a minha mãe, etc. , mas também teria uma composta por outras pessoas com a minha doença genética. É muito complexo para pessoas com osteogénese imperfeita terem uma categoria clara para as diferentes tipologias da doença. Não é claro porque é que somos todos tão diferentes. Não é uma coisa poética, é real. Nós somos loucos, os nossos corpos são completamente anárquicos e, na estranha relação com todas as pessoas com osteogénese imperfeita que chegaram ao mundo antes de mim, eu sinto que de alguma forma, elas ensinaram-me algo sobre o meu corpo. Quando vejo um concerto de Michel Petrucciani,[1] quando observo pessoas diferentes com um corpo parecido com o meu, descubro sempre algo que reconheço, que tem uma ressonância no meu corpo. Se eu não pensar nisso, sinto que perco o meu arquivo.

           

          CF: Vocês as duas têm experiências diferentes, então provavelmente os vossos arquivos devem ser formados de forma distinta.

           

          D: Eu não nasci com deficiência, acordei com um novo corpo que não entendia e que nunca tive. Acordei num mundo completamente diferente que não conhecia.

           

          CF: Então tiveste que recriar esse arquivo?

           

          D: Eu precisava. Costumo dizer que reaprendi tudo e precisei de me apaixonar novamente pelo meu corpo e de entender as regras da sociedade. Eu sou uma pessoa muito chata, incomodo muita gente e não lido muito bem se alguém me diz “isto é assim, isto é assado”. Se for ao contrário preciso de perceber porque é que “isto é assim” e de facto, eu tenho brigas por causa de pão às vezes, porque não percebo. Eu preciso de entender o enredo, o significado, e é muito frustrante porque na maioria das vezes sinto-me sozinha. Se eu não tenho os meus corpos fora do baralho, corpos fora da norma, corpos que funcionam comigo, sinto-me num estado de absoluta solidão, com o qual ninguém se pode realmente conectar ou entender. Há uma coisa que disseste que eu quero voltar a pôr na mesa: quando o público está a observar um corpo que não funciona de maneira normal.

           

          CF: Ou que não funciona como o seu ou algo assim.

           

          D: Com o privilégio de um corpo normativo. Tu transformas este olhar, que antes só existia em freak shows de feiras e circos, para algo espetacular que o corpo privilegiado não conhece. Quando vou à rua ou a um centro comercial, tenho pessoas a olhar para mim e esse olhar é porque sou diferente e estou numa cadeira de rodas. Este estado de conexão, de alguém a olhar para ti com este olhar perverso, é muito interessante para mim. Tu estás a trabalhar com gentileza e isso é um estado de revolução. Trabalhar de forma revolucionária, de forma política, com gentileza é absolutamente incrível, porque na maioria das vezes somos discriminadas e quando és discriminada começas a sentir pena de ti própria e a pedir desculpa e a dizer obrigada, “obrigada por ter uma rampa para mim”, “peço desculpa por precisar de uma rampa”. E isso vai parar a “obrigada por poder usar a casa de banho”. É muito frustrante.

          Sobre o arquivo, há uma coisa que também me fascina, é a história do corpo que se vê no espetáculo e que muito raramente se vê nas artes performativas do mundo da dança. Eles têm todo um vocabulário de como um corpo se deve mover e como o corpo precisa de saber a técnica, clássica, contemporânea, jazz, o que seja, o Flying Low, etc., mas as pessoas com deficiência não conseguem fazer Flying Low. Então, ao trazeres essa singularidade de movimento que tem muita técnica de dança, mas não é o vocabulário normativo da dança, trazes uma nova história da dança, a história do corpo, a história real dos corpos que anulamos.

           

          CF: Enquanto via o vídeo deste espetáculo, estava sentada com o meu filho de dois anos. Estava a ver na cozinha, um estava a gritar, o outro a tentar rastejar para o meu colo e eu fiquei do género “Não me consigo concentrar, o que é isto?” De repente, ele sentou-se e fez um gesto, sorriu e olhou para o vídeo. Esse movimento levou-me de volta aos meus arquivos de gravidez, quando ia ao médico e via o bebé lá dentro e os pequenos movimentos, a mão… Foi uma experiência muito transformadora porque eu estava a olhar para algum tipo de movimento essencial. Como disseste, tens a árvore genealógica, mas também o arquivo das pessoas que têm a tua deficiência, então estes são os meus arquivos como mãe. Este tipo de experiência é muito enriquecedora quando realmente te entregas à experiência do movimento, do olhar.

           

          D: A memória do teu próprio corpo?

           

          CF: É isso e eu acho mesmo que devemos prestar atenção a isso.

           

          CB: Em cada cidade onde vamos, fazemos um pequeno workshop com um músico para construir a parte final do espetáculo. Nesse workshop formalizamos o que é o trabalho, qual é o nosso desejo, e há uma pequena história que contamos sempre. O Gentle Unicorn é uma situação em que duas pessoas estão a andar na rua em duas direções diferentes e, a certo ponto, vês a outra pessoa que está a vir na tua direção e há algo na outra pessoa que é estranho para ti. Não consegues reconhecer, há esse instante em que podes estar com medo ou tens um pensamento negativo, e tentas dizer “tudo bem”, porque a primeira reação é algo animal e não queres julgar. De cada vez dizemos ao músico que queremos trabalhar sobre esse momento e tentarmos ficar nessa caminhada, na direção da outra pessoa. Se tentares manter o olhar com a outra pessoa talvez possas reconhecer algo que conheces e talvez a tua ideia possa mudar, já que o meu corpo, que é tão estranho, deixa de ser assim tão estranho se começares a olhar para mim durante um tempo, e vires que tenho dois olhos e cabelo loiro e mãos… Não sei bem o que queres mas, se ficares comigo, reconheces algo e deixa de ser difícil ficar calmo, não ter medo. Pensamos isso para nós. A experiência é apenas essa: mantém-te calmo. Mantém-te no momento, não fujas.

           

          D: Eu assisti a uma conferência sobre teoria Crip [Sinais culturais de queerness e deficiência, de Robert McRuer] e ele perguntava “Quando te olhas ao espelho vês-te como um deficiente ou só te vês a ti?”, e eu pensei: “Sim, são precisas duas pessoas para sentires que tens deficiência, porque se eu estiver sozinha o meu corpo funciona perfeitamente da maneira que funciona.” De uma forma diferente da antiga Diana, é certo, mas não me vejo com um problema. Se olho para mim ao espelho, porque é que vejo em mim problemas que sinto que tenho por não seguir a norma ou as normas privilegiadas da sociedade? Talvez fosse ótimo ter unicórnios por perto. Sejamos unicórnios e olhemos e fiquemos no olhar, para entendermos que cada um tem as suas especificidades. Espero que a tua viagem a Lisboa não esteja a ser muito desafiadora com os obstáculos na cidade. Ganhámos um prémio de acessibilidade em Portugal [Prémio de destino de Turismo Acessível 2019], não sei se sabes… [risos]

           

           

          Transcrito e traduzido do inglês por Inês Ramos e José Gil.

          [1] Michel Petrucciani (1962-1999) foi um pianista francês que nasceu com osteogénese imperfeita.

          Miguel Oliva Teles Empatia, Medicina e Corpo

          a partir do livro Anda, Diana, de Diana Niepce[1]

          Isto não é uma recensão crítica. Nem uma análise ou uma síntese. Isto é a força de Anda, Diana e o que a sua leitura em mim suscita. Muito me surpreenderia que, uma vez lido este testemunho, pudesse restar em alguém, de todas as coisas possíveis, indiferença. Ou talvez isto até possa acontecer e haja, bem dentro do livro, algo que nos avisa para isso mesmo. A mim, depois de lê-lo, não vejo outro caminho senão pensar e agir nesse espaço que a Diana abre de forma tão desabrida.

          EMPATIA

          Em Anda, Diana há muita coisa. Há a experiência de um corpo que, numa cambalhota, se desliga, levita e muda. Há o confronto abrupto entre duas Dianas, pondo em causa de forma violenta, repentina e absurda a utopia do corpo normalizado. Há um intruso e a concretude de se viver a alteridade dentro do próprio corpo. Há o amor e a sexualidade. Há a conciliação de uma ferida com um mundo – ambos gerados da quebra, do rasgo e da ruptura. E há um questionamento fundo e impiedoso do que é doença, saúde e medicina.

          Há muita coisa em Anda, Diana. Mas há uma que se destaca: Anda, Diana é também uma avassaladora e inquietante mostra da falta de empatia que grassa à sua volta.

          Começa logo nas primeiras páginas. É o Dia 1” deste diário. Diana, 27 anos, bailarina, cai de um trapézio, a cervical bate no chão” e há “o barulho de ossos a partir”. Numa questão de segundos, não se mexe para baixo do pescoço. Chega uma enfermeira e logo a seguir mais um. Entre eles, comentam: Ela está consciente? Está e não se cala.” Daqui passará para os cuidados intensivos, onde não é só suporte que a espera, mas também o terror (Se não te acalmas, amarro-te”). O diagnóstico: lesão medular. E a saga assim continua. Com mais profissionais de saúde. Com a família, os amigos e os amantes. No meio artístico, onde há caras familiares que se viram (constrangidas?) e episódios absurdos de inacessibilidade. Continua, enfim, no mundo – fora do centro de reabilitação”, fora dos muros”, fora de Diana – um mundo que, a partir de então, não a contempla e a invi(si/a)biliza.

          Mas não é fácil a empatia, que se reconheça e experiencie uma experiência de outrem. Ao mesmo tempo, talvez não seja tão difícil. Ao ler Anda, Diana penso haver uma relação entre a empatia (ou a falta dela), a medicina (na sua prática e pensamento ocidentais) e o corpo (não como construto, mas na sua materialidade, posição e movimento).

          MEDICINA

          O pensamento e a cultura ocidentais são orientadas para e pela ordem, para e pelo que é certo. Interessa o que funciona, o que está de acordo. E tudo orbita certas[3] dicotomias: há o bem e o mal, o certo e o errado. Há, de um lado: o funcional, o útil e a verdade. E do outro: a anomalia, o improfícuo e a mentira. Neste paradigma, o interstício é o pavor, porque nele (esse fora, esse entre) degenera a incerteza e a sombra, habita a diferença e não o mesmo. E assim, o erro e a dissonância são preteridos numa ética que se desfasa do real, que o rejeita e o afasta[2].

          Desenvolvendo-se no seio deste paradigma e também para ele contribuindo, a medicina poderia dizer-se como que orientada para um fim pré-determinado. É muitas vezes isto: surge um problema, uma disfunção, uma anomalia e o seu papel é corrigi-los. A missão é consertar esta desordem e trazer de novo harmonia. Desta forma, também a medicina pode facilmente repudiar o erro e a discórdia, se procurar cegamente o equilíbrio, a normalidade e a função. Pergunto: onde caberá a empatia nesta prática heroica que se impõe, anulando e rejeitando o que considera desvio? Encadeando tudo com uma luz purificadora, potencialmente violenta nessa tentativa de trazer a paz e a ordem que ela própria supõe?

          O mais irónico é que esta medicina, ao contrário do que anseia e alega, contém em si mesma uma grande parte de incerteza. Mas quando encontra o desvio, o irresolúvel ou o desconhecido – frustrada e ansiosa – tende a evitar, a normalizar ou a corrigir de volta o que a desconforta para águas mais certas. Pergunto: que resultado (nocivo?) tem esta rejeição ou revisão do que está para lá da margem? E quão perverso será que seja a própria medicina a definir as fronteiras do que ela própria esconjura?

          Diana diz-nos, a certa altura: Quando me vejo ao espelho já não vejo um escaravelho, mas também já não vejo uma borboleta. Vejo antes uma escaraleta ou um borbovelho.” Ela está no meio. Entre duas Dianas. Entre dois corpos. Entre uma bela criatura e um bicho feio. Diana posiciona-se, mostrando a farsa por detrás dos pares e das dicotomias e o valor da ambiguidade.

          Estaremos mais em paz com o nosso corpo e as nossas experiências se nos assumirmos ambíguos e se nos movimentarmos nas águas fluidas entre extremos? Talvez seja isto estar-se saudável. Para além de disfunção, de alteração bio-fisiológica e de normalidade, saúde pode considerar-se como a experiência transparente de cada um com o seu corpo: o não se sentir nele estrangeirado, dele alienado, ou tendo-o como objeto de estudo e intervenção. A vida vivida no silêncio dos órgãos”[4]. Estar com o corpo como estar em casa[5] .

          CORPO

          Num encontro médico não há só um corpo ou uma vida que se entrega aos cuidados de outrem. Há dois corpos que se encontram. Podemos, por isso, perguntar-nos: que corpo tem sido o desta medicina?

          A medicina ocidental moderna parece seguir, desde a sua origem, um vetor que é frontal, reto e irruptivo. O corpo doente é encarado de frente, com uma mirada intransigente, autoritária e que não o contempla, mas que o penetra na direção de um (suposto) problema. Depois, há lugar a uma intervenção que, geralmente, o irrompe ou o invade e que o leva – numa linha que é reta e rígida – desse suposto erro à sua correção[6].  Assim, seja de dentro-para-fora (como as flebotomias e as práticas purgativas, frequentes na época pré-moderna, que expurgavam os humores nocivos ou em demasia[7]); seja de fora-para-dentro (pela invasão dos tubos, dos fios, fármacos e dispositivos que vão corrigir o mal que vai dentro); o vetor tem sido o mesmo: frontal, reto e irruptivo.

          Voltemos à Diana. Dia 4. Acordo com os tubos a sufocar-me […] A enfermeira diz: Não chores’.” O sofrimento pode ser também um erro, a disfunção numa vida que se quer, imperiosa e intransigentemente, feliz. Talvez até seja a sua forma mais abjeta e temerosa. Encaramo-lo, por isso, primeiro com terror. E desse susto, a primeira resposta pode, geralmente, ser esse vetor corretivo: expurgar o horror, retirá-lo de dentro do corpo onde reside; ou afastá-lo, no sentido inverso, para longe de nós. Não chores.”

          Chego então aqui ao fulcro: é a falta de empatia que inviabiliza um encontro médico generoso, onde os corpos estivessem juntos e não assimetricamente dispostos num movimento que impõe a norma. Que ignora o ambíguo e o desconhecido. Que irrompe e rouba tanto quanto acerta. Que cura mas não cuida.

          BORBOVELHOS ANDAM, ESCARALETAS VOAM

          A empatia não é só um processo cognitivo ou individual, nem um processo passivo e distanciado de leitura ou simulação. A empatia faz-se e acontece em conjunto e primeiramente no corpo, sendo um processo de inter-afetividade e ressonância corporal. Nela dá-se uma troca de afetos e é o corpo, primariamente, o lugar onde eles se integram e se tornam experiência[8].

          Que movimento a empatia instala no encontro médico? Que corpo é que a empatia promove? Não poderá ser reto – o vetor dos afetos é um turbilhão de linhas entre os corpos, luzindo para todos os lados. Nem tampouco frontal – o corpo que empatiza é um corpo aberto, disposto à ressonância, é côncavo: um arco ou um vaso. E não será irruptivo, porque a empatia, sendo abertura, acolhe e permite, manipulando menos do que o que oferece de cuidado e de ajuda. Nem frontal, nem reto, nem irruptivo. O corpo do movimento empático é sendo-para-outrem, não só permitindo e amparando o erro e o ambíguo como definindo-se e transformando-se por ele e com ele. O corpo empático promove, assim, o poder ontológico, ético e político da generosidade[9]– não mais uma virtude dentre outras (no domínio do que se delibera), nem fruto de uma lógica individual de propriedade e dádiva, mas primeiro essa abertura: uma disposição que é excesso, entrega e desmesura. Empatia e generosidade: ambas acolhimento e dádiva, como um duplo movimento a que também poderíamos chamar doçura[10].

          Quão diferente seria se Diana pudesse afinal contar-nos: a enfermeira diz: Chora, Diana? Ou que não o dissesse de todo, mas apenas mostrasse esse acolhimento, essa disponibilidade, com o corpo. Os olhos encarando os outros. O tronco côncavo, relaxado, ligeiramente curvado para a frente e para dentro. E talvez até um ombro, um braço e uns dedos que se aproximariam num arco (não de frente), curvando-se de baixo e para o lado, pousando muito levemente num outro ombro, ou braço, ou dedos.

          Acolher assim o erro, o sofrimento, não será jamais promovê-lo, mas aceitar que existe e não fazer de quem o experiencia uma ente duplamente sofrida. Sofrendo pelo sofrimento e também porque está sofrendo. Sozinha e ilegítima.

          Quão diferente seria?

           

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          [1] Diana Niepce, Anda, Diana (Lisboa: Sistema Solar, 2021)

          [2] Friedrich Nietzsche, Introdução ao estudo dos diálogos de Platão (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020).

          [3] Ronald Domen, The Ethics of Ambiguity: Rethinking the Role and Importance of Uncertainty in Medical Education and Practice”, Academic Patology, 3 (2016).

          [4] Conceção de saúde de Havi Carel. Ver Bas de Boer, Experiencing Objectified Health: Turning the Body into an object of Attention”, Medicine, Health and Care Philosophy, 23 (2020).

          [5] Conceção de saúde de Fredrik Svenaeus, ibid.

          [6] Michel Foucault, O nascimento da clínica (São Paulo: Forense Universitária, 2019).

          [7] Ver Robert Sullivan, Sanguine Practices: A Historical and Historiographic Reconsideration of Heroic Therapy in the Age of Rush”, Bulletin of the History of Medicine, 68 (1994).

          [8] Florian Schmidsberger e Henriette Löffler-Stastka, Empathy is Proprioceptive: The Bodily Fundament of Empathy – A  Philosophical Contribution to Medical Education”, BMC Medical Education, 18 (2020).

          [9] Rosalyn Diprose, Corporeal Generosity (Albany: SUNY Press, 2002).

          [10] Anne Dufourmantelle, Puissance de la douceur (Paris: Payot, 2013).

          Piny O Corpo e a Cidade

          Pensar o corpo dentro da cidade e a cidade que envolve o corpo é necessariamente pensar como ambos se constroem através das políticas vigentes e das condições sociais. A dança (informal, tradicional, de rua, urbana) é simultaneamente corpo, espaço, celebração, protesto e resistência. É fruto das contingências de onde se vive, das necessidades de cada pessoa ou grupo, e dos processos económicos e sociais de cada tempo.

           

          Em 2007, no final da licenciatura que completei em Arquitetura, escrevi uma tese sob o título (Etni)cidade – Tipos habitacionais existentes no bairro do Alto da Cova da Moura – caracterização e qualificação, orientada pela Profª Isabel Raposo com colaboração do Moinho da Juventude. Fiz entrevistas e desenhos (plantas e alçados) das habitações, que foram entregues aos donos/habitantes/construtores das mesmas. A sua formalização em papel não as tornou mais reais, mas como a tradição oral existe sem necessitar de registo, se fossem destruídas sem documentação ficaria apenas a memória, até que nem a memória restaria. A preservação do património construído é uma das bases da construção da identidade coletiva, e parece-me importante pensar o que define, e quem define, o que é património e porquê. Se a conservação define a importância de um edifício, essa escolha determina à partida o que ficará registrado na história e as referências para as gerações futuras. Define, portanto, o que é relevante, sendo que o que não é considerado importante desaparecerá sem registo, e isto pode ser manipulado por forma a escrever apenas uma parte da história, que será sempre uma versão da realidade, porque há inevitavelmente uma seleção do que interessa manter ou esquecer.

          As danças de cariz informal nascem como as casas que um dia estudei, vão nascendo consoante a necessidade, respondem ao momento em que vivem, às políticas impostas, às restrições a que os corpos estão sujeitos, aos espaços de liberdade e opressão, ao que está disponível, e vão-se alterando a cada nova possibilidade.

          No início do século XVI, em Lisboa dançava-se o Lundum, o batuque e a charamba. Estas danças foram trazidas por marinheiros e pessoas escravizadas de origem africana, e tinham muita popularidade nas ruas de Lisboa até ao século XVIII. “Os termos utilizados com referência à dança do Lundum eram ‘bater’ ou ‘riscar’, com movimentos (considerados) sensuais de aproximação do ventre, a umbigada. Existe uma possibilidade de que as primeiras versões do fado que eram dançadas tenham a sua origem no lundum. […] Algumas destas danças de origem africana tinham nomes curiosos como Canário, Guinéu ou Charamba, a Fofa, o Sarambeque, para além de Lundum e Fado”[1].

          As migrações, muitas vezes forçadas, e a vivência da rua boémia e da cidade sempre originaram danças e música. Normalmente eram proibidas, esquecidas ou alteradas, e passavam de um contexto informal e de rua para um contexto elitista e dentro dos parâmetros considerados aceitáveis.

          Em julho de 1974, três meses após o fim do Estado Novo, pela “Lei da Descolonização”, Portugal reconheceu o direito dos povos dos territórios colonizados à autodeterminação. Esta parte da história determina em muito a cidade de Lisboa, os corpos na cidade e o meu corpo também. Em 1975, a minha mãe chega a Portugal vinda de Luanda, sozinha com a minha tia. O meu pai chega depois.

          A natureza das políticas adotadas e as suas consequências afetaram muito, e até hoje, as populações afrodescendentes, assim como populações migrantes de diversas origens, que chegam às cidades e encontram uma forte marginalização social e residencial. Isto acontece também no espaço metropolitano de Lisboa. Estas áreas, que crescem e se alteram constantemente, propiciaram desde a década de 1980 outro cruzamento que veio a fazer parte de mim, através das culturas urbanas nascidas nos Estados Unidos da América. Fruto da resistência e sobrevivência das comunidades afro-latino-americanas nos subúrbios das grandes cidades, foram criadas música e dança, que circularam primeiro em VHS e K7, depois via internet, e posteriormente através de filmes, livros, viagens e intercâmbio cultural direto, até ocuparem o seu espaço em diversas cidades por todo o mundo, como em Lisboa.

          É interessante pensar como toda a diáspora se conecta e se interliga através da identificação coletiva, ainda que espalhada pelo mundo.

          Em Lisboa houve e há cruzamentos de linguagens próprias, que se podem desenvolver, estudar, potencializar, e são únicos. Há uma história que se conta através dos corpos que habitam os espaços informais e, agora, os ecrãs do telemóvel, como palco em autogestão. Há potência no discurso do corpo que dança, não moldado unicamente pela academia branca ocidental; há potência nos cruzamentos que se criam pela coabitação de corpos diferentes, de histórias diferentes, de pessoas que não se querem iguais mas se respeitam e se orgulham das suas heranças. Há potência no cruzamento entre o informal (que cada vez mais se escreve, como os desenhos das casas) e a formalidade do estúdio de dança, do espaço performativo e formativo. A formalização solidifica mas não tem de congelar. Estas danças são vivas e sempre mutáveis, mutantes, em transformação.

          Na década de 1980, o Hip Hop tomou conta. Como cultura urbana considera-se que é composto por cinco vertentes: dança, grafitti, mcing, DJ e knowledge. O breakdance, nascido na Costa Este dos EUA, foi a primeira manifestação da dança. A ele juntaram-se o Popping e o Locking, que surgiram na Costa Oeste, e estes três estilos são hoje considerados old school. Falamos hoje em danças urbanas, danças de rua, clubbing, ballroom, e ao olhar de fora cada um destes universos pode ser considerado semelhante e até pode ser confundido. Por vezes estes termos são utilizados incorretamente e associados a uma geografia única, quando há danças de rua específicas de cada país e mesmo de cada cidade por todo o mundo. Em 1999 comecei o meu estudo em danças do Norte de África e Médio Oriente e a partir de 2003 mergulhei na magia das danças urbanas afro-norte-americanas.

          Ao procurar que manifestações teriam sido estas em Lisboa em décadas anteriores, por forma a entender as influências constantes dos encontros e das diásporas, vejo que a maior parte das danças denominadas urbanas ou de rua que existem em Lisboa desde finais do século XX estão diretamente ligadas à história colonial e à construção da cidade. Estas danças, como manifestação cultural e social, de celebração, de resistência, de emancipação, de luta, de questionamento e subversão, de criação de códigos, de criação artística e de discurso, não têm tido o espaço e a atenção devida. Têm sido apenas curiosidade e exotismo. A herança negra e a do povo de etnia cigana no fado dançado e no flamenco vizinho fazem parte destas heranças históricas, e urge investigar e recuperar, pois têm sido continuamente apagadas.[2] Para entender melhor a realidade de hoje é urgente ir um pouco mais atrás, anos, décadas, séculos, e criar pontes e paralelismos que nos permitam criar uma nova versão e história.

          Ainda dentro da cultura afro-norte-americana, surge mais recentemente na cidade o Krump, o Lite Feet, o Turfin, entre outras; dentro da cena clubbing, já não na rua mas ainda dentro do contexto urbano, existe o House como manifestação maior de uma herança ritual e fusão absoluta de danças de origem africana, latinas e até europeias (referência ao Ballet e à influência do sapateado irlandês na construção do sapateado americano). Entre o Disco e o House surge o Waacking, resistência pura através da celebração, e hoje inicia-se com um atraso de vinte anos em relação ao resto da Europa, uma comunidade Ballroom, onde se insere o Vogue, por uma população jovem, negra, lgbtqia+, portuguesa e não portuguesa que reside na cidade e a altera.

          Outras danças ocupam a periferia de Lisboa e até as escolas de dança não académicas, como o Kuduro (de Angola) e o Afro House (com origem na África do Sul) e tantas outras que ficam a faltar.

          A história das danças de rua em cada cidade estará sempre indissociável da história política a cada tempo, da interculturalidade, das gerações que procuram a descolonização do corpo, dos territórios e da linguagem, o fim da segregação, do racismo, e a resiliência na manutenção dos seus códigos culturais, música, dança e práticas sociais. Temos Capoeira, o nosso Carnaval tem Blocos, Samba, e Lisboa hoje é presenteada com Forró, Funk e corpos jovens, artistas, negros e brancos, feministas, travestis, trans, corpos que fugiram de um clima político opressor, machista e racista, na procura de um espaço mais livre e seguro, que nem sempre se apresenta como tal. O Brasil existe bem vivo e presente aqui. A cidade muda outra vez, porque o corpo da cidade é um corpo híbrido, vivo.

           

          O território não é mais o que dita de onde somos e os espaços que ocupamos, assim como a família formal não é mais obrigatoriamente quem nos abriga como sítio de pertença. As danças que brevemente mencionei aqui trazem com cada uma delas uma história profunda, longa, ancestral. São a escrita sem palavras de uma história, como as casas e a cidade. São importantes, essenciais e têm de ter espaço, mais espaço, mais apoio e maior visibilidade.

          ______

          [1] Ver Infopédia, entrada relativa a lundum: https://www.infopedia.pt/$lundum.

          [2] Ver o documentário “Gurumbé. Canciones de tu memoria negra”, de Miguel Ángel Rosales.

          André Lepecki O Espelho Estilhaçado / A Dança do Existir

          Alteridade colonial e violência identitária num solo de Vera Mantero

           

           

          Treze anos de guerra colonial,
          derrocada abrupta desse
          império pareciam
          acontecimentos destinados não
          só a criar na nossa
          consciência um traumatismo
          profundo
          – análogo ao da perda
          da independência – mas a um
          repensamento em profundidade
          da totalidade da nossa imagem
          perante nós mesmos e no
          espelho do mundo
          . Contudo,
          todos nós assistimos a este
          espetáculo surpreendente: nem
          uma nem outra coisa tiveram lugar.

          Eduardo Lourenço, O
          Labirinto da Saudade
          (1991).

          “Não saber
          Não ler
          Não saber nada
          Do mundo”

          Vera Mantero, palavras de
          abertura em A Dança do
          Existir.

           

           

          As duas epígrafes falam-nos de uma dupla crise no Portugal contemporâneo: uma crise dos sentidos e uma crise da memória.[1] Manifestam os termos pelos quais a derrocada dos 500 anos do Império colonial português trouxe consigo um profundo distúrbio na imagem da identidade pós-colonial(ista) da nação.

          Interessa-me a expressividade física desse corpo português pós-colonial(ista) em crise. Interessam-me as estratégias discursivas desse corpo – sobretudo algumas estratégias coreográficas através das quais a violência colonial reprimida é criticada e posta em cena no Portugal contemporâneo. Um desses momentos de crítica inteligente e de inquietante exposição é o tema deste ensaio – um solo de Vera Mantero intitulado A Dança do Existir (1995). Nesse solo, a violência recalcada do passado colonial é identificada como ainda presente, como ainda atuante, e depois investigada, iluminada e subvertida de forma profunda.

          Eduardo Lourenço descreve a forma como o fim abrupto do colonialismo foi (e ainda é) coletivamente percebido por Portugal como um não-acontecimento – como se as ondas de choque criadas pela guerra colonial, e as enormes fendas tectónicas trazidas por uma mudança social e política monumental, tivessem sugado, em vez de gerar, energia psíquica e força histórica. Para Lourenço, essa situação de silêncio e de apatia é intrigante. Como é possível, interroga-se, que

          um acontecimento tão espetacular como a derrocada de um “império” de quinhentos anos, cuja “posse” parecia coessencial à nossa realidade histórica e mais ainda fazer parte da nossa imagem corporal, ética e metafísica de portugueses acabou sem drama.[2]

           

          É no âmbito desta “falta de drama” na imagem corpórea dos portugueses que se deve formular uma teoria das formas de expressão portuguesas contemporâneas e, em particular, das formas de arte baseadas no corpo, como é a dança.

          A declaração irónica de Mantero – “não saber, não ler, não saber nada do mundo”, com que abre A Dança do Existir – reflete e ecoa a observação de Lourenço sobre o surpreendente e entorpecedor “não-acontecimento” que cercou a queda “abrupta” do império e o fim da guerra colonial. As palavras de Mantero também delineiam aquilo a que o antropólogo Allen Feldman chama “anestesia cultural”: “O banimento de presenças e agentes sensoriais desconcertantes, discordantes e anárquicos, que minam as premissas normalizadoras e muitas vezes silenciosas da vida quotidiana.”[3]

          Quais são as “premissas silenciosas da vida quotidiana” que são brandamente banidas da maior parte do discurso público no Portugal contemporâneo? De uma maneira geral, estão ligadas à (má) gestão mnemónica que o país faz da violência colonial, e à dessensibilização quanto ao recente ressurgimento dessa mesma violência dentro das fronteiras estreitas da ex-metrópole. Em 1998, Eduardo Lourenço identificou como é que as forças de esquecimento e de anestesia cultural ainda operavam uma repressão massiva e coletiva do passado português colonialista, fascista, ditatorial e violento:

           

           

          Nem em Itália, nem na Alemanha (com a sua pesada cruz), nem mesmo na União Soviética (a Rússia atual) – todos os lugares onde a tentação de enterrar o passado sob uma camada de esquecimento foi uma espécie de dever ou reflexo nacional – vimos a produção de tal fenómeno de inexistência póstuma.[4]

           

           

          Inexistência de facto, mas apenas ao nível da sua manifestação consciente ou pública. Pois as correntes subterrâneas da violência e do colonialismo sempre estiveram lá para serem sentidas, provadas e palpadas. Silenciosamente, insidiosamente, essas correntes movem-se sob o véu da anestesia cultural e dos discursos públicos exaltando a suposta tolerância nacional face ao Outro. Entretanto, skinheads suburbanos assassinam negros, tanto em Lisboa como no Porto, milícias organizadas de “bons” cidadãos no interior do país expulsam à mão armada ciganos das suas vilas e cidades, vivem-se maus-tratos constantes de negros pelas forças policiais: a compostagem borbulhante do racismo cotidiano. E também as ocasionais erupções de nostalgia colonial que, no início da década de 1990, incluíam a comercialização de cassetes de vídeo contendo filmagens da “inesquecível” vida noturna em Angola e Moçambique nas décadas de 1950 e 1960. “Para relembrar os bons velhos tempos”, dizia a publicidade na RTP. Apesar do insistente discurso público e governamental sobre a “tolerância racial e cultural” portuguesa, basta ficar parado por um momento na Baixa lisboeta, onde dezenas de homens africanos se reúnem durante o dia nas escadarias do Teatro Nacional à espera de serem levados para qualquer tipo de mão-de-obra barata que os empreiteiros brancos lhes dão, para que os espasmos fibrilantes da violência recalcada comecem a galgar o sistema nervoso, expondo a violência entranhada que o silêncio coletivo contém.

          “Não saber, não ler, não saber nada do mundo.” Ouvi as palavras de Mantero pela primeira vez em 1995, nos momentos iniciais da sua dança de quinze minutos intitulada, muito apropriadamente, A Dança do Existir. Foi uma peça que me marcou profundamente. Trata-se de uma dança que existe principalmente na escuridão, que acontece predominantemente através do som, e que começa e acaba em imobilidade. Vi-a ao vivo apenas uma vez, precisamente na sua noite de estreia e, apesar da sua fisicalidade, o modo como tenho regressado a ela ao longo dos anos tem sido exclusivamente um modo sonoro. Pois apesar de toda a dança que acontece neste solo, a memória que tenho dele é sobretudo acústica. Ao longo dos seus quinze minutos de duração, assistimos a uma subordinação da presença visual de Mantero a uma banda sonora complexa composta pelo compositor Sérgio Pelágio e pela própria Mantero. Para mim, a banda sonora é A Dança do Existir – e no deslocamento que esta dança provoca no órgão normalmente convocado para testemunhar dança, o olho, para o ouvido encontro uma instância de resistência à anestesia cultural (pre)dominante.

          Seguindo os deslocamentos, as reposições e as manipulações sensoriais e mnemónicas performadas pelo solo de Mantero espero mostrar como a coreógrafa critica e desafia não apenas a espetatorialidade e a teoria da dança mas, mais significativamente, o estado coletivo de apatia cultural e histórica, a anestesia sensorial e cultural generalizada no Portugal contemporâneo quanto à questão colonial(ista).

          A Dança do Existir pede um deslocamento radical do ótico ao propor, desde o começo, uma escuta bastante intensa. A escuta de um corpo de uma mulher entregando-se a um movimento duplo e simultâneo de encobrimento e desencobrimento, ambos cuidadosamente coreografados, do passado coletivo da violência colonial. Escuta essa feita por via da paragem, do movimento inusitado, da escuridão e do som.

          A peça começa com Mantero parada, cena esquerda e à beira do palco, junto aos bastidores. Compõe uma figura incongruente. Uma t-shirt verde, velha, manchada e meio destruída cobre-lhe o torso; um glamoroso vestido de baile de seda azul da década de 1950, com balões em volta da cintura e a cobrir-lhe a maior parte das pernas; pedaços de um tutu branco a brotar por baixo do vestido e um par de ténis coçados e sujos completam o figurino. O cabelo é comprido, crespo e indomável. Em concentração absoluta, escuta atentamente uma gravação da sua própria voz descrevendo, de maneira coloquial e informal, o que traz vestido naquela noite. O que ficamos a saber é que cada peça do seu figurino – a glamorosa, a banal, a velha, a suja – carrega consigo uma história camuflada de violência. A voz gravada de Mantero informa-nos que o vestido de baile é da mãe. Costumava usá-lo nos anos 50, nos bailes glamorosos da alta sociedade lisboeta. Esses bailes eram afamados pelo chique cinematográfico – os seus excessos contrastavam fortemente com a situação desesperada da maioria da população: eram a maneira de o regime encenar normalidade, num pano de fundo de total miséria e repressão. A t-shirt é da adolescência de Mantero, uma que gostava tanto de usar, que agora mal se segura inteira. A t-shirt está rasgada, diz-nos, porque uma noite um amigo “um pouco violento” a empurrou com um pouco mais de força do que o habitual e a t-shirt se desfez. Os ténis sujos eram da mãe, informa a voz off de Mantero. Um outro amigo dera os sapatos à mãe, como prenda, mas eram grandes demais. A mãe passou-os a Mantero. Também eram grandes demais para ela, mas guardou-os mesmo assim, já que não tinha nenhum par como aquele. Levou-os à Croácia para visitar um amigo, em plena guerra civil na ex-Jugoslávia, em 1993. Ele escrevia durante o dia e ela ensaiava. No final do dia, corriam juntos pelos campos. Algumas noites, parecia-lhe escutar ao longe os bombardeios. Conheceu refugiados e combatentes em estado de choque. Era um dos lugares mais belos para se passar férias. Os ténis ficaram vermelhos com a poeira cor de ferrugem típica daquela área tranquila à beira do horror, e ela nunca mais os lavou. Aqui, a voz gravada de Mantero termina a descrição e afirma: “Eu neste momento não estou aí.” E o palco fica em completa escuridão.

          Na escuridão, uma nova banda sonora começa. Em vez da voz clara de Mantero, ouvimos uma mescla complicada, esmagadoramente verbal, hiperbolicamente fragmentada, enchendo cada canto do teatro com uma torrente contínua de vozes. É esta banda sonora que começa com as palavras “não saber, não ler, não saber nada do mundo”. Após a atitude parada inicial de Mantero, enquanto ela ouvia atentamente a sua própria narrativa sobre as violências escondidas em peças de vestuário quotidianas, a nova banda sonora ecoa fortemente no escuro, e o público é assim colocado na mesma condição de imobilidade atenta que a bailarina acabara de performar no palco. Nessa inversão de papéis especular, chega o momento de o público se envolver numa arqueologia da violência quotidiana – que mais não é do que uma arqueologia das tensões entre identidade e alteridade. Sentados em silêncio nos nossos lugares, entramos nas nossas próprias danças de existir. O que ouvimos, nessa dança sem luz, sem movimento visível, não é óbvio. Vozes diversas, modos de falar diversos (por vezes poéticos, por vezes coloquiais, por vezes confessionais), sotaques diversos, todos entrelaçados e editados com sons estranhos, cortes abruptos, interrupções criadas por samples de diversos géneros musicais. A verbosidade da banda sonora cria uma barreira semântica e acústica volumosa, e o corpo de Mantero permanece apagado por essa massa linguística e sonora avassaladora que, na sua intrincada montagem, flirta tanto com significação como com o insignificante. Apesar de fortemente baseada em linguagem, a paisagem sonora não define um domínio de comunicação, ou de representação, mas propõe uma linguagem de e em desarticulação, em curto-circuito, em livre associação. Há vozes claramente “encenadas” (as de Mantero e Pelágio assumem personagens diferentes ao lerem de fontes diversas – poemas, catálogos pornográficos, discurso associativo livre incoerente) enquanto outras são claramente “documentais” (extraídas de talk shows, de entrevistas na rádio ou feitas na rua por Mantero e Pelágio).

          Ao longo de dez minutos ouvimos, entre muitas outras: a voz de Pedro Paixão, um romancista que se interroga sobre o amor, Deus, a morte e a sua mãe; a sua voz sobrepõe-se às vozes de Mantero e Pelágio que leem fragmentos da biografia de Glenn Gould, especificamente sobre as suas fobias, o seu amor pelas estruturas e os seus cantos para os animais do zoológico; tudo isto se entrelaça com vozes de soldados traumatizados pelas guerras coloniais, contando da miséria em Portugal nos anos 1960 e de como foram treinados para matar e nada mais do que matar, enquanto gritavam como cães loucos como a tropa era bonita, e como foram ensinados a orgulharem-se dos seus troféus de morte. E há ainda a voz alquebrada de um dos veteranos, a soluçar, incapaz de narrar as torturas que aplicava aos guerrilheiros africanos, um fragmento da Paixão segundo São Mateus, de Bach, no exato momento em que o coral canta um verso pedindo a misericórdia de Deus pelas lágrimas que causámos, enquanto tudo se entremeia aqui e ali com um poema delirante em livre associação, de uma jovem cuja vida começa numa das ex-colónias em África, continua no Brasil após a independência e acaba em Portugal. E há mais vozes e textos e texturas continuamente adicionados, da pornografia ao elogio feito por William Blake da energia como deleite eterno…

          Após cerca de quatro minutos no escuro, a banda sonora chega a um ponto em que ouvimos, consecutivamente, dezenas de vozes diferentes dizendo, simplesmente, as palavras “descobrir as regras”. Homens, mulheres, com sotaques diferentes, repetindo a frase que pode ter conotações ligeiramente diferentes – “encontrar (pela primeira vez) as regras” mas também “desencobrir as regras”. Além disso, “regras” tem um duplo significado – período menstrual, mas também norma. É nesse momento que o palco é inundado por uma luz brilhante que revela Mantero no centro do palco, já em movimento pela primeira vez. Antes de descrever o que faz enquanto se move, é preciso considerar tudo o que precedeu esse momento literal de iluminação e de dança. É fundamental considerar o papel do som e da paragem que antecederam o desencobrir/descobrir pela luz de Mantero dançando.

          O que chama a atenção na primeira parte de A Dança do Existir é o tom vivaz e coloquial da voz gravada de Mantero, em contraste com o conteúdo do que está a dizer. Cada uma das peças de roupa que veste carrega consigo não apenas uma história, mas uma história maculada por atos de violência ou por um contexto histórico de violência. A sua figura surge como uma composição dessas histórias que lhe foram transmitidas por meio de objetos que herda da mãe, objetos destruídos por amantes violentos, objetos que trilharam os caminhos empoeirados por transformações históricas e guerreiras. Não é irrelevante que Mantero ouça parada a sua própria voz, e que essa imobilidade se expanda para além do seu corpo: pois é como se a sua perceção e postura fossem transferidas para o público quando as luzes se apagam. No escuro, o público fica plenamente consciente das histórias de amor incongruentes mesclando-se com as vozes daqueles que perpetraram a violência colonial. Qual poderá ser a finalidade da estratégia coreográfica de Mantero em A Dança do Existir, de apagar visualmente a sua presença, de jogar enfaticamente com um deslocamento sensorial do visível para o invisível, de privilegiar conscientemente o sonoro, tudo no contexto de uma peça que é também, e explicitamente, uma crítica pós-colonial às correntes subterrâneas da violência no Portugal contemporâneo? Talvez ficarmos plenamente conscientes de que há que descobrir, desencobrir (parados, na escuridão) as regras que regulam o “não querer saber nada do mundo”.

          No seu ensaio sobre anestesia cultural, Allen Feldman critica The Civilizing Process, de Norbert Elias.[5] Para Feldman, a noção de Elias de que “a modernização implica a retirada progressiva da violência da vida quotidiana, de par com a sua crescente monopolização pelo Estado”[6] deve ser questionada. Feldman exemplifica com vários casos em que o Estado “democratiza ativamente a violência”, como na Irlanda do Norte e na ex-Jugoslávia. Nesse sentido, para Feldman, a violência deve ser reposicionada das “margens dos processos civilizacionais e da modernidade europeia” e retornar ao próprio núcleo da “civilização” e da “modernidade”.[7] É esse deslocamento de perceção que Mantero encena ao contar as suas histórias sobre o que lhe cobre o corpo, na sua dança do existir. O efeito quase cómico causado pela primeira aparição de Mantero com a sua t-shirt esfarrapada, o vestido de baile de seda arredondado e os ténis sujos é radicalmente boicotado pelo facto de nos contar a micro-história das violências contidas em cada peça da roupa com que se veste. A violência impiedosa do fascismo, a violência brutal dos amantes, a violência estrondosa da guerra, a violência normativa do treinamento (o tutu de ballet) não são apresentadas como acontecimentos externos, fora do fluxo “normal” da história e da quotidianidade, mas como aquilo que mantém a quotidianidade dentro da sua própria lógica existencial. Andamos sempre com violência vestida, mesmo que optemos por não ouvir os seus ruídos crepitantes.

          E que dizer da estratégia coreográfica que Mantero escolhe performar para sublinhar dramaturgicamente a violência no âmago da quotidianidade? Porque é que Mantero permanece parada? Porque é que escolhe, neste momento de auscultação histórica, não se mover? Aqui é útil invocar a noção de “ato parado” [“still act”] proposta por Nadia Seremetakis na sua importante crítica dos sentidos na modernidade.[8] Para Seremetakis, o “ato parado” não é um congelamento do sujeito em rigidez estatuária. Pelo contrário, é um momento de interrupção social em que o sujeito suspende hegemonias temporais, narrativas e ideológicas por meio de uma interpelação quieta da história. Para Seremetakis, os “atos parados” são esses momentos de pausa e paragem em que o sujeito – ao introduzir fisicamente uma rutura no fluxo da temporalidade hegemónica que nos condena a todos ao movimento sem pensamento – interpela a “poeira histórica”.[9]

          Recorrendo ao uso da paragem enquanto escuta a sua própria voz a desencobrir calmamente a violência no cerne do banal, Mantero encena uma resistência sensorial. Mais importante, essa resistência sensorial como reorganização de memória é depois transferida para os corpos do público. Pois quando o corpo de Mantero desaparece, é o público que é colocado na escuridão sob uma enxurrada sónica de vozes. É o público que assume o papel ativo de se colocar em estado de paragem atenta.

          Ao percorrer as notas de Mantero para a criação de A Dança do Existir, encontrei o seguinte fragmento que ilustra as suas ideias sobre os usos do som, da escuridão e da paragem na dança do existir:

          Escutar um texto, sons e música na escuridão é partir para o mundo do invisível […]. Falar na escuridão é uma oportunidade de dizer coisas que implicam os outros, é até uma oportunidade de penetrar no mundo interior deles, quase entrar nos seus sonhos como personagem, em vez de lhes dar algo mais visual e exterior (a eles).[10]

           

          Ao optar primeiro por não dançar, mas antes escutar, para depois desaparecer ativamente de vista, Mantero resolve uma questão coreográfica para uma ética do relembrar e da resistência sensorial. Uma que brinca com o trocadilho possível no termo re/lembrar,[11] ou seja, re-organizar e re-distribuir o corpo e as suas partes, os seus sentidos e canais, de maneira a gerar um corpo novo, imaginativo, criativo, provocativo e historicamente crítico.[12]

          Nesta estratégia da coreógrafa, a sua suspeita do visível é importante. Particularmente quanto à capacidade do visível, de revelar a violência sob a pele dos dias. Essa suspeita propõe uma retificação da noção de coreografia como forma de arte essencialmente visual. O que traz uma dupla consequência teórica. Em primeiro lugar, endossa a visão de Mark Franko de que ao considerar danças “politicamente resistentes” deve ter-se em conta que elas são, muitas vezes, “práticas assimétricas e não ilustrativas.”[13] Para Franko, essa qualidade “não ilustrativa” das danças politicamente resistentes traz importantes implicações epistemológicas, a saber, a necessidade da teoria e da historiografia da dança questionarem “o quanto da prática da dança se materializa como visível ou deve entender-se em termos visuais apenas”.[14] A questão de Franko é particularmente relevante para a presente discussão. O seu projeto de expandir a fixação sensorial nos estudos de dança para além dos limites do campo do visível (e escapar assim ao que chama “falácia visual na história da dança”) ilustra precisamente como Mantero entende o uso do corpo na dança. Em 1993, dois anos antes de criar A Dança do Existir, Mantero afirmou numa entrevista ao jornal Público que “apenas com o corpo, a dança não consegue dizer tudo”.[15] Para Mantero, no seu trabalho o corpo é secundário, no sentido em que deve saber a hora de se apagar, para poder dizer com mais impacto.

          Nas suas muitas camadas, permutações e fragmentação estratégica, A Dança do Existir de Mantero investiga um dos episódios mais silenciados da história recente portuguesa, a guerra colonial de 1961-1974 – uma guerra que pode ter acabado no terreno, mas ainda está presente na vida quotidiana do Portugal pós-colonial. O mais chocante para o público português é escutar as narrativas quase nunca ouvidas dos veteranos da guerra colonial, cuja história, como nota Eduardo Lourenço já em 1998, ainda está por contar.[16]

          Walter Benjamin, nas suas Teses sobre a Filosofia da História, diz-nos que “articular o passado historicamente não significa reconhecê-lo ‘como realmente foi’. Significa apoderar-se de uma reminiscência quando ela irrompe num momento de perigo”.[17] Mantero articula uma história que “ainda está por contar” criando uma atmosfera de urgência, no escuro, dando voz a quem tinha sido afastado da memória histórica. A memória irrompe como articulação da história por meio do ritmo urgente, dos sons discordantes ao fundo e do caráter testemunhal dos depoimentos dos veteranos da guerra colonial que ouvimos.

          Seria injusto dizer que este é um solo sobre a guerra colonial. Isso corresponderia a uma redução da sua polissemia explosiva e das suas ramificações fragmentadas radicalmente libertadoras. Mas é justo alegar que é um solo sobre aquelas forças em ação no Portugal contemporâneo que perpetuam as mesmas velhas relações coloniais e tensões raciais; reciclando e re-energizando (ainda que impercetivelmente) a violência latente resultante daqueles anos de guerra e terror. Nesse sentido, é um solo sobre a natureza repressiva do silêncio, à medida que atravessa o corpo social, gerando o seu sistema nervoso neocolonial.[18] É só a esta luz que podemos compreender porque é que Mantero, num pequeno texto para o programa da noite de abertura de A Dança do Existir, lhe chama (contra o impacto óbvio da sua contínua massa sonora, vozes, choros, fragmentos musicais) “uma dança do silêncio”.

          Mas podemos entender as suas razões. Esta é uma dança que investiga aquele silêncio que prospera precisamente debaixo da verbosidade, da visibilidade e do ruído mais ensurdecedores. Esse silêncio que expressa “anestesia cultural” – a capacidade, segundo Feldman, “de infligir dor no Outro [e] de tornar a dor do Outro inadmissível no discurso público e na cultura”.[19]

          Como é que se podem ouvir as vozes descartadas da história, sob a amnésia coletiva trazida pelo estilhaçamento do espelho colonial? Aqui, sob a orientação do auditivo, colocamos uma questão coreográfica – pois essa escuta é também uma questão de preparar o corpo, de o condicionar, ajustá-lo a uma posição específica dentro do tempo (histórico) e do espaço (social e político). Nesta nova posição, o sujeito negocia, valida e descarta o que considera pertencer ao domínio do (in)significante e do (im)percetível.

          Para Nadia Seremetakis, “o impercetível tem uma estrutura social baseada em zonas culturalmente prescritas de não-experiência e significado cancelado”. Seremetakis identifica no “entorpecimento e apagamento das realidades sensoriais”, os indicadores cruciais de momentos de transformação social e histórica. Esse entorpecimento cria um desafio para a interpretação crítica, exigindo uma certa reorientação dos sentidos:

          Esses momentos [de transformação histórica] só podem ser vislumbrados obliquamente e nas margens, pois a sua visibilidade exige uma imersão na memória sensorial interrompida e nas emoções deslocadas.[20]

           

          A noção de Seremetakis de vislumbres oblíquos, permitindo a imersão numa “memória interrompida”, ou numa emoção deslocada (ou reprimida), é crucial. Esses vislumbres oblíquos, de soslaio, são tantos olhares desviantes, caminhando pelas margens dos sentidos e da história, retomando-se à beira dos momentos percetíveis de entorpecimento coletivo e dos vestígios do apagamento contínuo das experiências sensoriais e sociais. Vale a pena seguir este caminho desviante – é o mais fenomenologicamente adequado para o trabalho em questão.

          Depois do escurecer, uma série de vozes diversas proferem a frase “Descobrir as regras”. Encontrar ou desencobrir as regras. É neste momento que a luz inunda a cena e encontramos Mantero a dançar no centro do palco com o seu figurino compósito. É uma dança fragmentada. Mais ainda, a sua fragmentação parece exigir um contínuo e oblíquo vislumbrar de soslaio. A secção “dança” de A Dança do Existir dura cerca de seis minutos. É nesses seis minutos que emergem as vozes mais perturbadoras da memória colonial, incluindo o veterano soluçante, incapaz de contar o seu passado como torturador. Além disso, ouvimos as associações livres mais alucinatórias:

          [Veterano #3] “Pois as agressões, lembro-me, está presente em mim até hoje, as agressões dele contra a minha mãe…”

           

          [Pedro Paixão] “Quer dizer, eu já morri várias vezes.”

           

          [Vet. #3]: “…inclusive de um pontapé que levei uma vez…”

           

          [Mantero e Pelágio]: ”Fecha os olhos.”

           

          [Vet. #3]: “…para evitar que ele desse esse pontapé na minha mãe…”

           

          [Mantero e Pelágio]: ”Fecha os olhos.”

           

          [Vet. #3]: “…e aquela vida má, a pobreza, a miséria que havia, que vivíamos num quarto…”

           

          [Mantero a ler do poeta Ruy Belo]: “Deus anda à beira de água calça arregaçada

          como um homem se deita como um homem se levanta

          Somos crianças feitas para grandes férias.”

           

          [Pelágio a ler a biografia de Gould]: “A noção de que todos os sons são dignos de atenção.”

           

          [Mantero a sussurrar rapidamente]: “Amigos a desenganarem-se, amigos a desencontrarem-se. encontros. refugiados. morte. fome. prazer, desgraça, sol. brasil. grandes acontecimentos. dor, ginástica, mentes. muitas mentiras. prazer. encontros imediatos do 3.º grau. fazer tudo para não cair no buraco. canseira, dores de cabeça, felicidade.”

           

          [Vet. #1]: “…Por exemplo, do género: ‘rastejar até mim!’, e a malta a rastejar, ‘vamos embora a rastejar, abaixar o rabo, abaixar o cu, essa cabeça, rastejar até mim, até mim, junto a mim!!’ Todos ali ao monte, todos amontoados, uns por cima, outros por baixo. ‘A tropa é linda? É! A tropa é linda? É! Filhos da puta, a rastejar até mim!!’”

           

          Vet. #2: “Nós saímos de casa com uma mentalidade de que era… de que era preciso matar. Fazia-se gáudio disso. Era uma honra.”

           

          Enquanto isso, Mantero dança como se o seu corpo fosse descontínuo. Mantém o tronco direito, raramente dobra as costas, os braços e as pernas giram das articulações como pêndulos, mantendo ângulos retos. Mantém uma expressão concentrada, como se aquela abstração fosse parte da mais articulada e significativa atividade. Esquiva-se, não fica num sítio mais do que um instante. Não há fluidez no seu movimento constante; tudo é feito de partes descontínuas, segmentadas e isoladas, da mesma maneira que o movimento de uma sequência fílmica é feito de imagens fotográficas distintas. É impossível ter uma sensação de completude – de uma dança inteira, de um corpo inteiro. Os meus olhos saltam daqui para ali tentando seguir o seu corpo, e sobretudo desistindo porque os meus ouvidos querem focar toda a minha atenção na banda sonora emendada, e escuta-se melhor quando os olhos descansam imóveis. Vislumbres oblíquos então, uma e outra vez em direção ao palco, com ela a escapar-me a maioria das vezes, porque já se tinha mudado para outro sítio. Tal como mencionei anteriormente neste ensaio, o ecrã da minha memória desta dança é apenas sonoro. Quando comecei a escrever estas páginas, não conseguia de todo lembrar-me da dança. Pedi a Mantero um registo vídeo da peça. Ela enviou-me um, feito por um videasta profissional. Coloquei a cassete no meu gravador de vídeo e deixei correr. O nervosismo da câmara é quase patológico. Não há um só segundo em que a câmara não se mova sobre o corpo de Mantero, fazendo zoom para dentro e fora do palco, captando partes do corpo ao acaso, caindo em sequências aleatórias como se procurasse, no seu zoom frenético, um corpo que afinal estaria bem ali. Surpreendo-me ao reconhecer que, muito embora Mantero não ande a correr pelo palco, escapa constantemente ao confinamento ótico da câmara. Tal como tinha prometido no início da peça, é como se, de facto, “Eu neste momento não estou aí”. As suas movimentações descontínuas provocam o falhanço absoluto da documentação; mas também produzem o efeito de distração no meu inconsciente ótico. O registo de vídeo da dança do existir de Mantero, ziguezagueante, nervoso, permeado de vislumbres oblíquos de um corpo que se esquiva da captura, é o registo mimético do muito particular e radical manifesto sensorial dessa dança.

          O solo de Mantero performa um momento de suspensão histórica, de interrupção, de rutura, um momento que ilumina as margens de um campo repressivo de silenciamento e de empoeiramento históricos. O catalisador da minha busca oblíqua através dessas imagens, perceções e emoções deslocadas, em fuga, foi uma dança de que me lembrava principalmente como som. Dança: câmara de eco onde memória, movimento e violência se entrechocam, moldando corpos, coreografando identidades, rearranjando alteridades.

           

          Traduzido do original em inglês por Paula Caspão.

           

          _________

          [1] Este ensaio foi escrito no ano 2000 e publicado originalmente em francês na revista Protée, em 2001. Trata-se de uma versão muito reduzida de um capítulo com mesmo título da minha tese de doutoramento, Dancing Without the Colonial Mirror (2000). A vontade dos editores do Coreia de o traduzir e o publicar hoje, em Portugal, talvez indique que a “contemporaneidade” dessa dupla crise que o texto discute ainda subsista – duas décadas mais tarde. Aos leitores, cabe decidir se de facto assim é.

          [2] Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991), 43.

          [3] Allen Feldman, “From Desert Storm to Rodney King via Ex-Yugoslavia: On Cultural Anesthesia”, em In The Senses Still: Perception and Memory as Material Culture in Modernity, ed. Nadia Seremetakis (Chicago: The University of Chicago Press, 1996), 89.

          [4] Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. 2.ª ed. (Lisboa: Gradiva, 1999), 67-68.

          [5] Norbert Elias, The Civilizing Process (Nova Iorque: Urizen Books, 1978).

          [6] Ver Feldman, “From Desert”, 87.

          [7] Ver Feldman, “From Desert”.

          [8] Nadia Seremetakis, “The Memory of the Senses, Part II: Still Acts”, em The Senses Still. Perception and Memory as Material Culture in Modernity, ed. Nadia Serematakis, 23-43 (Chicago: The University of Chicago Press, 1996).

          [9] Seremetakis, “The Memory of the Senses, Part I: Marks of the Transitory”, 12, em The Senses Still.. A noção de “poeira histórica” é de Walter Benjamin. Para Benjamin, a natureza da sociedade mercantil foi capturada na imagem da ruína – daí a importância da poeira. A poeira, como imagem dialética, expressa a forma como a impercetível sobreposição dos acontecimentos históricos anestesia os sentidos, num silencioso processo coletivo de repressão como sedimentação. Para Benjamin, “a história está tão quieta que acumula poeira”, escreve Susan Buck-Morss – mas também, pode acrescentar-se, a história produz poeira de modo a performar o seu movimentado espetáculo de progresso. O Portugal contemporâneo sufoca soterrado nestas duas visões de poeira histórica. Mantero literalmente traz “poeira histórica”, como índice dessa violência, ao palco: nos seus ténis empoeirados pela terra vermelha da ex-Jugoslávia em guerra, partículas das quais se desprendem ao longo de A Dança do Existir.

          [10] Vera Mantero, notas coreográficas para a criação de A Dança do Existir. Caderno de notas intitulado “O Meu Trabalho”.

          [11] N. da T.: a possibilidade do trocadilho é mais sonante no termo inglês “re/membering”, que aponta claramente para a profunda implicação entre o ato de relembrar e o movimento de re-com-posição entre as várias partes que fazem um corpo.

          [12] Sobre as implicações teóricas deste re/membering, em particular para a dança contemporânea, ver Gabrielle Brandstetter e Hortensia Völckers, eds., ReMembering the Body (Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz Publishers, 2000).

          [13] Mark Franko, Dancing Modernism / Performing Politics (Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1995), xii.

          [14] Franko, Dancing Modernism.

          [15] Maria José Fazenda, “Apenas com o Corpo, a dança não consegue dizer tudo”, Público, Outubro, 15 (1993), 28.

          [16] Eduardo Lourenço escreve: “Durante treze anos de guerra colonial na Guiné, em Angola e em Moçambique, milhares de quadros milicianos, estudantes, médicos, intelectuais foram mobilizados para a última e absurda cruzada contra o independentismo africano. A história desta mobilização massiva (…) não está escrita.” Ver Lourenço, Portugal como Destino, 69.

          [17] Walter Benjamin, “Theses on the Philosophy of History”, em Illuminations, ed. Hannah Arendt, 253-264 (Nova Iorque: Schocken Books, 1969), 222.

          [18] Ver Michael Taussig, The Nervous System (Nova Iorque e Londres: Routledge, 1992), em particular a introdução e os capítulos 7 e 8.

          [19] Ver Feldman, “From Desert”, 90.

          [20] Seremetakis, “The Memory”., 23.

          Emiliano Aversa Um Lábio Homeostático

           

          a. Um espasmo teve o polegar 𓂭

          b (a)1. Um espasmo teve o lábio inferior 𓂋

          c. Um espasmo teve o Carlo 𓀤

          d. Um espasmo teve o lagarto 𓆈

          e (d). O lagarto virou-se ao contrário 𓆈 𓄳

          f (a-b). O lábio fez comichão 𓂋 𓈖

           

           

          O meu estar no mundo padece do ar que me arranha, do solo que piso, da luz que se projeta à minha frente. Cada momento vivido por mim é examinado à luz de uma luta destinada à harmonia da minha permanência, uma luta harmoniosa entre a minha subjetividade e o meu ser no mundo, o meu relacionar-me com isso. A subjetividade, complexa peculiaridade que tem origem na proprioceção, não existiria sem tal relação, portanto a pergunta fundamental parece ser: onde se encontra o limite entre a minha subjetividade e o mundo que me rodeia? Onde se inicia e finda a relação que tenho com isso? Esta pergunta pressupõe a conceção do espaço entendido não como recipiente, mas como espaço que cria espaço no qual o corpo age como elemento consciente e dinâmico. Uma resposta plausível encontra-se no final deste texto, já que a pergunta contém em si um erro; mais do que uma resposta, trata-se de uma correção de perspetiva que invalida a pergunta. De qualquer forma, tal questão contém em si uma série de parêntesis e fluidos corporais que merecem ser mencionados.

           

           

          O meu objetivo é procurar lançar uma luz sobre a existência de uma regulação orgânica, que diz respeito também à relação entre o orgânico e o inorgânico, seja no mais pequeno movimento do ser, no caso de um braço, seja sempre que se encontrem organizações de movimento mais complexas, mesmo que o movimento resulte de uma escolha artística, que, pela sua essência, não pode divergir da natureza para alcançar o seu objetivo nulo. Por objetivo nulo entendo aquele que é exatamente o objetivo da arte, ou seja, aquele de dizer tudo, o que equivale a não dizer nada. Em poucas palavras, a arte espreme o ser de modo a evidenciar o sangue que nele flui quotidianamente.

           

           

          Uma gota da minha saliva cai no chão do meu estúdio. Uma vez que que me abandona, esta parte de mim não precisa de me reconhecer, torna-se parte do fluir orgânico, o meu eu, não enquanto subjetividade, flui como parte do todo.

          Uma gota da minha saliva cai no chão do meu estúdio, lambo o chão do meu estúdio para me reapropriar da gota da minha saliva, algo mudou, é necessária a ativação de um processo químico que faça com que tudo se equilibre, com que o círculo se feche, com que o meu corpo volte a aceitar a gota de saliva e se aproprie dela, alterando-se, mas continuando o mesmo. Uma curva de reapropriação que acolhe novamente a minha saliva aceitando o seu estranhamento locativo, reinserindo a sua química modificada no meu corpo.

           

           

          O movimento do meu braço, se não destinado a agarrar alguma coisa ou a cumprir um objetivo, tem como finalidade o movimento em si mesmo, a meta acaba sempre por ser a mesma, isto é, coincide com o início do movimento. A minha vontade de executar um gesto puro tem apenas um sentido: o elogio do gesto.

          Até um movimento paroxístico ditado por uma necessidade fisiológica pode incluir-se radicalmente entre as tipologias de movimentos puros, na medida em que é ditado por uma necessidade intrínseca ao corpo e, como tal, é corporal no sentido absoluto.

          Se concebermos o movimento do meu braço dançante como indivisível em termos espaciais e temporais, este estará presente mesmo quando o braço alcançar um estado de repouso, já que o seu estar “parado” é sempre, ainda assim, um movimento.

          Este movimento, considerado na sua plena execução, constitui em si mesmo uma homeostase estética, na medida em que a partir da quietude atinge, de forma curvilínea, um ápice gestual, para depois se reestabilizar. Se tal execução não constituísse uma parábola de satisfação, tal movimento não seria dançante. A satisfação estética em questão não se refere obviamente ao sujeito dançante, mas é na verdade intrínseca ao movimento.

           

          A homeostase (do grego omeo- e -stasi, “posição semelhante”) é a tendência natural à obtenção de uma estabilidade relativa, seja das propriedades físico-químicas internas, seja das comportamentais, que é comum a todos os organismos vivos, para os quais este regime dinâmico deve manter-se ao longo do tempo, mesmo que haja variação das condições externas, através de mecanismos autorreguladores específicos. Para o filósofo e neurocientista português António Damásio, a homeostase é um imperativo sem o qual não existiria vida,2 cada partícula do corpo está envolvida e toma parte neste processo, até mesmo a esfera intangível das emoções, que nada mais são do que músculo.3

          Regressando à gota de saliva, passando pelo movimento do braço e chegando à consciência de si, a homeostase é aquilo que permite, momento após momento, que a minha subjetividade se forme, é aquilo que faz de mim eu mesmo.

           

           

          A homeostase tem uma forte correlação com a topologia em termos de movimento formal. Enquanto movimento invertido, é comparável aos sistemas homeomorfos da topologia4 que voltam a ser aquilo que não eram, ou melhor, já eram aquilo em que se tornaram. Os espaços homeomorfos são espaços topológicos unidos pelo homeomorfismo, ou, por outras palavras, formas do mesmo objeto obtidas através de uma deformação sem ruturas.5 Assim, algo torna-se noutra coisa, que já o era, permanecendo o mesmo. De igual modo, mediante um processo homeomorfo, o movimento de regresso a um estado de suposto equilíbrio pressupõe a existência de alicerces de um estado identitário que, contudo, já não é completamente o mesmo de antes.

           

           

          Então, o movimento, do início ao fim, se porventura se possa identificar um início e um fim, atravessa no seu ápice um auge laudatório que equivale ao auge do processo homeostático. Se se dirige o olhar ao mais pequeno movimento, precisamente aquele do braço, num conjunto de movimentos ou numa orquestração de movimentos, como pode suceder no caso de um ato performativo, a parábola acabará por ser a mesma: suspensão, movimento, movimento de conjunto, movimento e suspensão. De um ponto de vista artístico a pergunta que se coloca é: porque escolho que algo aconteça? E: o que escolho que aconteça?

           

           

          Essa dança que se manifesta como vórtice simultaneamente evolutivo e involutivo pode acolher a possibilidade de uma escolha coreográfica. O dispositivo coreográfico entendido como sistema intrincado estável através do qual algo acontece em palco é sempre um movimento circulatório graças ao qual é dito através do corpo – também entendível como corpo de um objeto – aquilo que não pode ser dito de outro modo, e é aqui que entra em jogo o elemento rítmico – visto como a dinâmica rítmica do fluxo em palco – que, ao esgotar-se, regressa ao não-dito. Desta forma, os corpos entram na cadência do indizível para assim se calarem, já que aquilo que se quer que seja dito é o gesto; neste sentido cumpre-se o regresso identitário. Aquilo a que se assiste mediante um ato performativo é um acontecimento homeostático acima de tudo; não um acontecimento que transporta o corpo até algo de arrebatador que necessite de um regresso identitário ao estatuto de corpo, mas sim um evento que leva o corpo até ao extremo e o devolve inanimado à sua quotidianidade. Neste sentido, o sujeito dançante vive uma homeostase per se.

           

           

          Como pode a dança, apologia do movimento, não ter em conta o processo homeostático, se ela própria é homeostase por excelência? Colocar a argumentação no âmbito coreográfico significa ter em consideração o movimento de um corpo e o seu equilíbrio interno, o equilíbrio entre este corpo e o espaço, o equilíbrio entre este corpo e um outro corpo, o equilíbrio entre a mão deste corpo e o resto das partes deste corpo. A este propósito poder-se-ia considerar a introdução de um novo estado do eu que vá para além do eu nuclear e do eu alargado propostos e analisados por Damásio.6 Tratando-se de um eu performativo que experimenta um processo homeostático privilegiado, poder-se-ia falar de um eu extra que leva ao extremo o seu estado espaciotemporal.

          Um dispositivo coreográfico é, assim, uma parábola que contém em si infinitas parábolas mais pequenas e que, ao prescindir daquele que é o ponto fulcral que subjaz à conceção da peça não se pode abster da sua essência homeostática, de transmitir aquele sentido de regresso voraz ao cerne da dialética de todas as partes; este deve, por força das circunstâncias, ter o sabor do sangue, caso contrário não há dança.

           

           

          A intangibilidade do processo homeostático, a forma como o próprio sentido de reajustamento se reajusta e encontra o sentido do seu reajustamento no ato de se reajustar, continua a ser um mistério insondável. Se não houvesse homeostase nada seria aquilo que é.

          Eis, então, o momento da resposta para quem não deu um salto, para quem não teve um espasmo. A minha subjetividade existe no mundo e não é concebível fora deste, o meu corpo é um corpo de mundo.

           

           

           

          Traduzido do original em italiano por Sara Santos.

          ___________

          1 As letras entre parêntesis indicam que as várias orações se referem a um mesmo sujeito.

          2 Acerca da importância do processo homeostático segundo Damásio: The Strange Order of Things: Life, Feeling, and the Making of Cultures (Londres: Pantheon, 2018). N.T.: publicado em português: A Estranha Ordem das Coisas: A vida, Os Sentimentos e As Culturas Humanas (Lisboa: Temas e Debates, 2017).

          3 Acerca do estudo de Damásio sobre a relação entre corpo e emoções: António Damásio, The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Consciousness (San Diego: Harcourt, 1999).

          4 Para uma primeira introdução à topologia: Martin Crossley, Essential Topology (Nova Iorque: Springer, 2005).

          5 “Dois espaços topológicos X e Y dizem-se homeomorfos se existirem duas aplicações contínuas f: X → Y e g: Y → X tais que g ◦ f = IdX e f ◦ g = IdY. f e g são considerados homeomorfismos; um homeomorfismo é, portanto, uma aplicação contínua, biunívoca e com contínua inversa (biunívoca e bicontínua).” Gianluca Occhetta, Note di topologia generale (Trento: Universitá di Trento, 2010), 10.

          6 “O self é construído em passos distintos e tem seu alicerce no protosself. O primeiro passo é a geração de sentimentos primordiais, os sentimentos elementares de existência que surgem espontaneamente do protosself. O seguinte é o self central. O self central refere-se à ação – especificamente, às relações entre o organismo e os objetos. O self central manifesta-se em uma sequência de imagens que descrevem um objeto do qual o protosself está se ocupando e pelo qual o protosself, incluindo seus sentimentos primordiais, está sendo modificado. Finalmente, temos o self autobiográfico. Esse self é definido como o conhecimento biográfico relacionado ao passado e ao futuro antevisto. O protosself, com seus sentimentos primordiais, e o self central constituem o ‘eu material’. O self autobiográfico, cujas instâncias superiores englobam todos os aspectos da pessoa social de um indivíduo, constitui um ‘eu social’ e um ‘eu espiritual’. Para fins práticos, a consciência humana normal corresponde a um processo mental em que atuam todos esses níveis de self, dando a um número limitado de conteúdos mentais uma ligação momentânea com um pulso de self central.” António Damásio, E o Cérebro Criou o Homem (São Paulo: Companhia das Letras, 2011).

           

          Jan Ritsema Jonathan Burrows Dança Fraca Perguntas Fortes

          dos cadernos de Jonathan Burrows e Jan Ritsema

           

           

          No início eram Celan, Eliot e Thomas: poesia.

           

          ALGO SERÁ, mais tarde

          contigo se completa

          e se ergue

          até uma boca

           

          Da estilhaçada

          loucura

          me reergo

          e contemplo a minha mão

          vejo-a traçando

          aquele um único

          círculo

          (Celan)[1]

           

          Ele diz que eu não devia querer provar nada com o movimento, que devia só fazer perguntas, mas como é que alguém pode fazer uma pergunta movendo-se? É impossível. Cada movimento é uma afirmação, foi o que aprendi quando comecei a dançar. E ao contrário do discurso, os movimentos nunca são uma coisa diferente do que são, não fingem. Então, como é que posso duvidar de um movimento que só pode ser claro para mim?

           

          Não faças gestos, deixa o esqueleto fazer o movimento, e não conduzas o teu movimento com os olhos de um ponto para outro; aí estás a tentar salvar o teu corpo, e não há salvação. Afunda-te no corpo, vai de um momento para o outro e faz pergunta atrás de pergunta; interroga continuamente.

           

          Ele está a falar da forma como dança e quer dizer “o meu corpo” e diz “o meu dinheiro”, e depois diz “quando danço o meu corpo parece mais jovem”, e eu penso “isso é preocupante, eu queria dançar com um homem mais velho”.

           

          Ele diz que tem de esquecer mais o seu corpo treinado. Ele não tem nada para esquecer, só para experimentar. Não é possível o corpo esquecer, porque os músculos não conseguem esquecer.

           

          Eu apenas posso dizer, ali nós estivemos; mas não posso dizer onde.

           

          Não devia pensar que a vida me pode tirar coisas, coisas que tenho a obrigação de tentar segurar, só devia pensar nas possibilidades que a vida oferece. Devia saber que só há oportunidades e nada a perder.

           

          Fechado numa casca de noz eu poderia julgar-me

          rei de um espaço infinito: não fossem os sonhos maus que tenho.

          (Hamlet)[2]

           

          Ele diz que não se trata de ser destemido, mas de aceitar o medo, por isso não pratiques os princípios, não te exercites, vai em frente e pronto, hás-de falhar de qualquer maneira, deixa que o teu corpo se lembre disso, aguenta o teu corpo, não lhe podes escapar.

           

          Ele quer dançar mas fica preso numa imagem daquilo que pensa que é dançar.

           

          Ele anda às voltas por casa a fechar portas à sua passagem e depois espera abri-las quando dançar.

           

          As imagens oferecem-nos consolo para o sofrimento da vida

          E a vida oferece-nos consolo para o facto de as imagens

          Não significarem nada

          (Godard)

           

          Normalmente não me interessa o que acontece entre a partida e a chegada, alcançar o objectivo parece ser a única coisa que importa. Tenho de mudar isso. Tenho de dividir grandes distâncias em pequenas distâncias. Ir a Moscovo começa com trancar a porta do meu apartamento, apanhar o elevador, abrir a porta da rua, caminhar até à estação de comboios, e assim por diante. Isto retira o medo à grande viagem. É assim que eu tenho de dançar, de movimento em movimento, e o tempo todo a enfrentar todas as mudanças. No início apenas as maiores, e depois avançando devagar, entrando nos pormenores.

           

          Quando ele pensa em dançar, remexe-se na cadeira e começa outra vez a encolher-se, começa a ficar pequeno, como se quisesse desaparecer.

           

          Ele diz que é a sua dança sem-vergonha, mas ao mesmo tempo tem muita vergonha, diz que quer dançar e ao mesmo tempo quer desaparecer.

           

          Ele é a pessoa mais medrosa do mundo, o medo é o seu estado geral de ser, diz ele, e no momento seguinte diz que não tem medo de nada.

           

          Ele diz que não tem medo, mas se não tivesse mesmo medo não falava nisso. Diz que quando o medo o invade, ele contra-ataca

          e por isso nunca tem os pés no chão.

          Está sempre em fuga.

           

          Tudo lhe pertencia, mas o importante era ele saber qual era o seu lugar.

           

          Levanto-o, ponho-o em cima do meu ombro, aqui, atiro-o ao ar, ele até fica lá, talvez, eu vou sempre apanhá-lo, uma e outra vez.

           

          Ele pergunta a si próprio: quanto da árvore que vejo à minha frente existe em mim?

          Será que tenho raízes, que estou ligado à terra, que dou sombra, que fico com folhas novas todos os anos,
          será que as minhas folhas também morrem?

          E quanto de mim existe na árvore?

          Será que pode dançar, ser feliz, inscrever-se na segurança social, será que uma árvore pode foder, ter cancro?

          Ele diz que ao fazer-se estas perguntas sente que vive um pouco menos aprisionado dentro de si, um pouco menos do que é costume.

           

          Quando entramos em cena, e também durante a performance, não devemos negociar o espaço, nem o tempo. Entrar e querer possuir o espaço é uma negociação. É tão difícil não querer ser interessante.

           

          Ele diz que quer tornar o seu cérebro físico, de alguma forma, diz isto bastante vezes. Mas o seu espírito continua com medo, e ele começa a recitar Dylan Thomas:

          Embora enlouqueçam, serão sãos,

          Embora se afundem no mar, erguer-se-ão de novo;

          Embora os amantes se percam, o amor não.

           

          És um orangotango, diz ele, quando me observa.

          Há qualquer coisa de antropologia no que fazemos.

          Quando ele dança, a sua boca assume uma certa expressão e de repente parece um padre. Porque é que ele está a fazer aquilo?

           

          Sim, voltei a fazê-lo. Porque penso que a dança é uma coisa séria.

          Mas quando a minha boca não é um padre, o meu braço é completamente diferente.

          Quando sou um padre, mostro um problema e não estou a oferecer nada.

           

          Começámos por ler e recitar partes de poemas um ao outro. Alguns ficaram, como o T. S. Eliot (Four Quartets, “Burnt Norton”). Embora tentemos mover-nos “nem de nem para”, nunca paramos durante a performance:

          No ponto morto do mundo em rotação. Nem carne nem espírito;

          Nem de nem para; no ponto morto, aí está a dança,

          Mas nem paragem nem movimento. E não se chame a isso fixidez,

          Onde o passado e o futuro se reúnem. Nem movimento de nem para,

          Nem ascensão nem declínio. Se não fosse o ponto, o ponto morto,

          Não haveria dança, e há só a dança.[3]

           

          Será o tentarmos dançar de maneira a que cada movimento contenha a possibilidade de todas as direcções?

           

          Será o prazer de reconhecer a individualidade como produto de todas as possibilidades possíveis?

           

          Será então a celebração da individualidade como Spinoza a descreveu: “o reconhecimento de ser composto por um conjunto de uma infinidade de conjuntos infinitos de partes extensas, interiores ou exteriores, que me pertencem segundo relações características, e estas relações características expressam apenas um certo grau de poder que forma a minha essência, a minha essência de acordo comigo, por assim dizer, a essência que me é particular”?

           

          A sensação de que somos compostos pela nossa vida, na qual percebemos e experimentamos e somos percebidos e experimentados por outras partes internas e externas? E isto numa cadeia de transformações e transposições?

           

          Será então o fascínio pelo vazio sem-vergonha? Aquilo a que algumas pessoas chamavam a “coragem” de estar em palco sem estar protegido por um contexto ou significado? Sem aquilo a que chamamos estar debaixo do telhado de uma tarefa?

           

          Será o fascínio por uma coisa que é tão comum que tendemos a ignorá-la ao mesmo tempo? Uma coisa que está lá e ao mesmo tempo não está? Uma coisa que se pode afastar do pensamento facilmente, uma coisa que se pode esquecer porque vai estar sempre lá, uma coisa que se pode apagar em segurança sem o medo de consequências imprevistas, uma coisa corajosa porque sabemos tão bem, tão bem como lidar com ela de modo a que tu, como público, nunca podes falhar?

           

          Será a aparente contradição nesta fábrica-de-movimentos-que-não-produzam-produtos-específicos que a liga mais à natureza, mais a uma paisagem que cria a fruição de uma profunda ausência de propósito pela qual, mais uma vez, é corajoso viajar?

           

          Será o alívio em relação à ausência do espectacular e do entusiasmante, não só em nome da excepção mas por alguma razão intrínseca que não deve ser confrontada com os estereótipos do que impressiona?

           

          Será a ausência de música ou de qualquer som durante a performance, apenas o ruído quotidiano proveniente do exterior do teatro, que questiona a origem da execução concentrada dos movimentos em curso e, assim, a motivação por detrás de todo este movimento?

           

          Será a ausência de qualquer toque físico entre nós que desencadeia um desejo por parte do público de nos juntar na sua imaginação?

           

          Ele diz: “Se ele estivesse na resistência, na guerra, nunca teria o pacote consigo, encontraria sempre maneira de ficar em segurança, alguma saída, nunca se colocaria assim em risco.”

           

          E ele diz que hoje em dia vivemos e actuamos nos filmes uns dos outros o tempo todo. E que quer fazer uma performance que seja um processo onde seja simples participar. Ele quer ser tocável e que a performance seja tocável, o que não é a mesma coisa que tocável.

           

          Ele diz: “Não quero controlar-me mas quero que toda a gente me possa controlar (a compreensão que têm do que está a acontecer).”

           

          Uma vez entrevistei um monge, um homem muito velho a quem chamavam Irmão Harold. E foi há muito tempo, por isso posso contar esta história sem ficar com vergonha. Não, é mentira, ainda estou envergonhado, mas vou contá-la à mesma. E então, claro, no final da entrevista eu disse: “Bom, deixe-me fazer-lhe a pergunta óbvia: o que é que Deus significa para si?”, e ele disse, imediatamente e sem qualquer hesitação: “O mais [the more] no meio de.” Disse-o assim de imediato, sem qualquer hesitação e olhando-me nos olhos. Não houve necessidade de parar para pensar, havia uma vida inteira de pensamento por trás da sua resposta, e o que eu percebi foi que o mais era agora, aqui, o presente,  o ser, que é rodeado pelo que veio antes, o que eu queria fazer, o que eu pensei que devia fazer, e o futuro, o que quero fazer a seguir. Quando contei a história, ele pensou que eu tinha dito “o movimento [the move] no meio de”, e de alguma forma isso continua a ser-lhe útil.

           

          Que idade tenho quando danço?

           

          Existe um “eu” na performance? Que outras partes de mim posso aceitar? Quem é que quero ser?

           

          Qual é a sensação da roupa? Dos sapatos?

           

          Como é que eu me mexeria se me atrevesse? Como é que me mexo quando não questiono a forma como me estou a mexer?

           

          Será que dançar às vezes é humilhante?

           

          O que significa despir o acto de performar?

           

          O que é que preciso de confirmar sobre mim próprio, expondo-me desta maneira?

           

          Como é que posso fazer alguma coisa quando duvido?

           

          O que é que eu faço quando me sinto confuso?

           

          Quando me sinto confuso em relação aos limites corro para os extremos, então será que devo correr ou devo aguentar o meio-termo?

           

          Isto é uma viagem pessoal?

           

          Se o processo for partilhado, então o que é que convido as pessoas a partilhar?

           

          Em que medida é que a performance é diferente da minha própria vida? Em que medida é semelhante? Uma vez que não estou preparado para ser menos do que perfeito, devo aceitar a busca da perfeição?

           

          Qual é a imagem recorrente de movimento “aberto”?

           

          Será mais eloquente não falar?

           

          O que significa “demasiado significativo”?

          Porquê alterar a linguagem e esperar compreensão?

           

          Como é que eu foco o palco?

           

          O que significa despir o espaço de performance?

           

          Será que estou a fazer perguntas que já foram feitas?

           

          Será que devo saber o que estou a fazer?

           

          Como é que devo tomar notas?

           

          Será que posso aceitar as contradições?

           

          Posso simplificar tudo isto?

           

          __________

          Texto inicialmente publicado sob o título “Weak Dance Strong Questions” no volume 8 da revista Performance Research, editada pela Routledge Journals, em 2003. Traduzido do original em inglês por Joana Frazão.

          [1] Tradução de Flávio R. Kothe, Hermetismo e Hermenêutica, Paul Celan — Poemas II. (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985).

          [2] Tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto: Lello Editores, 1987).

          [3] Tradução de Gualter Cunha. (Lisboa: Relógio d’Água, 2004).

          Renan Marcondes Da Importância de Falar Mal

          A tecnologia da arte, ao contrário, não é uma tecnologia de melhoria e substituição, mas de conservação e restauração uma tecnologia que traz os vestígios do passado para o presente e que leva coisas do presente para o futuro.[1]

          Boris Groys

           

           

          O que é falar mal e por que isso importa no campo das artes? Antes de tudo, é preciso silenciar após a palavra “mal” e assumir um ponto final, ou no máximo arriscar uma interrogação ou exclamação. Falar mal. Falar mal! Falar mal? Não há aqui espaço para reticências e muito menos para o adjunto “de”: falar mal de alguém, falar mal de coisas. “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim”, diz a expressão popular transformada em música por Chorão em 2005 e novamente por MC Melody dez anos depois em seu hit de YouTube.

          Não quero pensar sobre esse falar mal de algo. Isso as redes sociais já nos obrigam a fazer o tempo todo. É rápido, certeiro como um tiro e, se não mata de fato, pode deixar a pessoa desaparecida desse segundo mundo por dias e meses. Falar mal “de”, hoje, pode ser letal. Não. Quero pensar apenas sobre falar mal: não falar direito, não argumentar bem, não se posicionar corretamente, não convencer ninguém, não estar do lado certo, não ter uma frase de efeito e altamente circulável. Quero pensar sobre isso porque sinto esse ato tão raro quanto urgente nos dias de hoje.

          Pego-me pensando sobre isso porque, no dia 15 de setembro de 2021, a 34ª Bienal de São Paulo, então em curso, publicou no Instagram uma foto da performance de Eleonora Fabião (Rio de Janeiro, 1968) comissionada para a mostra. nós aqui, entre o céu e a terra é um programa performativo feito pela artista e por colaboradores no qual 27 cadeiras (mesmo número de estados do Brasil mais o Distrito Federal)[2] de diversas instituições públicas do entorno do Parque Ibirapuera são carregadas com varas de bambu pela cidade até o prédio da Bienal, formando uma espécie de fórum sem corpos, unindo simbolicamente essas diversas instituições no pavilhão. Após a Bienal, as cadeiras são trocadas pela artista: uma escola pode receber uma cadeira de um hospital, assim como um museu pode abrigar uma cadeira de biblioteca municipal.

          Sob a foto divulgada nas redes sociais, na qual quatro pessoas carregam uma cadeira pela cidade, a clássica enxurrada de ressentimento. Para além do clássico “isso não é arte”, alguns comentários falavam que o problema da performance era que ela “precisava de legenda”, que não fazia “nenhum sentido”; outras pessoas perguntavam, nos comentários, se “alguém explica”. Todas as críticas ou considerações, mais ou menos violentas, pareciam apontar para esse problema: acham que a obra não fala nada para eles. Ou, se fala, fala mal (se falasse mal de algo, tudo bem, sem problemas). Mas a obra parece não falar bem ou direito.

          Para pensar um pouco mais sobre isso, interessa-me um desses comentários, segundo o qual na arte de hoje “tudo o que aparece são narradores narrando suas novas ideologias patéticas”. Talvez essa pessoa fale sobre a relação entre obra e descrição ou legenda, tão central desde a arte conceitual dos anos 1970.[3] A questão é que a performance em discussão é justamente uma obra fora do campo da ideologia (seja ela patética ou não). A ideologia só pode ser reconhecida nas obras que falam bem, transmitindo mensagens — e não há distinção de valor aqui, pois mesmo obras poderosas como as de Alfredo Jaar são bastante ideológicas.[4] A obra que não precisa de legenda, que faz sentido, cuja mensagem é clara, é a obra ideológica por excelência.

          O filósofo Boris Groys apresenta bem essa distinção. Para o autor, há duas leituras possíveis do papel da arte em relação ao público.[5] De um lado, temos a arte como parte da superestrutura e, do outro, como parte da base material. A primeira, que parece embasar esses comentários de Instagram, acredita que a arte mudaria o mundo capturando a imaginação e mudando a consciência das pessoas. Nessa leitura, a arte precisaria ser um tipo de comunicação para poder transmitir uma mensagem com sucesso para quem a vê. Ou seja, não é a arte que muda o mundo, mas é a mensagem passada com sucesso que permitirá que a pessoa que a viu mude o mundo, reveja sua ética, seus posicionamentos. Para isso, artista e público devem falar a mesma língua, formando uma comunidade dos que falam igual.

          O problema é que esse viés idealista tira da arte qualquer possibilidade de radicalização, projeção ou inovação do campo. Se ela precisa comunicar, se deve falar bem, ela está no campo do reconhecível, da convenção. Apesar de, historicamente, podermos notar bons usos de estratégias de reconhecimento como ferramenta crítica no campo da arte contemporânea (inclusive com a arte conceitual tendo abusado dessa estratégia), parece-me conservador buscar apenas produzir reconhecimento para quem vê em relação ao que é visto. Conservadorismo que se agrava em um tempo como o nosso, no qual somos direcionados a ver e ouvir apenas a parcela do mundo que mais se parece conosco.

          No lugar desse idealismo citado pelo autor, outro caminho seria a transformação direta no mundo material — à qual sou muito mais afeito, justamente por produzir e pesquisar em performance. Aqui, a arte deixa de ser entendida como “produção de mensagens” e se torna “produção de coisas”, mudando diretamente o mundo no qual as pessoas vivem (mudança desvinculada de mensagem, ou seja, não melhorista). A transformação, portanto, não viria da mensagem, mas sim da própria reconfiguração do ambiente no qual as pessoas se encontram. Groys cita casos vanguardistas como a Bauhaus para explicar que eles “compartilhavam um mundo com seu público — mas não uma linguagem”.[6] Porém, creio que a frase se aplica muito bem ao que vemos na performance de Fabião. O que se partilha nesse trabalho é da ordem da concretude do deslocamento, da remoção e do reposicionamento de coisas: cadeiras, que acomodam o corpo para pensar, dormir, comer, descansar. Elas, cadeiras públicas, carregadas sem rei ou rainha sobre elas, vazias, sendo resguardadas por um tempo-espaço no campo da arte para depois serem devolvidas, mas em outros lugares. Tudo muda, mesmo que na aparência tudo permaneça igual. Em vez de tentar mudar a alma, mudar o mundo naquilo que ele tem de mais banal.

          Nesse caso, poderoso justamente por desconfiar da ideia de que a arte (e, portanto, também os artistas) teria alguma mensagem para passar, a mudança de sensibilidade das pessoas deixa de ser parte de um projeto oriundo de um indivíduo ou grupo excepcional que vê além e passa a ser algo da ordem do descontrole e do imprevisto: pode gerar uma feliz utopia, pode perder o rumo completamente (alô, 2013?)[7] e pode dar em lugar nenhum. Não há o direcionamento da palavra de ordem ou da palestra. Ou, como Fabião afirma sobre essa obra: “O que de fato acontecerá dependerá das circunstâncias. Ou melhor, se fará por meio delas, pois as circunstâncias são matéria fundamental da ação.”[8]

          Afinal, a performance e a fala são amigas próximas. Não há uma sem a outra. Na Teoria dos Atos de Fala, proposta por John Austin[9], o verbo performativo só o é porque, mais do que transmitir uma mensagem, efetiva uma mudança concreta no mundo. Para quem estuda o tema, alguns exemplos clássicos são o padre que “declara” como marido e mulher um casal heterossexual, ou o prefeito que “nomeia” um barco antes que este parta. Eles mostram não apenas essa proximidade entre falar e fazer, mas também indicam que essa fala está necessariamente vinculada à Lei. E se toda fala está do lado da Lei, como também afirma Barthes em O rumor da língua,[10] a clareza da mensagem é apenas uma ferramenta a seu serviço.

          Portanto, falar mal é um dos campos possíveis da performance, principalmente dessa veia recente chamada arte da performance. Essa linguagem artística, surgida nos anos 1960 e focada no corpo, partilha com o ato de fala performativo esse desejo e compromisso de mudar o mundo diretamente, fugindo do campo da representação (no qual residem a explicação e a legenda), mas também se distancia do performativo ao desconfiar da sua força de Lei (onde residem a fala clara e o sentido). Aproximar-se de produções como a de Fabião nos ajuda a perceber que, se o ato de fala é central para produzir mundos e se a clareza da fala é espaço da Lei, para que se produza um mundo completamente outro é preciso falar mal segundo os parâmetros do mundo de antes. Deixemos as mensagens para os apresentadores de TV e não duvidemos do poder sensível da desordem e do silêncio porque, se a arte tem algum poder que lhe é específico, é o de falar mal.

          Ah, e para os que escreveram os comentários citados, basta lembrar da frase de Antoni Muntadas impressa clara e grande como um banner: “Atenção: percepção requer envolvimento.”[11]

          _________

          [1] Groys, Boris. “The truth of art”. E-flux Journal n° 71, março de 2016. Tradução livre.

          [2] O Distrito Federal, uma das 27 regiões administrativas que compõem o Brasil, é o menor ente administrativo do país e serve de abrigo para a capital federal, Brasília. Ao contrário dos Estados brasileiros, não pode ser dividido em municípios, além de possuir mudanças em relação à sua legislação.

          [3] Ver o texto seminal de Kosuth, Joseph. “A arte depois da filosofia”. Em: Ferreira, Glória e Cotrim, Cecilia (orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975, pp. 210-234.

          [4] Refiro-me especificamente a um recorte mais recente da produção do artista chileno, também exposto na 34ª Bienal. Nessas obras, são recorrentes frases impressas em pôsteres ou exibidas em neon (como “outras pessoas pensam”) que sugerem posturas morais dos observadores em relação ao seu entorno.

          [5] Ver Groys, Boris. “The truth of art”. Em: E-flux Journal n° 71, março de 2016.

          [6] Op. cit., p. 3 (tradução nossa).

          [7] Os parênteses ecoam as manifestações ocorridas em todo o Brasil no ano de 2013, atualmente chamadas de Jornadas de Junho e iniciadas pelo Movimento Passe Livre por conta do aumento da tarifa do transporte público. O potencial revolucionário dessas manifestações acabou reavivando uma onda reacionária no país, culminando no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e na eleição do atual presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro.

          [8] Em: 34ª Bienal de São Paulo: Faz escuro mas eu canto (catálogo). São Paulo: Bienal de São Paulo, 2021, p. 192.

          [9] Austin, John Langshaw. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press, 1975.

          [10] Barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

          [11] Refiro-me aqui à intervenção de Muntadas “Atenção: percepção requer envolvimento”, parte do projeto em curso On translation. Nessa obra, o artista instala em diversos contextos essa frase impressa em branco sobre um fundo vermelho.

          Isabel Cordovil Fim

           

          Tenho-me lembrado muitas vezes de um livro do historiador de arte holandês Carel Blotkamp no qual se explora o conceito de “obra de arte final”[1] literalmente: o último trabalho de um artista antes de parar de produzir (causa mais comum: a morte). Blotkamp traça uma ligação entre a percepção de um trabalho realizado no fim da vida e a expectativa/fenómeno das últimas palavras, apócrifas ou não, e como às vezes estas pretendem ser um resumo da sua visão da vida, da arte ou de ambas, e como algumas se tornaram quase proverbiais e as suas origens se confundem entre mito e mito-ficção (exemplo: Até tu, Brutus?[2]). Não deixa de ser romântica a ideia de que o fim desvenda algo, como acontece em Citizen Kane com o famoso sussurro da palavra rosebud. Cruzei-me com este livro em pesquisas para a minha tese de mestrado, a que chamei Performing Absence (A Performance da Ausência) enquanto vivia aos pés dos Alpes. Estava muito interessada em personagens cujo desaparecimento (momentâneo ou permanente) foi ferramenta para a criação de uma mitologia do próprio: em Jesus Cristo (ascendido aos céus) interessava-me a condição de que se o corpo fosse descoberto não poderia ter havido uma milagrosa ascensão; em Bas Jan Ader, que em 1975 desapareceu no mar enquanto concluía o projecto In Search of the Miraculous – uma travessia transatlântica a solo num pequeno veleiro de recreio –, era a questão de se haveria ou não intenção no que poderia ser um gesto assumidamente performativo ou uma experiência estética; em D. Sebastião era a cenografia de um trono suspenso e o nevoeiro que o invocava; em Osama bin Laden, e nos seus quase dez anos como “o homem mais procurado pelo mundo ocidental”, era toda a loucura em volta de o encontrar com vida para ter o poder de a retirar;…

          Em todos estes casos pensei nesse desaparecimento como uma acção final – que ousei ver como arte –, o próprio desaparecimento ser tão parte da narrativa de uma vida – que ousei ver como arte também – como qualquer outro gesto ou movimento anterior. Andei muito tempo a pensar no que é que eu faria como o meu trabalho final se fosse olhar para a minha vida e o meu trabalho como um linha narrativa pré-desenhada, lembrando-me da série de normas e engenhos narrativos que Edgar Allan Poe escreve no seu ensaio A Filosofia da Composição[3], por exemplo, que se deve calcular o rumo de uma narrativa em direcção à sua última linha e tom final com que impactará o leitor/espectador.

          Numa tarde de Outono do ano passado, enquanto arrumava o atelier (o rochedo de Prometeu que me calhou) e me perguntava sobre o que é que um ser alienígena ou um meu sobrinho-tetraneto pensaria ao encontrar os meus objectos – mais especificamente as pedras que tenho guardadas a conviver no chão de onde trabalho –, cheguei a uma evidência sobre a minha prática artística: assumindo que a própria vida é performativa – desde o carregar das funções do corpo para cá e para lá até à manutenção das relações, dos ciclos, dos dias –, o meu corpo de trabalho pode ser visto como uma documentação expansiva desse algo de longa duração. Pensando assim, se o meu trabalho é a documentação desse movimento que é estar vivo e se esse movimento à semelhança de tantos outros se baseia na repetição, talvez pudesse abandonar a preocupação com o que é a estrutura narrativa do meu trabalho, que apenas pretende explorar detalhadamente a arena-palco a que se restringe: o tempo que cá tenho. E neste tempo até agora tenho tentado documentar, com uma relação passional com a exactitude e com a disciplina de alguém encarcerado que risca os dias na parede: quanto pesava o meu corpo no dia em que H. morreu? Quanto tempo demora um cubo de gelo a derreter na minha mão? Quantas epifanias, semimilagres, quebras de coração tremendas ou raptos de esperança súbitos conseguem caber num só dia? Quantas vezes atravessou o amor o meu espaço, a minha cama, o meu corpo? E talvez neste mar de dados inúteis se encontre um corpo e um tempo que se relacionaram profundamente um com o outro até se esgotarem.

          ERRATA (para um futuro): onde se lê que morri deve acrescentar-se que, antes disso, vivi três dias no estômago de uma baleia, como Jonas, mas nunca cedi às chantagens de nenhum deus; que a minha casa tinha trezentos e sessenta e cinco quartos; que as minhas últimas palavras foram, muito calmamente, com os braços muito abertos e um único foco de luz a atravessar-me como o meio-dia: cinco, quatro, três, dois, um.

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          [1] Carel Blotkamp, The End: Artists’ Late and Last Works (Londres: Reaktion Books, 2019).

          [2] William Shakespeare, Júlio César (Lisboa: Cotovia, 2018).

          [3] Edgar Allan Poe, A Filosofia da Composição (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2011).

          João dos Santos Martins Rotundamente

          Num dos últimos textos que publicou, “Desmoronando juntos uma e outra vez”, em Abril de 2020, o artista holandês Jan Ritsema criticava o calabouço de comentários sobre o devir da sociedade no pós-pandemia e defendia que só melhores ferramentas poderiam contribuir para um mundo melhor. Dava como exemplo a rotunda, uma tecnologia que exige uma aprendizagem e negociação colectivas para funcionar. Ao invés de semáforos, que endereçam uma ordem a cumprir, a rotunda obriga a cooperar num espaço com muito poucas regras: “Não porque foi oferecida mais liberdade de operação, mas sim um instrumento, uma ferramenta inteligente, fácil de operar por todos juntos.” A grande vantagem é além de tudo não haver “necessidade de policiamento”. Nesse texto deixava em aberto se realmente “conseguimos imaginar, desenhar estruturas e construir mais ferramentas como esta”.

          Jan Ritsema deixou-nos em Outubro de 2021 e não partiu sem deixar uma “ferramenta”: o Performing Arts Forum (PAF). À primeira vista, o PAF parecia uma residência artística convencional. Excepto que em vez de ser um espaço gratuito que atribui bolsas em regime exclusivo para se trabalhar, tinha de se pagar para trabalhar. Era um valor mínimo mas, ainda assim, eu achava que fazer arte deveria ser, pelo menos, custo zero. Entendi depois que o PAF era uma espécie de cooperativa financiada pelos próprios residentes que contribuíam para manterem o espaço em funcionamento e usufruírem dele. Havia uma razão para isso. Não era por não conseguirem financiamento. Este modelo permitia não apenas a sustentabilidade a uma estrutura autogerida, mas também garantia uma autonomia artística e independência burocrática (livre de políticas culturais e de mecenas dúbios). É certo que esta dinâmica resulta de um privilégio. Aliás, o espaço existe porque foi adquirido por Jan Ritsema com os seus próprios meios. Mas, contrariamente a outros, o PAF tornou-se lugar para uma organização colectiva, sem funcionários e, portanto, totalmente dependente dos seus residentes, mais ou menos regulares. No seu site, pode ler-se que o PAF é um lugar para pessoas que “podem monitorizar a sua própria produção artística e de conhecimento não respondendo apenas às oportunidades oferecidas pelo mercado institucional”. Nesse espírito, os residentes não são escolhidos, mas podem reservar a sua estadia até ao limite da lotação. De quando em vez, o PAF organiza encontros que combinam uma fértil interação entre a cena experimental das artes performativas e da teoria, combinando pensamento e performance radicais, no seio de uma organização imperceptivelmente radical. Da personalidade de Ritsema, agente cúmplice da experimentação que criou condições para esta colectividade emergir, recordo um inconformismo generalizado com a linearidade e o consenso, levando cada situação ao seu limite, muitas vezes, indiferente ao politicamente correcto, exercendo uma liberdade intelectual insuportável a muitos. Lembro-me que quando programei o curso PACAP #4, no Forum Dança, em 2019, Ritsema escreveu-me a dizer que deveria ter atenção com o prevalecimento de estruturas hierárquicas e piramidais no ensino. Não se referiu a nada em particular mas deixou as suas palavras à consideração.

          Enquanto escrevo isto não consigo deixar de pensar que, ao fecho desta edição, a artista e programadora Patrícia Portela foi afastada do cargo de directora artística do Teatro Viriato pela associação cultural que o gere, após menos de dois anos na função, e durante o período de proliferação da Covid-19. Sendo as razões do afastamento desconhecidas publicamente, e havendo recusas de esclarecimento à própria imprensa, resta comentar que a falta de transparência neste procedimento é altamente danosa para a comunidade e para a confiança nas instituições culturais. Desde há muito envolto em disputas de poder, seja internas, seja pela própria Câmara Municipal, proprietária do edifício e sua principal financiadora, a situação do Teatro Viriato parece espelhar um sintoma preocupante na ocupação de cargos de decisão cultural um pouco por todo o país: uma dinâmica pontuada entre tronos e reinados, por um lado, lugares indisputáveis e totalmente alienados do espírito democrático, e, por outro, uma dança de cadeiras onde o mínimo mal-estar resulta num despejo, numa confusão e num desrespeito encobertos por obscurantismo. Entre nomeações directas, concursos enviesados, conflitos de interesse e alternâncias de pendor político, parece que a cultura e as artes reificam dinâmicas adversas ao espírito livre, aberto e colectivo em que escolhemos existir. Melhores tecnologias como a rotunda poderiam ajudar a fortalecer esse espírito e a renovar o modo de funcionamento das organizações culturais, privilegiando e cultivando a negociação do dissenso, da diferença e do desacordo.

      • 5

          João dos Santos Martins Editorial

          Em resposta a um pedido para aprender e apresentar um excerto de uma peça sua, Raimund Hoghe lamentou dizendo: “É muito íntimo (…) e está ligado aos nossos corpos e distintas experiências de vida. Portanto não há como dar a minha coreografia ou partes dela a outras pessoas.” As artes performativas são exímias a garantir a sua irrepetibilidade. Estão conectadas aos sujeitos, físicos e psíquicos, o que põe em causa a sua transmissibilidade. O que acontece quando artistas que carregam o trabalho no seu corpo deixam o espaço material? Há corpos únicos que só esses podem realizar uma ação? Quando artistas entram no espaço sideral, parte da sua obra sume inevitavelmente consigo. Criam-se mitos. Outra parte é incumbida aos seus herdeiros que terão várias formas de interpretar ou de radicalizar o testamento. Outra parte é responsabilidade das instituições que presumem a preservação. E a parte que resta pertence ao colectivo — àqueles que durante anos e anos, não conseguiram mais discernir o que são e o que fazem das experiências sensíveis que perduram nos seus corpos. Esta missão, por vezes invisível e não comunicada, é fundamental para uma comunidade que se cuida além de abraços e que não se deixa equivocar com a virtude do novo. Resta continuar a transportar pedaços da memória para o futuro, reconhecendo a distância crítica que é necessário ativar para se ancorar no presente.

          João dos Santos Martins

          Gaya Medeiros Carta para Uma Enguia

          Olá!

          Eu espero sinceramente que você consiga se aconchegar nestas palavras ordenadas.

          Hoje eu sou a Gaya, mas já fui tanta coisa…

          E para nossa desilusão, uma das coisas que não sou é escritora. Seja por falta de talento ou por falsa modéstia, me vejo como uma performer, e a palavra me parece coisa boa de performar. Assim como não consigo mais conceber performances só baseadas na expressão do corpo, necessito da palavra, é uma tarefa difícil para mim saber que você está lendo isso sem a minha voz. Me sinto muito nua, me sinto sem controle.

          Hoje, mais um dia de descobertas na vida da trans, me apercebi que sou lida diariamente. Lida sem controle. Lida “à queima-roupa”. Na rua, no metrô, no palco, nos lençóis… E essa percepção só se deu por contraste: nos meus dias de menininho costumava ser mais fácil ficar invisível. Eu era um panfleto oferecido na rua, daqueles impressos em preto e branco, que só aceitamos por dó do distribuidor que pinga impaciência debaixo do sol quente. Agora me sinto um calendário erótico como os que ocupam as paredes insalubres das tocas dos mecânicos, objetos que, mesmo inertes, parecem sempre nos provocar uma reação. E, para dar uma apimentada nessa aflita constatação, me vejo negociando com as palavras dos dicionários dos outros. Eu, atrás da minha máscara, vendo as pessoas me lerem com seus vocábulos tortuosos. Nos dias bons, quando a gata está mais corajosa, mostro que também sou leitora. Rujo por detrás da minha máscara, capricho no eyeliner e demonstro minhas habilidades de mergulhadora. Pumba! Pulo dentro do olhar alheio. 

          Aí estamos nós, no mesmo patamar… em um mar de ninguém, como o Mar de Sargaços, um dos únicos mares localizado entre correntes de água, sem um só pedaço de terra à sua volta. Não há boias, bebê! Esse é para mim o lugar do encontro. Um mar profundo, rodeado por correntes, onde curiosamente as enguias nascem, para onde elas misteriosamente voltam para se reproduzir e, finalmente, morrer.

          Entre panfletos, mares e enguias, desejei ser lida também pela minha enguia-mor: 

          a Senhora Minha Mãe. 

          A Senhora Minha Mãe não conheceu a Senhora Gaya. Essa enguia-mãe retornou ao Mar de Sargaços, onde deu origem a três larvinhas e partiu para aquele lugar “entre a memória e o esquecimento”. Enguia forte, com mandíbula larga e pele rija. Você sabia que quando a enguia decide se reproduzir ela digere o próprio estômago? Minha mãe digeriu seu apetite pela vida quando descobriu que seu corpo havia decretado estado de calamidade. Justo. 

          (Aqui insere-se um parágrafo inteiro que descreve as sensações de uma criança sentada no chão ao pé de um sofá. Nesse móvel encontra-se uma mulher imóvel com os olhos cerrados e aparente esforço para cerrá-los ainda mais. Suas mãos estão enfiadas entre as pernas. Ouvem-se gemidinhos quase imperceptíveis. A criança se achata na tomada de consciência de que a impotência é palavra que não está estampada só nos maços de cigarro de seu pai. Impotência é o ralo da alma, é quando só nos resta o choro por não conseguirmos dar vazão à raiva.)

          Escrever uma carta que nunca será lida pelo seu destinatário é uma pequena rebeldia doce. Dura mais que uma lágrima. É um grito num campo vasto. É uma garrafa jogada ao mar. Dia 29 de maio, dia do aniversário da enguia, joguei uma carta ao mar na esperança de que ela chegasse a Sargaços:

          Oi Lindona! 

          Quem é que faz anos hoje? Já notou o sotaque, né? Pois rsrsr estou em Lisboa. Tô aqui tentando criar uma cena para um espetáculo, o meu primeiro espetáculo como Gaya. E ainda tem isso, sou a Gaya agora. Nada contra o outro nome que você me deu… bom, ele era levemente sem sal, um bocado comum e que quando eu o dizia as pessoas entendiam “Douglas” kkk Sim, ele até tinha um significado bonito… ok… mas o outro, o segundo nome, eu não absorvi ele muito bem, nunca assimilei a doença que ele propunha antes da tal cura: Raphael — curado por deus. Você é quem deveria ter se chamado Rapha-ela. É isso: Vale o que vale, né? 

          Olha, outro dia chorei MUITO assistindo uma série e lembrando de você. Não lembrando de você exatamente, mas revisitando a nossa não-despedida. Entretanto, me contento a pensar que talvez seja um privilégio essa possibilidade de se despedir de alguém. 

          Dizer as últimas palavras…

          Ouvir as últimas palavras. 

          Dizer alguma coisa pela vez mais última. 

          Very last time.

          Nessa vibe de “artistona” fico me valendo do privilégio de dizer-te coisas pela última vez… Porém, é tudo tão mentira que me vejo num looping perseguindo o impossível dessa despedida, como se impossível não fosse. “La maison de ma maison a brûlé” quer dizer “a casa da minha casa queimou”, em francês. Queria que você me ouvisse dizendo essa frase com meu francês bastante tropical.

          Mãe, eu tenho inveja das cantoras de blues que gemem sua dor de forma tão bonita.

          Hoje eu fui pesada no Tinder. Um cara me disse:

          — Ô moça bonita!

          Não, ele não disse isso. 

          Ele disse: 

          — Queres mamar hoje?

          Eu não me lembro de mamar em você, mas vi você amamentar meu irmão.

          Também tenho inveja dos irmãos mais novos que mamam pela very last time.

          Eles estão no colo pela very last time…

          E ele me disse: 

          — Queres na boca ou na carinha?

          — Tás parvo ou o quê? – ela responde. ( Ela é uma garota from Lisboa!)

          Mãe, o amor ficou um bocadinho mais raro, mais distante, mais dispensável.

          E tenho me acostumado (afinal tem sempre outra pessoa no colo) e isso é uma coisa triste. Curiosamente, o afeto é o que tem me surpreendido. Quando alguém me trata com “Bom dia, senhora” eu fico quase assustada! 

          Eu cheguei a esse ponto.

          Eu fico à espera do tapa, 

                                à espera do não, 

                                            à espera do pedido de sigilo, 

                                                      à espera da despedida.

          Eu cheguei a esse ponto. 

          Eu, deitada numa cama, completamente nua, vendo um homem se vestindo.

          É impossível não ficar à espera do ponto…

          Desde que você se foi, eu brinco de ser a gaja para quem o feirante grita:

          Ô moça bonita! Ô moça bonita…

          Mãe, eu fico à espera do ponto.

          Do ponto final.

          Fico à espera de que alguém me acorde 

          no ponto final 

          e diga:

          já chegou, pode descer. 

           

          Para ouvir esta carta dita por mim:

          https://cartaparaumaenguia.coreia.pt

          Leticia Skrycky Carta a Anaísa para Nunca Ser Enviada

          sáb., 24 abr., 9:31

          Hola, Anaísa:

          ¿Cómo estás?

          Qué bueno saber de vos y comenzar a trabajar contigo. Me gustó mucho conocerte durante el montaje de nuestra pieza con João y Carolina y, desde entonces, quedé curiosa. Alguna vez tuve ganas de hacerte preguntas sobre cómo trabajás, qué pensamientos tenés en relación a la dirección técnica, a ser mujer, a recibir a otras diseñadoras. En fin, un día de estos quizás me anime y te invite a tomar un café.

          Cuestión es que me sorprendió que tu mail estuviera dirigido a mí, siendo una propuesta colectiva. ¿Será que me identificás como responsable por la iluminación de esta futura ocupación? Tiene sentido, si no tenés más información sobre cómo estamos intentando trabajar. Probablemente me sorprendió por su cuota de realidad: un llamado a cómo son las lógicas laborales y a que a veces, en mi entusiasmo de creer que estoy logrando encontrar otras, me olvido dónde, cómo y con quiénes.

          Sobre todo lo que me decís relativo a plazos y lo dicho en reuniones, la verdad que no tengo ni idea. Quizás hay un histórico que desconozco, quizás me perdí en la traducción y me quedé durmiendo en mi colchoncito de portunhol.

          Es que para serte sincera, Anaísa, no sé cómo va funcionar todo esto, básicamente porque aun no entiendo bien de qué va. Lo bueno es que no me importa mucho, porque si se trata de un encuentro pues desde allí surgirá la situación en sí misma y lo que las relaciones puedan alimentar.

          No conozco a casi nadie de quienes van a participar. Ya hemos compartido tiempo de trabajo con Sara y ella me da inmensa curiosidad, me gusta conversar y pensar con ella. Probablemente me gusta cómo yo misma pienso en diálogo con ella. Luego están Filipe y João, compañeros también de este subgrupo inmersivo, a quienes casi no conozco, por lo que todo será descubrimiento. Está Claraluz, que me cae muy bien, y del resto poco sé. En definitiva, ya el encuentro dirá.

          No te imaginás, Anaísa, lo mucho que me aburrió pensar en tener que hacer una planta seudogenérica para darle gracia lumínica a estas tres semanas. ¿En base a qué?, ¿con qué pregunta? Y tampoco te imaginás el entusiasmo que me invadió cuando creímos encontrar una lógica relacional que la activara: una planta indeterminista que les dejara el campo abierto a ustedes para hacer prácticamente lo que quisieran.

          Me pasé varias horas, debo admitir, imaginando todos los posibles: llegar y que solo hubieran colgado una luminaria en el centro del espacio, que hubieran colgado todo el rider de la sala en una única vara, que hubieran armado una planta de luces perfecta pero iluminando el techo, que hubieran utilizado recortes pero con todas las cuchillas cerradas, o robóticas que no paran de moverse pero no emiten ninguna luz, o —casi la mejor de todas las opciones— llegar y que no hubieran colgado nada.

          Un entusiasmo enorme tener que descifrar cuáles gestos y deseos esconde su montaje, que claramente se desinfló con tu mail. Lo que me divierte no tiene por qué interesarles a ustedes, claro. Entonces me quedé pensando en qué responderte, Anaísa, y qué proponerles a mis colegas. Gracias por la posibilidad que sugerís de llamar a alguien externo, pero ya no es suficiente para animarme. El aburrimiento volvió a invadir: el fantasma de una planta de luces genérica acechando desde nuestro futuro cercano.

          Pero hoy me desperté y empecé a hacerme amiga de una de las consecuencias que tu respuesta también contiene, la de llegar al espacio y no tener nada. Posibilidad enorme que comienza a darme ánimo conforme van pasando las horas.

          En este momento estoy viajando de Porto a Lisboa, feliz de viajar en tren porque en Uruguay ya no hay ni llegué a conocer a los que alguna vez hubo. ¡Qué transporte noble el tren! Parece querer suavizar el pensamiento.

          Cuestión que ayer íbamos a filmar una pieza para el Festival DDD, «Cabraquimera» de Catarina Miranda, pero minutos antes de comenzar el corrido un performer se lesionó. Suspendido nuestro estreno digital, hicimos un ensayo general solamente con les tres performers restantes, haciendo un ejercicio de imaginar lo que estaría haciendo Lewis, el compañero lastimado, en el minuto a minuto del ensayo. La ausencia de Lewis nos hacía evocarlo y completarlo.

          Pienso que no tener un set-up de luces para Curadura será algo parecido. Nos permitirá pensar todo lo que podría haber sido o todo lo que podría ser: infinitos virtuales esperando a ser activados, una verdadera iluminación de ficción o ciencia ficción, que solo existirá en el virtual de nuestra imaginación. El ánimo avanza, Anaísa. ¡Imaginate todo lo que una situación como esta puede despertar!

          Quizás usemos su luz de trabajo durante las tres semanas y esa luz nos haga recordar que estamos trabajando, y la incomodidad visual nos lleve a diseñar la mejor luz de trabajo. O imaginá si esa situación termina por activarnos un pensamiento proletario, si se arma una lucha de clases solamente por haber tenido que sufrir las penurias de una luz de trabajo.

          O quizás nos vemos obligades a trabajar a oscuras y pasamos a tener una investigación puramente táctil.

          O quizás, no pudiendo usar velas por obvias razones, tenemos que iluminar nuestra zona de trabajo con los teléfonos móviles. Las baterías se van a empezar a acabar pronto, necesitaremos conectar los teléfonos, y como no habrá suficientes tomas, utilizaremos los circuitos de las varas: el grid a altura media, lleno de teléfonos colgando, regalando pequeñas luces pendulares.

          O quizás hacemos una asamblea para planear cómo hacer un agujero en el techo para dejar entrar la luz del sol.

          O quizás resolvemos salir afuera, al barrio, y usar el teatro solo para guardar nuestras mochilas, preparar café y protegernos de la lluvia, y así terminamos por conocer a algún vecino albañil que nos ayuda a hacer el agujero en el techo del teatro.

          O quizás estar en la oscuridad nos da sueño y dormimos siestas infinitas, usando los estrados como camas duras, que dicen que es bueno para la espalda, y terminamos por recuperarnos de los dolores que los otros trabajos y las infinitas horas en la computadora han provocado.

          O quizás se nos dé por revisar los archivos de todas las plantas de iluminación que fueron montadas en esa sala y descubrimos que hay un lugar donde siempre una luminaria fue colgada, un punto donde todes les iluminadores coinciden: un atractor extraño que se revela como el Aleph lumínico de ese espacio. ¡Qué descubrimiento increíble sería ese! 

          Imaginate, Anaísa, ¡todo lo que puede pasar!

          De todas las opciones posibles, tu respuesta también contiene la más prometedora de todas.

          Abraço,

          Chichi

          sáb., 24 abr., 12:26

          para João, Sara y Filipe

          Hola, querides!

          Hoy me desperté pensando en nuestro futuro cercano y en alguna respuesta inevitable que demanda la coordinación técnica de «Curadura».

          Aún medio dormida le escribí una carta de amor a Anaísa, que nunca voy a enviar. Una carta a Anaísa que en verdad es para mí misma y para ustedes tres.

          Lo bueno de todo esto es que sin haber llegado aún a TBA, para mí el trabajo ya comenzó.

          En fin, una carta de amor dormida y sin edición, que comparte mis entusiasmos y mis aburrimientos:

          Abrazo,

          Chichi

          mar., 10 ago., 12:16

          Quisimos mantenernos en la ausencia de un diseño. Entramos a la caja negra y nos preguntamos dónde está el sol, nuestra primera práctica de observación e invocación. ¿Qué y quiénes no están dentro de esta sala?

          Esta posibilidad duró poco. Las actividades y la programación reclamaron una luz que no solo permitiera ver sino que además creara condiciones para ver de cierta manera.

          Atravesé las semanas con un deseo cada vez más rabioso: hacer un agujero en el techo del teatro para que el sol entrara. Que el ruido de la pared rompiéndose no nos permitiera hablar. Agujerear un techo para agujerear nuestros discursos, hacer para dejar de producir, hacer con las manos. Abrir la caja.

          A las 14 hs., póngase de pie en el centro del escenario.

          Intente detectar en qué lugar el sol está golpeando el edificio en este momento.

          Una vez encontrado ese punto de incidencia solar, haga un agujero y déjelo entrar.

          Un día, una acción colectiva calmó la pulsión de la forma más suave: una cadena humana y de espejos logró que la luz del sol entrara a la sala: cruzó la calle, atravesó el hall, bajó las escaleras, abrió la puerta y un rayo blanco de 4500º Kelvin enmudeció la caja negra.

          En ese gesto delicado descubrí que a veces para hacer un agujero es mejor buscar una grieta, un surco. Encontrar una posibilidad que se mantenía silenciosa y vivir en ella, como bajo un techo que nos cubre de la lluvia, regalándonos tiempo y espacio.

          Bruno Zhu Que Merda

          Quando andava no secundário, pediram-me para posar para um projecto de fotografia sobre os sete pecados mortais. Na avaliação, o aluno explicou que o meu retrato representava a gula e quando os professores lhe perguntaram porque é que me tinha escolhido, ele disse que foi por eu ser feio. Há três anos, encomendaram-me uma obra de arte para um centro comercial em Lisboa. Depois de fazer a proposta, a directora de marketing ficou confusa. Apesar de o museu de arte contemporânea com quem fazia a parceria já lhe ter introduzido o projecto, ela estava incomodada com o facto de a minha prática artística — e claro, eu — não parecer suficientemente português. Ela disse que o centro comercial atraía clientes de classe alta e infelizmente o meu perfil não se enquadrava nisso. Durante um jantar entre artistas no verão passado, estávamos a falar sobre sucesso no mundo da arte contemporânea. Quando a conversa voltou para as pessoas que estavam na mesa, uma delas — um membro activo da associação cultural onde a minha exposição iria abrir em breve — virou-se para mim e disse que o meu sucesso vem de eu ser “chinoca” pois as questões identitárias estão muito na moda ultimamente.

          Em todas estas circunstâncias, fiquei calado a digerir o impacto. Desfiz palavras, tons e contextos, porque certamente nenhum deles quis dizer o que disse por mal? Talvez quando o aluno disse “feio” se referisse ao espírito da fotografia. “Não parecer suficientemente português” pode ter significado eles quererem um artista mais estabelecido. Talvez o termo “chinoca” tenha sido usado num tom atrevido para anunciar um nível novo de amizade? Mas se estas expressões não foram ditas como ofensas, então porque é que fui chamado de feio? Porque é que fui descartado como alguém a quem lhe falta algo? Porque é que fui julgado por ser demasiado uma coisa? O que mais me assusta nisto tudo é aperceber-me que nenhum deles me quis ofender. Aos olhos deles é justamente um facto que eu, um português de primeira geração filho de imigrantes chineses, não me encaixo nos padrões de beleza, nacionalidade ou humanidade deles. Que eu sou um monstro, um extraterrestre, um fetiche da indústria.

          Dado que a minha exposição seria acolhida pela pessoa que usou um termo racista para me descrever a mim e à minha prática artística, não quis continuar sem tomar acção. Pensei em cancelar a exposição, mas isso só me iria penalizar a mim, e fazer com que o despedissem não evitaria que usasse insultos racistas noutras ocasiões. Por isso decidi explorar o estado das políticas raciais no Portugal de hoje. Queria entender como é que alguém que se apresenta como anti-racista e antifascista, que foi à marcha Black Lives Matter e que faz tudo o que se espera de milénicos esquerdistas, usa um insulto racista tão facilmente em privado. Se o termo não era para ser ofensivo, porque é que ele tem o direito de evacuar o significado da palavra? Porque é que ele tem o poder de deslocar a História? Porque é que ele tem o privilégio de atribuir identidade?

          Fiquei chocado por ver vários tipos de colonialismo a serem combinados num só recentemente, sem mencionar a escassez de diálogo sobre as consequências da(s) descolonização(ões) e a sua ramificação na sociedade contemporânea. Este último ponto é uma experiência em curso para os portugueses, pois as gerações que passaram pelo período autoritário do Estado Novo (1933-74) ainda estão vivas hoje. Alguns foram da metrópole para as colónias em busca de riqueza e viram Portugal alterar a sua Constituição, em 1951, para se tornar num império. Outros viram os seus filhos serem enviados para a guerra contra os movimentos nacionalistas africanos que lutavam pela liberdade. E esses filhos voltaram, tristes e destituídos do seu estatuto de colono quando o regime caiu em 1974. Tentar perceber como alguém aliado ao pensamento de Esquerda me chama “chinoca” fez-me pensar se houve uma tradição racista na Esquerda portuguesa. Não parece ter havido uma tradição explicitamente racista, mas é suspeito se repararmos que o Partido Comunista Português, então o maior partido de oposição, nunca foi firmemente anticolonialista até usar esta posição como uma oportunidade para derrubar o regime. Os protestos estudantis de 1969 em Coimbra, que provocaram o início do fim do império, eram maioritariamente compostos por estudantes de classe média-alta, reflectindo os protestos de Maio de 1968 e os movimentos de contracultura pelo mundo. É importante salientar que estes movimentos dissidentes eram ideologicamente heterogéneos e atravessavam o espectro do pensamento marxista. Apenas os grupos maoístas promoveram constantemente uma visão anticolonialista.

          O fim do regime autoritário foi um momento crítico para a vida da população em Portugal continental, mas a vanguarda esquerdista portuguesa estava mais investida no internacionalismo. Depois da tentativa de construir um estado socialista, conhecido como o Verão Quente de 1975, Portugal restabeleceu a democracia com a com a vitória do Partido Socialista nas eleições de 1976 e integrou-se no mercado livre europeu sem olhar para trás. Sem olhar para Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe ou Cabo Verde, todos descolonizados à velocidade da luz e abandonados para lidar com cinco séculos de exploração e desapropriação. Sem olhar para Timor-Leste, deixado vulnerável enquanto a Indonésia anexava o seu território em 1975. O Partido Socialista foi fundado com o apoio monetário da Agência Central de Inteligência (CIA). Os Estados Unidos receavam que Portugal se iria transformar num estado comunista.

          Porque é que falo de anticolonialismo? Porque não estou interessado numa abordagem contra o racismo baseada em afectos. O ódio e o medo são reais, mas porosos. Deixam demasiadas saídas para o sentido de responsabilidade escapar. Na minha experiência, o comportamento racista costuma ser entendido como um evento isolado da História. Costuma apresentar-se mais como um acto de paixão — impulsivo e rapidamente esvaziado quando as desculpas são pedidas. Eu tenho de aceitar as desculpas, porque se não o fizer sou mal-agradecido. Desculpas são como presentes, e presentes são coisas boas. Que mais posso querer, perguntam eles.

          Nos últimos anos, discussões em torno do racismo introduziram um aspecto histórico através da revisão dos imperialismos ocidentais. Receio que este conhecimento importante não tem produzido relações causais, mas apenas alegações para apanhar a História ‘em flagrante’. Entre os meus amigos ‘despertados’, reconhecer o passado colonial das suas nações tem-se tornado numa experiência moral, catártica e individualista: colonialismo=escravatura=mau, responsabilidade ou “accountability”=conhecimento=bom. Eu era mau, agora sou bom. Sentirem-se mal sobre o passado previne os seus egos de reconhecerem o papel que eles próprios têm na reprodução da liberdade de expressão, autonomia e progresso que apenas beneficiam uma geopolítica particular. No meu caso, eu identifico o artista com quem jantei como um “fidalgo liberal”. É alguém que nasceu e foi educado com ideais liberais — o pai dele foi activo na luta contra o regime, logo ele acumula capital revolucionário adquirido pelos seus antepassados. Ele teve um livro de Frantz Fanon na mesa do seu atelier. Ele faz comentários contra o capitalismo como quem deve na “época antropocénica”. Ele tem consciência da ironia da branquitude através do TikTok. No entanto, é-lhe concedida a distância luxuosa de não ser alvo de crítica porque a sociedade encarrega precisamente a pessoas como ele o papel do crítico, a voz da Razão. Talvez a minha ambivalência em utilizar termos descritivos como privilegiado, branco, homem, cis, hetero ou ocidental atrapalhe a minha mensagem, porque eu recuso servir-me da mesma lógica redutora que ele usou. Mas espero que vocês, leitores, consigam entender o meu argumento.

          Ainda que nenhuma postura explicitamente racista se encontre nos registos da Esquerda tradicional portuguesa, é visível uma resistência em reconhecer todas as modalidades de opressão. Existe um foco em privilegiar a humanidade de uns em vez de outros e em proclamar uma apologia nacionalista loquaz que, no seu melhor, subestima e, no seu pior, foge do seu próprio legado colonial. Eu sou capaz de aceitar que chamar-me “chinoca” não faz dele um racista, mas a leveza com que usa um termo deste tipo é testemunho duma certa mentalidade burguesa de classe média-alta que continua intacta hoje em dia.

          Se a História portuguesa é prova de uma cirurgia plástica nacional que troca o seu passado colonial pela modernidade europeia, a psique portuguesa parece ter escapado ao bisturi. Durante o Estado Novo, o regime promoveu intensamente o lusotropicalismo. Este enquadramento polémico, fruto do seu tempo, foi desenvolvido pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre nos anos 1930 numa tentativa de reificar o hibridismo racial da identidade brasileira. Para tal, Freyre refere aspectos geográficos e antropológicos que justificavam positivamente o colonialismo português. Ele propôs que Portugal seria um colonizador legítimo dado que os portugueses eram eles próprios uma mistura de várias civilizações — romana, celta, mourisca — tornando-os familiares com a condição de colonizados, logo colonos mais brandos; que os portugueses, estando mais próximos do Equador, comparado com as outras nações europeias, tinham sangue mais quente e logo mais adaptável ao clima tropical; que estes atributos fisiológicos, para além do império colonial português ser a presença territorial mais antiga do mundo, justificavam a propensão dos portugueses à miscigenação. 

          Ser português era ser do mundo, um corpo de várias raças, um profeta de culturas e continentes velhos e novos. Enquanto esta postura etnopluralista criava directrizes desumanizadoras nos territórios ultramarinos, em Portugal metropolitano desenvolveu-se um caso de hiper-identidade. Segundo o filósofo Eduardo Lourenço, Portugal tem uma fixação mórbida com a sua história colonial como uma história que nos eleva, a nós portugueses, das outras nações. Para Lourenço, esta hiper-identidade permite a Portugal ter sempre uma identidade independentemente do contexto, uma que é menos sobre a capacidade colectiva da nação e mais sobre ser o “privilegiado actor histórico da aventura europeia no mundo”.

          A escala e a influência de Portugal colonial pelo tempo, cristalizada pelo seu fim abrupto, tornou-se num mito fundador da sua identidade nacional, mesmo depois da queda do Estado Novo. Dado que o lusotropicalismo tentou remover a questão racial da colonialidade portuguesa, o discurso crítico de hoje usa pessoas não-brancas ou como dados históricos (por exemplo, o comércio transatlântico de escravos ter sido um desenvolvimento mercantil racional) ou estritamente como uma paleta de cores da pele humana. Neste modelo, ver cor não equivale a ver raça. O termo pejorativo “preto” é usado frequentemente utilizado por pessoas não-negras para descrever afro-portugueses ou pessoas negras, por isso não surpreende que eu tenha sido chamado de “chinoca”. Eu certamente me pareço com um, certo? Muitos portugueses torcem o nariz à palavra raça, porque para eles existe apenas uma – a humana – por isso o termo etnia é preferido. Poderíamos considerar esta preferência refrescante, visto que é de sabedoria geral a raça ser uma construção social, mas quando este ponto é levantado entre a população geral portuguesa a maioria despreza a expressão “construção social” como uma geringonça intelectual. Assistimos assim a um outro jogo semântico onde discriminação contra grupos étnicos segue o racismo científico pré-Segunda Guerra Mundial. O alinhamento racialista da identidade é reforçado por um espírito intransigente de titularidade pós-racial, que não dá espaço para o Outro reivindicar a sua subjectividade.

          Voltando àquela noite, eu percebi porque é que o meu sucesso profissional foi entrelaçado com a minha etnia, sendo que o último aspecto representa o valor único que posso ter no contexto do mercado da arte. De repente, esta equação racista é transformada, dirigida ao demónio inevitável que o fez insultar-me: o capitalismo! O capitalismo fê-lo pensar nisso! O capitalismo fê-lo acreditar nisso! O capitalismo fê-lo dizer isso, então certamente tem de ser desculpado, e até louvado por ser tão perspicaz?! Então, um insulto racista é justificado porque é usado contra um mal maior? Existem circunstâncias nas quais tenho de tolerar ser reduzido a um estereótipo racial? Existem momentos válidos para empregar pensamento racista que eu preciso de saber?

          Eu quero imaginar que vocês responderiam a estas perguntas com um tremendo “Não”, mas não consigo deixar de ser céptico com a forma como as pessoas interpretam ou se tornam aliadas à causa anti-racista. Numa conversa com uma artista local durante os protestos em solidariedade para com Bruno Candé, o actor afro-português assassinado em pleno dia em Moscavide por um veterano da guerra colonial no Verão passado, desabafei sobre a minha frustração com o estado actual dos debates raciais e de género em Portugal. Critiquei a falta de originalidade na linguagem à volta deles: como, em vez de criar um novo léxico para traduzir e situar estas questões no contexto nacional, se dependia imenso de anglicismos. Quando sugeri que inventar um vocabulário novo seria provavelmente a coisa mais patriota que a nossa geração poderia fazer para abrir caminho para o progresso social, a artista ficou amedrontada. Ela disse que “patriota” era uma palavra feia, que era antiquado e algo que ela associava aos seus avós. Ela parece ter confundido patriota com nacionalista. Voltei ao mesmo assunto com outrx artista local e, ao mesmo tempo que concordava comigo, comentava que as instituições deviam ser “held accountable” [ser responsabilizadas], sem referir em que é que deveriam ser responsabilizadas por. Não conseguiu dizer isto em português, reparou nesta inconsistência e a conversa ficou por aí.

          A minha geração testemunhou um êxodo de intelectuais portugueses para os epicentros culturais da Europa Central como Londres, Paris e Berlim. Se a contemporaneidade pós-fascista portuguesa foi predicada num salto para a Europa, o seu subproduto é uma visão fatalista, profundamente cínica das condições locais de reprodução social. Sob nenhuma forma apoio qualquer ideia de isolacionismo, mas não consigo deixar de ver como as pessoas fazem uso da sua mobilidade social e as formas e vazios que isso traça. Para mim, isto cria brechas preocupantes que confirmam o deslocamento cultural de uma nação relutante em diagnosticar a sua própria identidade, enquanto define a identidade de outros como patologias.

          O que é que a identidade nacional tem que ver com casos racistas isolados? Ao despir a categoria política de raça da sua História, a sociedade portuguesa consagrou incontestavelmente a racialização na produção dos seus sujeitos nacionais. Por isso é natural agarrar a carteira quando se vê um cigano, persuadir estudantes afro-portugueses a não ingressarem no ensino superior, espancar até à morte um emigrante ucraniano no aeroporto, hiper-sexualizar o corpo brasileiro, ou acusar os meus pais e a comunidade chinesa de evasão fiscal, tráfego de órgãos humanos e dominação global através da “Covid-19 comuna”.

          O meu objectivo ao escrever este texto foi para fazer sentido do que se passou naquele jantar. Eu fui traído por um par que, tendo acesso à minha prática artística e vida pessoal, me humilhou para exibir a sua rebeldia. Não estávamos sozinhos na mesa, mas como os professores no meu secundário e a equipa de marketing do centro comercial, os meus amigos permaneceram imperturbados. Não posso culpá-los por viverem numa realidade social estagnada que dá prioridade a uma mudança cosmética em vez de ideológica. Muitos deles publicaram quadrados pretos durante o #BlackOutTuesday no Instagram, e repartiram publicações info-sociais para educar os seus seguidores. Mas nenhum deles parece ter questionado o contrato social que inscreveu involuntariamente o racismo na sua linguagem. É por isso que insultos raciais em português deslizam facilmente do seu significado inicial, desde que o locutor anuncie “Eu não disse dessa forma”. Então de que forma é que um epíteto racista existe? Terei de me conformar a ser manipulado, a aceitar “chinoca” como um termo… carinhoso? Como é que posso escapar a esta caracterização racial? Terei de imitar a estética K-Pop? Terei de provar não ser um membro do Partido Comunista Chinês? Terei de participar na produção de branquitude para brancos, para que se sintam visíveis numa altura que é sobre tudo menos branco? Porque se não estou condenado a corrigir projecções racistas lançadas contra mim. Terei de sujeitar-me a ser “chinoca”, mas não daquela forma. Será que quero produzir “raça”? E se o mecanismo para tal produção nunca esteve nas minhas mãos para começar?

          As obras na exposição em questão não tiveram nada que ver com o incidente. Foram inspiradas pela planta do espaço. A casa-de-banho, situada mais ou menos no meio do espaço expositivo, segue a direcção dos canos que vêm de cima. Eu reparei nisso durante uma visita e acabou por inspirar a instalação. Se fosse potente o suficiente, puxar o autoclismo poderia hipoteticamente fazer desabar o edifício inteiro. Dessa forma, o autoclismo poderia ser considerado como uma força direccional transgressiva e a sanita como um portal. Alguém iria para baixo. Alguém iria abaixo. Por isso imaginei o espaço à espera de ser submergido ou, se reverterem o esquema, à espera de emergir do submundo. E o que viria da sanita. Merda? Alguém merdoso? Sentimentos de merda? Chegar a um lugar merdoso? Pensei que lidar com merda conceptual iria ser engraçado e político. Não esperava ter sido posto na merda durante o processo.

          Leandro Souza Refrão

          Berlim, Alemanha, setembro de 2017. Saíamos de um espetáculo no Dock 11, um espaço conhecido de produção, aulas e apresentações de dança da cidade. No caminho para casa, trocávamos, eu e uma jovem mulher europeia, impressões sobre a peça. Em dado momento da conversa, comentei que alguns aspectos foram desafiadores e não havia captado certas nuances do trabalho. Ela me olhou e disse algo, como: nós somos sutis e vocês são explícitos. Fiquei atento a ela, não havia compreendido. Aquilo se agarrou aos meus pensamentos. Me perguntava quem eram o “nós” e quem eram o “vocês”, enquanto ela dava seguimento a fala. Então, apontou para o casal de colegas nossos que caminhava à frente – uma moça e um rapaz, brasileiros como eu – e teceu comentários acerca das formas corporais de ambos, especificamente, comparou os atributos físicos da brasileira com os da dançarina europeia, que ficara nua em certo momento da peça. Chegou a mencionar, brevemente, a recorrência da nudez nos experimentos que nossos colegas realizavam no curso que estávamos fazendo naquela época e, também, recordou de quando eu disse a ela que gostava de uma canção que ela cantara em um estudo coreográfico, relacionando meu gosto ao fato dela ter berrado o refrão da música, como se fosse uma característica comum “nossa”. Eu poderia concluir, então, que nudez e berrar seriam indícios de que nós éramos “explícitos”. Mas Nós quem? Nós brasileires? Negres? Negres brasileires? Latines-americanes? Negres gays brasileires?

          Certas afirmações são realizadas como se fossem o refrão de uma música que se acostumou a cantar sem saber o porquê, mesmo que pareça um tanto anacrônica. De certo é possível verificar diferenças entre lugares, pessoas, culturas etc. Mas quando é que tais refrões deflagram modos de ver, pensar, dizer, fazer, viver diferentes e quando é que se tratam de desejos de distinção entre grupos, pessoas ou culturas? Talvez o limite seja tênue.

          Tenho refletido sobre essa dinâmica do “Nós” e “Vocês” e a variante “Eu” e “Nós” a fim de pensar a diferença, o comum e o irreconciliável, considerando especialmente a realidade de nações forjadas sob o signo da violência colonial. Não somente pensar a diferença, o comum e o irreconciliável entre populações e grupos diametralmente opostos, mas também pensar tais questões no interior de cada grupo e os sentimentos de pertencimento, identificação e desidentificação dos membros que os integram.

          Ao compartilhar essa conversa, mencionando o contexto no qual se deu o diálogo e os agentes envolvidos, é automática a ênfase na relação – Nós versus Vocês – seguida de um posicionamento que toma partido do Explícito como qualidade a ser valorizada. Nota-se a tentativa de ressaltar a complexidade do Explícito e a defesa da capacidade de articular a sutileza, como se fosse uma “falta” a ser compensada. Por fim, encontram-se os argumentos que tentam encerrar a questão dizendo que ninguém pode ser completamente Explícito e ninguém pode ser enxergado como inteiramente Sutil. Até aí, há de se concordar. Porém, na tentativa de encerrar o debate lança-se mão do: somos diversos, afirmando que não é domínio da arte lidar com tais questões. Mas esse argumento não se sustenta, porque é perceptível que as várias instituições e circuitos artísticos se balizam, sutil e explicitamente, por esses parâmetros.

          Os desafios de pensar e explorar o Explícito e o Sutil na criação coreográfica passam por uma revisão dos sensos comuns que se arvoram em torno dessas duas qualidades. Pode-se dizer que é possível traçar um estereótipo de uma dança sutil e de uma dança explícita, mas até que ponto? Eventualmente, um ou mais podem fazer parte de uma estratégia de criação artística, a depender da intencionalidade.

          No dicionário Aurélio, Explícito e Sutil estão definidos da seguinte maneira: ex.plí.ci.to [Lat. explicitu.] adj. 1. Claro, explicado. 2. Sem reservas ou restrições. su.til [Lati. subtile.] adj2g. 1. Tênue, delgado. 2. Agudo, fino. 3. Muito miúdo. 4. Feito com delicadeza. 5. Perspicaz; sagaz. [Pl.: -tis. Superl.: sutilíssimo ou sutílimo.]

          É curioso que a significação de Explícito como algo claro e explicado me recorda pessoalmente as falas de colegas e amigues negres/periferiques relatando a constante atribuição aos seus trabalhos a pecha de: didáticos ou sem rigor. Nesse pensamento, o Sutil seria da ordem do não didático (não seria obrigação da arte ensinar nada, diriam algumas pessoas) e sinônimo de rigor. Mas no dicionário Explícito também significa sem reservas ou restrições. Em que medida existências subalternizadas e racializadas não têm de lidar com reservas ou restrições? Podem tais corpos fazer tudo? Circular à vontade pelos espaços e lugares, falar, ter acesso à informação, sem reservas ou restrições? Percebo uma leitura ainda muito essencialista das diferenças e pouco embasada em seus aspectos materiais e históricos.

          Há uma tendência por parte do Outro – branco brasileire/latine/europeu/estadunidense – de canalizar os esforços artísticos de pessoas negres, racializades e subalternizades para a reparação dos danos causados pela produção obsessiva de representações nocivas e arraigadas no imaginário ocidental, gerada por ele. Percebo também a pressão de que esses artistas sejam capazes de manobrar estruturas que estão fora de seu alcance, vinda por parte de coletivos e indivíduos dos seus grupos de pertencimento. Então, me questiono: o que obras de arte feitas por corpas racializades, subalternizades, negres, especificamente, podem ou não, devem ou não dar conta? Poderiam explicitar sutilezas? Quais? Como? Aquilo que está explícito sempre está claro (ou escuro)? O que explicitar? É necessário?

          Trabalhar para a decomposição de tais imagens não resvala necessariamente em um identitarismo – palavra da moda nos circuitos tradicionais de dança que denuncia certo reacionarismo, para não dizer outra coisa – aos modos de pensar-fazer arte subalternizades, negres e racializades. Trata-se de uma resposta à própria lógica de operação das instituições e circuitos da arte-dança diante dessas corpas. A putrefação desse imaginário colonizado é incontornável.

          Identificar-se inteiramente com aquele ou outro lugar pode ser contraproducente, parece que, cada vez mais, afirmar algo deve ser um recurso usado de modo estratégico e, por vezes, talvez deva ser rejeitado. Uma saída dessa emboscada está na capacidade de invenção. Mas a invenção proposta neste texto não tem relação com criar espaços específicos para tais modos de pensar-fazer arte, até porque alocar esses modos de operar em um reino à parte participa do mecanismo de apagamento vigente. Apagamento por confinamento. Invenção, neste caso em particular, significa permitir que corpas subalternizades possam mover-se livremente pelos espaços, acessando os arquivos das artes/danças, exercitando a errância, arranhando os discos, tornando os refrões uma cacofonia, oscilando entre Sutil e Explícito. Recusar-se à pretensão de conciliar diferenças que se constroem nos exercícios de poder de determinados grupos em relação a outros. Fica o desafio de tecer redes de apoio, laços de solidariedade, amizade, amor e parcerias que não cedam ao uso das táticas de coerção e homogeneização capitalistas neoliberais.

          Nós somos sutis, vocês são explícitos torna-se o refrão condutor para a implosão da poética da miséria produzida pela relação do Nós e do Eles, enquanto melodia cantada insistentemente e que sustenta uma lógica de relação geopolítica/artística que se perpetua. Esse “canto da sereia” parece nunca ter sido entoado tão fortemente no jogo político, social, cultural e econômico mundial atual, no qual nos encontramos imersos, assolados pela pandemia de um organismo que zomba de quaisquer convenções criadas por nós e que acreditamos serem reais.

          Min Kyoung Lee 이민경 O País-Escola Secundária 고등학교 나라

          Havia um país que era por si só uma escola. Um país-escola secundária onde todos estudam de forma militante do início ao fim. Esta escola-nação não é uma pessoa nem um bicho, mas funciona de forma orgânica. Além de dezenas de aulas, exames mensais e estudo diário à noite, a escola providencia inúmeras outras atividades que contribuem para um funcionamento ininterrupto. O exame de admissão à universidade é repetido todos os anos, contudo o número de diplomados é muito reduzido.

          Abaixo encontra-se uma lista de terminologia relacionada com a escola-nação.

           

          Escola Secundária

          A escola-nação segue o modelo da escola cristã, com enormes instalações, uniformes aprimorados, uma longa tradição e a reputação de tratar os alunos de forma respeitosa. Regida pelos princípios cristãos, alunos obedientes ao lado de professores benevolentes criam uma atmosfera pacífica e única. A escola é constituída por milhares de alunos, diretores, vice-diretores, professores, pastores de igreja, funcionários administrativos e de escritório, responsáveis de limpeza e de segurança (idosos), e ainda pelos pais dos alunos (que exercem pressão adicional). Nesta escola pacata e ordeira, podem-se também encontrar professores provocadores, alunos dissidentes e muitas outras perturbações.

          Ao contrário dos ideais da “educação”, o principal motivo da existência da escola é a preparação para o exame de admissão na universidade. Todas as aulas são preparadas para esse fim. E com uma preparação tão intensa não há tempo a perder com qualquer outro assunto que se desvie do estudo. Além de desleixo, isso seria considerado um ato de rebelião. Felizmente, na maioria dos casos, os alunos obedecem aos seus professores, e estes aos seus superiores, e portanto não há necessidade de punição. Apesar da desoladora quantidade de suicídios entre os alunos, a escola presta-lhes a sua homenagem e reza por eles. Graças ao papel cooperante que cada membro tem para o sucesso nos exames de admissão à universidade, a escola está bem de saúde. 

           

          O País-Escola Secundária

          Apesar de ter uma dimensão muito maior, é possível assumir, em termos estruturais, que o país é em tudo idêntico à escola secundária.

           

          Arte no País-Escola Secundária

          Nesta nação pacífica e organizada, existem vários tipos de ocupações. Existem também artistas. Muitos. Da mesma forma que se assiste a um rápido desenvolvimento do país enquanto potência cultural, o número de artistas está também a aumentar de forma acelerada.

           


          “Dê o seu primeiro passo como artista ao passar no Exame de Certificação de Artistas. Receba uma qualificação de artista reconhecida pelo Estado. É possível obter certificados de nível 1, 3, 5, 7 e 9, com diferentes graus de dificuldade e custos diversos. Prepare-se para se tornar um artista da forma mais rápida e segura com a ajuda do nosso Instituto.”


           

          Existe um certificado a nível nacional com cada vez mais reconhecimento, que se pode encontrar em anúncios de autocarros escolares: o certificado de artista. Para se tornar artista, não há nada melhor do que obter este certificado. Todos os seus detentores são reconhecidos como trabalhadores e o seu talento artístico é garantido em permanência. Ao se reformarem, terão os mesmos direitos que qualquer outro trabalhador.

          Os exames para a certificação de artista incluem perguntas sobre a definição da arte e a natureza da criatividade artística. Perguntas sobre problemas relevantes na sociedade atual são também habituais. Na preparação para o exame pode ser importante pesquisar e decorar notícias partilhadas nas redes sociais. As perguntas são na sua maioria de escolha múltipla, mas também há perguntas de desenvolvimento. O método mais eficaz para responder a estas é memorizar um parágrafo inteiro. Naquelas em que é necessário exprimir um ponto de vista, a resposta que pareça ser diferente mas ainda assim se enquadre no senso comum receberá a melhor classificação. Como em qualquer outro exame, as respostas às perguntas podem ser encontradas no verso dos manuais.

          Na escola encontram-se espalhadas notícias que afirmam que, num futuro próximo, a indústria cultural e artística irá emergir como indústria-chave para a economia nacional. De forma a preparar esse futuro, o orçamento do país-escola destinado à cultura e às artes aumentou em função do orçamento total, demonstrando a sua valorização, à semelhança de qualquer outro país desenvolvido.

           

          Artistas na Arte do País-Escola Secundária

           

          Num país em que o estatuto número um e mais cobiçado pelos estudantes é o serviço público, o simples facto de um artista ser visto e reconhecido como tal parece um sonho tornado realidade. Todas as tarefas dos artistas formados no território nacional são consideradas serviço público. Cabe aos artistas, além de criar, gerir todas as tarefas administrativas necessárias à produção, distribuição, gestão e reprodução dos seus trabalhos. Isto acontece porque, por um lado, os diretores e funcionários desconhecem os procedimentos e, por outro, sai mais barato que todas as responsabilidades sejam assumidas diretamente pelo artista. De forma a que a escola-nação possa executar os seus programas culturais e artísticos, os artistas devem submeter planos de criação, candidaturas e portefólios, bem como planos de pré-produção, relatórios internos, relatórios de resultados, comprovativos de despesas, registos fotográficos e ainda cooperar na produção de materiais promocionais como entrevistas e teasers. Estes materiais providenciam conteúdos para arquivo que podem vir a ser úteis, seja para efeitos de educação artística como para fomentar ideias inovadoras no campo da tecnologia. O uso e a necessidade dos artistas neste país são vastos. Em contrapartida, a nação-escola garante Segurança Social, direitos e até empréstimos. Assim, os artistas produzem vários projetos em simultâneo para alimentar os seus currículos e portefólios e vendem a alma com vista a vingar no mundo.

          Mesmo não tendo uma verdadeira inspiração artística, ou não sabendo qual a necessidade da arte, os artistas sabem que devem ser melhores do que os outros. O tipo de competitividade no meio da arte do país-escola não é muito diferente do de qualquer outro tipo de competitividade.

           

          O Espírito de Artista na Arte do País-Escola Secundária

           

          Os manuais dizem que a arte tem um espírito de resistência e de subversão. Isto pode ser útil decorar porque é um tema recorrente nos exames. Os alunos e artistas do país-escola são bons a escrever, desenhar, dançar e cantar sobre subversão. Conhecem também o seu significado simbólico e sabem dar exemplos históricos. Claro que isso não quer dizer que sejam subversivos nas suas vidas. Em vez disso, com a perícia que adquiriram através da memorização e da repetição, são capazes de expressar o seu espírito artístico subversivo da forma mais competitiva. Tenha como exemplo as indústrias culturais de sucesso noutros países. 

          Numa escola em que cada dia é uma batalha, estudantes-artistas e professores deparam-se regularmente com palavras como resistência e subversão. Por vezes são atravessados por uma sensação de estranheza ou de nostalgia mas depressa decoram as palavras e passam à frase seguinte. 

           

          Diplomas no País-Escola Secundária

           

          Há poucos diplomados neste país-escola. Para atingir tal fim, é necessário que os estudantes se subvertam à própria escola. Infelizmente, o método de subversão não é ensinado.

          A escola, na verdade, não é uma pessoa, não é nada. Qualquer pessoa dentro da escola pode tornar-se “a” escola, e deixar de “a” ser. Certo é que, de tempos a tempos, alguém é as mãos, os pés e a cabeça da escola. É aquele que fala em reuniões, escreve e-mails e faz telefonemas. Aquele que cria novos concursos todos os anos, que muda os termos de inscrição, que produz e distribui novos cartazes. Mãos, pés e cabeça que escrevem montanhas de planos e relatórios. A escola manifesta-se no corpo e na mente. E se esse alguém começa por não ser a escola, no momento em que se transforma deixa de ser inocente. 

          Como lutar com quem não é a escola, mas que ao mesmo tempo, e de tempos a tempos, se transforma em escola? A luta contra a escola não deve ser considerada como uma típica batalha contra o inimigo. Será antes um misto de fantasia e terror no qual inimigos e aliados se confundem. Ao lutar, há que lembrar que os alvos se movem, mudam constantemente de lugar e se alteram. Pode deparar-se com o dilema entre cuidar ou lutar contra os seus companheiros que, de um momento para o outro, viraram inimigos. Como é algo vivido na primeira pessoa, a princípio pode-se pensar que os sinais serão fáceis de perceber. Mas pode ser o contrário. Se todos tivessem a capacidade de entender estas manifestações, já todos se teriam diplomado. Quando se luta contra si próprio e contra aqueles que se podem facilmente transformar, interpretar a vitória ou a derrota exige saber separar e discernir a “escola” da pessoa. A escola vem até nós e, como em qualquer luta, a chave é saber agir no momento certo. Nem antes nem depois, mas no exato momento em que aqueles ao nosso redor se transformam na escola, aí tornam-se combatíveis. 

          Existe um país que é por si só uma escola. Esta escola tem muito poucos diplomados. Entre as perguntas dos exames finais, pode-se encontrar esta: “No momento de transformação, que tipo de força faz a escola voltar a ser uma pessoa?”; “Pode a escola emocionar-se e inspirar-se? Desenvolva a sua resposta.”

          Para referência, a lista de autores deste país-escola encontra-se mencionada acima.

           

          Traduzido a partir do original em coreano e da sua versão em inglês por Sara Godinho e João dos Santos Martins. 

          Paula Caspão Rassemblages Pre-Lúdicas para Ensaiar Recusar

          Tenho sorte porque do sítio onde estou consigo ouvir o sussurro dos livros, podcasts, filmes e vídeos deste ano a terem conversas uns com os outros. É uma sala de montagem onde as vozes parecem sair umas das outras e por isso não me vou preocupar muito com uma certa iconização do empréstimo. Faut pas dorer sur tranche, não embelezar, diz Nathalie Quintaine no prefácio a Chaosmogonie, de Nanni Balestrini (2020) – fumant la forme libérée du marécage de la syntaxe par intermède de Balestrini. Pantanal de sintaxe, à ne pas imaginer qu’on puisse faire sien à um tel point un discours théorique qu’il en devient une partie intimei. Assim se passa. Reler The Hundredsii, sobretudo a página que diz ‘The Things We Think With’, e pôr-me a recitar our citations are dilations, not just memories we have fidelity toiii. Citações dilatadas, dizer não ser autora, artista, investigadora, isso que é ser entidade identificada, como se fosse possível separar-me do planeta, separar aquilo que sou e (não) faço dos outros animais, coisas e des-coisas. Perder a compostura, ensaiar descolar-me das formas de imperialismo e policiamento naturalizadas nas instituições onde trabalho e neste corpo que me suporta, comporta, transporta, reporta indefinidamente (rehearsals of disengagement, escreve Ariella Aïsha Azoulay no livro Potential History: Unlearning Imperialism, de 2019, aí pelas páginas 43-45).

           

          “Paula, larga o trabalho e volta a voar.” Olha… a Easyjet agora trata-me por tu, apesar de ser uma companhia que tenho evitado. A injunção veio empacotada no Assunto de um mail que recebi em 15 de junho de 2021, às 16:01. A essa hora estava de facto a tentar trabalhar a contrarrelógio, a montar um Poema Mudo no iMovie, para apresentar no Instituto de História de Arte de Paris uns dias depois. Um tanto atordoada, porque na manhã desse mesmo dia fui vacinada num centro cultural da rua Merlin (Salle Olympe de Gauges) transformado em centro de vacinação com banda sonora ao vivo. Tive direito a um concerto de xilofone e acolhimento em pezinhos de lã, intervalo de paradisíaco bien-être em modo we care so much, prelúdio de sonho de uma noite de febre, efeitos de uma Pfizer em cima de uma Astrazeneca, e eu toda contente. Mas sobre delírios e paraísos já a TAP me tinha informado uns dias antes: “Paula, o paraíso existe e situa-se em pleno oceano Atlântico.” E anteontem aconselhou-me: “Paula, prolonga o teu verão.” Não há que negar, o algoritmo às vezes acerta na mosca com certa poesia. Mas chiça, meninas, poupem-me, parem de chamar por mim como se fossemos amigas de infância. E daí… talvez sejamos e só agora me estou a dar conta. Pesadas as circunstâncias, somos certamente mais íntimas do que gostaria de ter de reconhecer. É que não lhes escapa nada.

          O terminal 2E do aeroporto Charles de Gaulle de Paris dotou-se recentemente de um Espace Musées. Algures entre 30 de abril e 6 de outubro de 2019, esbarrei com um grande poster a anunciar orgulhosamente que tinham em exposição Voyages d’Explorateurs, do Museu do quai Branly – Jacques Chirac. De pasmar, desfrutem tamanho capital cultural, ó estimados cosmopolitas, amantes de descobertas e de cultura cultivada, adoradores de arte e movimentos vertiginosos, we love you so much we travel all the way with (in) you: Une invitation au voyage, un appel à la découverte, c’est l’engagement de Paris Aéroport à ce que le meilleur de la culture parisienne et française s’invite partout dans ses aéroports pour que l’art fasse aussi partie du voyageiv. Como se isto não chegasse para dar aquela vertigenzinha de satisfação ou náusea a qualquer passante, o cartaz dizia ainda que “a exposição contém múltiplos objetos, peças iconográficas e obras de referência, sendo a sua coleção dedicada às artes e às civilizações de África, da Oceânia e das Américas, e os objetos apresentados provenientes das grandes viagens da época dos reis de França até às viagens comerciais, diplomáticas ou de exploração”. Curiosa forma de dedicação. De invasões europeias, de expropriação, genocídio e saque massivos não se fala. Gente, poderes públicos e seus bureaus de comunicação, a paciência esgotou. Deixem-se de eufemismos, parem de regar a plantação como se estivessem deveras a cultivar diversidade e inclusão, para lá das vossas imagens psico-serôdias de multiculti duty free. Fico a pensar no livro de Hito Steyerl, Duty Free Art: Art in the Age of Planetary Civil War, que saiu em 2019. Como introdução, vale a pena ler o texto “Duty-Free Art” publicado na e-flux em 2015v

           

          Começa a tornar-se difícil aguentar. Será que estamos condenadas a contar e recontar as mesmas histórias até ao fim dos tempos (dizer isto com a boca de Saidiya Hartman, numa entrevista)vi.

          Manter o Não à mão. “Imagine Going on Strike: Museum Workers and Historians”, escreve Ariella Aïsha Azoulay no livro Potential History: Unlearning Imperialism (2019). 

           

          Imaginemos uma greve não apenas como protesto contra uma situação específica de opressão, não apenas contra uma instituição em particular e não unicamente como forma de reivindicar melhores condições e salários, mas como recusa geral da lógica do capital profundamente incorporada nos museus e nas suas desavergonhadamente ilusórias missões de inclusão de diversidade e de produção de intercâmbio cultural. Uma greve assim generalizada a todas as profissões, não só as que se encontram diretamente ligadas a instituições como museus ou universidades, ajudar-nos-ia a pararmos de conceber as nossas atividades profissionais como atividades produtivas cujo valor se pode medir a partir de resultados encaixáveis numa história linear progressiva, para as concebermos como modalidades de implicação com o mundo que reconhecem a nossa inseparabilidade, o nosso emaranhamento radical. Imaginar os detalhes disto.

           

          Imaginar especialistas do mundo da arte a admitirem que todo o projeto de salvação artística ao qual eram fiéis é uma loucura e não poderia ter existido sem o exercício de variadíssimas formas de violência, atribuindo preços espetaculares a peças que não deveriam sequer ter sido adquiridas. Imaginar todos esses especialistas a reconhecerem que o conhecimento e as competências que o museu tornou violentamente raros e valiosos não se encontram extintos. Para que o valor de mercado desses objetos se preserve, houve que negar tempo e condições às pessoas que herdaram o conhecimento e as competências para criar e construir o seu mundo. Imaginar diretores de museu e curadores tomados por um despertar tardio – semelhante ao que experimentam por vezes os soldados – relativamente ao sentido da violência que exercem sob cobertura benigna, e a admitirem até que ponto a sua profissão é constitutiva de violência diferencial. Imaginar estes especialistas a fazerem greve, até obterem permissão para abrir as portas das suas instituições a refugiados políticos vindos dos lugares de onde as suas instituições detêm objetos, convidando-os a produzirem objetos semelhantes aos saqueados, obliterando assim os ditos ‘autênticos’. 

           

          Traduzi estas linhas a partir de um pequeno excerto do livro de Azoulay, publicado na revista e-flux, num interessante dossier sobre formas de greve, de retirada, de recusavii.

           

          Imaginar enviar este excerto ao Museu do Oriente em Lisboa, que tem por missão vangloriar-se desavergonhadamente da “presença portuguesa na Ásia”, da “multiculturalidade” da “relação secular que foi estabelecida entre o Oriente e o Ocidente” através de Portugal. Com um discurso de apresentação que fala de supostamente magníficas “trocas comerciais, culturais, vivenciais, científicas, técnicas e religiosas que possibilitaram o conhecimento de mundos até então desconhecidos” entre Portugal e a Ásia. Nem um pio sobre violência(s) perpetradas por esse passado fora e continuadas hoje e amanhã de várias maneiras e feitios, nestes igualmente magníficos museus. O mecenas principal é o Novo Banco que, como banco que se preza, tem uma estratégia de mecenato cultural e é um agente benevolente interessado em contribuir para “a criação e formação de novos públicos”, nomeadamente “dinamizando a oferta cultural existente”. Falando deste museu, lembro-me que a Fundação Oriente faz parte do Consórcio Lisboa, a pomposa rede colaborativa entre o Programa de Mestrado e Doutoramento em Estudos Culturais da Universidade Católica, a Câmara de Lisboa, a Cinemateca Portuguesa, o Museu Nacional do Teatro e da Dança, a Fundação Gulbenkian, a Culturgest, o Centro Nacional de Cultura, a Fundação EDP, o Oceanário de Lisboa e a Parques de Sintra – Monte da Lua, que este ano organizou a XI Lisbon Summer School for the Study of Culture sob o tema CONVIVIAL CULTURES. Maravilhosa convivialidade, a avaliar pelo modo autolaudatório como se descrevem. A não perder, o vídeo de apresentação: www.lisbonconsortium.com, com convívio do melhor. A verdade é que já nada disto me choca. Mas continua a intrigar-me profundamente (pensarão que pega?), não sei se ria ou se chore. Talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Manter o Não à mão. Gritar aos vários ventos: a investigação e a arte têm de fugitivar. Manter a inclinação para o gaguejo, a vertigem da falha, praticar a não-performance da performance literal: não corresponder à demanda. Descolar-se do programa globalmente programado. Recusar ir dar onde as esperam. Não ir logo a correr quando nos chamam. Porque sim, é preciso manter a indeterminação. O que é isso de performar investigação, arte, trabalho, a universidade, o museu, eu, os slogans da convivialidade deles, tudo, na economia associalmente conectada da performance e do conhecimento. Manter o não à mão. Hoje, para variar, Não consinto. Não vou. Não faço. Re-dizer: Não é Investigação. Não é Teoria. Não é Arte. Com estes três Nãos prefaciou Hito Steyerl “Wihdrawal from Representation”, a conferência que deu no simpósio Psychopathologies of Cognitive Capitalism, em 2013. Não estive presente, mas a tripla negação dirigida à investigação, à teoria e à arte (que li pouco tempo depois num texto de Rike Frank) reaparece-me agora como adágio (re)generativo.

           

           

          Inclusão sous videviii

           

          Há muito que andamos atentas às políticas de apropriação cultural, há muito que desconfiamos da atração das instituições de poder pela ‘diversidade’. Aprendemos a não subestimar a rapidez com que o capital absorve noções relevantes para as transformar em slogans vaziosxix. Facto é que se atribuem financiamentos a exposições sobre a questão da ‘habitação’, por exemplo, enquanto as pessoas continuam a ser massivamente ejetadas dos abrigos variados a que chamam ‘casa’x. Já deu para perceber que anda por aí muita curadoria que consiste simplesmente em neutralizar arte, que é a arte da inclusão neoliberal, dos múltiplos regimes de exposição que subjugam e colonizam, sempre bem-intencionados, mas sempre racistas. Exímios em demonstrar e performar uma certa imagem de boa vontade inclusiva democrática. Mas que (não) fazer de tanta arte que não quer ser ‘curada’, nem assim nem de maneira nenhumaxi?

           

          De facto, neste momento já não se trata de lutar contra as estruturas exclusionistas das instituições (neste momento poderíamos até chamar-lhes ‘inclusionistas’), já que aquilo contra o que lutamos são as constantes modalidades de extração incorporativa, nada de novo afinal, apenas uma atualização de novas e velhas tecnologias, diz Fred Moten em conversa com Sandy Grande, Stefano Harney, Jasbir Puar e Dylan Rodríguez, a propósito da ação ‘Strike MoMA Working Group of IIAAF’xii. Nesta conversa, Stefano Harney compara os museus e as universidades a vastas ‘máquinas trituradoras’, que esmagam e digerem variadíssimas modalidades de estética social e de estudo que as pessoas praticam um pouco por todo o lado de formas indeterminadas, para as transformarem em entidades individualizadas identificáveis. O negócio destas instituições é andar por aí a identificar quem anda a tentar levar vidas estéticas e formas de estudo coletivas autónomas, e mandar patrulhas de curadores para as capturar, sob cobertura de ‘inclusão’. Na verdade, a principal razão pela qual se guardam obras de arte nos museus, diz Harney, é fingir que há de facto algo individualizado a que podemos chamar uma ‘obra de arte’ – para além das razões que já conhecemos, a saber: manter esses objetos de arte em segurança de modo a torná-los inacessíveis a quem os queira de volta; alugá-los, o que significa que de cada vez que pagamos para ir ao museu estamos a alugar a arte que vamos encontrar; comodificá-los e especular sobre o seu valor. Haver algo a que possamos chamar ‘obra de arte’ é pois um facto que precisa de ser sujeito a um ataque anticolonial consequente. 

           

          Descolonizar sous vide

           

          O que (recusar) fazer? Vivemos numa época em que a instituição encena e reencena a sua criticalidade, a sua diversidade, a sua intermedialidade, a sua pós-colonialidade e a sua convivialidade, mas pouca coisa muda de facto. Provado está que o raio do capital é perfeitamente capaz de incorporar a ideia de descolonização e de descolonialidade. Por isso precisamos de considerar a endurance da ‘colónia’ para lá do regime político colonial historicamente situado. O capital é sempre colonizador, portanto a colónia é consubstancial ao capital e está no meio de nós. Para compreender como persiste temos de nos livrar da abordagem que só consegue ver a colónia sob a forma que a Europa lhe deu no século XIX, e não confundir colonização e colonialismo. Sem a colónia, escreve Vergès (2019) – inclusive a colónia de férias – não haveria países com instituições estruturalmente racistas. Pois é, não é certo que haja vida descolonizadora para além da maravilhosa economia do conhecimento e da performance que ritma os nossos dias e noites, que é tão generosa e criativa ao ponto de ter dito ‘faça-se investigação artística nas universidades’xiii. Nem é certo que as duas aulas que me entusiasmei a desenhar para o semestre de 2022 – sob a designação ‘Práticas de resistência, co-imaginação e ação descolonial quotidianas na era da performance digital’ – sejam capazes de descolonizar o que quer que seja para além do sentido metafórico em que o termo tem vindo a proliferar nos nossos ecrãs. Acredito ainda assim neste amor à contaminação entre os materiais, através dos quais me apetece reunir pessoas. Uma (r)assemblage que me faz poesia na página e um desejo forte de pensar coletivamente, a ver.   

           

          Le Passeur (instalação, 2008) / Mined Soil (filme, 2015) / Spell Reel (filme, 2017) / Cotton Algorithms (instalação, 2019) – todos de Filipa César. Imagine Going on Strike: Museum Workers and Historians, in Potential History: unlearning Imperialism (Azoulay, 2019). The Hundreds (Berlant & Stewart, 2019). Revolutionary Feminisms: Conversations on Collective Action and Radical Thought (Bhandar & Ziadah, 2020). Conversa On Fugitive Aesthetics (com Moten, Harney, Swayer, 2021). Unshrinking the World (Avery Gordon, “An interview with Woznicki on her book The Hawthorn Archive: Letters from the Utopian Margins, 2019). Undercommons: Fugitive Planning and Black Study + All Incomplete (Harney & Moten, 2013 e 2020). Wayward Lives: Beautiful Experiments (Saidiya Hartman, 2020). Exterminate All the Brutes (filme-ensaio de Raoul Peck, 2021). How Not to Be Seen (videoarte de Hito Steyerl, 2013).

           

          Dos materiais aqui reunidos espero que nos ajudem a arejar o chão que nos suporta. A descortinar forças para nos desengajarmos do que, nas nossas vidas, profissões e posições quotidianas, continua a performar a pedagogia implícita do capitalismo (no mínimo). Não é por acaso que os textos, filmes, entrevistas, conversas e instalações com que aqui se tece são quase todos realizados em colaboração, e que vários deles experimentam formatos que torcem e entortam géneros existentes. Nada prometem porque não fazem por ora ideia de quem com eles – e através deles – virá encontrar-se; o que virá ensaiar-se a várias mãos, texturas, imagens, afetos, ritmos, numa prática de estudo que emaranha e impurifica tudo (arte e teoria, crítica e poesia, tempos com espaços, still-moving-images, tudo e nada). Um estudo como prática que não começa nem acaba no conceito, e desconfirma todos os princípios da separação onto-epistemológica que a modernidade ocidental se aplicou a produzir. E se for difícil de acreditar, é ouvir Avery Gordon: “I tried to follow Monique Wittig’s instruction in Les Guérillères (1969): ‘There was a time when you were not a slave, remember that. Make an effort to remember. Or, failing that, invent’” (2019)xiv.

           

          i “A fumar a forma livre do pântano da sintaxe através de Balestrini; não imaginar que se possa a tal ponto fazer seu um discurso teórico que se torna parte íntima.” Tradução livre.

          ii The Hundreds é um livro que reúne várias vozes, em não mais de 100 palavras cada, editado por Lauren Berlant e Kathleen Stewart (Durham, CN: Duke University Press, 2019).

          iii “As nossas citações são dilatações, não apenas memórias às quais somos fiéis.” Tradução livre.

          iv “Um convite à viagem, um apelo à descoberta, este é o compromisso do Aeroporto de Paris para levar o melhor da cultura parisiense e francesa a todos os seus espaços, para que a arte faça também parte da viagem.” Tradução livre.

          v https://www.e-flux.com/journal/63/60894/duty-free-art/.

          vi https://www.newyorker.com/magazine/2020/10/26/how-saidiya-hartman-retells-the-history-of-black-life

          vii https://www.e-flux.com/journal/104/299944/imagine-going-on-strike-museum-workers-and-historians/ e https://www.e-flux.com/readers/362461/strike.

          viii A tradução de sous vide em português é ‘embalagem a vácuo’. A expressão em francês é entretanto utilizada internacionalmente, sobretudo em contextos de alta cozinha. Mas a embalagem a vácuo também está muito presente em qualquer supermercado e permite cozinhar e/ou aquecer os alimentos sem os retirar do plástico.

          ix Ver o livro de Françoise Vergès, Un féminisme décolonial (Paris: La fabrique, 2019).

          x Ver o texto de Giulia Palladini, “On co-existing, mending and imagining: notes on the domestics of Performance”, in A Live Gathering, editado por Ana Vujanovic e Livia A. Piazza (Berlim: b_books, 2019).

          xi Ver o texto de André Lepecki, “Decolonizing the curatorial”, na revista Theater 47, n.º 1 (2017).

          xii Em 27 de maio de 2021: https://www.youtube.com/watch?v=V2vzhwnjy4s.

          xiii Note-se que isto é dito por alguém que ama variadíssimas práticas de investigação e em particular de investigação artística; alguém que se implica com paixão na composição (o mais coletiva possível) de aulas de Prática como Investigação num Programa de doutoramento em Estudos de Teatro; alguém que desfruta a fundo o tempo passado com pessoas nesse contexto a que se chama oficialmente ‘aula’. E contudo, ser um agente desta economia do conhecimento não vai sem dor. O que me anima é acreditar na contradição, na necessidade de manter as coisas complicadas (muito tenho aprendido com as práticas de ‘antagonismo geral’ tecidas por Fred Moten e Stefano Harney).

          xiv “Tentei seguir a instrução de Monique Wittig em Les Guérillères (1969): ‘Houve um tempo em que não eras escrava, lembra-te disso. Faz um esforço para te lembrares. Se não conseguires, inventa'” (2019), citado de uma entrevista com Avery Gordon a propósito do livro The Hawthorn Archive: Letters from the Utopian Margins, disponível em: https://transversal.at/blog/unshrinking-the-world. Tradução livre.

          Dani Issler Frédéric Sayer Stars and Stripes na Graça

          “Descubra Daniel Buren na Graça” é uma Experiência Airbnb™ que oferece uma visita guiada a pé, no animado bairro da Graça (pelo preço de 25€), na qual se pode visitar cinco locais históricos em que o célebre artista francês Daniel Buren (n. 1938) afixou as suas criações improvisadas, “Affichages Sauvages”, em 1980. A este périplo segue-se a visita à casa do artista luso-americano Ricardo Valentim (n. 1978), que oferece as melhores vistas panorâmicas de Lisboa e onde são servidos refrescos e a conversa sobre arte conceptual passa da esfera pública para a privada.

           

          Depois de ter criado a página no site da empresa, Valentim, o responsável pelo desenvolvimento do conceito e pela iniciativa, foi contactado por um representante da Airbnb, um jovem brasileiro residente em Dublin, para confirmar as informações da oferta, e num telefonema de uma hora ajudou-o a desenvolver o descritivo e a estratégia de marketing. Depois disso, tirou umas fotografias com a ajuda de amigos e assim que foram colocadas na página o projeto estava pronto a arrancar. Uma experiência turística artística e um potencial pequeno negócio. Isto foi no início de 2020. Começaram a chegar as reservas, fizeram-se três eventos e veio a Covid. Os turistas desapareceram e a vizinhança tornou-se silenciosa.

           

          Valentim, um residente de curta duração na Graça que vivera em Lisboa entre 1997 e 2003, período durante o qual estudou arte e antropologia, acabou por passar aí grande parte do período de 2018 a 2021, em trânsito entre Nova Iorque e San Diego com a sua família. Durante estes anos, experimentou a sua própria gentrificação e empenhou-se na ideia de um projeto site-specific associando-se a um contexto que estava literalmente à porta de sua casa: a descoberta de uma nota de rodapé ignorada pela história da arte local.

           

          Em fevereiro de 1980 Buren foi convidado pelo galerista Mário Teixeira da Silva para criar uma instalação, a travail in situ, que esteve em exibição durante mais de um mês no seu apartamento que era também o Módulo Centro Difusor de Artei. Em imagens da exposição podemos ver uma instalação composta por listras vermelhas e brancas nas ombreiras das portas, nos vidros das janelas, nos revestimentos de madeira e nas paredes, que desconstruíam o que parecia ser uma típica sala de estar burguesa. No dia seguinte à inauguração, Buren tomou também a liberdade de usar restos dos materiais que sobraram da exposição e instala-los em alguns prédios situados no bairro da Graça, afixando as suas listras em justaposição com os tradicionais azulejos. Uma rápida operação seguida de uma sessão fotográfica para arquivo do artista.

           

          Aparentemente o projeto remete Buren para segundo plano e Valentim esclarece que não se trata de uma homenagem. A passagem de Buren pela Graça, seis anos depois da queda da ditadura, aconteceu numa altura-chave de transição na sua carreira: depois de ter sido um dos pioneiros do minimalismo e de ter repensado a circulação da arte fora das instituições ultrapassando as noções comuns de mercado da arte, Buren estava tornar-se extremamente comercial com trabalhos para centros comerciais e átrios de hotéis, já para não falar do seu icónico Les Deux Plateaux (1986), apresentado posteriormente em Paris.

           

          A experiência Airbnb oferece uma brochura que Valentim desenhou e produziu para a visita, na qual vemos imagens históricas a preto-e-branco. São as mesmas imagens disponíveis a cores nos arquivos do site de Buren, tiradas por ele na altura. Estas fotos, sobretudo de pormenores, estão justapostas na brochura a fotos mais recentes tiradas por Valentim, respeitando o enquadramento das imagens de Buren, possibilitando uma verificação em tempo real durante a visita. Ao optar pelo preto-e-branco nas fotos, Valentim faz com que seja mais simples e explícita a diferença entre o antes e o depois, encorajando também os participantes a tirarem as suas próprias fotos a cores. O que nos é dado a ver são as listras alinhadas com os azulejos por trás. E se as listras já desapareceram há muito, o situ continua intacto.

           

          Valentim, que passou mais de uma década em Nova Iorque e é já um cidadão norte-americano, quer fazer-se passar por um guia turístico artístico local “autêntico”, mas a sua crítica ao provincialismo da cena artística lisboeta é a perspetiva de alguém que ao mesmo tempo é daqui mas conhece outras realidades. A experiência performativa de duas horas é dirigida a turistas que também estão de passagem. Uma “visita imaginária” que santifica o espaço público sem valor artístico de um bairro de trabalhadores, sem instituições artísticas, e que o profana. No entanto, ao trazer as pessoas e ao estimular a conversa torna-se mais real do que o cubo branco.

           

          Esta “Experiência” tem paralelismos com aqueles momentos em que estamos a navegar na internet e nos perdemos na exploração de um detalhe sem importância da biografia de um artista, que tem mais que ver com a nossa própria vida, com os nossos interesses, o nosso gosto, etc. Esse pormenor pode ser considerado completamente irrelevante para o entendimento da obra do artista mas pode inspirar ou desencadear fortes reações e até mudanças em nós próprios. Este projeto pode ser olhado com os termos que o crítico francês Nicholas Bourriaud criou na sua teoria da “estética relacional”, designando os artistas como facilitadores em lugar de criadores e a arte como uma troca de informação entre artistas e observadores, abrindo caminho à possibilidade de provocar mudanças sociais. Não por acaso, em setembro de 2018 centenas de lisboetas saíram à rua em protesto contra o aumento desregulado das rendas, por causa da proliferação dos arrendamentos locais de curta duração.

           

          Procurar as listras perdidas de Buren também serve para chamar a atenção para as excecionais fachadas de azulejos, banalizadas pelos locais mas tão especiais e reconfortantes para quem as vê. Valentim valida o que “sentimos” ter um certo valor artístico, embora a princípio nos pareça apenas decorativo: o nosso entusiasmo com a beleza da esquina lisboeta. Em “Affichages Sauvages” (“Exibições Selvagens”) existe também alguma violência que é reinscrita, uma espécie de desobediência social, especialmente por ter sido feita por um estrangeiro de visita. Como Buren, o turista é seduzido pela ideia de deixar uma marca.

          É possível considerar que a performance de Valentim questiona ironicamente o turismo de massas: de facto, a Graça atravessa um processo de gentrificação que se relaciona com os alugueres de curta duração. Se o turismo de massas transforma monumentos, paisagens e lugares pitorescos em simulacros, a experiência de Valentim funciona na direção contrária e permite-nos ver o que o tempo tornou invisível – o rasto de Buren. É o percurso inverso do simulacro, que aniquila o real e satura a imagem: Valentim levanta o véu do vazio – a entropia do tempo – para nos trazer de volta o passado, encenando ironicamente o absurdo do turismo.

           

          Atualmente o turismo de massas baseia-se, mais do que nunca, em imagens e em fotografias: os turistas já conhecem os lugares que vão visitar porque já os viram online. O que fazemos enquanto turistas é verificar se a realidade corresponde à sua versão imaginada. Atribuímos o hashtag certo à imagem geolocalizada. Susan Sontag, no seu ensaio Sobre fotografia (1973), antecipou esta “poluição mental” imagética que dissolve o real. Desta vez, não é só o mundo sensível que é feito de simulacros, mas sim o suporte fotográfico que duplica o simulacro, tal como afirma Jean Baudrillard quando se refere ao desaparecimento da mensagem em favor do medium em Simulacres et simulation (1981), corroborando a nossa perceção do turismo de massas e as suas ligações à fotografia.

          Além disso, Valentim incorpora na sua experiência um aperitivo inspirado por Buren que joga com os clichés franceses (“vinho e queijo”) e com a paragem obrigatória para os turistas franceses na Graça (“vinho com vista”). No vasto supermercado de lixo imaginário produzido pelo turismo de massas, Valentim reflete sobre o que terá desaparecido e sobre o que apenas o cérebro e o conhecimento adquirido em encontros ao vivo conseguem reconstituir. A saturação de imagens abre espaço para o vazio e o consumo, o que, por sua vez, conduz à impossibilidade de possuir apenas com o olhar.

           

          Valentim exerce a sua autoridade artística para garantir autenticidade. Como se diz no grande filme de Almodóvar: “Custa muito ser autêntico, e não podemos ser forretas com estas coisas porque quanto mais autêntico fores, mais te vais parecer com o que sonhaste ser.” Adorno definiu uma vez a arte como sendo conteúdo que ganhou forma. Neste caso, testemunhamos um conteúdo que se transformou num formato. Numa época de glocalismo e airbnbização, ao utilizar os meios de produção performativos americanos à sua disposição, Valentim prova que ele, tal como o próprio Buren, vive e trabalha in situ.

           

          i Módulo — Centro Difusor de Arte foi uma das primeiras galerias privadas a abrir no pós-25 de Abril, inicialmente no Porto, em 1975, numa casa da avó do galerista à Rua da Boavista. Propunha um espaço cultural orientado para as novas tendências da arte contemporânea, sobretudo fotografia e arte pós-conceptual, apostando em artistas estrangeiros e que não tinham carreira expositiva em Portugal. Mário Teixeira muda-se para Lisboa em 1979, instalando a galeria, até 1988, na casa que habitava no número 54 da Av. António Augusto de Aguiar, 5º Dto. Como explica numa entrevista a Sandra Jürgens publicada na artecapital.net em 2012, “a galeria era no meu apartamento, metade era galeria, metade era habitação […] Lembro-me que quando fiz aquela instalação do Daniel Buren, gente bem sonante, afirmou que eu tinha transformado a galeria numa barraca de praia e que aquilo não era arte.” A galeria hoje existe na calçada dos Mestres¸n.º 34 A/B, nas Amoreiras. (N. do E.)

          Alice Dusapin Christophe Wavelet Ensinar Uma Coisa Que Não Se Sabe

          Christophe Wavelet – Olá, querida Alice.

           

          Alice Dusapin – Olá, Christophe.

           

          C – Que dia é hoje?

           

          A – Hoje é dia 5 de Julho de 2021.

           

          C – É isso. Tu estás em Roma, no salão dos bolseiros da Villa Medici. E eu, mais modestamente, estou no meu apartamento parisiense, que é do mais haussmanniano que há.

          O que é que te tem ocupado em termos de trabalho, desde que chegaste à Villa Medici?

           

          A – Muitas coisas, muito diferentes, o que é uma metodologia de trabalho que tenho tentado combater, mas ao mesmo tempo acho que só assim é que consigo avançar, ou seja, fazendo muitas coisas em simultâneo. Diria que o maior projecto foi acabar de escrever o livro sobre o Wolfgang Stoerchle. É a primeira monografia sobre este artista, que era videasta e performer, nascido na Alemanha mas naturalizado norte-americano.

           

          C – Em que ano é que ele chegou aos Estados Unidos?

           

          A – Chegou ao Canadá em 1959 e a Los Angeles em 1962. Nunca mais deixou os Estados Unidos e morreu prematuramente em 1976, aos 32 anos.

           

          C – Sabes o que o terá levado a deixar a sua Alemanha natal para se instalar primeiro no Canadá e depois nos Estados Unidos?

           

          A – É difícil identificar claramente as razões, mas o pai do Wolfgang era um homem muito violento e a mãe, Carolina, que tinha sete filhos, decidiu deixá-lo e começar uma vida nova longe dali. Os irmãos do Wolfgang partiram primeiro, em 1957, e depois a Carolina e o Wolfgang juntaram-se a eles em 1959. Ficaram juntos durante três anos, foi um período muito bonito.

           

          C – Que idade tinha Stoerchle nessa altura?

           

          A – Nasceu em 1944, portanto tinha 15 anos. Conheci o irmão mais velho do Wolfgang, Peter, que me contou que, na altura, o Wolfgang estava a trabalhar num rancho. Era guia, fazia passeios a cavalo. E uma noite, ao conversarem os dois sobre o facto de se aborrecerem muito no clima frio canadiano, decidiram, primeiro na brincadeira, deixar o Canadá e ir para a Califórnia, mas fazendo a travessia a cavalo. No fundo, queriam concretizar a fantasia do western americano: tornarem-se cowboys da maneira mais cliché, e fizeram-no! 

           

          C – De onde partiram, no Canadá?

           

          A – Partiram de Uxbridge, uma cidadezinha no norte, a 29 de Janeiro de 1962, e pensaram que iam demorar seis meses. Já era um projecto bastante ambicioso, mas chegaram mais tarde do que o esperado, a 23 de Dezembro de 1962. Do mesmo ano, portanto foi um ano de viagem.

          Encontrei pela primeira vez o irmão Peter Stoerchle, em 2017, em Berlim, e ele mostrou-me muitos documentos dessa travessia. O Wolfgang voltaria a este acontecimento a posteriori. Em 1970, foi professor de vídeo na CalArts e, na biografia de apresentação do curso, assinala-se que a sua primeira performance foi a travessia dos Estados Unidos a cavalo. Foi por isso que eu quis que o livro começasse assim. E depois fez parte do trabalho do Wolfgang voltar à sua própria história… era o seu jogo. Ele conhecia – e dominava – os modos de criar um mito a partir de experiências íntimas, mas que ao mesmo tempo podiam produzir muitas fantasias. Foi o que aconteceu neste caso. E quando comecei a entrevistar artistas que o conheceram, todos me disseram que a sua melhor performance foi a travessia a cavalo. 

           

          C – Não é coisa pouca, passar um ano no lombo de uma pileca para chegar a Los Angeles, é de loucos.

           

          A – É de loucos. E o que foi uma maluquice nesta investigação é que, no início, eu julgava que ia ser um pequeno projecto, uma pequena publicação sobre a obra e a vida muito esquiva de Stoerchle; mas depois transformou-se num enorme projecto, quatro anos da minha vida, três exposições monográficas e um livro de 420 páginas.

          Comecei esta investigação graças ao Christophe Daviet-Théry, que me mostrou um livrinho publicado em 1996, na sequência de uma exposição que o Paul McCarthy tinha organizado no Magasin [Centre National d’Art Contemporain de Grenoble], dedicada a três importantes figuras europeias que tinham marcado significativamente a Costa Oeste [dos EUA], e que eram o Bas Jan Ader, o Guy de Cointet e o Wolfgang. O Bas Jan Ader e o Guy de Cointet tiveram um reconhecimento…

           

          C – Tardio.

           

          A – Tardio, e ligado a essa exposição! Esse foi o ponto de partida e, ao fazer alguma pesquisa, descobri muito rapidamente, por um lado, que não havia nada na Europa e, por outro, que em 2009, a sua segunda mulher, a Carol Lingham – ele morreu aos 32 anos mas foi casado duas vezes – vendeu todo o arquivo de vídeo ao Getty Research Institute [L. A.]. Fui então aos arquivos, a pensar que ia ver vídeos, consultar arquivos em papel, documentos, cartas, tudo isso, e voltar com material suficiente para fazer um pequeno projecto com o Christophe Daviet-Théry, era essa a ideia inicial. Mas, ao chegar a L.A., apercebi-me rapidamente de que muitas pessoas tinham vontade de falar sobre ele, e que o processo ia ser longo. O Wolfgang deu uma cadeira na CalArts que partilhava com o compositor Harold Budd, que aliás faleceu este ano. Tinham vários alunos em comum, e a ideia era que o Harold Budd ensinava arte e performance e o Wolfgang ensinava música. Tinham uma cadeira cruzada muito bonita.

          A partir daí conheci muitos compositores norte-americanos e também artistas plásticos porque na altura, nas aulas do Wolfgang, os alunos eram por exemplo David Salle, Eric Fischl, Matt Mullican ou James Welling. Tudo isto para dizer que, de repente, percebi que havia imensas coisas a fazer, e como o trabalho dele era essencialmente performativo, e usava também muito o vídeo, o conjunto das minhas fontes seriam testemunhos. A sua obra é constituída por uma história oral e, por isso, tinha de fazer muitíssimas entrevistas – acabei por fazer 37!

           

          C – E é isso que está no livro?

           

          A – Não, no livro há cinco entrevistas com os artistas David Salle, Matt Mullican, Paul McCarthy, o compositor Daniel Lentz e a galerista e curadora Helene Winer. Mas muitas das outras entrevistas – e falo bastante sobre isso na introdução – foram utilizadas como base para o livro. Porque no livro há uma descrição e um comentário para cada um dos vídeos (são 39), para todas as performances, todos os quadros, esculturas, ephemera. E sempre que encontrava alguém que dizia coisas interessantes sobre o trabalho dele acrescentava a citação. Portanto, o livro é pontuado por todas essas vozes. 

           

          C – Estou a ver, é incrível! A verdade é que te deparaste com um momento que é, de facto, a idade de ouro da CalArts, e que fez a sua reputação até hoje. Que sorte, foi um tesouro, é mesmo a caverna de Ali Babá.

           

          A – Foi extraordinário e, passado um ano e meio, consegui o apoio para a investigação em teoria e crítica de arte do CNAP [Centre National des Arts Plastiques], o que me permitiu ir a Oklahoma City, onde o Wolfgang estudou entre 1965 e 1968 e onde conheceu a primeira mulher. Ele tinha passado pela cidade durante a viagem a cavalo e queria lá voltar. No entanto, ainda ficou em Los Angeles durante uns tempos, e trabalhou primeiro para uma revista chamada Teen Screen. Era uma revista do género cor-de-rosa da altura. Aí, aprendeu a fazer paginação, ganhou o gosto pela composição de manchetes e brincou um pouco com os boatos.

           

          C – Portanto, ao trabalhar para essa revista, ele formou-se para ser uma espécie de segundo Warhol, em termos de “como compreender o sistema da publicidade”?

           

          A – Sim, e sem qualquer perspectiva artística. Foi uma coisa que aconteceu antes da sua carreira de artista, por isso julgo que terá sido muito profundo.

           

          C – Lembra-te que, de todos os fotógrafos ocidentais vivos, aquele que tem agora a carreira mais fulgurante é um rapaz que começou a trabalhar para umas revistas em voga, se bem que fossem revistas de moda, o Tillmans. Mas tal como o Warhol – que quando trabalhou como ilustrador para a Vogue e para a Harper’s Bazaar também não era numa perspectiva artística –, depois usou isso no trabalho.

          Mas, enfim, é quando está em Oklahoma que ele conhece a primeira mulher?

           

          A – Sim, a Karen Couch Wieder.

           

          C – E é nessa altura que se casa com ela?

           

          A – Sim, é uma história engraçada. Digamos que oficialmente casou com ela em Oklahoma mas, na realidade, casaram noutro estado dois anos depois. O pai da Karen estava a morrer, e então fizeram crer à família que eram casados. A Karen era filha do reitor da universidade. Foi uma história de amor muito, muito bonita. Ficaram três anos juntos em Oklahoma, a mãe do Wolfgang vivia com eles. Havia uma espécie de contrato tácito entre eles: até ele terminar os estudos, ela continuaria ali para apoiar o filho, tratar da casa, cozinhar. A Karen aceitou esta trilogia inusitada. Ainda se mudou com eles para Santa Bárbara e quando se foi embora, em 1970 – na altura em que o Wolfgang começou a dar aulas na CalArts –, foi evidente: ele foi emagrecendo, emagrecendo, emagrecendo, emagrecendo.

          Mas voltando à capacidade do Wol